domingo, 24 de novembro de 2024

A LIBERDADE DE IMPRENSA NA ÉPOCA DE D. PEDRO II


Por JOSÉ MURILO DE CARVALHO

Pedro II do Brasil, cognominado o Magnânimo (✰ Rio de Janeiro, 02/12/1825 ✞ Paris, 05/12/1891) / Crédito: uploads/pedro_ii.jpg - Getty Images


Capítulo 11. Auto-retrato
 
Livro: D. Pedro II. Ser ou não ser.  (pp. 76-80; 84-86)
 
O imperador escreveu 5.500 páginas de diário, registradas a lápis em 43 cadernos. As anotações começam em 2 de dezembro de 1840, primeiro aniversário após a maioridade, e terminam em 1º de dezembro de 1891, um dia antes do aniversário, quatro dias antes da morte. Há algumas longas interrupções, cujas causas são ignoradas, como entre 1842 e 1859, entre 1863 e 1871, entre 1881 e 1887. Mesmo com as falhas, seu diário só encontra paralelo, entre os governantes brasileiros, no de Getúlio Vargas.
 
Mas quem procurar nele confissões, revelações, indiscrições, grandes reflexões, ficará desapontado. É quase todo dedicado ao registro de atividades diárias, conversas, despachos, visitas, teatros, leituras.  Os de viagem, então, são muito detalhistas, informam horários, distâncias, temperatura, altitudes. Os do exílio, quando o tempo disponível e a disposição psicológica eram propícios a maiores expansões, trazem vários registros de banalidades (...) Apenas esporadicamente brota uma anotação menos técnica, uma observação aguda, um comentário interessante, uma expressão de sentimento.

