sexta-feira, 29 de abril de 2022

ORAÇÃO PROFERIDA EM SOLENE HOMENAGEM AO DIA DE TIRADENTES EM SUA TERRA NATAL


Por Alair Coêlho de Resende - in memoriam

 

DIA DE TIRADENTES - 21 DE ABRIL DE 2017 

29ª Cavalgada da Inconfidência-São João d'El-Rey 

                          Minas Gerais 

Joaquim José da Silva Xavier (✰ São João del-Rei, 12/11/1746 ✞ Rio de Janeiro, 21/04/1792)


 

Discurso proferido perante a Cavalgada da Inconfidência em São João d'El-Rey, na avenida Presidente Tancredo Neves, junto ao Monumento a Tiradentes, em 21 de abril de 2017.

Excelentíssimo Senhor Doutor Baldonedo Arthur Napoleão, criador e coordenador da Cavalgada da Inconfidência; autoridades presentes; presidente e membros da Academia de Letras de São João d'El-Rey; venerável Mestre e membros da Loja Maçônica Cháritas II; diretores, professores e alunos das escolas presentes; diretora, professoras e alunos da Escola Caminho do Sol; amazonas; cavaleiros; senhoras; senhores: 

Em fins do século XVIII as ideias iluministas grassavam mundo afora e fervilhavam principalmente em Paris, onde os iluministas procuravam esbater, com vigor, os resquícios dos séculos perdidos da Idade Média, quando os monarcas, particularmente os absolutistas, agasalhados sob os mantos da ideia de que eram coroados pelo poder divino, se sentiam os donos do mundo. 

Portugal não fugia à regra e mantinha suas ricas colônias sob despótico poder, governadas por prepostos do rei, sempre cruéis e quase sempre corruptos; eram os denominados vice-reis que mantinham o povo na mais absoluta servidão e vivendo em extrema pobreza. 

No Brasil esta situação então era a mais cruel possível, sobretudo nas Minas Gerais, onde as pedras preciosas eram, inclusive, catadas à flor da terra. A cupidez tornava o Reino mais cruel e o povo mais pobre e submisso. Em Minas, aos olhos portugueses, parecia que a riqueza mineral não teria fim. 

Portugal nada produzia e com uma nobreza ociosa e, em sua maioria inculta, mas com pretensões de ser equivalente a sua congênere francesa, adquirira toda espécie de bugigangas em Londres, pagando com o ouro arrancado nas entranhas de Minas Gerais, de onde extraía toda a riqueza e só deixava buracos. As caravelas recebiam o ouro, muitas vezes, diretamente dos lombos das mulas que chegavam das Minas, ali em Porto Estrela, ao norte da baía da Guanabara ou em Paraty e a riqueza, às vezes, nem era desembarcada em Portugal, ia diretamente para Londres. Os verdadeiros governantes de Portugal eram os prepostas de Sua Majestade, o Rei inglês. Os nobres portugueses se satisfaziam tão somente em ostentarem muito luxo e empáfia, usando bens que adquiriam dos ingleses. 

Contentavam-se simplesmente em explorar da maneira mais vil possível as riquezas do Brasil, particularmente as que arrancavam do rico solo de Minas Gerais. 

Era uma servidão mais brutal do que a que fora imposta aos habitantes do velho mundo quando este regime de trabalho era o adotado pelas chamadas monarquias de Direito Divino, que de divino nada tinham e que mergulharam a Europa em seculares e tenebrosos tempos da mais absoluta ignorância. 

Mas a alvorada das luzes raiou deslumbrante nos horizontes da cultura, mormente em Paris, e o Iluminismo, com inusitado vigor, começou a arejar o mundo e, graças a isto, as peias das monarquias do poder divino (que de divino nada tinham) começaram a ruir mundo afora. 

Nesta época, estudantes brasileiros, que frequentavam as universidades europeias, sobretudo as de Coimbra e Montpellier, entravam em contato com os novos ideais que campeavam mundo afora e iam derrubando as velhas concepções políticas e econômicas. E, em consequência disto, estes estudantes, quando voltavam ao Brasil traziam as ideias iluministas e as difundiam entre nossa gente. 

Assim, o Alferes Joaquim José da Silva Xavier O Tiradentes homem dotado de rara inteligência, que já vislumbrava um futuro fulgurante para o Brasil e que fazia da Independência dos Estados Unidos da América o modelo certo para a Independência do Brasil, se viu, em contato com José Álvares Maciel, jovem mineiro que voltava da Europa, aonde fora estudar e entrara em contato com iluministas e maçons e ficara convicto de que o Brasil podia se tornar independente. Tiradentes a ele se juntou, eis que tinham os mesmos ideais, e tomou a liderança do movimento independentista. 

Muitas reuniões secretas foram então realizadas, em fins do século XVIII e nelas sempre sobressaía a figura de Tiradentes, eis que todos os outros, magistrados, altos funcionários da administração, militares, clérigos, poetas, comerciantes, artífices, mineradores e fazendeiros se mostravam comprometidos com a conjuração, mas nenhum saía das salas de reuniões e se punha a difundir os ideais de uma pátria livre e arregimentar homens que pudessem ir à luta, em defesa de seus ideais. Só Tiradentes fazia isso, porque era um louco, como quiseram fazer crer alguns de nossos historiadores, que sempre estiveram atrelados às concepções do "politicamente correto" e que foram ditadas por Lisboa, mas porque era realmente um patriota corajoso. 

Na verdade, o que havia era o preparo para uma Conjuração Brasileira já que tínhamos revoltosos na Bahia, Goiás, Mato Grosso, Rio de Janeiro, São Paulo, quiçá em Pernambuco, e não somente em Minas. Estrategicamente os Conjurados tinham escolhido Minas Gerais como centro da revolta porque aqui é que se daria a cruel DERRAMA, que empobreceria mais a já sacrificada população da mais importante Capitania do Brasil. No dia em que tivesse início a derrama o povo mineiro fatalmente se rebelaria e Minas se levantaria em armas e os Dragões, tropa paga a que pertencia Tiradentes, prenderiam o Governador e Tiradentes se destacaria como o grande chefe da Conjuração, mesmo porque só ele teria coragem para tanto. 

O Alferes Joaquim José da Silva Xavier O Tiradentes , a quem hoje aqui homenageamos como nosso principal herói, não era, como apregoam até hoje seus detratores e historiadores, pobre e inculto, não, não o era. Quem conhece a Fazendo do Pombal e ali vê a grandeza das ruínas de uma simples serventia daquela propriedade que era de seu pai e onde nosso herói, se espanta e vê logo que se tratava de uma grande fazenda. E por isto, logo se conclui: Tiradentes nasceu em uma família rica, sem dúvida. Basta dizer que, naquela época, só as famílias de grandes posses tinham filhos padres; este privilégio não chegava às famílias pobres, nunca, e Tiradentes, pasmemos, tinha dois irmãos sacerdotes. 

Ademais, é preciso dizer que Tiradentes, além de ser um oficial no Regimento de Cavalaria Paga os Dragões , era dono de uma farmácia perto da Ponte do Rosário, em Vila Rica, e proprietário de rica fazenda, possivelmente a fazenda de Porto dos Menezes, em Paraibuna, hoje Comendador Levy Gasparian/RJ, bem perto da Corte. É evidente que uma fazenda nas proximidades da Corte tinha elevado valor. Então por que teimam em dizer que ele era pobre e que por isto foi enforcado? Esta é uma visão caolha de nossos historiadores, sempre "politicamente corretos". 

Também não era, como dizem alguns historiadores mal informados ou mal intencionados, um homem inculto, já que ele sempre trazia consigo, um exemplar da Constituição dos Estados Unidos da América, editada em francês, a qual ele sempre lia e comentava nos pousos que havia no Caminho Novo; por este detalhe vê-se que ele sabia, é evidente, o idioma francês, quiçá o inglês. Em sua farmácia em Vila Rica, foram apreendidos vários livros, principalmente sobre medicina, e, como sabemos, não havia imprensa no Brasil; os livros eram importados e obras científicas, todas, só eram editadas em Latim. Logo, isto é silogístico, ele sabia o idioma latino. 

Então ele não foi executado por ser pobre e nem por ser inculto. Esta afirmativa é feita por brasileiros mal intencionados, ou mal informados, que dançam conforme a música dos ideais "politicamente corretos", executada pelas autoridades portuguesas e que até hoje, em certo sentido, ainda atropela a verdade. 

Só poderemos entender a personalidade de Tiradentes se formos politicamente incorretos , porque só assim faremos a leitura de sua odisseia, lendo nas entrelinhas da historiografia pertinente. 

Naquela época, como até hoje, os homens só eram respeitados pelo perigo que representavam para alguém e não pelo seu valor intrínseco. Tiradentes, de todos os conjurados, era o único que o Reino Português realmente temia. Era ilustrado e destemido. Aí deve estar, inclusive, a explicação para que sua carreira militar não tenha sido bem sucedida. Ele era um homem que, por sua atitude e coragem, representava sérios perigos para reino português. 

