Por FERNANDO SABINO (BH, 12/10/1923-Rio de Janeiro, 11/10/2004)
Leonora chegou-se para mim, a carinha mais limpa desse mundo:
– Engoli uma tampa de coca-cola.
Levantei as mãos para o céu: mais essa agora! Era uma festa de aniversário, o aniversário dela própria, que completava seis anos de idade. Convoquei imediatamente a família:
– Disse que engoliu uma tampa de coca-cola.
A mãe, os tios, os avós, todos a cercavam, nervosos e inquietos. Abre a boca minha filha. Agora não adianta: já engoliu. Deve ter arranhado. Mas engoliu como? Quem é que engole uma tampa de cerveja? De cerveja, não: de coca-cola. Pode ter ficado na garganta – urgia que tomássemos uma providência, não ficássemos ali, feito idiotas. Peguei-a no colo:
– Vem cá minha filhinha, conta só pra mim: você engoliu coisa nenhuma, não é isso mesmo? – Engoli sim papai!
Ela afirmava com decisão. Consultei o tio, baixinho: o que é que você acha? Ele foi buscar uma tampa de garrafa, separou a cortiça do metal:
– O que é que você engoliu: isto... Ou isto?
– Cuidado que ela engole outra. – Adverti.
– Isto! – E ela apontou com firmeza a parte de metal.
Não tinha dúvida: pronto-socorro. Dispus-me a carregá-la, mas alguém sugeriu que era melhor que ela fosse andando: auxiliava a digestão.
No hospital, o médico limitou-se a apalpar-lhe a barriguinha, cético:
– Dói aqui, minha filha? –
Quando falamos em radiografia, revelou-nos que o aparelho estava com defeito: só no pronto-socorro da cidade.
Batemos para o pronto-socorro da cidade. Outro médico nos atendeu com solicitude:
– Vamos já ver isto. –
Tirada a chapa, ficamos aguardando ansiosa revelação. Em pouco o médico regressava:
– Engoliu foi a garrafa.
– A garrafa? – Exclamei. Mas, era uma gracinha dele, cujo espírito passava muito ao largo da minha aflição: eu não estava para graças. Uma tampa de garrafa! Certamente precisaria operar – não haveria de sair por si mesma.
O médico pôs-se a rir de mim:
– Não engoliu coisa nenhuma. O senhor pode ir descansado.
– Engoli! – afirmou a menininha.
Voltei-me para ela:
– Como é que você ainda insiste minha filha?
– Que eu engoli, engoli.
– Pensa que engoliu. – emendei.
– Isso acontece. – sorriu o médico:
– Até com gente grande. Aqui já teve um guarda que pensou ter engolido o apito.
– Pois eu engoli mesmo. – comentou ela, intransigente.
– Você não pode ter engolido – arrematei já impaciente:
– Quer saber mais do que o médico?
– Quero. Eu engoli, e depois desengoli! – Esclareceu ela.
Nada mais havendo a fazer, engoli em seco, despedi-me do médico e bati em retirada com toda a comitiva.
(Quadrante. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962.)
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