A exceção é o caderno IX, que se inicia em 31 de dezembro de 1861 e termina em 5 de janeiro de 1863, em plena crise do rompimento de relações diplomáticas com a Inglaterra. D. Pedro tinha então 37 anos e mais de vinte de governo, e acumulara muita experiência de vida e de administração. Entre 1859 e 1861, por alguma razão não revelada, decidiu fazer algo diferente, mais pessoal, mais autobiográfico, mais opinativo, embora sem abandonar a discrição. Disse mesmo ter queimado apontamentos anteriores e prometeu ser resumido em seus registros. A parte pública de sua vida, argumentou, estava nos periódicos, a particular era monótona. Pela excepcionalidade, as anotações merecem citação mais extensa, sobretudo as referentes ao dia 31 de dezembro de 1861. Elas começam com um esboço de auto-retrato: 
Pouco direi do indivíduo. Tenho espírito justiceiro, e entendo que o amor deve seguir estes graus de preferência: Deus, humanidade, pátria, família e indivíduo. Sou dotado de algum talento; mas o que sei devo-o sobretudo à minha aplicação, sendo o estudo, a leitura e a educação de minhas filhas, que amo extremosamente, meus principais divertimentos. Louvam minha liberalidade; mas não sei por quê; com pouco me contento, e tenho oitocentos contos por ano.
Nasci para consagrar-me às letras e às ciências, e, a ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou ministro à de imperador. Se ao menos meu Pai imperasse ainda, estaria eu há 11 anos com assento no Senado e teria viajado pelo mundo.
Prosseguem enunciando um breve  credo político, em que o imperador repete algumas ideias já expostas no documento entregue ao marquês de Paraná: 
Jurei a Constituição; mas ainda que não a jurasse, seria ela para mim uma segunda religião. Procuro cumprir meus deveres de monarca constitucional, e regulo meu procedimentos pelos princípios seguintes: os atos do poder moderador não admitem responsabilidade legal; mas, carecendo às vezes de defesa, os ministros que entenderem não poder fazê-lo têm direito de retirar-se. Estes atos não têm referenda obrigada.
Sobre os atos do poder executivo tem o imperador, como chefe desse poder, inteira inspeção, podendo manifestar sempre a sua opinião com toda a liberdade de exigir dos ministros. Deve ter todo o escrúpulo em insistir em sua opinião para evitar os males da subserviência e desgostos da parte dos ministros. Cumpre ao monarca ser franco para com os ministros; mas fora das ocasiões em que se resolvam os negócios, deve ser o mais reservado possível, ouvindo contudo a todos, e procurando esclarecer por todos os modos convenientes o seu juízo. A respeito do conceito, que forme o monarca dos indivíduos, todo o escrúpulo é pouco, e deve lembrar-se sempre de que os ministros desculpam-se as mais vezes com a opinião dele, ou que lhe imputam, quando se acham empenhados interesses individuais.
Não sou de nenhum dos partidos para que todos apóiem nossas instituições; apenas os modero, como permitem as circunstâncias, julgando-os até indispensáveis para o regular andamento do sistema constitucional, quando, como verdadeiros partidos e não facções, respeitam o que é justo.
Passam para princípios éticos e regras de comportamento: 
Não tenho tido, nem tenho validos, caprichando mesmo em evitar qualquer acusação a tal respeito, sobretudo quanto a validas. Dizem que por esse nímio escrúpulo não poderei criar amigos; melhor, não os terei falsos quando os haja granjeado.
Não posso admitir favor diferente de justiça; pois que a não ser injustiça é ignorância de justiça; a balança da justiça não se pode conservar tão ouro-fio que não penda mais para um lado. Também entendo que despesa inútil é furto à Nação, e só o poder legislativo é competente para decidir dessa utilidade. A nossa principal necessidade política é a liberdade de eleição; sem esta e a de imprensa não há sistema constitucional na realidade, e o ministério que transgride ou consente na transgressão deste princípio é o maior inimigo do Estado e da monarquia. Minhas ideias a respeito das eleições e da imprensa do governo acham-se num papel que tem o Presidente do Conselho.
Leio constante todos os periódicos da Corte e das províncias os que, pelos extratos que deles se fazem, me parecem mais interessantes. A tribuna e a imprensa são os melhores informantes do monarca.
Acho muito prejudicial ao serviço da Nação a mudança repetida de ministros; o que sempre procuro evitar, e menos se daria se as eleições fossem feitas como desejo; a opinião se firmaria, e o procedimento dos ministros seria mais conforme a seus deveres, reputando eu um dos nossos grandes males a falta geral de responsabilidade efetiva.
Sobre grande número das leis promulgadas, e de que se tem falado como necessárias, existe a minha opinião escrita em papéis, que tem o Presidente do Conselho; mas sempre direi aqui que fui sempre partidário da eleição por círculos, e me opus fortemente aos círculos de mais de um; que igual oposição fiz à lei relativa à nacionalidade dos filhos menores de estrangeiros, sendo aqueles nascidos no Brasil; que não aprovei a lei sobre o casamento dos católicos, mas a proposta do governo, e que entendo ser indispensável a dispensa do serviço ativo da Guarda Nacional. Menor centralização administrativa também é urgente, assim como melhor divisão das rendas geral, provincial e municipal, convindo vigorar este último elemento.
Nunca entendi a conciliação como a quiseram deturpar; a minha política sempre foi a da justiça em toda a latitude da palavra, isto é, da razão livre de paixões, tanto quanto os homens a podem alcançar.
E terminam com uma tímida confissão pessoal concernente às relações com a imperatriz: 
Confesso que em 21 anos muito mais se poderia ter feito; mas sempre tive o prazer de ver os efeitos benéficos de 11 anos de paz interna devidos à boa índole dos brasileiros, e viveria inteiramente tranquilo em minha consciência se meu coração já fosse um pouco mais velho do que eu; contudo respeito e estimo sinceramente minha mulher;  cujas qualidades constitutivas do caráter individual são excelentes.
Essa auto-imagem foi reiterada e complementada na correspondência particular e em conversas informais. Revelava com clareza o conflito entre duas identidades, as de d. Pedro II e de Pedro d'Alcântara. Este tinha paixão pelos livros, leituras, conversas com sábios, considerava o ofício de imperador um destino ingrato, uma pesada cruz, e os rituais do poder uma grande maçada. Era o Pedro que emergia com força assim que o monarca transpunha as fronteiras do país, transmutado num viajante comum. O outro, d. Pedro  II, dizia que, uma vez que o destino lhe reservara o papel de imperador, ele o cumpriria rigorosamente, de acordo com a Constituição e com as leis do país. Era a identidade que predominava dentro do Brasil, onde  era visto como um governante cioso de suas obrigações e de sua autoridade, ao ponto de concentrar excessivamente o poder e ofuscar todos ao redor. A imagem de imperador era reforçada pelo recurso a meios de exaltação de sua figura pública, como rituais, cerimônias, retratos, fotos, quadros, bustos.
 