E assim transcorria o ano de 1789, o mesmo ano da Revolução Francesa e da emblemática tomada da Bastilha. Isto, é evidente, pôs o reino de Portugal em alerta, pois não era mera coincidência a insurreição no Brasil, a partir de Minas Gerais e a já referida Revolução Francesa, acontecerem ao mesmo tempo. 

Se Portugal fosse combater a Conjuração Brasileira, com o rigor que julgava necessário, isto repercutiria mundo afora e, certamente, algumas nações, sobretudo França, Inglaterra e Estados Unidos reconheceriam, de pronto, o novo Estado chamado Brasil, e Portugal perderia sua rica colônia. Que fizeram os portugueses? Habilmente trataram o movimento independentista brasileiro como uma simples rebelião de maus pagadores de impostos e lhe deram o nome de "Inconfidência Mineira". Decidiram que poucos seriam os acusados, para que o mundo não percebesse que era um movimento independentista, com fincas no iluminismo. E assim foi feito. E desde o princípio algumas figuras incômodas como Tiradentes e Tomaz Antônio Gonzaga foram marcadas para serem punidas e banidas da vida pública brasileira. Tiradentes seria condenado "à morte natural na forca", como dizia a sentença condenatória, porque, reconheciam as autoridades reinóis , era mesmo um homem perigoso. 

E assim a Conjuração foi transformada em simples Inconfidência e seus membros (só alguns líderes) condenados. Dos onze condenados à morte, sete eram daqui, da Comarca do Rio das Mortes, ou seja, de São João d'El-Rey, o que prova, à exaustão, a importância de nossa terra no movimento revolucionário. 

Eis que afinal chegou o dia 21 de abril de 1792, a data da execução de Tiradentes. 

Às oito horas da manhã, os clarins ecoaram seus acordes anunciando que tinha início a solenidade e uma enorme procissão se pôs em marcha, composta por militares engalanados, cavalos bem ajaezados e muitos religiosos, seguidos de uma carroça própria, onde seriam recolhidos os restos mortais do condenado; à frente do cortejo desfilava a Irmandade da Misericórdia. A procissão, ao toque surdo e sincopado dos tambores, em funeral, caminhava devagar para aumentar a curiosidade popular e causar maior terror. Ao fim do cortejo desfilava um Esquadrão de Cavalaria para dar mais pompa ao tétrico espetáculo. As janelas das casas estavam apinhada de mulheres que queriam ver o desfile. 

Tiradentes, com as mãos amarradas por uma corda, o baraço, cuja ponta era empunhada pelo carrasco, se mostrava impávido, colosso, o peito saliente, a cabeça erguida e olhar firme. Nada temia. O cortejo enveredava por ruas que aumentavam o percurso e davam maior exposição à solenidade, como queriam as autoridades, no intuito de tornar mais evidente o cruel poder real. 

Quando a funérea procissão chegou ao Largo da Carioca e Campo da Lampadosa, Tiradentes numa passo firme, a cabeça erguida e com os olhos fitos ao longe, como que a vislumbrar o futuro brilhante da pátria, subiu sem titubear a imensa escada (tinha vinte e quatro degraus), que dava acesso ao piso do cadafalso, e não mostrava nenhum sinal de medo. Era verdadeiramente um herói que se doava à pátria.

Durante a caminhada do estranho séquito, alguns frades, em alguns pontos predeterminados e para aumentar o aspecto solene e aterrorizador que queriam dar, proclamavam, em altas vozes, em uníssono: 

"Justiça que faz Sua Majestade a Rainha, no infame réu Joaquim José da Silva Xavier por alcunha o Tiradentes."

E o povo ululava, induzido por áulicos que instigavam a claque. 

Finalmente Tiradentes diz ao carrasco: 

"Escuta, amigo, termina depressa teu trabalho."

E, após muita demora, como era a intenção das autoridades, foi proferido um longo sermão pelo padre José Jesus Maria do Desterro que, ao lado de Tiradentes e virado para a multidão, cobria de impropérios e maldições o condenado e a todos que ousassem se levantar contra as autoridades portuguesas. 

Após este sermão, cheio de maldições contra o condenado, o carrasco passou a corda no pescoço de Tiradentes e aí, este, calmo, com a voz firme, proferiu suas últimas palavras, segundo Oleg Ignatiev, jornalista e historiador russo: 

"Oh! Pátria! Recebe meu sacrifício."

O carrasco acionou uma alavanca, abriu-se um alçapão no piso do cadafalso sobre o qual Tiradentes estava em pé e seu corpo balançou no vazio. Tiradentes estertorou, mas não morreu logo; por isso, o carrasco subiu-lhe aos ombros, agarrado à corda da forca para aumentar a presão do laço em seu pescoço, frustrando, diabolicamente, a ação salvadora da Irmandade da Misericórdia. Estava consumada a execução. O povo ululou em uníssono, porém seus brados foram cobertos pelos sons dos clarins. 

Eram exatamente, como marcavam os ponteiros do relógio da igreja próxima, onze horas e vinte minutos. 

Trinta anos após o enforcamento de Tiradentes, o Brasil proclamou sua independência. Mas a história não como nossos historiadores contam: nunca houve o teatral grito do Ipiranga e nem o Príncipe Regente gritou "laços fora". Inclusive porque, na realidade, o Brasil "comprou" sua independência pagando a Portugal uma "indenização" em milhares de libras esterlinas. Tudo transcorreu em trâmites estritamente burocráticos e inventaram ou teatralizaram o enredo que até hoje é impingido aos nossos estudantes. Pura e imaginosa alegoria. 

E Tiradentes, mesmo com a Independência, continuou esquecido maldosamente. 

Mas eis que veio o Segundo Império, governado afinal, por um Imperador brasileiro, liberal e culto, porém doente, o que acabou por ensejar a proclamação da República. 

E assim, afinal, noventa e sete anos após o enforcamento de Tiradentes foi proclamada a República, e o tão sonhado ideal dos conjurados e particularmente de Tiradentes se tornou realidade. E com a República o nome de Tiradentes foi reabilitado e ele foi reconhecido com o nosso herói. Afinal o Brasil tinha o seu herói, o Alferes Joaquim José da Silva Xavier O Tiradentes.

Contudo, Tiradentes, equivocadamente, foi declarada Mártir da Independência. 

Oh! Meu Deus! Que absurdo é este! Quem precisa de mártir é Igreja. Pátria precisa é de herói! E é assim que devemos considerar e venerar Tiradentes, o nosso Herói, e Herói como ele no mundo não há maior. 

E hoje, quando aqui estamos para rendermos nossas homenagem ao nosso Herói maior, não podemos nos esquecer de que ele sonhou com a República, mas certamente não era a República na qual vivemos hoje, cheia de mazelas e com a corrupção grassando qual peste que avilta o sonho dos conjurados brasileiros. 

Meus amigos, meus conterrâneos, brasileiros que aqui estão, sobretudo as amazonas e os cavaleiros que vêm prestar sua homenagem a Tiradentes, da maneira que mais lhe agradaria certamente, porque cavaleiro ele sempre foi; ao ser preso, inclusive, ele era Alferes em um Regimento de Cavalaria. O Regimento de Cavalaria Paga, aquartelado em Cachoeira do Campo, ao norte de Vila Rica, o famoso Regimento dos Dragões. Veneremos, pois, com muito amor, a memória de Nosso Herói Maior: Tiradentes. 

Por oportuno, é válido que se diga que a palavra "alferes" deriva do árabe "al-faris", que significa exatamente cavaleiro, como nos informa nosso confrade José Antônio de Ávila Sacramento. E, em assim sendo, se dissermos Cavaleiro Tiradentes, ao invés de Alferes Tiradentes, não estaremos cometendo nenhum equívoco. Alferes, Cavaleiro é. Portanto, todos vocês, cavaleiros e amazonas que participam desta Cavalgada da Inconfidência, são alferes, tanto quanto o Herói Tiradentes, que ora homenageamos. 

Finalmente, senhoras e senhores, vamos nos dirigir ao nosso glorioso Alferes, o Tiradentes e o fazemos assim: 

"Tiradentes! Oh imortal Herói brasileiro! Volte à terra, venha ao Brasil e, em aqui estando, volva à nossa São João d'El-Rey, encilhe, monte e cavalgue seu "machinho rosilho"; empunhe sua espada, ponha-se à nossa frente e sob seu destemido comando, quando o corvo negro da corrupção, que sobrevoa e enxovalha o Brasil, tentar pousar sobre nossos lares, matemo-lo, antes que ele ocupe o pedestal da honra nacional!"

