Por OLAVO BILAC
Crônica originalmente publicada na Gazeta de Notícias, edição de 13 de janeiro de 1901 e aqui transcrita de BILAC, O JORNALISTA-Crônicas volume 1, pp. 395-7. Organização: Antonio Dimas. São Paulo: Edusp/Ed. Unicamp/Imprensa Oficial de SP, 2006.
Vem perto o dia em que soará para os escritores a hora do irreparável desastre e da derradeira desgraça. Nós, os rabiscadores de artigos e notícias, já sentimos que nos falta o solo debaixo dos pés... Um exército rival vem solapando os alicerces em que até agora assentava a nossa supremacia: é o exército dos desenhistas, dos caricaturistas e dos ilustradores. O lápis destronará a pena: ceci tuera cela ¹.
O público tem pressa. A vida de hoje, vertiginosa e febril, não admite leituras demoradas, nem reflexões profundas. A onda humana galopa, numa espumarada bravia, sem descanso. Quem não se apressar com ela será arrebatado, esmagado, exterminado. O século não tem tempo a perder. A eletricidade já suprimiu as distâncias: daqui a pouco, quando um europeu espirrar, ouvirá incontinenti ² o “Deus te ajude” de um americano. E ainda a ciência humana há de achar o meio de simplificar e apressar a vida por forma tal que os homens já nascerão com dezoito anos, aptos e armados para todas as batalhas da existência.
Já ninguém mais lê artigos. Todos os jornais abrem espaço às ilustrações copiosas, que entram pelos olhos da gente com uma insistência assombrosa. As legendas são curtas e incisivas: toda a explicação vem da gravura, que conta conflitos e mortes, casos alegres e casos tristes.
É provável que o jornal-modelo do Século Vinte seja um imenso animatógrafo ³, por cuja tela vasta passem reproduzidos, instantaneamente, todos os incidentes da vida quotidiana. Direis que as ilustrações, sem palavras que as expliquem, não poderão doutrinar as massas nem fazer uma propaganda eficaz desta ou daquela ideia política. Puro engano. Haverá ilustradores para a sátira, ilustradores para a piedade.
Quando o diretor do jornal quiser dizer que o povo morre de fome, confiará as suas ideias a um pintor de alma fúnebre, que mostrará na tela os cadáveres empilhados pelas ruas, sob uma revoada de corvos sinistros; quando quiser dizer que político X é um cretino que não vê dois palmos adiante do nariz, apelará para o talento de um caricaturista, que, pintando a vítima com um respeitável par de imensas orelhas, claramente exprimirá o pensamento da folha. Demais, nada impede que seja anexado ao animatógrafo um gramofone de voz tonitruosa ⁴, encarregado de berrar ao céu e à terra o comentário, grave ou picante, das fotografias.
E convenhamos que, no dia em que nós, cronistas e noticiaristas, houvermos desaparecido da cena – nem por isso se subverterá a ordem social. As palavras são traidoras, e a fotografia é fiel. A pena nem sempre é ajudada pela inteligência; ao passo que a máquina fotográfica funciona sempre sob a égide ⁵ da soberana Verdade, a coberto das inumeráveis ciladas da Mentira, do Equívoco e da Miopia intelectual. Vereis que não hão de ser tão frequentes as controvérsias...
Quando é assassinado um homem, este jornal vem dizer que lhe coseram o copo a facadas, aquele que o asfixiaram, aquele outro que lhe estouraram o crânio a tiros de revólver. Ora, o público tem pressa: como há de perder tempo em procurar a verdade dentro deste acervo de contradições e de divergências?...
Há dias, foi preso um sujeito por espancar uma mulher. E os repórteres puseram em campo toda a sua fantasia, com tal gana que o pobre homem veio ontem a público elucidar o caso, conforme se vê nesta sua declaração, textualmente transcrita dos "a pedido"do Jornal do Comércio: "Os jornais deram desencontradas notícias acerca de um crime hediondo que uns vizinhos me imputaram. As versões são diferentes: o Jornal do Brasil anteontem afirmou que eu espanquei minha própria mãe; O País de ontem contou que eu bati em minha tia; O Dia relatou que eu ofendi a minha irmã..."
Concebe-se maior atrapalhação? A verdade é que a mulher espancada não era mãe, nem tia, nem irmã, nem mesmo avó do desgraçado! E é assim que se escreve a História...
Imagine-se agora a série formidável ⁶ de complicações que podem trazer esses exageros de fantasia, quando empregados em caso sério, de alta monta para a vida moral da nação.
Uma folha virá dizer amanhã que o Senhor Presidente da República foi a tal ou qual festa, trajando um terno de casimira marrom; outra diria que S. Ex. vestia um dólmã ⁷ branco... E a gente, diante de tantas opiniões diferentes, ficará com o juízo a arder, não podendo adquirir uma ideia assentada e perfeita sobre esse ponto, que tão grave influência pode exercer sobre a integridade da pátria e a solidez das instituições republicanas.