Um dos exemplos mais conhecidos desse esforço de realçar a imagem pública do imperador é o quadro de Pedro Américo intitulado D. Pedro na abertura da Assembleia Geral, pintado em 1872. A abertura e o encerramento das sessões das câmaras eram sempre solenes. O monarca exibia então toda a pompa da realeza, manto forrado com papos de galo-da-serra, cetro, coroa, mão de justiça, e lia perante deputados e senadores a Fala do Trono, isto é, o programa do governo. Pedro Américo colocou d. Pedro no centro do quadro, imponente,  própria encarnação do poder monárquico. Sintomaticamente, no entanto, o quadro não foi encomendado nem sugerido pelo imperador. A encomenda foi do visconde de Abaeté, com destaque, naturalmente, no meio do pequeno grupo de políticos incluídos na obra. 
 
Dom Pedro II na abertura da Assembléia Geral”. Pintura de Pedro Américo 1872. Acervo do Museu Imperial de Petrópolis

 
(...)
Retomou no diário de 1862 alguns dos temas prediletos, como o da liberdade das eleições e da imprensa. Sobre a imprensa, sua posição foi sempre a mesma e se expressava de maneira simples, como disse a Caxias: A imprensa se combate com a imprensa. Essa postura foi mantida ao longo de todo o reinado. Durante a Guerra contra o Paraguai, o jornal Ba-ta-clan, publicado em francês no Rio de Janeiro por Charles Berry, ridicularizava os chefes militares brasileiros. D. Pedro impediu que fosse fechado, e protestava sempre que alguma violência era exercida contra jornais. 
 
Somando-se essa postura do imperador com a vigência do anonimato, pode-se dizer que a imprensa nunca foi tão livre no Brasil como em seu reinado. Os ataques pessoais em geral vinham nas seções de "a pedidos", também chamados de "ineditoriais". Os "a pedidos" eram pagos e serviam igualmente para veicular reclamações contra o governo, polícia, devedores. Até o circunspeto Jornal do Commercio publicava "a pedidos". Era a atração dos leitores. Quando ninguém os encomendava, os próprios jornalistas se encarregavam de os inventar. Chegava-se ao ponto de haver pessoas especializadas em assumir a autoria de ataques pessoais. O jornalista Ferreira de Araújo, editor por 25 anos da Gazeta de Notícias, informa que o testa-de-ferro "faz do ofício de estar preso um modo de vida". Não havia honra que estivesse a salvo dos pasquins da época, nem mesmo a do monarca. O mais famoso desses pasquins, O Corsário, apenas exagerava um pouco mais. Seu redator, Apulco de Castro, dizia quase tudo sobre todos, inclusive sobre o imperador. O único freio a esse tipo de abuso era a reação pessoal. Apulco foi assassinado por militares a quem ofendera. 
 
A defesa intransigente da liberdade de expressão tinha alto custo para d. Pedro. Ele, Isabel e o conde d’Eu eram vítimas constantes de ataques de jornais como A República e da Revista Illustrada de Ângelo Agostini. Satirizavam o físico do monarca, chamando-o Rei Caju, por causa do queixo projetado para a frente, criticavam-lhe as viagens, ridicularizavam sua mania de sábio e os títulos que recebia. José do Patrocínio não dava trégua na Gazeta da Tarde. A princesa Isabel, a quem mais tarde exaltaria como a Redentora, era acusada por ele de não ter postura, nem classe, de ser ignorante e beata. Agostini representou-a numa de suas atividades mais criticadas: descalça, lavando uma igreja de Petrópolis. Para injetar mais veneno, caracterizou a varredura como penitência imposta pelo núncio papal. Os ataques atingiram o auge durante o episódio do roubo das jóias. Mas não arrefeceram nem mesmo durante a doença do imperador nos três últimos anos do reinado. Nesse período, em que o diabetes se agravava e lhe causava sonolência, os caricaturistas, Agostini à frente, se deliciavam em representá-lo dormindo em reuniões ministeriais ou em sessões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Se anteriormente ele era criticado pelo excesso de poder pessoal, agora se tornara o Pedro Banana. 
 
