sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

RANCHOS CARNAVALESCOS DE SÃO JOÃO DEL-REI EM 1928/1929



Por Francisco José dos Santos Braga


I.  INTRODUÇÃO



Mikhail Bakhtin escreveu em 1940 um livro intitulado "A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais", que só foi publicado em 1965. Aí ele desenvolveu uma inovadora teoria da cultura popular e da sua apropriação pela literatura, com base nos conceitos de carnaval e carnavalização. Carnaval para ele não se referia apenas ao período antes da Quaresma, mas compreendia determinadas festividades que, durante a Idade Média e o Renascimento, transcorriam noutros momentos do ano associados a festividades sacras e chegavam a totalizar cerca de três meses. As suas origens remontam certamente aos cultos dos mortos e rituais propiciatórios e celebratórios de comunidades agrícolas primitivas que ocorriam durante o tempo das colheitas. Na Roma antiga tinham lugar em dezembro as festas em honra ao deus Saturno, conhecidas como Saturnalia. À semelhança do mundo às "avessas do Carnaval", as Saturnalia se caracterizavam pela vivência diária da inversão da ordem social normal, quando então os escravos tomavam o lugar dos senhores e entregavam-se a toda a espécie de prazeres habitualmente proibidos. 

Para Bakhtin, o Carnaval constituía simultaneamente um conjunto de manifestações da cultura popular e um princípio de compreensão holística dessa cultura. Na perspectiva bakhtiniana, o elemento que unificava a diversidade das manifestações carnavalescas era o riso e lhes conferia a dimensão cósmica: um riso coletivo que se opõe ao tom sério e à solenidade repressiva da cultura oficial e do poder real e eclesiástico. O riso carnavalesco como entidade livre prosperou em espetáculos e rituais cômicos (cuja característica era a sua natureza não oficial, configurando, como diz Bakhtin, uma segunda vida do povo, um duplo das práticas da Igreja e do Estado, em que todo o povo participava , numa comunhão utópica de liberdade e abundância, de suspensão de todas as hierarquias e de dissolução da fronteira entre a arte e o mundo —, aspectos que eram encontrados por exemplo na "festa dos loucos" ou na "festa do burro", na Europa), nas composições literárias cômicas (por exemplo, a paródia sacra) e, por fim, na utilização de termos profanos, blasfêmias, obscenidades e expressões de insulto. Outros aspectos do universo do Carnaval são igualmente dignos de nota: a representação carnavalesca do corpo, a que Bakhtin chama realismo grotesco, centrada no "baixo corporal" (a boca, a barriga, os órgãos genitais); o uso da máscara simbolizando o triunfo da alteridade durante aquele tempo convencionalmente reservado à transgressão; e, por fim, a relativização da verdade e do poder dominantes, presentes no período do Carnaval, celebrando a mudança e a renovação do mundo. ¹

No mundo contemporâneo, pode-se observar muitas práticas culturais afins ao carnavalesco, tais como o espetáculo teatral, a pintura, o cartoon, o grafite, a publicidade, etc., tendo infiltrado até nos nossos Poderes da República, sem excluir nenhum, perpassados que se encontram por certo espírito momesco. Também os meios de comunicação se têm deixado carnavalizar, na medida em que "houve uma explosão com Bakhtin, tudo começou a se carnavalizar, e generalizou-se o conceito de paródia para qualquer discurso que não fosse absolutamente objetivo, e, como nenhum discurso é absolutamente objetivo, todos os discursos pareceram paródicos." ²

No presente trabalho, transcrevo para os leitores quatro textos, não propriamente sobre festejos carnavalescos de São João del-Rei, mas versando sobre a composição da diretoria, organização e gestão das sociedades carnavalescas ("ranchos carnavalescos") que existiam em 1928/1929 e que não perduraram até nossos dias. Podemos ver, trabalhando no seio desses ranchos carnavalescos e lutando pelo bom êxito das festividades momescas, nomes emblemáticos da sociedade são-joanense.

A minha fonte de consulta foi o jornal "A Tribuna" no período considerado.

Para ser fiel ao redator/escritor dos referidos textos, observei rigorosamente a grafia de época.


II.  AMOSTRA DE TEXTOS REFERENTES A ALGUNS RANCHOS CARNAVALESCOS "DE ANTIGAMENTE"


1.  CLUB X


S. João del-Rey, 20 de novembro de 1928.
Exmo. sr. redactor da "Tribuna",
Tenho a elevada honra de participar a v. ex. que, em assemblea geral, realizada a 16 do corrente mez, na séde da Associação Commercial, foi eleita, para gerir os destinos do Club X (sociedade carnavalesca), durante o periodo de 1928-1929, a seguinte directoria:
Presidente honorario, José de Carvalho Resende; 1º vice-presidente honorario, Josino Martins; 2º vice-presidente honorario, Joaquim Portugal; presidente effectivo, Carlos Guedes (reeleito); 1º vice-presidente, major Americo A. dos Santos (reeleito); 2º vice-presidente, João Baptista Rodrigues; 1º secretario, João Viegas Filho; 2º secretario, Nicoláo Dilascio; 1º thesoureiro, J. Bellini dos Santos (reeleito); 2º thesoureiro, João Assumpção; 1º procurador, Antonio Gomes de Almeida (reeleito); 2º procurador, Zenone Rozzetto; 3º procurador, Joaquim Roque Teixeira.

Na mesma assembléa foram acclamadas madrinhas do Club as exmas. mmes. Antonio Ottoni Sobrinho, João Reis, Gumercindo Gomes, Raul Trindade, Benevides de Carvalho, Simões Coelho, João de Castro e Oscar da Cunha.

Foram tambem escolhidos unanimemente para chefe do Barracão, Scenographo e Electricista, respectivamente, os srs. Chistovam Rodrigues da Silva, Ernesto de Oliveira e José Narciso da Silva.