 

 
II. AGRADECIMENTO
 
Agradeço à 1ª Secretária da atual Diretoria da Academia de Letras de São João del-Rei, confreira Sra. Terezinha de Jesus da Silva, o esforço de localizar o presente discurso na pasta do saudoso confrade Dr. Alair.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

TRIBUTO AO PIANISTA ORIANO DE ALMEIDA, EXPOENTE MÁXIMO DA ESCOLA DE MAGDALENA TAGLIAFERRO NO BRASIL, POR OCASIÃO DO CENTENÁRIO DE SEU NASCIMENTO


Por Francisco José dos Santos Braga
 
100 anos de ORIANO DE ALMEIDA (15/07/2021)
 
 

Em homenagem ao talento multiforme de ORIANO DE ALMEIDA — artista completo: pianista virtuoso, compositor, educador, comunicador de programas radiofônicos e televisivos como intérprete vigoroso, redator e apresentador da vida e obra de Chopin, jornalista e escritor —, escrevo o presente trabalho, ciente de que ele fez por onde merecer os diversos prêmios e honrarias que conquistou no Brasil e no exterior. 

Ficou conhecido por diversos epítetos, todos muito adequados a seu enorme talento como consagrado pianista. Assim, "o Chopin brasileiro", de acordo com jornais cariocas, ou "o embaixador de Chopin no Brasil", título que lhe foi conferido pelo Instituto Chopin de Varsóvia, em 1972, ou ainda, "personalidade cultural", como o cultuou a União Brasileira de Escritores e, finalmente, "glória da música do Brasil", como o consagraram por unanimidade os membros da Academia Brasileira de Letras. 

Gostaria de destacar uma qualidade inegável do pianista Oriano de Almeida, que nunca é demais realçar: a sua resiliência ou capacidade de recobrar forças diante de mudanças sofridas em desfavor de seus planos. Também considero que não houve no Brasil um artista mais "midiático" do que esse pianista, cujo centenário de nascimento está sendo aqui homenageado. Oriano fez uso de todo o aparato tecnológico à sua disposição, desde as gravações fonográficas (em 78 rpm, LP de 33rpm, fitas magnéticas, mini-cassete e CD) até o rádio, a imagem televisiva, a imprensa escrita e os livros. Acredito que tenha sido ele quem inaugurou a prática de levar ao vivo as melodias de Chopin sobre um caminhão-palco, prática esta iniciada em sua viagem a Natal em 20/03/1946 e que, a partir dali, iria se tornar rotina em sua vida artística, sem prejuízo dos seus "recitais Chopin" em teatros e salões de todo o País, onde difundia a obra do notável polonês.  Aos 27 anos, como 1º pianista colocado, selecionado em concurso nacional, representou o Brasil no IV Concurso Internacional de Piano Frédéric Chopin realizado em Varsóvia, que consistiu de provas que duraram 30 dias (de 15/09 a 15/10/1949); foi-lhe conferido um dos cinco diplomas de distinção. De 25/07 a 28/11/1958 foi entrevistado por Jota Silvestre, no programa "O Céu é o Limite", respondendo com exatidão, diante de um auditório lotado, a perguntas sobre Chopin na PRF-3 TV Tupi Difusora de São Paulo e eventualmente interpretando as peças sobre as quais respondia. Em 1960, Oriano foi contratado pela rádio MEC para desenvolver 44 programas intitulados "Ciclo Chopin", todas as segundas-feiras, às 20h 30 min, durante todo aquele ano. O trabalho radiofônico, além da apresentação oral, incluía a gravação de 180 obras para piano do mestre polonês. Em razão do prestígio adquirido no campo dos conhecimentos chopinianos, Oriano passou a ser muito requisitado pelos jornais cariocas, aos quais concedia constantes entrevistas e declarações. 

Da Revista BRASILEIRA nº 50 de jan/mar 2007 p. 33 da ABL-Academia Brasileira de Letras extraio o seguinte trecho do artigo "Câmara Cascudo: sábio e erudito" assinado pelo jornalista, escritor e membro da ABL Murilo Melo Filho, subtitulado "Para o povão, concertos de música clássica", quando trata da presença do grande pianista em Natal, seu torrão adotivo ao qual dedicou o melhor de sua vida e o maior de seu afeto: 

"Não raro o governador Sylvio Pedroza e o historiador Luís da Câmara Cascudo percorriam, felizes, os bairros populares, levando, em cima de um caminhão, o maestro Oriano de Almeida e o seu piano, para dar concertos de Chopin nas praças da cidade, ou então para assistirem aos folguedos da Nau Catarineta e do Bumba-Meu-Boi. 
Em noites de luar, os dois rendiam homenagens às estátuas silenciosas. Abandonavam seus compromissos e encontros, para, juntos, ouvirem os quartetos, as sinfonias, os musicais, a ópera Fidélio e a Missa Solemnis, do alemão Ludwig van Beethoven. 
Era aquele um lirismo pouco encontrado em homens comuns e, menos ainda, em homens importantes, como eles dois. (...)

Outros detalhes curiosos a respeito podem ser lidos no livro "O Céu era o limite: uma biografia de Oriano de Almeida", capítulo "Andante com Motto", subtítulo "Chopin num caminhão" (p. 110-111), da autoria de Cláudio Galvão, o maior biógrafo do pianista brasileiro em minha opinião.

Finalmente, gostaria, ao relembrar aqui o centenário do nascimento do magistral pianista, de reproduzir neste espaço o elogio fúnebre publicado por Vicente Salles, correspondente em Brasília da Academia Brasileira de Música, na seção "Obituário", constante da edição de nº 18 (setembro de 2004) da revista Brasiliana, p. 26, que endosso plenamente. 

 

I. Oriano de Almeida, pianista e compositor (1921-2004) 

Por Vicente Salles (de Brasília) 

Publicado originalmente in Brasiliana-Revista Quadrimestral da ABM-Academia Brasileira de Música, nº 18, setembro de 2004, seção Obituário, p. 26.

 

Morreu em Natal, Rio Grande do Norte, em 11 de maio, o pianista Oriano de Almeida, um dos expoentes da escola de Magdalena Tagliaferro e um dos especialistas brasileiros em Chopin. O Pará dividiu com o Rio Grande do Norte a posse desse talento raro. Da mesma forma que dividiu, na geração anterior, a posse de outro talento raro, o pianista e compositor Paulino Chaves (1880-1948), nascido em Natal e naturalizado paraense pelas circunstâncias da vida. 

Oriano nasceu em Belém do Pará em 15/07/1921, onde iniciou os estudos de piano com sua mãe. Tinha oito anos quando os pais resolveram mandá-lo para Natal, a fim de continuar os estudos com o tio Waldemar de Almeida, que o orientou. Aos doze anos, realizou os primeiros recitais em Natal e Recife, excursionando também a Manaus e Salvador. Transportou-se para o Rio de Janeiro e aperfeiçoou seus estudos com Magdalena Tagliaferro. Homenageou a mestra publicando o livro Magdalena dona Magdalena, Natal, publicado em 1993. 

Por essa época, realizou numerosos concertos, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Fez parte do grupo Música Viva, liderado por Hans Joachin Koellreutter, sendo signatário do Manifesto de 1944. Apresentou nos seus concertos a música dos compositores de vanguarda. Em 1946, fez a primeira viagem ao exterior, demorando-se em Paris. Tocou na Salle Chopin-Pleyel, na Maison de l'Amérique Latine e na Radiodifusão Francesa. 

Retornando ao Brasil, empreendeu extensa turnê pelo País. Tendo ainda o Rio de Janeiro como centro de atividades, aí participou em 08/05/1949 da finalíssima do Concurso Internacional Chopin, do qual foi vencedor. Viajou para Varsóvia como representante oficial do Brasil no IV Concurso Internacional Chopin, realizado no centenário de morte do pianista e compositor, chegando às provas finais, com diploma de honra e apresentação com a orquestra sinfônica polonesa, recebendo convite para apresentar-se no British Council de Londres. Em 1954, viajou para os Estados Unidos, apresentando-se em 25 cidades. Nesse intervalo compôs as primeiras obras para piano e se casou com a pianista Iris Bianchi. Teve uma filha, Lílian e, em sua homenagem, compôs uma canção. Tomou coragem e mandou imprimir as primeiras composições: Valsa de Paris e Canção de Lílian, também gravadas em disco RGE-10139, solos do autor, lançado em dezembro de 1958. Apresentou-se em televisão e trabalhou durante algum tempo na Rádio MEC. 

Mais conhecido como pianista, Oriano de Almeida deixou apreciável obra de compositor, principalmente solos de piano e canções. A obra não é inovadora, no sentido de acompanhar o seu tempo ou se apropriar de sua linguagem; é constituída de evocações do passado, olhares melancólicos sobre ruínas. Aliás, ele não se considerava compositor, mas "inventor de melodias". Saudosismo e melancolia são os traços dominantes. A ele se deve uma das mais bonitas harmonizações da modinha A Casinha Pequenina, cantada pela soprano paraense Maria Helena Coelho Cardoso em CD da MusikArt, abrindo o repertório, encerrado com outra bonita obra do compositor, Cajueiro, versos de Veríssimo de Melo. A Casinha Pequenina é criação do carteiro paraense Bernardino Belém de Sousa, composta em Belém do Pará no final do século XIX. Essa versão constitui, pois, a primeira — até agora única — homenagem dos paraenses à sua mais célebre canção. 

A Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) patrocinou a edição de três LPs — Oriano Interpreta Oriano — e um quarto título, O Velho Solar (Imagem musical baseada no poema Guaporé, de Diógenes da Cunha Lima), em que ele relaciona música e poesia. No Pará lhe foram dedicados dois CDs — Canções e solos de piano, com Maria Helena Coelho Cardoso e Oriano de Almeida, selo MusikArt, gravações realizadas no Teatro da Paz em 1975 e nova série de canções no CD Maria Helena Coelho interpreta Oriano de Almeida, produzido pela Secretaria Estadual de Cultura — SECULT (série A Música e o Pará, volume 6, 2000). Outras obras foram gravadas pela cantora potiguar Lucinha Lira em discos do Projeto Memória da Escola de Música da UFRN. 

Escritor e musicista, Oriano recebeu vários prêmios e honrarias. Era sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e ocupou na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras a cadeira que pertenceu ao mestre fundador Luís da Câmara Cascudo. 
 
Produziu também os seguintes livros: 
A música através dos tempos, Natal, 1991; 
Magdalena dona Magdalena, Natal, 1993;
Um pianista fala de música, Belém, 1996; 
Paris... nos tempos de Debussy, Natal, 1997; 
Do inverno ao outono (Biografia de Chopin Jovem), ainda inédito. 
 
♧               ♧                              
 
 
Estão disponível no YouTube inúmeras gravações fonográficas clássicas do pianista Oriano de Almeida. A título de exemplo, recomendo a audição do LP Músicas de Chopin com Oriano de Almeida, pianista (AMC AMCLP 5.009), relançamento do disco original "Oriano de Almeida Interpreta Chopin" (RGE XRLP 100004), lançado em 1959 e contendo: 
00:00  01. Chopin - Valsa Nº 6, Op. 64 Nº 1 (Valsa do minuto) 
01:43  02. Chopin - Polonaise Op. 40 Nº 1 (Militar)
04:56  03. Chopin - Fantasia-improviso Op. 66 
09:39  04. Chopin - Prelúdio Op. 28 Nº 15 (Gota d'água) 
14:56  05. Chopin - Valsa Nº 7, Op. 64 Nº 2 
18:16  06. Chopin - Noturno Op. 9 Nº 2 
22:53  07. Chopin - Polonaise Op. 53 (Heroica) 
29:29  08. Chopin - Estudo Op. 10 Nº 3 (Tristesse) 
33:08  09. Chopin - Estudo Op. 10 Nº 12 (Revolucionário) 
35:32  10. Chopin - Valsa Op. 69 Nº 1 (Valsa do adeus)
 
LP Músicas de Chopin com Oriano de Almeida, pianista
 
 
 
  

II. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

 

BRAGA, Francisco José dos Santos: 2010 - ANO CHOPIN > > > Parte 14 > > > Oriano de Almeida: uma vida dedicada a Chopin (1ª Parte): Blog do Braga, publicado em 13 janeiro de 2011 

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2011/01/2010-ano-chopin-parte-14.html

––––––––––––––––––––––––––––: 2010 - ANO CHOPIN > > > Parte 15 > > > Oriano de Almeida: uma vida dedicada a Chopin (2ª Parte): Blog do Braga, publicado em 13 janeiro de 2011 (aos 90 anos do nascimento de Oriano de Almeida)

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2011/01/2010-ano-chopin-parte-15-oriano-de.html

FILHO,  Murilo Melo: "Câmara Cascudo: sábio e erudito", Revista BRASILEIRA da ABL-Academia Brasileira de Letras, Fase VII, Ano XIII, nº 50, edição de jan/mar 2007, p. 33

GALVÃO, Cláudio: O CÉU ERA O LIMITE: UMA BIOGRAFIA DE ORIANO DE ALMEIDA, Natal: EDUFRN-Editora da UFRN, 342 p.

SALLES, Vicente: Oriano de Almeida, pianista e compositor (1921-2004), in BRASILIANA-Revista Quadrimestral da Academia Brasileira de Música, nº 18, setembro de 2004, p. 26

domingo, 17 de abril de 2022

"RAUL POMPEIA: O GÊNIO FEITO HOMEM", ORAÇÃO-ENSAIO PROFERIDA POR MARCELO CÂMARA NA ACADEMIA FLUMINENSE DE LETRAS (SESSÃO DE 21/06/2018) > PARTE 2


Por Marcelo Câmara 
 
Raul Pompeia: o Gênio feito homem.

 
Senhor Presidente Waldenir de Bragança, 
Senhoras Acadêmicas, Senhores Acadêmicos, 
Senhoras e Senhores, 
Meus amigos, 
 
Prelúdio  
 
O amor não estava maduro... 
 
Eu parado diante dela, 
os olhos inadaptados, 
o coração na rotina, 
minhas mãos bem comportadas 
como em qualquer dia útil, 
e as gônadas displicentes... 
 
O amor não estava maduro, 
mas ambos fomos pacientes! 
 
O autor desses drummondianos versos que acabou de me saudar, Sávio Soares de Sousa, tinha pouco mais de vinte anos quando cometeu esse poema, à época solteiro, inflado de sonhos, porém já homem de ideias e letras, se exercitando na “difícil arte de encantar palavras”, como ensinou Quintana, além de se dedicar ao estudo da Arte Cinematográfica e da Literatura Latino-americana. 
 
Sávio, decano do Saber e das Letras deste sodalício, poeta, crítico, animador e editor literário. Eu tinha sete anos quando, menino curioso e intruso, mexendo nos valiosos arquivos de jornais de meu pai, José Augusto da Câmara Torres, jornalista, educador, advogado e político, potiguar e fluminense, membro da Câmara de Ciências Sociais desta Academia, encontrei, numa belíssima edição de 1951 do jornal Letras Fluminenses, sempre contemporâneo, de Luiz Magalhães, esse poema de Sávio. Há menos de dois anos havia me alfabetizado. “O Amor não estava maduro...” impressionou-me. “O que eram gônadas?” – perguntei à minha mãe. Ela, inteligente, culta, educadora, me esclareceu: “São órgãos do corpo humano, meu filho, que começam a funcionar quando as crianças viram moços e moças... Você saberá quando crescer”. Intriguei-me e apenas suspeitei significados e funções. Amanhã, 22 de junho, completam-se cento e um anos de nascimento de meu pai. Vislumbro a centúria de nascimento de minha mãe no ano que se avizinha. 
 
Sávio foi o meu primeiro crítico, meu primeiro mestre na Poesia. Eu vivia a adolescência romântica, no sentido artístico, lírico do cocuruto à sola dos pés, aos dezessete, dezoito anos, escrevendo sob paixões juvenis e não um ser romântico existencial, no sentido estético, como hoje me defino. Muita inspiração e suspiros, mínimas cultura e técnica poética. Apenas catarses e verbalização de sentimentos dirigidos aos primeiros amores. Eu ia, em noites de dias de semana, à sua casa. No velho solar do bairro do Fonseca, Sávio me recebia na varanda gradeada, cercada de jardins, onde ele lia meus simplórios poemas. E me ensinava. Falava das características e peculiaridades do gênero Poesia, da função da linguagem poética, suas formas de expressão, sua capacidade de emocionar e conduzir à reflexão; dos recursos, das figuras de estilo; da sonoridade, do ritmo, da musicalidade do verso. A semântica, o léxico, a sintaxe, o movimento do verso. A dubiedade, o imponderável, o invisível, as possibilidades infinitas da Poesia. Os recursos poéticos. Discorria sobre estilos, escolas e poetas. Lições da Arte de Camões. Hoje, o meu amigo de juventude me recepciona neste cenáculo de astros e estrelas. Das balaustradas e azulejos do solar do Fonseca aos umbrais da Academia Fluminense de Letras, para me assentar na Cadeira do Maior dos Angrenses, o gênio Raul D’Ávila Pompeia, o maior escritor brasileiro, ao lado de Machado de Assis. 
 