Diplomatas europeus e outros observadores estranhavam a liberdade dos jornais brasileiros. Schreiner, ministro da Áustria, afirmou que o imperador era atacado pessoalmente na imprensa de modo que “causaria ao autor de tais artigos, em toda a Europa, e até mesmo na Inglaterra, onde se tolera uma dose bastante forte de liberdade, um processo de alta traição”. O ministro da França, Amelot, também registrou em 1887 que havia no Brasil uma liberdade ilimitada de imprensa e parlamentarismo exagerado
 
Uma das razões pelas quais o imperador defendia a liberdade de imprensa era o fato de considerar a imprensa, ao lado da tribuna, as duas principais fontes de informação para o governante. O Jornal do Commercio tinha mesmo uma seção intitulada Para sua majestade o imperador, em que se publicavam queixas e reclamações. A partir de 1854, d. Pedro mandou que se fizessem resumos da imprensa provincial, que também lia, para desespero dos ministros mal informados. Marcava com uma cruz os assuntos de interesse ou rabiscava comentários. Os ministros costumavam ainda comprar jornalistas, até os melhores, para defenderem suas políticas. O monarca condenava a prática e pregava a criação de um jornal oficial, no que nunca foi atendido.
 
 
II. OUTRAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS NOS MEUS BLOGS 
 
 
BRAGA, Francisco José dos Santos:  "Exposição Fotográfica: Uma Viagem ao Mundo Antigo — Egito e Pompeia", Blog do Braga, publicada em 28/04/2019.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2019/04/exposicao-fotografica-uma-viagem-ao.html
 
_____________________________: SONETOS DO EXÍLIO, POR IMPERADOR DOM PEDRO II, Blog de São João del-Rei, publicada em 06/07/2020.
 
CARVALHO, José Murilo de Carvalho: MACHADO DE ASSIS VAI À MISSA, Blog de São João del-Rei, publicada em 24/08/2023.
 
MUNIZ, Luciana & BOZZETTI, Rodrigo: MISSA CAMPAL DE 17/05/1888 CELEBRADA EM AÇÃO DE GRAÇAS PELA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA NO BRASIL,  Blog de São João del-Rei, publicada em 23/08/2023.
 
 

4 comentários:

Francisco José dos Santos Braga disse...

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Durante a gestão de d. Pedro II, o cidadão brasileiro gozou de liberdade individual nunca antes vista. O imperador, em plena maturidade, desempenhava o seu papel de monarca constitucional, cumprindo à risca a Carta Magna do país, a primeira Constituição de 1824.
Reconheceu-o mesmo Joaquim Nabuco, político, historiador e jornalista brasileiro, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, monarquista e abolicionista: “Durante todo o reinado, a liberdade de imprensa não foi uma só vez atacada. O seu principal cliente [da imprensa] era sempre a oposição, e ela bem o fazia; fazia questão que cada erro se fizesse público e discutido contra seus ministros; [o monarca] acreditava na rotação dos partidos políticos, e assegurou-a. O seu paço conservava-se aberto para o povo. Qualquer pessoa podia falar-lhe.”
Sobre essa época, quando se notava que a monarquia se tornara símbolo de autoridade sem tirania, escreveria Machado de Assis: “Quanto às minhas opiniões políticas, tenho duas, uma impossível, outra realizada. A impossível é a república de Platão. A realizada é o sistema representativo [a Monarquia]. É sobretudo como brasileiro que me agrada esta última opinião, e eu peço aos deuses (também creio nos deuses) que afastem do Brasil o sistema republicano, porque esse dia seria o do nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais alumiou."
Apesar da verdade expressa nas palavras desses dois escritores, uma das frases mais emblemáticas de d. Pedro II é aquela em que se declara republicano, como se verá no texto.
Endossando a opinião desses dois ícones brasileiros, o Blog de São João del-Rei transcreve parcialmente o capítulo 11, intitulado AUTO-RETRATO, extraído do livro D. Pedro II. Ser ou não ser, por JOSÉ MURILO DE CARVALHO.

TEXTO
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/11/a-liberdade-de-imprensa-na-epoca-de-d.html 👈

BREVE BIOGRAFIA DO AUTOR
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/08/colaborador-jose-murilo-de-carvalho.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Francisco José dos Santos Braga disse...

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
Caro professor Braga

Mais um notável texto de José Murilo de Carvalho. Dele se depreende a figura iminente de Pedro II. Curioso e também lamentável, diga-se, é que a norma liberal do monarca não tenha aparentemente inspirado as condutas de membros da família real brasileira que recentemente apoiam tendências de extrema-direita.
Grato.
Cupertino

José Carlos Hernández Prieto disse...

Caro confrade e amigo Francisco Braga; considero Pedro II o maior estadista que o Brasil teve. O golpe de 1889 foi uma desgraça que vitimou o Brasil e destruiu seu futuro parlamentarista, lançando-o na doença presidencialista que continua a travar o futuro dos países da vizinhança.

José Carlos Hernández Prieto disse...

Correção: "... que continua a travar o seu futuro e o dos países da vizinhança."