Servimos do ensejo para apresentar-lhes os nossos protestos de particular estima e subida consideração.
João Viegas Filho
1º Secretario


 Fonte: A Tribuna, São João del-Rei, Anno XIV, nº 954, de 25 de novembro de 1928


2. Rancho Carnavalesco BOI GORDO

Da directoria do rancho carnavalesco "Boi Gordo", recebemos o seguinte officio:
São João del-Rey, 11 de março de 1929.
Exmo. sr. redactor de "A Tribuna".
Cidade.
Tenho a subida honra de communicar-vos que em Assembléa Geral Ordinaria do rancho carnavalesco "Boi Gordo", realizada a 26 do passado, foi por unanimidade eleita a nova Directoria, que terá de dirigir os destinos deste rancho, no periodo de 1929 a 1930 e que ficou assim constituída:
DIRECTORIA
Presidentes honorarios, cel. Alberto de Almeida Magalhães e cel. Carlos Guedes; Presidentes de honra, cel. Antonio Balbino de Sousa e cap. José Bini; vice-presidentes honorarios, dr. Romualdo Cançado e cel. Manuel Soares de Azevedo; vice-presidentes de honra, srs. Delphino Castanheira e João Lobosque de José; paranymphos do estandarte, sr. Octavio Neves e senhorinha Regina Yunes; paranymphos do carro, srs. João Baptista da Costa, Luiz Baccarini, João Lombardi e João Baptista Rodrigues; paranymphas do carro, madames Carlos Albero (?) Alves e Flavio Cicero; senhorinhas Iracema Baccarini e Aura Lobosque; bemfeitor do rancho, cel. Joaquim Miranda; bemfeitora do rancho, sra. Maria Eulalia Guerra (reeleita); benemerito do rancho, o fundador sr. Fausto de Almeida; benemeritas do rancho, sras. Hilda Coelho e Carminda Silva Teixeira; presidente effectivo, cap. Avelino Guerra (reeleito); 1º vice-presidente effectivo, tenente Cyrillo Carlos Ferreira; 2º vice-presidente effectivo, Agnello Tolentino (reeleito); 1º secretario, Fidelis Dilascio; 2º secretario, Domingos do Sacramento; 1º thesoureiro, Tharcillo Tolentino; 2º thesoureiro, Bernardino Coelho (reeleito); 1º procurador, Armando de Freitas (reeleito); 2º procurador, Epaminondas Floriano (reeleito); procuradoras, senhorinhas Maria das Dores, Carmelita de Andrade e Maria Cyrillo; orador official, Plinio Campos da Silva (reeleito); fiscal e mestre de sala, José das Chagas Teixeira; director do barracão, Waldemar Pulheiz (reeleito).

Sirvo-me do ensejo que se me apresenta, para patentear-vos, em nome do rancho carnavalesco "Boi Gordo", todo o meu elevado apreço e distincta consideração. 
Fidelis Dilascio
1º secretario interino

Fonte: A Tribuna, São João del-Rei, Anno XV, nº 970.


3) Rancho Boi Gordo

Effectuou-se a 30 do mez passado, com solennidade, em sua luxuosa séde social, sita à rua de Santo Antonio, 28  ³, às 21 horas, a posse dos novos timoneiros para o periodo de 1929 a 1930 do garboso rancho Boi Gordo.

O programma foi o seguinte: — Sessão presidida pelo tenente Farnese Silva, distincto presidente da sympathica aggremiação carnavalesca desta cidade "Qualquer nome serve".

Leitura da acta da sessão passada pelo sr. Fidelis Dilascio.

Posse do novo presidente, capitão Avelino Guerra que empossou, debaixo de calorosa salva de palmas da numerosa assistencia, os demais directores do "leader" dos ranchos da "Princeza do Oeste".

Entrega de um delicado mimo pelo nosso redactor e seu brilhante confrade sr. Agostinho Azevedo, em nome do alto representante do commercio local sr. Alfredo Mauro, activo proprietario do antigo e conceituado café "Rio de Janeiro", de uma rica estatueta symbolizando — Honra ao merito.

Discursaram o nosso redactor e seu collega o vibrante tribuno sanjoannense sr. Agostinho Azevedo, que receberam os agradecimentos dos directores do Boi Gordo, capitão Avelino Guerra e Fidelis Dilascio, em formosos improvisos.

Terminada a sessão, foi servida uma mesa primorosamente ornamentada de flores naturaes, doces e bebidas, e forma erguidos enthusiasticos brindes pelos srs. orador official do Boi Gordo, tenente Farnese Silva, Ignacio Loyola de Almeida, tenente Cyrillo Carlos Ferreira, Fidelis Dilascio e Agostinho Azevedo.

Os srs. tte. Farnese Silva, Ignacio Loyola de Almeida e Lindolpho de Freitas, garbosos membros da incasavel directoria do rancho "Qualquer nome serve", estiveram presentes à festa e receberam, por parte dos seus co-irmãos de luctas, carinhosas e significativas demonstrações de estima.

A ornamentação da séde, a cargo do tte. Cyrillo Carlos Ferreira, foi deslumbrante.

Annotámos, com vivo prazer, a gentileza da directoria do Boi Gordo, collocando bellissimos escudos à imprensa, Camara e commercio locaes.

Tocou a jazz band do 11 R. I. e as danças, animadissimas, prolongaram-se até à madrugada, comparecendo à festividade muitos associados, exmas familias e representantes de varias classes sociaes.

Agradecemos ao Boi Gordo o gentil convite para assistirmos à solenne posse de sua novel directoria.


(Redação de "A Tribuna")