Quando manifestei interesse junto ao Presidente Waldenir de Bragança em ingressar nesta Casa para integrar a Câmara de Letras, ele foi receptivo à ideia, regozijou-se, mas ponderou que eu teria de me submeter ao crivo de uma Comissão de Admissão, formada por Acadêmicos que analisariam e julgariam o meu curriculum intelectual e literário, a minha obra publicada, as minhas atividades culturais, enfim, o meu percurso. Concordei com as exigências, encaminhei uma síntese do meu curriculum, dos meus fazimentos intelectuais e, recebi, generosamente, a aprovação, por unanimidade, pela Comissão, do respectivo parecer, e, em seguida, do Plenário da Academia. O meu ingresso, que hoje ocorre, constitui uma honra assumida, acima dos meus talentos. Pois sou apenas um obstinado, um incansável trabalhador intelectual. Desde a juventude. O que me distingue no pensamento e nas minhas realizações, reconheço, honestamente e sem modéstia, são a doação que me entrego às causas e tarefas, a ousadia, o pensar com a minha cabeça, com os meus dons e dotes, com a minha história, como me ensinou Darcy Ribeiro: “Não seja cavalo de santo de ninguém, dizia Darcy, não siga, cego e por conveniências, os outros; não reproduza o que os outros escrevem ou afirmam, por mais aplaudido e famoso seja o pensador e intelectual; produza, escreva apenas a sua vivência, as suas percepções, certezas e dúvidas, resultado da sua convivência com o tema ou a personalidade”. Admito, ainda, possuir capacidade para criar, privilegiada memória, e, principalmente, postura e atitude crítica diante qualquer tema, desafio ou projeto, com o fim inarredável de acrescentar, enriquecer, subverter, contribuir, ao elaborar, enunciar ou propor, mesmo que mínima e pobremente. Provisoriedade e finitude em tudo. Consciência e responsabilidade.  
 
Meus mestres 
 
Além do lar e da escola, os três gênios mais importantes, que me formaram, que iluminaram o meu caráter, o meu percurso intelectual e cultural: o Professor Luís da Câmara Cascudo, jornalista, escritor, historiador, sociólogo, antropólogo, etnólogo, etnógrafo, folclorista, o mais ilustre intelectual da minha família; o cronista Nelson Rodrigues, o maior dramaturgo brasileiro, com quem tenho muitas identidades; e Mário Quintana, o maior poeta brasileiro do século vinte, poeta-pensador, indagador do cotidiano, das coisas simples e essenciais, do Homem e da Vida. 
 
Poderia enumerar alguns autores literários que tocaram à minha personalidade literária, que forjaram o meu caráter intelectual. Além de Quintana, cito alguns: Matias Aires; Manoel Antônio de Almeida, José de Alencar, Fagundes Varela, Casimiro de Abreu e Machado de Assis; Manuel Bandeira, Mário e Oswald de Andrade; Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Aníbal Machado e Jorge Amado; Ascenso Ferreira, Rubem Braga, Ariano Suassuna e José Cândido de Carvalho; Millôr Fernandes, Vinicius de Moraes, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino; Clarice Lispector, Augusto Meyer, Ledo Ivo; Graciliano Ramos e José Paulo Paes; Carlos Heitor Cony, José Carlos de Oliveira, Geyr Campos, Cora Coralina e Manoel de Barros; o poeta e ensaísta, professor Jayro José Xavier, considerado por muitos um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos, aqui presente. E outros dois importantes poetas fluminenses: o saudoso José Kleber Martins Cruz, de Paraty, e seus versos em chamas; e a Poesia sempre contemporânea e equilibrada de Emil de Castro, de Mangaratiba. Entre os estrangeiros, os portugueses Camões, Bocage, Antero de Quental, Fernando Pessoa e Miguel Torga; o alemão Rainer Maria Rilke; o grego Konstantin Kavafy; o irlandês Samuel Beckett; o russo Wladimir Maiakovski. 
 
Nas Ciências Sociais, além de Cascudo e Darcy, toda a Historiografia dos brasileiros que interpretaram o Brasil; e dos estrangeiros, viajantes e exploradores europeus que vieram ao Brasil até o século vinte. E os nossos biógrafos que me ajudaram a conhecer a nossa História, a Literatura, as Artes, a Política, como Octávio Tarquínio de Sousa. Leio, desde a juventude, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Luiz Edmundo, José Honório Rodrigues e Dom Hélder Câmara, outro intelectual ilustre da minha família; Antônio Calado, o sociólogo e economista, fecundo ensaísta, Anselmo Macieira. Influenciaram-me no Jornalismo Antônio Theodoro de Magalhães Barros e Nilson Lage. Também sempre visito os grandes cientistas do Folclore, com Cascudo reinando como o maior conhecedor do Folclore mundial, de todas as nações: Couto de Magalhães, Silvio Romero, Leonardo Motta, Renato Almeida, Amadeu Amaral, Mário de Andrade (novamente), Manoel Diegues Júnior, Edson Carneiro, Ana Augusta Rodrigues, Rubens Falcão. 
 
Acima de todos os meus mestres, está meu pai. Seu único livro, publicado aos 23 anos – Imortais – foi escrito com Dayl de Almeida, seu irmão xifópago, que li, pela primeira vez, antes da mocidade. Ensaios de História, Literatura, Política e em torno de temas do Catolicismo. Outra obra de meu pai, extraordinária, O poema do meu amor, poesia em prosa, edição encadernada com letras de ouro na capa, com apenas um exemplar impresso, feito exclusivamente para a sua noiva Tudinha, depois mulher e mãe dos seus oito filhos, que somente eu, além de meus pais, depois da partida deles, tive o privilégio de lê-lo, como herdeiro da sua biblioteca de três mil volumes e seu vasto e riquíssimo acervo pessoal e profissional. Isto porque o livro pertencia ao Poeta e à sua Musa, e a mais ninguém. Li e reli, da adolescência até hoje, e visito sempre os textos de autoria de Câmara Torres, quase todos publicados, mas também os raros e inéditos. É extensa a sua obra publicada. Somam centenas os seus textos filosóficos, pedagógicos, sociológicos, políticos, estéticos e históricos; artigos, conferências, palestras, roteiros dos cursos que ministrou, orações acadêmicas, discursos políticos e não políticos; crônicas, contos, reportagens; propostas legislativas e leis que criou. Seus “diários e anuários íntimos”, páginas confessionais, afetivas e de crítica sociológica e política do seu tempo, com reflexões filosóficas, textos manuscritos aos quais ninguém jamais teve acesso, nem mesmo minha mãe, mas somente eu, após a sua morte. Para mim, ele foi o homem mais eminente e importante em tudo que sonhou, em tudo que foi, em tudo que criou e construiu, modelo de vida e convívio, meu ídolo, minha luz, bússola e caminho de vida. Ele foi o melhor irmão, o maior amigo. Aquele que mais me amou e a quem eu mais admirei e amei como Homem, cidadão, intelectual, profissional de vários saberes e fazeres. 
 
E tudo isto somente ele o foi, e continua sendo para mim, e em mim, porque abrigou em seu coração, além de Deus, do Bem e do Justo, uma Mulher, para mim, igualmente, exemplo de perfeição humana, sabedoria, de entrega e infinita ternura: minha mãe, Gertrudes Nóbrega da Câmara Torres, a Dona Tudinha. Professora, mulher de aguda inteligência e diversificada cultura, ativista social, personalidade destacada das comunidades às quais pertenceu, foi o Amor da Vida Inteira de meu pai, mãe extremosa de oito filhos, e, também, sua companheira, secretária, conselheira, assessora do advogado, do intelectual e do político.  
 
A Academia 
 
Conheci este lugar, ainda impúbere, pelas mãos de meu pai. No centro daquela Mesa, a austera e doce professora Albertina Fortuna, amiga do Doutor Câmara Torres. Neste salão assentaram-se muitos que apenas admirava. Outros foram meus colegas e amigos, como o Professor Luiz Magalhães, meu editor no memorável Letras Fluminenses e secretário da Faculdade de Direito que cursei; o Jornalista Alberto Torres, diretor do primeiro jornal no qual trabalhei; o filólogo e professor Artur de Almeida Torres, um dos maiores pompeianos que conheci e com quem convivi; Brígido Tinoco, Ministro da Educação e Cultura, meu professor na Faculdade de Direito de Niterói; o jornalista Luis Antônio Pimentel, meu colega em O Fluminense; Macário Picanço, meu advogado num grave crime profissional do qual fui vítima; o poeta e cronista Jacy Pacheco, primo de Noel Rosa, com quem, muitas vezes, dialoguei sobre a Cultura Fluminense. 
 
E alguns foram meus amigos muito próximos, “amigos de infância, mais velhos do que eu”: o pedagogo Rubens Falcão, grande amigo, interlocutor e mestre, que secretariei na memorável Revista Fluminense do Folclore; o Ministro Geraldo Bezerra de Menezes e Marcos Almir Madeira, meus professores na Faculdade de Direito que muito me distinguiam e me incentivavam; o desembargador, poeta e ator Lyad de Almeida, companheiro fraterno; o sociólogo e professor Dayl de Almeida, um irmão, meu interlocutor, confidente e meu padrinho de casamento; o sagaz político e escritor Vasconcelos Torres, que me chamava de “primo”, sem eu nunca ter sido; Alípio Mendes, jornalista e historiador, conterrâneo, parceiro de muitas jornadas; o jornalista e historiador Emmanuel de Bragança Macedo Soares, meu primeiro editor. 
 
