terça-feira, 20 de janeiro de 2015

CARTA DE FREI ORLANDO NARRANDO SEU ÚLTIMO NATAL


Por Francisco José dos Santos Braga  *

Este artigo apareceu originalmente na REVISTA EM VOGA, publicada em São João del-Rei, Ano II, nº 3, pp. 4 e 5. 




Folheando a revista O Santuário de S. Antônio, dirigida por Frei Osório da Silva Santos o.f.m. e publicada em Divinópolis-MG, Ano 18, nº 6, ano de 1945, p. 86-88, deparei-me com uma carta de frei Orlando, direto do “front”, na Itália, descrevendo seu último Natal neste mundo, em fins de 1944. Essa carta se reveste de suma importância, já que no dia 20 de fevereiro de 1945 entregaria sua vida nas mãos do Salvador, portanto escrita quase "in extremis". 
Neste ano de 2014, após termos celebrado condignamente o Centenário de Nascimento do Capitão Capelão Frei Orlando (1913-2013), tenho o prazer de brindar os leitores da Revista EM VOGA com esse texto raro que localizei e que é reproduzido neste espaço.


















Outrossim, cabe-me aproveitar esta oportunidade para externar minha eterna gratidão ao são-joanense Capitão José Lourenço Parreira, escritor, autor do livreto “2013 – Ano do centenário de Frei Orlando”, violinista, professor e regente, irmão do Maestro Benigno Parreira, por ter  indicado o meu nome para ser agraciado com a Medalha "Frei Orlando - Patrono do SAREx (1913-2013)", concedida pelo CMO-Comando Militar do Oeste (dezembro de 2013). 

Para situar o leitor que ainda não conhece a biografia de frei Orlando, em rápidas pinceladas vou apresentar os principais fatos de sua vida, a saber: frei Orlando nasceu em Morada Nova de Minas em 13 de fevereiro de 1913 (seu nome de batismo era Antônio Álvares da Silva); fez o curso primário em Abaeté; em 5 de janeiro de 1925 ingressou no Colégio Seráfico de Divinópolis (Seminário Menor), tendo terminado seus estudos na Holanda (1931-1935); regressou ao Brasil para ser ordenado sacerdote franciscano no Santuário de Santo Antônio de Divinópolis em 24 de outubro de 1937; em dezembro de 1938 foi nomeado professor de Português e História Geral no Ginásio Santo Antônio de São João del-Rei; alistou-se voluntariamente e foi nomeado Capelão Militar do 11º Regimento de Infantaria (Regimento Tiradentes) através do Decreto nº 6.535, de 26 de maio de 1944 e Portaria nº 6.785, de 13 de julho de 1944; juntou-se na manhã de 20 de julho de 1944 ao 11º R.I. que se achava acantonado nos barracões do Morro Capistrano, na Vila Militar do Rio de Janeiro; com os "pracinhas", em 22 de setembro de 1944, a bordo do navio General Meigs seguiu para a Itália, onde viveu menos de cinco meses, por ter sido vítima de um disparo acidental do fuzil de um sargento da resistência italiana em 20 de fevereiro de 1945, nas proximidades da cidade de Bombiana, na véspera da conquista de Monte Castelo.
Lembro que no texto abaixo foi respeitada a ortografia original.


CARTA DA ITÁLIA (NATAL NO "FRONT")