4)  Rancho carnavalesco QUALQUER NOME SERVE

S. João del-Rey, 26 de março de 1929.
Ilmo. e exmo. sr. redactor da "A Tribuna".
Cidade.
Tenho o immenso prazer de levar ao conhecimento de v. ex. que, em assembléa geral, realizada a 22 do corrente mez, em a séde social desta aggremiação, foi unanimemente eleita a Directoria abaixo para gerir os destinos deste rancho, no periodo de 1929 a 1930. Certo de que, nos futuros festejos carnavalescos, muito honrará esta modesta aggremiação, que conta com o valioso concurso de v. ex., a vossa honrosa presença em todos os actos internos, antecipo-vos sinceros agradecimentos. A Directoria é a seguinte:
Rainha, senhorinha Aida Fazanelli; presidentes de honra, sr. dr. José Francisco Bias Fortes e capitães João Narcizo de Sá, Carlos Alberto Alves e José Resende de Andrade; vices presidentes de honra, srs. Alfredo Mauro, João Carlos Rosa, José de Sant'Anna Neves e Avelino Andrade; presidentes honorarios, poeta J. Brandão e Manuel de Freitas, fundadores do rancho; presidentes benemeritos, srs. Ernesto de Oliveira, Waldemar Gomes e cap. Dermeval Senna; paranymphos do estandarte, cap. José Bini, srs. Miguel Lopes e Carlos Ladeira; paranymphas do estandarte, exma. sra. d. Maria das Dores Ferreira e senhorinhas Mercês Bini e Germana Viegas; paranymphos do prestito, cel. Antonio Balbino de Sousa, major Emygdio de Moraes, srs. José Amaro do Carmo e João Balbino do Nascimento; paranymphas do prestito, exma. sra. d. Gabriela Martins de Andrade Reis, senhorinhas Helena Daldegan, Anna Mourão e Beatriz Pimenta; bemfeitoras do rancho, exmas. sras. Maria Euflauzina de Freitas, Celina dos Santos, Maria Balbina e senhorinha Guiomar A. da Costa.
DIRECTORIA ACTIVA
Presidente, tte. Farnese Silva (reeleito); 1º vice-presidente, José Adriano Esteves; 2º vice-presidente, Waldemar de Freitas; 1º secretario, Ignacio Loyola Q. de Almeida (reeleito); 2º secretario, Geraldo C. Guimarães (reeleito); 1º thesoureiro, Lindolpho José de Freitas (reeleito); 2º thesoureiro, Josino L. da Silva (reeleito); 1º procurador, Antonio de Sant'Anna; 2º procurador, Carlos J. Lima; 1º orador official, José Franco da Fonseca (reeleito); 2º orador official, senhorinha Alice da Costa; director technico, Francisco Vieira (reeleito); auxiliares technicos, José Nicolau da Costa e Bento Vieira (reeleitos); directores e ensaiadores, José Santiago e Nestor d'Annunciação (reeleitos); fiscal interno, Sertorio Gonçalves; fiscal geral, José Lucio da Costa (reeleito); porteiro, Juvenal dos Santos (reeleito).

Solicitando a honra de vossa resposta, valho-me do ensejo que se me apresenta, para hypothecar a v. ex., o mais alto grau de minha respeitosa consideração.
Ignacio Loyola Q. de Almeida
1º secretario

Fonte: A Tribuna, São João del-Rei, Anno XV, nº 973.



III.  AGRADECIMENTO  E  CONCLAMAÇÃO


Gostaria de agradecer à equipe de trabalho da Biblioteca Batista Caetano de Almeida pela presteza no atendimento e pela custódia de periódicos de época. Constatei, entretanto, que o acondicionamento de tais periódicos está deixando a desejar,  não sendo suficientes as dotações consignadas no orçamento municipal para a preservação, desinfecção e digitalização do material catalogado, a fim de evitar o desnecessário manuseio e consequente danificação do que ainda resta. Ao mesmo tempo, a Lei Federal nº 10.753, de 30 de outubro de 2003, que institui a Política Nacional do Livro, pode ajudar muito a melhorar as difíceis condições em que a biblioteca pública são-joanense se encontra. No artigo 16 da referida lei, prevê-se que "a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios consignarão, em seus respectivos orçamentos, verbas às bibliotecas para sua manutenção e aquisição de livros." Como a dotação orçamentária municipal não tem sido suficiente para bibliotecas de certa complexidade como a Biblioteca Batista Caetano de Almeida (inaugurada em 1827!), esta vetusta instituição depende de subvenções governamentais das três esferas de governo para que possa continuar prestando serviços de qualidade a seus pesquisadores e usuários, dependendo de parlamentares e governantes patriotas dispostos a consignar verbas nos respectivos orçamentos para a continuidade e melhoria de sua prestação de serviços sociais especializados.



IV.  NOTAS DO AUTOR


¹ Cf. verbete "Carnavalização", no E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia, no seguinte link: http://www.edtl.com.pt/?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=602&Itemid=2

²  SARLO, Beatriz: "Paisagens imaginárias", São Paulo: Edusp, edição de 2005, p. 98.

³  Devido a uma provável reenumeração ocorrida ao longo do tempo, fica muito difícil identificar o nº 28 da Rua Santo Antônio nos dias atuais. Na realidade, trata-se do sobrado que pertenceu a meu avô José da Silva Braga ("Nhonhô" Braga), até hoje propriedade de nossa família, situado no atual nº 136 da referida rua. Antes de ser a sede do "Boi Gordo", esse sobrado funcionou como Externato do Professor Travanca, famigerado por sua extrema severidade.


V.  BIBLIOGRAFIA


BAKHTIN, Mikhail: A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, São Paulo: Editora HUCITEC, 1987, 419 p.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Introdução do livro SÃO JOÃO DEL-REI NA CRÔNICA da autoria de GENTIL PALHARES



Por Gentil Palhares
06 de junho de 1961. Após o desfile cívico, o tenente Gentil Palhares, um grande formiguense e escritor, que serviu o 11º R I de São João del-Rei, lançou em praça pública o livro sobre Frei Orlando. (...) Na foto, o tenente Gentil (com o microfone na mão)... ¹

I.  INTRODUÇÃO, por Francisco José dos Santos Braga

Tenho a grata satisfação de hoje estampar neste espaço virtual um texto histórico, profundamente humano e sensível, da autoria de Gentil Palhares, intelectual íntegro, dotado de qualidades extraordinárias, como se há de ver através da leitura desta sua página.

Honra-me sobremodo destacar nesta figura ímpar das letras são-joanenses, especialmente o fato de me ter precedido nos quadros da Academia Barbacenense de Letras.

Apresenta-se aqui a oportunidade de reconhecer que essa egrégia Academia, ao acolhê-lo e a mim, demonstra a importância que dá aos nossos valores culturais e históricos regionais, valorizando o que nos distingue a ambos: nosso amor à Liberdade, o culto da nossa tão desprezada Língua Portuguesa e a defesa intransigente dos valores éticos, religiosos e culturais dos Campos das Vertentes.


II.  INTRODUÇÃO DO LIVRO "SÃO JOÃO DEL-REI NA CRÔNICA" DA AUTORIA DE GENTIL PALHARES


À MINHA TERRA NATAL, CIDADE DE FORMIGA!

Quando neste livro eu falo das pessoas e das coisas da legendária, histórica e sempre querida São João del-Rei, minha TERRA ADOTIVA, eu levo o meu pensamento até VOCÊ, MEU SAUDOSO BERÇO NATAL, a VOCÊ que me viu nascer, a VOCÊ onde primeiro eu vi  luz do sol iluminando essas montanhas que a rodeiam e onde, ao lado de meus pequenos amigos, meninos do meu tempo, corri desenfreadamente por essas ruas e essas praças das nossas lembranças e das nossas imorredouras saudades.