Hoje, vejo nesta sala, outros amigos de infância mais velhos do que eu: o nosso admirável e dinâmico Presidente, Waldenir de Bragança; o indomável Sávio Soares de Souza; o eterno Reitor da UFF, José Raymundo Martins Romêo, meu professor de Geometria no Ginásio do Colégio Salesiano; o sempre jovem e inovador Aníbal de Bragança, meu livreiro nos meus nove anos de vida universitária. Também exulto em conquistar novos amigos, acadêmicos que, carinhosamente, me acolhem nesta tarde: Célio Erthal Rocha, Márcia Maria de Jesus Pessanha, Eneida Fortuna, Flávio Chame Barreto, Alba Helena Corrêa, Neide Barros Rego. 
 
Uma curiosidade. Do filólogo e maestro, o saudoso e festejado Professor Newton Perissê Duarte, Membro desta Academia, personalidade que não conheci, guardo objetos íntimos do seu trabalho intelectual, cadernos de anotações de estudo e pesquisa sobre o Folclore Fluminense, principalmente de Campos, textos inéditos, que o destino a mim reservou. 
 
Um orgulho, uma preciosidade. Do grande romancista, jornalista e humorista José Cândido de Carvalho, que pertenceu a esta Casa e à Academia Brasileira de Letras - ABL, intelectual com o qual também não tive qualquer proximidade, recebi a mais elevada e prestigiosa crítica literária. Um elogio ao meu primeiro livro, de 1985, Crítica à Cultura Brasileira, com uma segunda edição no ano seguinte. Publicou José Cândido em sua coluna de O Fluminense: “Marcelo, dos Câmara Torres, de Angra dos Reis, estreia com um ensaio nota dez”. 
 
Enfim, preparo-me para sentar na Cadeira 37, patronímica de Raul Pompeia. Fluminense, nascido em Angra dos Reis, se elevou como um dos maiores artistas da nossa Língua, um Monumento em corpo, alma e obra, da Cultura Brasileira. Raul Pompeia é também o Patrono da Cadeira no 1 que ocupo no Ateneu Angrense de Letras e Artes, da minha amada Angra dos Reis. Que pretensão deste seu conterrâneo, liliputiano e baço, diante tal culminância, ungido a Membro desta Casa pela generosidade de Vossas Excelências, Senhores Acadêmicos! Ingresso nesta Casa graças aos meus pais e à minha Família: Ana Maria Luiza, minha mulher, musa e companheira; meus filhos João Paulo, Maria e Marcela; meus netos Pedro, Leandro e Helena. Estou vivo, sonho, amo, crio e produzo com eles e por eles. E, claro, trabalho pela Cultura Brasileira, pela Cultura Fluminense. Cumpre-me registrar, também, o trabalho de excelência da Editora Mauad X, dos meus queridos editores Isabel Mauad e Zygmunt Filipecki, que têm publicado, desde 2001, com alto profissionalismo e esmero, as minhas obras, transformando-as em livros encontrados em todos os Estados do País.  
 
A Cadeira 37 
 
Os meus antecessores foram mais dignos de ocupar a Cadeira 37. Honraram a memória, o patrimônio de Pompeia com mérito, viço e luz. O fundador da Cadeira 37 foi o niteroiense do bairro de São Domingos, Adelino Magalhães, nascido em 1887, o principal, “o grande precursor” do nosso Modernismo. Professor, jornalista, ensaísta, crítico e produtor literário, é apontado, ao lado do próprio Raul Pompeia e de Graça Aranha, como os maiores representantes do Impressionismo na nossa Literatura. A maioria dos estudiosos o consagra como o anunciador do movimento modernista. Em 1922, ingressa nesta Academia. Em 1962, Adelino Magalhães recebe da ABL, o Prêmio Machado de Assis, “pelo conjunto da obra”. Em 1963, a Editora Aguilar, publica a Obra Completa do escritor em volume único. Falece em 1969. 
 
Sucede a Adelino Magalhães na Cadeira que hoje assumo o jornalista e historiador Alípio Mendes. É o segundo filho de Angra dos Reis a integrar esta Academia. O primeiro foi o jornalista e teatrólogo Quaresma Júnior, fundador da Cadeira 19, patronímica de Felisberto de Carvalho. Sou o terceiro angrense a fazer parte desta luminosa entidade de Cultura. A vida intelectual de Alípio Mendes foi um caso hercúleo de telúrico amor, trabalho e superação. Autodidata, e, também, poeta e ensaísta, era um apaixonado por sua terra, ferrenho defensor e divulgador do Patrimônio Cultural – Histórico, Artístico e Ecológico da sua Angra dos Reis. Alípio Mendes foi, além de pesquisador, o grande sistematizador, o organizador da História de Angra dos Reis. Podemos dizer que ele foi o artífice da Historiografia de Angra dos Reis. 
 
Uma das primeiras, talvez a sua mais importante conquista, foi reeditar, com prefácio e notas explicativas de sua autoria, a primeira e fundamental obra sobre a terra de Raul Pompéia e Lopes Trovão: Notícia Histórica de Angra dos Reis, do militar e historiador angrense Honório Lima, herói da Guerra do Paraguai. Além de relançar, iluminar o trabalho pioneiro, basilar, de Honório Lima, expô-lo ao estudo e debate, Alípio escreveu Ouro, Incenso e Mirra, obra tão importante quanto àquela de Honório Lima, para o conhecimento da História de Angra dos Reis. Publicou na Gazeta de Angra, de sua propriedade e sob sua direção, centenas de artigos acerca da História de Angra. Produziu dezenas de livros e plaquetes sobre períodos e fatos marcantes da História angrense, seus monumentos arquitetônicos, a Igreja, a Nobreza e perfis dos vultos históricos, da Literatura e do Jornalismo, seu vasto e rico Folclore, obras de escritores e artistas angrenses, das Artes Cênicas, das Artes Plásticas. Idealizou, fundou no início da década de 1970 e presidiu, por anos, o Ateneu Artístico de Letras e Artes – AALA, a mais antiga e importante instituição cultural do Município, hoje viva, indispensável e atuante no Município, onde ocupo a Cadeira nº 1, que tem como Patrono Raul Pompeia. Também como editor, publicou muitos escritores, inclusive inéditos de Raul Pompeia e obras do gênio em livro, até então veiculadas apenas pela Imprensa, como veremos adiante. Enfim, o idealismo, seu amor a Angra e à Cultura, seu notável trabalho como criador e realizador, movimentaram e desenvolveram, por mais de quarenta anos, a vida cultural de Angra dos Reis e do Estado do Rio de Janeiro. Recebeu diversos prêmios e honrarias de instituições públicas e privadas. Pertenceu, também, ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 
 
Um artista das palavras e dos traços” – assim se lembrou do pai, a sua filha Silvia Cristina Cosenza Cruz ao escrever um artigo sobre o arquiteto, professor universitário e escritor Luiz Calheiros Cruz, meu antecessor imediato na Cadeira de Raul Pompeia do qual passo a falar. A Arquitetura o aproxima ao gênio angrense. Pompeia foi um exímio desenhista, conhecedor profundo e professor das Artes Plásticas, sábio da Filosofia da Arte, refinado e mordaz caricaturista, um notável arquiteto no projeto, estilo, estrutura e escritura dos seus textos, principalmente do insuperável romance O Ateneu. Uma amiga de Silvia Cristina arriscou sobre Calheiros Cruz: “Não se sabe se é um arquiteto a desenrolar uma trama, ou se é um escritor a projetar uma história romanceada”. Calheiros Cruz optou pela Arquitetura, impressionado pelas formas e linhas poéticas do Palácio Gustavo Capanema, antigo Palácio da Cultura, situado na Rua Graça Aranha, no Centro do Rio, obra de vanguarda da Arquitetura Moderna, nascida da concepção e do lápis de Le Corbusier, com as assistências de Niemeyer, Lúcio Costa e Reidy. O módulo-poema arquitetônico, de concreto e vidros, com lâminas móveis de quebra-sol, que flutuava sobre colunas, emocionou o jovem Calheiros Cruz, edifício leve e imponente, cercado pelos jardins de Burle Marx, com as fantásticas esculturas de Bruno Giorgio e o belíssimo mural de Portinari. Na juventude, já desenhava e pintava, mas aquele edifício o fez decidir pela complexa e múltipla arte de projetar beleza, harmonia e funcionalidade. 
 
Ao final do Curso de Graduação, em 1957, na Escola de Arquitetura da Universidade do Brasil, antes mesmo de colar grau, é brilhantemente laureado: recebe o Prêmio Edson Passos – Medalha de Ouro, do Clube de Engenharia. Inicia carreira, no mesmo ano, e até 1963, em renomada empresa privada, atuando no Rio de Janeiro e em Brasília, onde trabalhou na construção dos edifícios da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. De 1964 a 1968, chefiou a Divisão de Arquitetura da Companhia de Habitação do Estado do Rio de Janeiro – COHAB, e, no ano seguinte, e por três anos, ocupou cargo técnico no Governo do Estado do Rio. De 1971 a 1975, está chefiando o Departamento de Engenharia da Secretaria Estadual de Obras. Mas, foi em março de 1973, que uma nova atividade muda a sua vida: o Magistério Superior. Em 1973, ele ingressa na UFF como Auxiliar de Ensino e é convidado para participar da implantação e estruturação definitiva do Curso de Arquitetura, até então embrionário. 
 