O futuro costuma trazer-nos sempre novas surpresas. Assim nunca pensei passar um dia de Natal nas circunstâncias em que o passei no ano findo. Em outros anos quantas festas, quantas alegrias vinham unir-se ao júbilo do coração cristão, neste dia tão precioso para tôda a humanidade!
Neste ano restou-me apenas a grande consolação de me encontrar no meio dos soldados brasileiros combatentes na primeira linha, servindo de intermediário das graças divinas que os devem ter fortalecido no meio de tantas lutas e sacrifícios.
Foi assim que ali pelas 6 horas da tarde — já escuro e frio — que deixei o meu ponto de partida para ir a uma das companhias do meu batalhão. Escolhi aquela que mais perto se encontrava do inimigo.
Era véspera de Natal. As montanhas e as planícies cobriam-se de um vasto lençol de branquíssima neve. Não resta dúvida que os panoramas visto à luz do dia, são belíssimos. A neve forma caprichosamente as mais diferentes figuras nos galhos e nas copas das árvores, sôbre os tetos das casas e nas encostas das montanhas. Entretanto, para quem sobe pelas veredas abrigadas das vistas do inimigo, especialmente naquela hora em que empreendi a subida, tudo perde a poesia do inverno europeu, e, oh, quanto se deseja aquêle calor amigo, e aquela lua clara do Brasil...
O caminho era difícil. Subida íngreme, por uma vereda coberta de mais de 20 cm de neve. Na frente ia o guia, atrás dêle o capelão, com o bornal carregado de todos os objetos necessários para a celebração da missa. Íamos silenciosos, ouvindo apenas o barulho da neve sob os nossos pés: Tchap... tchap... tchap...
Em outros lugares onde o vento depositara mais neve, tornava-se dificílima a ascensão da serra. Em outros, por onde o trânsito fora maior, formaram-se verdadeiros escorregadouros. Foi num dêsses que vi o meu guia espichar-se de comprido no solo... Em um outro, mais acima, fui eu, o capelão, que lhe seguiu o exemplo... Estávamos 1 x 1 !
Paramos por três vêzes na subida da serra. O suor corria-me pelas costas. O coração palpitava forte. Parecíamos duas máquinas de guerra, cujo motor trabalha forçadamente...
Depois de uma hora e meia, chegamos finalmente ao comando da companhia. O capitão esperava-me.
— Bem, capelão — vamos descansar um pouco, enquanto mando reunir os homens "disponíveis". O senhor compreende que não podem vir todos. O tedesco é perigoso, mesmo na véspera do Natal...
Assentei-me junto à lareira da casa. Ali vi uns poucos soldados, e o pessoal que ainda restava na casa. Uma velha, uma senhora mãe de duas crianças, e uma outra que se refugiou naquela casa. Ali por perto havia ainda outras pessoas, que não quiseram ou não puderam abandonar suas moradias.
Ali pelas oito e meia comecei a atender as confissões. E enquanto passavam os minutos, iam passando pelos meus dedos as contas do têrço, marcando as confissões: 15, 20, 30, 50... 65, e mais algumas de civis que havia muito tempo não assistiam à missa, 82 confissões.
Às 11,30 fui preparar o altar, em companhia de um cabo e um tenente.
Onde celebrar a missa? O único lugar onde cabia aquela turma tôda era o depósito de feno!
E assim colocamos o altar bem no alto, em cima do feno, amarrado em fardos quadrados.
Ao lado do monte do feno, estava a estrebaria. Umas dez vacas dormiam ali sossegadamente!
Em cima do feno, ao redor do altar, se colocaram os soldados, e os civis vizinhos, que estavam radiantes de poder assistir à missa de Natal.
Impressionou-me profundamente tudo aquilo. A luz só podia ser as duas velas da missa. Os homens entravam em pequenos grupos de três a cinco, ràpidamente, como alguém que pretende fazer uma ação maldosa.
E no meio do silêncio, ouvia-se apenas as vacas, que, talvez aproveitando a claridade tênue das velas resolveram a comer um pouco...
À meia noite comecei a missa. "Introibo ad altare Dei..." Ouvi o barulho da assistência que se ajoelhava sôbre o feno.
Estava iniciado o meu Natal no "front". Ali na nossa frente, bem pertinho, talvez menos de 300 metros, estavam os terríveis alemães. Não sei se êles também têm seu capelão que naquela hora devia começar também sua missa do galo. Sei apenas que os nossos soldados brasileiros rezavam com devoção e fervor "Gloria in excelsis Deo et in terra pax hominibus..."
Que contraste! Na terra paz aos homens... Só via ao redor de mim homens de farda, e no meio do feno caixotes de granada...
Na hora da prática falei aos soldados sôbre aquêle contraste. Li para êles o Evangelho da missa. E mostrei-lhes que o anjo não dissera só paz aos homens, mas acrescentou: de boa vontade!
Sim, houvessem os homens boa vontade, não estaríamos ali, naquele frio, sob aquêles tetos nevados!
Boa vontade, é oposto de ambição. Pois ambição política, territorial, racial, social, enfim a ambição sob seus múltiplos aspetos, é a causa desta guerra!
E os soldados ouviam-me atentos.
Terminei falando naquêles outros dias de Natal felizes, que passávamos juntos dos nossos na Pátria distante! Que diferença!
E aquêles homens que não temem a morte, e que se não curvam diante do perigo, muitos dêles, eu vi baixar a cabeça e limpar lágrimas indiscretas de saudade e de emoção...
Terminada a solenidade, novamente aos grupos, êles desapareceram na escuridão.
Estava terminada a minha noite de Natal. Um Natal sem presépio; um Natal sem cânticos; um Natal sem árvore de Natal e sem presentes.
Era o Natal cheio de saudades, do soldado brasileiro na primeira linha de frente...
frei Orlando Álvares
Capelão da F.E.B.
(† 20 de fev. de 1945)
Itália, 2-1-45 






* O autor tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Participa ativamente como membro de diversas instituições de cultura no País e no exterior, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, Academia Divinopolitana de Letras, Instituto Histórico e Geográfico do DF, Academia Taguatinguense de Letras, Academia Barbacenense de Letras e Academia Formiguense de Letras. Possui ainda o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com.br) e é um dos colaboradores e gerente do Blog de São João del-Rei. Escreve artigos e ensaios para revistas, sites, portais e periódicos.