domingo, 17 de novembro de 2024

FESTA DE ANIVERSÁRIO


Por FERNANDO SABINO (BH, 12/10/1923-Rio de Janeiro, 11/10/2004)
 

 
Leonora chegou-se para mim, a carinha mais limpa desse mundo: 
 – Engoli uma tampa de coca-cola. 
Levantei as mãos para o céu: mais essa agora! Era uma festa de aniversário, o aniversário dela própria, que completava seis anos de idade. Convoquei imediatamente a família: 
 – Disse que engoliu uma tampa de coca-cola. 
A mãe, os tios, os avós, todos a cercavam, nervosos e inquietos. Abre a boca minha filha. Agora não adianta: já engoliu. Deve ter arranhado. Mas engoliu como? Quem é que engole uma tampa de cerveja? De cerveja, não: de coca-cola. Pode ter ficado na garganta – urgia que tomássemos uma providência, não ficássemos ali, feito idiotas. Peguei-a no colo: 
– Vem cá minha filhinha, conta só pra mim: você engoliu coisa nenhuma, não é isso mesmo? – Engoli sim papai! 
Ela afirmava com decisão. Consultei o tio, baixinho: o que é que você acha? Ele foi buscar uma tampa de garrafa, separou a cortiça do metal: 
 – O que é que você engoliu: isto... Ou isto? 
– Cuidado que ela engole outra. – Adverti. 
– Isto! – E ela apontou com firmeza a parte de metal. Não tinha dúvida: pronto-socorro. Dispus-me a carregá-la, mas alguém sugeriu que era melhor que ela fosse andando: auxiliava a digestão. No hospital, o médico limitou-se a apalpar-lhe a barriguinha, cético: 
– Dói aqui, minha filha?  Quando falamos em radiografia, revelou-nos que o aparelho estava com defeito: só no pronto-socorro da cidade. Batemos para o pronto-socorro da cidade. Outro médico nos atendeu com solicitude: 
– Vamos já ver isto.  Tirada a chapa, ficamos aguardando ansiosa revelação. Em pouco o médico regressava: 
Engoliu foi a garrafa. 
– A garrafa? – Exclamei. Mas, era uma gracinha dele, cujo espírito passava muito ao largo da minha aflição: eu não estava para graças. Uma tampa de garrafa! Certamente precisaria operar – não haveria de sair por si mesma. O médico pôs-se a rir de mim: 
– Não engoliu coisa nenhuma. O senhor pode ir descansado. 
– Engoli! – afirmou a menininha. Voltei-me para ela: 
– Como é que você ainda insiste minha filha? 
– Que eu engoli, engoli. 
– Pensa que engoliu. – emendei. 
– Isso acontece. – sorriu o médico: 
– Até com gente grande. Aqui já teve um guarda que pensou ter engolido o apito. 
– Pois eu engoli mesmo. – comentou ela, intransigente. 
– Você não pode ter engolido – arrematei já impaciente: 
– Quer saber mais do que o médico? 
– Quero. Eu engoli, e depois desengoli! – Esclareceu ela. 
Nada mais havendo a fazer, engoli em seco, despedi-me do médico e bati em retirada com toda a comitiva. 
 
(Quadrante. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962.)

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