Nossa infância foi deveras dividida entre VOCÊ, BERÇO NATAL e esta São João del-Rei, BERÇO ADOTIVO. Mas não se pode, jamais, olvidar o pedacinho de terra que ouviu os nossos primeiros vagidos, os nossos primeiros choros e os nossos primeiros sorrisos para a vida, como não podemos olvidar, jamais, aquele Templo de São Vicente Ferrer, onde entramos conduzido no colo para o batismo e para recebermos um nome.

Suas manhãs claras e alegres, seus cantos e recantos de ruas que nos viram nas nossas primeiras travessuras, para depois ouvirmos o cantar da passarada pelos fundos das hortas da rua Municipal, onde nascêramos, nada disso se nos desbota do pensamento, pois não aceitamos a INGRATIDÃO. E ingrato seríamos se, ao falarmos da GLORIOSA TERRA ADOTIVA, olvidássemos esse querido pedaço de chão, onde veio ao mundo o nosso saudoso pai e onde, ao lado deste, na mesma faixa de terra, dorme o sono eterno do corpo a nossa sempre lembrada mãezinha, que nos embalou na infância.

FORMIGA, Terra querida! Não me esqueci de VOCÊ! Não, porque meu coração, meu pobre coração possui, todavia, uma riqueza: a de não conhecer a ingratidão e de conservar, sempre, embora distante, SUA IMAGEM QUERIDA, sua paisagem, suas ruas, suas casas, suas montanhas, sua gente, que é a minha gente!

Quando, pois, ouço falar de São João del-Rei e de VOCÊ e quando eu mesmo, agora neste livro, falo desta minha TERRA ADOTIVA, meu coração balança, sacode todo e em espírito me prosterno a seus pés!...
São João del-Rei, 1974. 

EXPLICANDO...

"SÃO JOÃO DEL-REI NA CRÔNICA" é um livro que nos fala de pessoas e coisas desta legendária cidade, meu BERÇO ADOTIVO. São crônicas, na sua maioria, publicadas no extinto "DIÁRIO DO COMÉRCIO", em épocas sucessivas e, ultimamente, outras tantas que aparecem no "JORNAL DO POSTE", folha editada pelo jornalista Joanino Lobosque e na qual colaboro há alguns anos já.

Não sabemos se este livro, escrito com a melhor das intenções, irá agradar, por isso que a época hodierna sofre uma profunda influência psicológica de dispersão de pensamentos e de ações. Nas artes, nas ciências, nas letras e em todos os setores, enfim, que requerem meditação e estudo, análise e julgamento, se observa como que uma revolução de idéias e como que certo ceticismo, descambando tudo para o vulgar, para as sínteses, sobretudos para estas.

"SÃO JOÃO DEL-REI NA CRÔNICA" nada mais é do que retalhos de alguns de nossos fatos aqui verificados e debilmente descritos nestas páginas que se vão ler, as quais retratam, sobretudo, algumas facetas de vários vultos que se notabilizaram em nosso meio, honrando e enobrecendo a vida desta cidade das lendas e dos sinos.

Aparecem, outrossim, nestas linhas, pessoas de vida humilde, modestas, tipos populares de nossas ruas e que ostentaram como galardão material, apenas e tão-somente a singeleza de seus corações e a humildade santa de seus propósitos. Alguém nos advertiu, sob o manto de inexplicável escrúpulo, em que pese, todavia, a boa intenção, o inconveniente de alinharmos, neste volume, alguns vultos proeminentes do cenário são-joanense, com algumas singelas figuras que, na humildade de suas vidas, aqui, entretanto, viveram carregando a sua cruz. Não abonamos o pensamento evocado e sugerido, antes de tudo e sobretudo, tangido pelo sentimento humano e cristão. E temos certeza absoluta de que os vultos eminentes que aparecem nestas páginas que se vão ler, pensam como nós, por isso que também humanos e cristãos, compreensivos e incapazes de olvidarem as palavras do MANSO RABI DA GALILÉIA:
"Amai-vos uns aos outros, tanto quanto eu vos amei!"
O autor.


AO ABRIRMOS AS PÁGINAS DESTE LIVRO...


 Ao abrirmos as páginas deste livro, para evocar o TEU passado, ó São João del-Rei, eu TE saúdo!

TU és um relicário de acervos sagrados e inolvidáveis, e em TEU seio amigo e hospitaleiro, acodes um povo lhano, afável, bom e profundamente cristão!

Saúdo-TE, ó TERRA GENEROSA, pela fé que TE anima e pela recordação dos TEUS primeiros passos ajudando a formar a história de Minas e do Brasil!

Saúdo-TE, ó cidade dos sinos, das flores e da música, TU que recebeste de DEUS a predestinação de seres o BERÇO de vultos imortais da nossa história e daqueles que, no presente, têm elevado e dignificado o TEU venerando nome, pela força da inteligência e da cultura!

Ao TEU regaço, num desses altos desígnios do SUPREMO ARQUITETO DO UNIVERSO, veio ao mundo JOAQUIM JOSÉ DA SILVA XAVIER, plantando a semente da LIBERDADE na Terra do Cruzeiro!

São João del-Rei querida e amiga! — quando passamos por TUAS ruas estreitas e tortuosas, as quais o progresso de foice em punho vai maculando na ânsia da perfeição; quando contemplamos as TUAS igrejas de pedra bordada; quando pisamos esses becos esconsos e essas pontes centenárias, sobre as quais passaram os inconfidentes; quando escutamos a sinfonia eterna do Córrego do Lenheiro, que TE banha como se numa purificação e numa bênção; quando, enfim, nos chega aos ouvidos e aos corações o som maravilhoso e retumbante de TUAS orquestras, nós sentimos, ó São João del-Rei! — que TU és, verdadeiramente, uma Terra abençoada pelas mãos de DEUS. Porque TU és a legendária cidade que não sabes fechar TUAS portas aos que TE procuram cansados da luta em terras outras e que desejam fazer de TI a morada definitiva para o seu labor e seu derradeiro sono!

Eis porque, São João del-Rei, abrindo as páginas deste livro que é TEU, da TUA gente e da TUA história,
eu TE saúdo!...