Na Universidade, na Faculdade de Arquitetura, Luiz Calheiros Cruz galgou todos os degraus, formou gerações, ocupou, por mérito, mediante concursos, com ascendência e brilho, todos os cargos e funções, conquistou todos os títulos, recebeu todos os louvores. De Professor-Chefe do Departamento de Desenho Técnico ao Título de Professor Emérito, passando por todos os cargos do Magistério Universitário na Escola de Arquitetura e Urbanismo, inclusive o de Vice-Diretor do Centro Tecnológico da UFF. 
 
A Educação Universitária o fascina e o leva à Literatura. Primeiramente, vieram os textos sobre Teoria e História da Arquitetura, em seguida, a Ergonomia, disciplina que implantou na grade curricular do Curso. Em 1995, iniciou carreira como romancista que se sucedeu até 2013, com os títulos: Dívidas de amor; Acordo Final; Dança das faces; Fazenda Liberdade; A marca de uma vingança; Jogo da vida; O preço do silêncio; a segunda edição de Dívidas de Amor, o primeiro romance. Em 2012, foi eleito e tomou posse nesta Academia. 
 
Em 1968, recebeu bolsa de estudos em Israel, da Organização dos Estados Americanos – OEA, onde estudou as cooperativas habitacionais populares naquele país, onde fez o Curso de Planejamento, Organização, do Programa de Habitação Cooperativa e de Interesse Social. Após retorno ao Brasil, proferiu palestras sobre o tema Moradias Populares, o que lhe valeram ameaças e perseguições políticas, acusado de “subversivo”. Foi Presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil – IAB, que o homenageou nos setenta anos da entidade. Em 1995, recebeu o Título de Cidadão Honorário de Niterói.
 
Em 1975, ajudou a criar o Conselho Regional do CREA – 21a Região e foi Conselheiro Federal da instituição. Desse ano a 1982, emprestou sua capacidade e experiência à Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro - EMOP. Trabalhou como profissional liberal em Niterói, no Rio, São Paulo e Teresina. Em 1999, foi Diretor Administrativo da Orquestra Sinfônica da UFF. Partiu ao final de 2016, quando escrevia o sétimo romance com o provisório título Meu amigo espanhol. Boa e feliz sempre foi a receptividade da crítica e dos leitores ao arquiteto-escritor, ao escritor-arquiteto. Honrou esta Casa e a Cadeira 37 com retidão e talento. Dignificou a Imortalidade.  
 
Que escritor é este? 
 
Finalmente, chegamos a Raul D’Ávila Pompeia. Que escritor é este, imenso, plural, de vários gêneros e de várias formas, cultíssimo, erudito – talvez um dos cinco intelectuais mais sábios do seu tempo no Brasil – homem de jornal, publicista combatente da Abolição e da República, brilhante e único em tudo que escreveu e o fez com exímia ciência e técnica formais, alma e emoção, verdade e arte? Que escritor é este, artista pleno, literato, político, pensador e esteta, desenhista, escultor, caricaturista? Que escritor é este de primoroso Humor, crítico lancinante de uma época, seus valores, sua moral, instituições e homens públicos? Que escritor é este que, acuado pela mentira e pela infâmia, se suicida aos 32 anos numa noite de Natal? Que escritor é este, desassombrado, conhecido como “o escritor de um romance só”, a obra-prima O Ateneu, incomparável e inigualável, estudado e cultuado aqui e em vários países do mundo? Que jornalista, panfletário e escritor excepcional que um crítico chamou de “o documento humano”, tal o seu sentimento, conhecimento, clarividência e lucidez acerca da realidade social de seu tempo? Que artista é este, indefinível, enigma para muitos, genial, que não cabe numa escola, num movimento, numa estética literária, não rotulável, que fez com que o fantástico escritor contemporâneo José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, afirmasse: 
Se Machado foi o nosso maior romancista, Pompeia, ao lado de Euclides da Cunha, é o maior escritor da Literatura Brasileira. 

Quem cita esta avaliação de Saramago é o erudito professor angrense Camil Capaz, membro do Ateneu Angrense de Letras e Artes, autor da melhor e mais completa biografia de Pompeia, editada em 2001. 

O menino Raul, angrense, fluminense, brasileiro, universal, nasceu na então edênica Enseada da Jacuecanga – cabeça de jacu, na língua autóctone – entre a montanha e o mar, a uma légua e meia do centro da cidade de Angra dos Reis, em 12 de abril de 1863. Seu pai, Antônio D’Ávila Pompeia e Castro, natural de Resende, era o Juiz de Direito da Comarca, criada em 1829. A mãe, Rosa Teixeira Pompeia, nascida na Jacuecanga, era filha de um fazendeiro, cafeicultor e produtor de Cachaça, vereador na Câmara Municipal de Angra dos Reis. Era um tempo em que a Baía da Ilha Grande era pontilhada de engenhos de Cachaça, açúcar, rapadura e melado. Pompeia era descendente, pelo lado paterno, de Joaquim José da Silva Xavier, sobrinho-bisneto de Tiradentes, protomártir da Independência. O menino Raul foi batizado com um ano de idade na Igreja do Seminário da Santíssima Trindade, na mesma Jacuecanga. No lar, Pompeia se alfabetizou e iniciou os seus estudos. 

Aos dez anos, o menino Raul estava morando na Cidade do Rio de Janeiro, para onde a família havia se transferido, e foi matriculado como aluno interno no famoso e austero Colégio Abílio, na Rua Ypiranga, nas Laranjeiras, dirigido pelo médico e temido professor baiano Abílio César Borges, o Marquês de Macaúbas. 

Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.” É o início do magistral romance O Ateneu. Li o livro, pela primeira vez, na juventude, mas a sentença eu já conhecia, de ouvir meu pai repetir algumas vezes, em momentos de gravidade, de tensão na minha vida, quando lembrava o pórtico do romance. Já no ano seguinte, em 1874, no internato, o menino Raul cria, dirige, cria, dirige, escreve e desenha O Archote, jornal manuscrito, editado por três anos sucessivos, onde publica contos, crônicas, notícias, pensamentos, noticiário escolar, sempre com o seu requintado Humor literário, de voos filosóficos e imersão psicossocial, eivado de prodigiosa inteligência, crítica mordaz, ironia sutil e afiada. Colegas também colaboram. Durante quatro anos, O Archote sacode, movimenta, quebra a rotina, provoca a instituição colegial em sua rigidez e normalidade quase militar. 

No início de 1879, portanto aos quinze anos, o angrense Raul está frequentando a quarta série do Curso Secundário do Colégio Pedro II, lendo e estudando muito, pensando e escrevendo para si próprio. Três anos depois, ele é um dos fundadores do Grêmio Literário Amor ao Progresso, do Pedro II, e um dos membros da Comissão Redatora da revista As Letras, cujo primeiro número já traz uma colaboração do angrense: o seu primeiro artigo abolicionista. No Pedro II, projeta-se como orador culto, eloquente e inflamado. No ano de 1880, aos dezesseis anos, o artista se lança: publica seu primeiro livro, Uma tragédia no Amazonas. E; com o pseudônimo de Pompeu Steel, o texto A queda do governo, acerca do Ministério liberal de 5 de janeiro de 1878. Também assina o panfleto Um réu perante o futuro – Grinalda depositada sobre o esquife do Ministério 5 de janeiro, no qual critica o comportamento do governo na Revolta do Vintém, liderada pelo seu conterrâneo Lopes Trovão, o maior tribuno da nossa História Política, a quem Rocha Pombo qualificou de “Apóstolo da República” e “Verdadeiro ídolo do Povo”; a quem Dayl de Almeida denominou “Um demônio idealista”; homem público que Câmara Torres exaltava como “O maior demolidor do Trono” e “Uma vida a serviço do Povo”. Outros legendam Lopes Trovão como “A Voz da República”. Eu o vejo como “O Guerrilheiro da República”, ou “A encarnação da verdadeira República”. Nesse tempo, Pompeia já revela rebeldia e inconformismo nas manifestações públicas relativamente às atividades abolicionistas.  