Outro caso interessante: o do amigo Galvez, que, depois de ter transposto a porta da eternidade, aparece agora espairecendo pela Puerta del Sol em Madri. É ele? não é ele? quem sabe? fotografem-no, e veremos...
Não insistamos sobre os benefícios da grande revolução que a fotogravura vem fazer no jornalismo. Frisemos apenas este ponto: o jornal animatógrafo terá a utilidade de evitar que nossas opiniões fiquem, como atualmente ficam, fixadas e conservadas eternamente, para gáudio dos inimigo... Qual de vós, irmãos, não escreve todos os dias quatro ou cinco tolices que desejariam ver apagadas ou extintas? Mas, ai! de todos nós! Não há morte para as nossas tolices! Nas bibliotecas e nos escritórios dos jornais, elas ficam – as pérfidas! – catalogadas; e lá vem um dia em que um perverso qualquer, abrindo um daqueles abomináveis cartapácios ⁸, exuma as malditas e arroja-as à face apalermada de quem as escreveu... Daqui em diante, não haverá esse perigo: ninguém se arrependerá do que tiver escrito, pela razão única e simples de que nada mais se escreverá...
No jornalismo do Rio de Janeiro, já se iniciou a revolução, que vai ser a nossa morte e a opulência dos que sabem desenhar. Preparemo-nos para morrer, irmãos, sem lamentações ridículas, aceitando resignadamente a fatalidade das coisas, e consolando-nos uns aos outros com a cortesia de que, ao menos, não mais seremos obrigados a escrever barbaridades...
Saudemos a nova era da imprensa! A revolução tira-nos o pão da boca, mas deixa-nos aliviada a consciência.
GLOSSÁRIO
¹ ceci tuera cela - isto vai matar aquilo
² incontinenti - sem demora
³ animatógrafo - o mesmo que cinematógrafo, aparelho que registra as imagens em uma série de instantâneos, criando a ilusão de movimento ao projetar os fotogramas sucessivamente em uma tela
⁴ tonitruosa - com o volume alto
⁵ égide - proteção
⁶ formidável - terrível, aterrador (uso antigo)
⁷ dólmã branco - espécie de túnica militar; modernamente usado por chefs de cozinha
⁸ cartapácios - cadernos de apontamentos; maços de papéis manuscritos
II. COMENTÁRIOS sobre a crônica
Na prova de português/literatura do vestibular para a UERJ-2014/1º exame de qualificação foi apresentada essa crônica de Olavo Bilac, para a qual foram propostas cinco questões com respostas de múltipla escolha em que apenas um dos quesitos estava correto.
Aproveito a ciência do formulador das questões sobre a crônica para apresentá-las no formato em que foram propostas aos candidatos.
1ª Questão
Já em 1901, o escritor Olavo Bilac temia que a imagem substituísse a escrita. No entanto, ele reconhecia aspectos positivos dessa possível substituição.
Um desses aspectos é observado no seguinte trecho:
Um desses aspectos é observado no seguinte trecho:
(A) O século não tem tempo a perder.
(B) Já ninguém mais lê artigos.
(C) aceitando resignadamente a fatalidade das coisas,
(D) não mais seremos obrigados a escrever barbaridades...
Alternativa correta: D
Comentário da questão: A possível substituição da imagem pela escrita, prevista pelo escritor Olavo Bilac em 1901, teria como óbvia consequência a diminuição radical dos textos escritos. Como para Bilac muitos desses textos contêm bobagens e barbaridades, a notícia positiva é que essas bobagens e barbaridades não precisariam mais ser proferidas.
(B) Já ninguém mais lê artigos.
(C) aceitando resignadamente a fatalidade das coisas,
(D) não mais seremos obrigados a escrever barbaridades...
Alternativa correta: D
Comentário da questão: A possível substituição da imagem pela escrita, prevista pelo escritor Olavo Bilac em 1901, teria como óbvia consequência a diminuição radical dos textos escritos. Como para Bilac muitos desses textos contêm bobagens e barbaridades, a notícia positiva é que essas bobagens e barbaridades não precisariam mais ser proferidas.
2ª Questão
A profecia para os escritores, anunciada na primeira frase do texto de forma extremamente negativa, se opõe ao tom e à conclusão do texto.
Considerando esse contraste, o texto de Bilac pode ser qualificado basicamente como:
(A) irônico
(B) incoerente
(C) contraditório
(D) ultrapassado
Considerando esse contraste, o texto de Bilac pode ser qualificado basicamente como:
(A) irônico
(B) incoerente
(C) contraditório
(D) ultrapassado
Alternativa correta: (A)
Comentário da questão: O texto de Bilac é eminentemente irônico: ele anuncia desastres e desgraças para os escritores, de maneira exagerada, para terminar saudando as mudanças que provocarão essas “desgraças” e esses “desastres”. Logo, seu ponto de vista a respeito das mudanças é na verdade positivo. Os alvos da sua ironia são aqueles que resistem às mudanças e veem tragédia em tudo. As demais opções de resposta são na verdade críticas negativas ao estilo de Olavo Bilac que texto e contexto não autorizam.