III.  NOTA DO GERENTE DO BLOG DO BRAGA


¹  Esta foto histórica está postada em Nova Imprensa Online no seguinte endereço eletrônico: http://www.novaimprensa.inf.br/passadas/501/geral.html

Colaborador: Gentil Palhares (1909-1994)


Gentil Palhares, "quando, nos campos nevados da Itália, integrava a Expedição Brasileira que foi defender a nossa honra ultrajada (Nápoles, 1944)"


"Gentil Palhares era natural de Formiga-MG, onde nasceu em 9 de março de 1909, filho de Olivério de Fontes Palhares e de Maria Clara de Melo, respectivamente contador e partidor no Fórum local e professora. Transferiu-se para São João del-Rei aos cinco anos, onde residia seu avô materno, Antônio Rodrigues de Melo, homem de vasta cultura, professor e latinista.

Estudou no Grupo Escolar João dos Santos e, posteriormente, no Ginásio Santo Antônio e no Seminário do Caraça, para onde seguiu em 1923. 
Voltou à sua terra natal, Formiga, para trabalhar na casa comercial de seu primo José Maria Palhares, naqueles tempos a maior casa de varejo do Oeste de Minas. 
Em 1930 seguiu para Araxá, onde trabalhou na Singer como viajante comercial até 1932, quando retornou a São João del-Rei para ingressar no Exército como soldado. Fez carreira. Tomou parte na Segunda Guerra mundial como sargento, seguindo para os campos da Itália em 22 de setembro de 1944. No seio do Exército recebeu as seguintes condecorações: Medalha de Campanha, Medalha de Esforço de Guerra, Medalha do Pacificador, Medalha do 1º Congresso Nacional dos Veteranos de Guerra e Medalha dos 30 anos do Término da Guerra. Regressando da Itália, continuou no Exército, no 11º Regimento de Infantaria, até 1957, quando passou para a reserva como Primeiro Tenente.
Já na reserva, foi nomeado Chefe do Serviço de Recrutamento na cidade de Passos, onde permaneceu até 1959, quando regressou definitivamente a São João del-Rei, de quem recebeu, muito merecidamente, o título de cidadão honorário.
Em 1937, quando servia como cabo na Escola de Aviação Militar do Rio de Janeiro, casou-se com a carioca Elvira Coelho dos Santos, com quem teve oito filhos.
Foi Assessor de Imprensa da Prefeitura de São João del-Rei, de forma graciosa, na gestão do Prefeito Dr. Milton de Resende Viegas, colaborando também, ininterruptamente, com a imprensa local, levando seu saber aos leitores através dos mais variados artigos e crônicas. (...) Seus textos versavam sobre os mais variados temas. 
Publicou também os seguintes títulos: De São João del-Rei ao Vale do Pó; A morte de Frei Orlando - crônicas; Roteiro Turístico de São João del-Rei; Histórico do Minas Futebol Clube; Frei Orlando, o Capelão que não voltou; São João del-Rei na Crônica; e De Tomé Portes a Tancredo Neves. Desses destacam-se dois que enaltecem Frei Orlando, Capelão do 11º R.I. na Itália e que lá tombou a serviço de Deus e da Pátria — o que demonstra mais uma faceta generosa da personalidade de Gentil Palhares, pelo fato de que, sendo espírita praticante, não deixava de respeitar e reconhecer os valores pessoais daqueles que seguiam os mais diferentes credos religiosos. O saudoso bispo Dom Delfim Ribeiro Guedes costumava referir-se a ele sempre como seu Grande Amigo Espírita. E o fato de sua esposa ser católica praticante nunca foi óbice para que tivessem vivido, por toda a vida, em perfeita harmonia e comunhão. (...) 
Pessoa de espírito ativo, irrequieto, pertenceu às mais diversas instituições culturais, tais como: Academia Municipalista de Minas Gerais, Academia de Letras de São João del-Rei, Academia de Letras de Ipatinga, Academia de Letras de Barbacena, Instituto Brasileiro de Estudos Sociais de São Paulo, Instituto Histórico de Juiz de Fora e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei.
Foi presidente da Associação dos Ex-Combatentes por duas gestões. (...)  Erigiu o busto de Frei Orlando, na Av. Andrade Reis, em São João del-Rei. Foi também presidente da Associação dos Subtenentes e Sargentos, membro do Conselho Fiscal do Minas Futebol Clube, secretário da Academia de Letras de São João del-Rei e presidente do Centro Espírita Amor e Caridade. (...)
Faleceu em 11 de junho de 1994, aos 85 anos. (...)" (Breves notas biográficas extraídas do Discurso de Defesa do Patrono, pronunciado pelo Confrade José Carlos Hernández Prieto em 1º de julho de 2012 na sede do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, conforme Ata nº 471.)

Por outro lado, é atribuído aos historiadores Tenente Gentil Palhares e Dr. Paulo Christofaro o achado do primeiro Estatuto do Minas Futebol Clube (MFC), que não se achava registrado em um livro próprio e bastante corroído pela ação do tempo, junto a José Galo, outro torcedor do MFC.
(Cf  http://mineirosdomfc.blogspot.com.br/2009/07/historico-do-minas-f-clube.html)

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Homenagem póstuma a Dr. ÁLVARO BOSCO LOPES DE OLIVEIRA (1937-2009)



Por Francisco José dos Santos Braga




Homenagem a meu primo Álvaro Bosco Lopes de Oliveira (1937-2009)in memoriam. 


I.  INTRODUÇÃO 



No meu discurso de Defesa do meu Patrono Lincoln de Souza no IHG, proferido em 3 de fevereiro de 2013, sendo empossado na Cadeira nº 22 patronímica desse grande escritor são-joanense, tive a oportunidade de fazer a seguinte homenagem ao saudoso confrade Dr. Álvaro Bosco Lopes de Oliveira: "No dia 7 de agosto de 2011, tive a elevada honra de tomar posse como Membro Efetivo deste egrégio IHG, ocupando desde então a Cadeira nº 22, patronímica do escritor, jornalista e poeta são-joanense Lincoln Teixeira de Souza (1894-1969), em virtude de ter solicitado alteração de minha categoria anterior de Sócio Correspondente, estando este meu pedido amparado no fato de estar residindo na cidade de São João del-Rei desde o ano anterior. Devo confessar que o presidente Artur Cláudio da Costa Moreira acolheu-me então com afeição e simpatia, designando-me para ocupar a cadeira nº 22, patroneada por Lincoln de Souza, que se encontrava vaga, e mais tarde honrando-me com o convite de participar de sua Diretoria, na qualidade de Secretário.

Naquela oportunidade, afirmei que meu ingresso no IHG tinha sido fruto da insistência solidária e magnânima do saudoso confrade Dr. ÁLVARO BOSCO LOPES DE OLIVEIRA, o qual, em reconhecendo minha aptidão para a pesquisa histórica, me conduziu à presença do Presidente do IHG de então, o Sr. José Antônio de Ávila Sacramento. Este mostrou-se extremamente interessado no meu ingresso e empenhou-se pessoalmente para que eu fosse nomeado Sócio Correspondente deste ilustre Sodalício, o que ocorreu em 3 de junho de 2007. Tive, pois, a sorte de ser admitido como confrade deste Instituto no ano em que nossa cidade estava em festa, pois tinha sido escolhida para receber o título de Capital Brasileira da Cultura 2007. (...)"¹

Ao final daquela minha fala, o confrade e ex-Presidente do IHG de São João del-Rei, Sr. José Antônio de Ávila Sacramento, pediu a palavra para, entre outras coisas, dizer "sentir-se muito gratificado com as palavras ditas pelo orador, mas que tinha feito apenas a sua obrigação enquanto Presidente desta Casa, quando o IHG acolheu o seu nome (do orador) para Sócio Correspondente. Acrescentou que não foi mérito nenhum seu, tendo revelado que foi instrumento do clamor das pessoas que já conheciam o orador Braga, daquilo que já ouvira falar a respeito dele, uma vez que não tivera ainda a oportunidade de saber ao vivo, de presenciar, de conhecer. Veio a conhecer graças ao confrade ÁLVARO BOSCO LOPES DE OLIVEIRA, grande e ilustre amigo de fé e irmão camarada dele próprio, do orador e de vários confrades ali presentes, um homem íntegro, assim como o orador, intelectual dos sete costados, pessoa íntegra, honesta, inteligente, músico, pianista, poliglota, mas sobretudo pessoa sensível, humana e o amigo leal de todas as horas, sobretudo das horas mais difíceis, quando as pessoas fogem daqueles que são acusados injustamente. (...)" ²

Álvaro Bosco Lopes de Oliveira foi membro titular do IHG, ocupante da cadeira nº 17 patroneada por Severiano de Rezende.

Muitos confrades do IHG e conhecidos de Álvaro certamente ainda se lembram do seu relato da cura milagrosa de um câncer de pulmão, obtida mediante a invocação reiterada de Nhá Chica, a então Serva de Deus, nascida no distrito do Rio das Mortes Pequeno e falecida em Baependi. Álvaro fez inúmeras caminhadas ao local, onde nascera Nhá Chica e lá, naquele sítio sagrado que a memória do povo preservou sob a denominação de "Chica Pola" (Francisca Paula, o nome de Nhá Chica), tomou conhecimento dos milagres da beata em favor do povo simples do lugar e ouviu depoimentos de graças obtidas por intermédio da "santinha do Rio das Mortes", razão por que em breve se tornaria mais um devoto de Nhá Chica. Eu próprio lembro-me de ter acompanhado algumas vezes Álvaro ao sítio denominado "Chica Pola", à margem da Estrada Real/Caminho Velho, tanto para prestar-lhe culto quanto para fazer suas preces de devoto. Contava ele que o próprio diagnóstico do câncer tinha sido milagroso, tendo sido possível debelá-lo por ter sido diagnosticado cedo. Na ocasião, segundo Álvaro, encontrava-se em Belo Horizonte, em visita à sua mãe Anita, fervorosa devota de Nhá Chica, quando se dirigiu a uma piscina próxima à casa materna para prática de exercícios aquáticos, tendo sofrido uma queda numa escada. Ao procurar o setor de Raio X de uma clínica, foi constatado que não sofrera nenhuma fratura de costela, mas que o Raio X identificara infelizmente uma mancha no seu pulmão. Álvaro sempre atribuiu a cura dessa sua moléstia à intercessão de "Santa Nhá Chica", que, de acordo com ele, foi sua intercessora permanente diante de Deus.

Além dos traços de personalidade já apontados por sua irmã no item III abaixo (biografia de Dr. Álvaro), acho que posso acrescentar algo do que depreendi de minha longa convivência com meu biografado. Sua alegria contagiante, brincalhão, católico fiel, fez da entrega absoluta de sua vida —primeiro — à proteção de Nossa Senhora do Carmo, — depois — à intercessão de Nhá Chica o seu ideal de vida, campeão de jogo de damas, amante de palavras cruzadas, defensor e praticante de uma advocacia caritativa, sincero e leal em suas amizades, franco e direto nas suas posições, cinéfilo contumaz. Pessoa cordial e prestativa, sabia entretanto recusar qualquer proposta indecorosa. Não se intimidava diante de nenhuma afronta, disposto a não levar nenhum desaforo para casa. Dotado de uma personalidade cativante, mostrava-se às vezes impertinente na defesa de um argumento ou de sua opinião já formada. Em sinal de reverência, costumava chamar o seu interlocutor por seu nome completo. Gostava de viajar pelo País e ao exterior: cito, por exemplo, a inesquecível viagem que fizemos à Grécia, na companhia agradável de sua esposa Emma Lanna, no ano de 2001. Dotado de vontade férrea, foi capaz de abandonar o vício do tabaco e da bebida alcoólica, diante de uma iminente ameaça de enfisema pulmonar, no primeiro caso,  e de insistente pedido de familiares, no outro caso. Pode-se dizer que Álvaro foi um vitorioso, pois conseguiu que sua vida tenha sido uma lista de felizes realizações, apesar dos percalços naturais. Fino contador de casos, era uma memória viva de fatos e episódios vivenciados e presenciados na sua infância e juventude, bem como de personalidades que frequentou. Acolhedor, em sua presença era impossível não se sentir à vontade.

Na vida de Álvaro houve um claro divisor de águas, que ocorreu quando tinha 61 anos de idade: o dia do seu casamento em 30 de dezembro de 2000 com a Profª Emma Lanna na igreja Nossa Senhora do Carmo em São João del-Rei. Emma representou o que se costuma chamar de alma-irmã, porto seguro, aquela companheira inseparável e fiel de todas as horas. 