3ª Questão
O texto, apesar de escrito no início do século XX, demonstra surpreendente atualidade, conferida sobretudo por uma semelhança entre a vida moderna da época e a experiência contemporânea.
Essa semelhança está exemplificada na passagem apresentada em:
(A) O público tem pressa.
Essa semelhança está exemplificada na passagem apresentada em:
(A) O público tem pressa.
(B) As palavras são traidoras, e a fotografia é fiel.
(C) Não há morte para as nossas tolices!
(D) Nas bibliotecas e nos escritórios dos jornais, elas ficam (...) catalogadas.
Alternativa correta: (A)
Comentário da questão: O elemento comum à época em que Bilac escreveu o texto e à nossa experiência contemporânea é a sensação de pressa, de urgência, por parte do público dos jornais. Esse público é formado basicamente pelos moradores das cidades, e a vida nas cidades estimula a pressa das pessoas.
Alternativa correta: (A)
Comentário da questão: O elemento comum à época em que Bilac escreveu o texto e à nossa experiência contemporânea é a sensação de pressa, de urgência, por parte do público dos jornais. Esse público é formado basicamente pelos moradores das cidades, e a vida nas cidades estimula a pressa das pessoas.
4ª Questão
O cinema se popularizou no Brasil depois de esta crônica ter sido escrita. Nela, porém, o autor já antecipa o advento do novo meio de comunicação.
Um trecho que comprova tal afirmativa é:
(A) E ainda a ciência humana há de achar o meio de simplificar e apressar a vida
Um trecho que comprova tal afirmativa é:
(A) E ainda a ciência humana há de achar o meio de simplificar e apressar a vida
(B) toda a explicação vem da gravura, que conta conflitos e mortes,
(C) nada impede que seja anexado ao animatógrafo um gramofone de voz tonitruosa,
(D) a máquina fotográfica funciona sempre sob a égide da soberana Verdade,
Alternativa correta: (C)
Comentário da questão: O cinema pode ser definido como fotografia em movimento, já que se compõe de uma sucessão de imagens estáticas. O escritor imagina um aparelho que projete as imagens e assim as anime, chamando-o justamente de animatógrafo. Ao combinar esse animatógrafo com um gramofone, isto é, com um aparelho para emitir sons gravados, ele antecipa, em 1901, o cinema falado.
5ª Questão
Vereis que não hão de ser tão frequentes as controvérsias…
A previsão de Bilac sobre a diminuição das controvérsias ou polêmicas, por causa da vitória da imagem sobre a palavra, baseia-se em uma pressuposição acerca da maneira de representar a realidade.
Essa pressuposição está enunciada em:
(A) o desenho critica o real e as palavras expressam consciência
(B) a fotografia reproduz o real e as palavras provocam distorções
(C) a imagem interpreta o real e as palavras precisam de inteligência
(D) a fotogravura subverte o real e as palavras tendem ao conservadorismo
Alternativa correta: (B)
Comentário da questão: Olavo Bilac entendia que as palavras são traidoras, ou seja, podem ser interpretadas de modos diversos por diferentes pessoas, o que provoca conflito e distorções. No entanto, ele supunha que a imagem fotográfica, em particular, reproduzia o real como ele é, não gerando portanto dúvida ou contestação alguma. É com base nessa compreensão prévia que o autor afirma que haverá menos controvérsia.
Essa pressuposição está enunciada em:
(A) o desenho critica o real e as palavras expressam consciência
(B) a fotografia reproduz o real e as palavras provocam distorções
(C) a imagem interpreta o real e as palavras precisam de inteligência
(D) a fotogravura subverte o real e as palavras tendem ao conservadorismo
Alternativa correta: (B)
Comentário da questão: Olavo Bilac entendia que as palavras são traidoras, ou seja, podem ser interpretadas de modos diversos por diferentes pessoas, o que provoca conflito e distorções. No entanto, ele supunha que a imagem fotográfica, em particular, reproduzia o real como ele é, não gerando portanto dúvida ou contestação alguma. É com base nessa compreensão prévia que o autor afirma que haverá menos controvérsia.
III. BIBLIOGRAFIA
BILAC, Olavo: BILAC, O JORNALISTA - Crônicas volume 1. Organização: Antonio Dimas. São Paulo: Edusp/Ed. Unicamp/Imprensa Oficial de SP, 2006, 899 p.
____________: Fotojornalismo. In DIMAS, Antonio (org.). Vossa Insolência,. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, 415 p.