O venturoso casal e eu fizemos uma viagem à Grécia, que se deu no período de 19 de abril a 26 de maio de 2001. Visitamos primeiramente Atenas durante 3 dias, depois fizemos um passeio com ferry-boat de 8 dias à ilha de Creta, donde voltamos em 2 de maio a Atenas para presenciarmos a passagem do papa João Paulo II por lá. Por ocasião de nossa passagem por Creta, fiz a anotação de um dos conhecidos provérbios cretenses, que vimos em certa localidade da ilha e que diz: "Assim como o bode é forte, não o prende o curral; o homem faz a descendência, e não a descendência, o homem." ³

No dia 5 de maio, véspera do aniversário de Álvaro, Karol Wojtyła celebrou uma missa num campo de basquete em Piréus. Visitamos as ilhas de Santorini, Paros e Mykonos, de 7 a 14. Da noite de 14 à tarde do dia 16, conhecemos inúmeras atraçoes turísticas de Atenas, com destaque para a Acrópole, o teatro de Herodes Ático (utilizado para o Festival de Atenas). Passeamos pelo Peloponeso (Corinto, Náfplio, Argos, anfiteatro de Epidauro   ou de Epídavros, como se diz em grego, etc.), da tarde do dia 16 a 19. No dia 20, visitamos as ilhas situadas no Arquipélago Argo-Sarônico, mais especificamente Hydra e Spetses. No dia 21 visitamos Tebas. Reservamos o dia 22 para visitar as ruínas de Delfos e seu famoso templo de Apolo. O oráculo de Delfos era normalmente representado por uma ou mais píthias, que eram mulheres profetizas de mais de 50 anos e com passado irrepreensível. No mesmo dia, descemos de carro até Itéa e passamos por Chalkída. No dia seguinte, saímos de ferry-boat para o porto de Atenas, Piréus. Até o dia 26, dia de nossa saída da Grécia com destino ao Brasil, ficamos apreciando atrações turísticas ainda não vistas e passeando na capital Atenas.

 
Teatro de Epidauro


















Em Firá, Santorini, havia, defronte ao hotel em que nos hospedamos, um prédio de três andares embargado, certamente por ter sido construído em local inapropriado e por ter avançado na praia, além do limite para construção de casas. Algum turista muito esperto escreveu nas suas paredes externas, em letras garrafais maiúsculas, algo como um provérbio que despertou minha atenção:
ANYONE CAN DIG A HOLE. IT TAKES A MAN TO NAME IT HOME.
Depois soube que esse é o título, com uma leve variante (Anyone can dig a hole but it takes a real man to name it home ), de uma música da banda Underoath de Tampa, Flórida, no álbum Lost in the Sound of Separation.


II.  O FIM DA GUERRA, por Álvaro Bosco Lopes de Oliveira


Os convocados tinham o apelido de ARIGÓS , porque eram na sua maioria gente simples da roça. Naquele dia 6 de maio de 1945 eles chegaram à pensão de meu pai, eufóricos, transbordando de alegria.
Pensão de Miguel Lopes de Oliveira (a mesma casa retratada no conto            "O Segredo", de Lincoln de Souza, na  6ª edição do seu livro "Contam que...", de 1957, segundo desenho de Armando Pacheco, com base em                                                                        fotografia fornecida pelo autor)

Chegaram me jogando para cima, fazendo festa. O clima de alegria contageou a todos. Meu pai trouxe guaraná e cerveja e a festa foi se avolumando, pipocando por toda a cidade. Fiquei perplexo com aquela grande festa, na pensão de meu pai, no Segredo e no resto da cidade... No pouco entendimento dos meus oito anos, eu achei que aquilo era uma grande festa do meu aniversário. Só mais tarde vim a saber que toda aquela festa contagiante era porque tinham se livrado da Guerra, tinham se livrado da perspectiva da morte nos campos de batalha da Itália, para onde muitos já haviam ido; aquele 6 de maio de 1945 foi o dia da rendição alemã, o fim da II GRANDE GUERRA. 

Mas a festa não ficou só na cerveja e guaraná. Teve outros lances. E um, digno de registro: um soldado do glorioso 11º Regimento Tiradentes, junto com o piloto Messias, sobrevoou, deu voos rasantes sobre o Regimento e imediações, jogando cal, purificando e embranquecendo as pessoas, pacificando o mundo!

E o soldado? E aquele soldado que jogava cal de um teco-teco? Quem era?

O soldado que teve participação tão original nas comemorações do fim da Segunda Guerra era FERNANDO SABINO. Também ele aguardava com ansiedade o desenrolar da Guerra na expectativa de ir para a frente de combate.

Não conheço nenhuma crônica de Fernando Sabino que faça alusão ao fato, mas em "O Grande Mentecapto" ele faz o herói do livro, Viramundo, viver parte de sua vida aventurosa e picaresca em São João del-Rei. Nesta passagem por São João del-Rei, Viramundo acaba participando de uma orquestra local, e aí, como em todos os lances do romance, faz as suas trapalhadas, de forma saborosa para o leitor.

Mas deixemos de divagações, voltemos ao dia 6 de maio de 1945. A rendição alemã tirou um peso do mundo. A humanidade voltou a respirar aliviada, cheia de entusiasmo para reconstruir dos escombros os edifícios e cidades que a loucura de HITLER havia atingido. 


III.  DADOS BIOGRÁFICOS,  por Maria do Carmo Lopes de Oliveira Braga


Álvaro Bosco Lopes de Oliveira, terceiro filho de uma família de onze irmãos, nasceu em São João del-Rei, em 6 de maio de 1937. Seus pais, Anna Braga Lopes e Miguel Lopes de Oliveira, deram-lhe o nome "Álvaro" em homenagem ao Padre Álvaro Negromonte, cuja santidade encantou a todos que ouviram suas palestras naquele ano de 1937, e "Bosco" em honra a São João Bosco.

Em sua infância explode a Segunda Guerra Mundial. Conviveu com muitos convocados que chegaram a São João del-Rei para se alistar no 11º Regimento de Infantaria. Alguns deles se hospedaram na casa de seus pais e avós, transformada em pensão, uma vez que na cidade não havia mais locais para hospedá-los, tão grande o número de soldados recrutados.

No seu aniversário de oito anos, os adultos estavam brindando pela rendição da Alemanha aos aliados e ele achou que estavam comemorando seu aniversário. Após o término da guerra, estudou no Grupo Escolar Maria Teresa. Trabalhou na "Fábrica de Calçados Eduardo Lopes", ajudando seu pai Miguel e seu tio José, carinhosamente chamado pelos sobrinhos de "Tio Zeca". Ele e seus irmãos sempre tiveram por esse tio uma grande estima e amizade.

Nasceu e morou no Segredo, bairro antigo e deserto de São João del-Rei. Jogava futebol, bolinhas de gude, finco e soltava pipa com seus irmãos e amigos e se encantava com as partidas de tênis dos são-joanenses que frequentavam o Athletic Club. Quando tinha dez anos, sua família mudou-se para uma casa em frente à Igreja do Carmo.

Com dezessete anos foi morar em São Paulo e ingressou no Banco de Crédito Real, onde já trabalhava seu tio materno Roberto Norberto Braga, que o indicou para o cargo que exerceu. Contou também com o apoio dos tios Júlio Teixeira e Roque da Fonseca Braga, cunhado e irmão de sua mãe. Trabalhou com os amigos conterrâneos e contemporâneos Chitarra e João José, sendo este último seu primo, filho dos tios Maria e Alvim Lopes. Em 1956, deixa São Paulo e volta a São João del-Rei para servir o Exército, primeiro como soldado e depois como cabo.

Quando saiu do Exército começou a trabalhar no comércio de enxovais para noivas com seus irmãos "Eduardinho" e Maurício e por longos anos essa foi a sua atividade. Mas, como muitas coisas em nossas vidas nem sempre são como planejamos, Álvaro passou por momentos de indecisões. No começo de 1970 resolveu então ir para o Rio de Janeiro. Trabalhou no ramo imobiliário e prestou vestibular para Advocacia, a qual se tornou sua atividade profissional até se aposentar.

Em 1978 começou a exercer sua profissão de advogado em sua cidade natal. Atendia os mais necessitados gratuitamente. Aliás, esse foi seu traço marcante. Soube em toda a vida ter consideração para com os pobres e marginalizados, que tinham por ele um duplo sentimento de respeito e de admiração. Em meados da década de 80, ingressou no Serviço Público Estadual onde fez sólidas amizades. Nessa mesma época, sentiu-se muito honrado ao ser convidado para participar como sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, fazendo questão de estar sempre presente nas reuniões mensais.

Aos poucos foi se libertando do vício do álcool, tornando-se um grande aliado dos "Alcoólicos Anônimos" de São João del-Rei. Ajudou muitos amigos a superar essa dependência. Sua vida milagrosamente se transformou, alegrando o coração de sua mãe Anita e seus irmãos, que tanto confiaram em Deus esperando por esse momento.

Seu firme passo deu-se em 2000, então com 63 anos, quando se casou com Emma do Carmo Parentoni Lanna de Oliveira, esposa exemplar, sua fiel companheira. Iniciava uma nova etapa em sua vida. Tornou-se grande amigo dos familiares de sua esposa e teve por eles uma imensa admiração. Ele e Emma passearam pelo Brasil e pelo exterior, aproveitando com muita alegria esses momentos inesquecíveis.

Diariamente encontrava-se com amigos e batiam papos agradáveis e alegres  relembrando cassos e histórias da tão querida São João del-Rei.

Jamais se descuidou do sentimento de amor a seus avós, pais, tios, irmãos, cunhados, sobrinhos e primos. Seu ar descontraído alegrava quem estivesse por perto. Conversava com pessoas de todas as idades e classes. Contava anedotas e entendia de cinema como ninguém. Era um cinéfilo. Gostava imensamente de falar e referenciar antigos e novos filmes.

Sempre junto de sua esposa, irmãos, familiares e amigos, Álvaro Bosco faleceu em 22 de maio de 2009. Ele será sempre lembrado com muita saudade por todos aqueles que tiveram a oportunidade de tê-lo em sua companhia.

IV.  AGRADECIMENTO


Quero aqui agradecer a meu irmão, Carlos Fernando dos Santos Braga, ter fornecido o belo texto "O fim da guerra", da autoria de Dr. Álvaro Bosco Lopes de Oliveira.


V.   NOTAS DO AUTOR



²  Transcrição de trecho da Ata nº 477, de 3 de fevereiro de 2013, do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei.

³  Σαν είναι ο τράγος δυνατός δεν τονε στένει η μάντρα, ο άντρας κάνει τη γενιά κι όχι η γενιά τον άντρα.

  Sobre o teatro de Epidauro, encontra-se na Infopédia a seguinte referência: "A arquitetura grega mantém, no essencial, as suas características clássicas desde o final da Guerra do Peloponeso até à conquista romana. O único elemento original introduzido neste período foi a remodelação dos teatros, construções muito importantes para a cultura grega, amante da arte da representação. 
Os teatros, construídos ao ar livre, passam a ser planeados de uma forma racional, adotando uma estrutura regular. Até ao século IV a.C., o teatro era apenas um auditório, implantado numa encosta, preferencialmente côncava, servida por bancos de pedra. A partir deste momento a rocha é escavada em hemiciclo, o que permite criar filas de bancadas concêntricas com intervalos regulares. O espaço central do teatro, de formato circular, era reservado para a atuação do coro.
O teatro de Epidauro, construído no século IV a.C. (c. 350 a.C.), é um belo exemplar deste tipo de construção grega. Neste caso podem ser observados alguns vestígios de um grande compartimento, possivelmente utilizado como uma estrutura de suporte do cenário.
O teatro faz parte da estação arqueológica de Epidauro, um local classificado Patrimônio Mundial pela UNESCO."

  Trad.: Um buraco qualquer um pode furar, mas é preciso um verdadeiro homem para aquilo ser chamado de casa.

  Nos Estados do Amazonas e Pará, principalmente, arigó é a designação dada aos nordestinos, em especial cearenses, que para lá migraram a fim de participar, como "soldados da borracha", da extração do látex das seringueiras no esforço de guerra durante a II Guerra Mundial. Foram, ao todo, 55.000 brasileiros recrutados pelo governo Getúlio Vargas para produzir, nos seringais da Amazônia, 100.000 toneladas de borracha por ano para os países aliados. Fugindo da seca de 1942, os nordestinos se alistaram como voluntários, dos quais pelo menos 31.000 morreram, vítimas de malária e outras enfermidades, além dos problemas decorrentes da dura jornada de trabalho.