As Canções sem metro:  
jóias perfeitas e eternas 

Em 1881, aos dezessete anos, Raul Pompeia se matricula no Curso Jurídico, da Academia de Direito, na cidade de São Paulo, a famosa “Faculdade do Largo de São Francisco”. Antiescravagista orgânico, Pompeia, anticonservador, se engaja, com outros militantes, nos movimentos pela Abolição e pela República, e começa a publicar trabalhos nos jornais A Comédia, O Nove de Setembro e O Boêmio, neste último sob o pseudônimo de “RAPP”. Em O Boêmio, ainda no primeiro ano da Faculdade, publica trechos do romance inacabado Violeta, com o subtítulo: Romance Original Brasileiro, jamais concluído. No ano seguinte, durante as suas férias escolares no Rio, inicia fértil e longa atividade na Gazeta de Notícias, para onde passa a enviar, regularmente, de São Paulo, colaborações. Pompeia conta apenas 19 anos. A Gazeta publica, então, em folhetins, o seu segundo romance: As joias da coroa, de conotação anti-monarquista. Ainda durante as férias no Rio, A Gazetinha, de Artur Azevedo, publica os contos Microscópicos. Estudante em São Paulo, escreve, também, nos jornais Gazeta do Povo, Correio Paulistano, A Ideia, A Luta, O Embrião e no órgão do Centro Abolicionista de São Paulo, Cà-Ira!, cujo advogado é Luís Gama, de quem se torna grande amigo. 

Em 1883, vamos encontrar Raul Pompeia como redator-chefe do Jornal do Commercio, de São Paulo. Nesse veículo, publica a novela A mão de Luís Gama, os Contos Domingueiros e os primeiros textos das preciosas Canções sem metro, poesia em prosa, joias lítero-musicais, iluminuras verbais em ouro e ônix, formalmente, inspiradas nos poetas franceses, no pai do gênero Louis Bertrand e no seu continuador Charles Baudelaire, também, publicadas no Diário Mercantil. São pequenos textos que misturam meditação filosófica, ensaio, lirismo, um pré-existencialismo, um pré-surrealismo, criações de muita arte, na linha dos Goncourt e Flaubert. Elói Pontes apontou os requisitos para a difícil elaboração de cada uma desses camafeus, dessas miniaturas, aos quais também chamou de “cinzeluras”, de “pequenos vitrais”: a concisão, a sobriedade, a precisão, o destaque, o vigor, o colorido, o brilho, a nuance no emprego dos vocábulos e no corte da frase, de acordo com o tema. Pompeia ilustrou, mais tarde, com belos desenhos, em 1888 e 1889, dez Canções sem metro para a Gazeta de Curitiba, do Paraná. Essa filosofia literária, bela e, geralmente, de muita cor, expressava “um pessimismo amargo e dissolvente”, negativista, sobre diversos aspectos da vida e da miséria do mundo. Confesso que, jovem, li, pela primeira vez, as impressionantes Canções sem metro, anos após ter imergido em O Ateneu. Era uma edição da década de trinta, volume da Coleção Literária, dirigida, erudita e magistralmente interpretada e comentada por Elói Pontes, exemplar que meu pai lera em 1939. E que a literatura minimalista e grandiosa, originalíssima, visceral, seminal, filosófica, profunda! As Canções me seduziram completamente, a ponto de, à época, estudando Arte Dramática ao integrar o elenco do memorável e fugaz Grupo de Teatro da UFF, levar alguns desses maravilhosos textos ao palco do teatro da Faculdade de Letras, aqui perto, na Rua Doutor Celestino, para os exercícios ministrados pelo diretor Ronaldo Mendonça. Reflexões, narrativas, fábulas reais, sobre os sentimentos, a finitude, os pecados, as virtudes, os vícios, os males humanos. Até hoje, quase um século e meio após a sua publicação, nada se compara, esteticamente, no tratamento dos temas, nas imponderáveis verdades poéticas e na primorosa forma, em nossa Literatura, às Canções sem metro, de Raul Pompeia, como quase tudo que criou, na sua curta, profícua, densa, plural e singular carreira como homem de letras e de jornal. Digo uma das Canções sem metro

Coração 
Depois que – por amor – Regina perdeu a vergonha, rodou loucamente de abismo em abismo. Uma queda, afinal de contas, que se poderia dizer ascensão. Porventura não é o céu um abismo para cima? Não se limitou a jogar a coifa sobre os moinhos. Arremessou a própria cabeça, que se foi para a banda das demências, com uma gargalhada satânica, no meio da fulguração meridiana dos cabelos louros. Que desvairos então! Seu nome há de ficar legenda, nas memórias da vida livre. A endiabrada beleza dava-lhe de sobra para extenuar amantes, em ouro e sangue. Saltaram-lhe aos pés os tampos de ferro dos cofres milionários, e ela subia numa explosão cintilante de libras esterlinas, como uma visão da fortuna. Os prazeres vinham processionalmente ao trono do seu sucesso. Visitavam-na todas as vaidades do luxo depondo- lhe aos pés tesouros de valia infinita. A corte dos seus amantes cercava-lhe o banho, como a ablução religiosa de uma divindade. Disputavam-na após, em desafios de morte, à primazia do toast da sua lavagem perfumada. Um dos seus grandes mortos em duelo, rivais suicidas. E sorria, então, entre as cruzes, ao sol melancólico do Campo Santo, perguntando se efetivamente é do amor que a vida vem. 
Atravessou a existência realizando a mitologia de Cítera, com a onipotência de sua nudez e do seu soberano descaro. Hoje está velha. Quando se fala em coração, ri muito e conta um sonho que teve. Mil virgens – ela sendo rainha – mil virgens pálidas que lhe vinham oferecer o coração, sob uma folha de parreira. 

As Canções sem metro, cuidadosa e carinhosamente, foram trabalhadas, buriladas por Pompeia, dos vinte anos até a sua morte aos trinta e dois. Em sua integridade, somente foram publicadas em livro após a sua partida, numa edição preparada por João Andréa e Collatino Barroso, amigos de Pompeia, patrocinada pela mãe do Autor. Ele é o inventor, o introdutor do gênero “poesia em prosa” na Literatura Brasileira e, certamente, insuperável nessa criação, como foi Fagundes Varela do verso branco. 

No princípio de 1884, Raul Pompeia presta exames de “segunda época” e passa para o quarto ano de Direito e assume o cargo de Redator-Chefe de A Onda, órgão dos acadêmicos abolicionistas. Em março, uma tristeza: falece o seu pai, o Doutor Antônio. Neste mesmo ano, Pompeia e mais noventa e três acadêmicos da Faculdade do Largo de São Francisco são reprovados e decidem, então, terminar o curso em Pernambuco, na não menos famosa Faculdade de Direito do Recife, cidade onde Pompeia buscava na Arte a superação dos males e da inutilidade da existência. Para Brito Broca, aperfeiçoava “a capacidade de traduzir as emoções em beleza”. Em Recife, segundo Afrânio Coutinho, se esmera na capacidade de expressão e apura o estilo, os elementos da sua expressão, e escreve Alma Morta, uma série de reflexões amargas sobre a vida, o mundo, a sabedoria, as virtudes e a orgia. Leio um trecho: 

Eu vi o mundo: Circo enorme onde os homens combatem em nome do ventre. 
Porfia-se a ver quem vai mais gordo para o túmulo. 
Os romanos gladiadores batiam-se nus; os gladiadores que eu vi, para a luta fardam-se de hipocrisia. Não trajam de aço como os cavaleiros medievais do torneio; em vez da máscara de ferro dos elmos, eles cobram o rosto com a viseira impenetrável da astúcia e da mentira. 
Pelo ventre e pela vida! é o grito de guerra. 
Mascarada sinistra!

Pompeia era um perscrutador da alma humana, um observador rigoroso da conduta dos homens, e, simultaneamente, um burilador incansável, permanente do estilo, procurando construções de grande efeito de expressão e estética, e, sempre, com a economia de linguagem. Sobre a criação literária, assentava: 

Toda composição artística é baseada numa recordação sentimental. O desdobramento, a simultaneidade do sentimento com a anotação artística não existe”. 

No ano seguinte, em 1885, seus textos são publicados no Rio, na Gazeta Literária e em A Semana. Também assina uma “seção” na Gazeta da Tarde, de José do Patrocínio, aonde vão a lume outras Canções sem metro e a intrigante obra Alma morta, republicadas depois, em outra versão, sob o título Cartas para o Futuro. Em outubro de 1885, é diplomado Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife. Retorna ao Rio. Em 1886, continua a publicar na Gazeta da Tarde. Na seção Pandora, da Gazeta de Notícias, o mais importante jornal carioca à época, publica contos e crítica literária. De maio de 1886 a agosto de 1887, publica artigos políticos no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro. Ainda em 1886, é enviado como repórter, pela Gazeta da Tarde, de Patrocínio, para cobrir uma viagem de trabalho dos Ministros do último Gabinete da Monarquia, à Baía da Ilha Grande, e o jornal publica Excursão Ministerial, uma grande reportagem, de imensa repercussão.  

O Ateneu: insuperável obra-prima 
da Literatura Universal 

Em abril e maio de 1888, um marco na Literatura Brasileira: edições do jornal Gazeta de Notícias publica O Ateneu – Crônica de saudades, uma excelsa obra de arte escrita, “sofregamente”, em três meses. Nesse mesmo ano o jornal o edita em livro. Não apenas a obra-prima do angrense Raul Pompeia, mas uma das mais elevadas obras da Língua Portuguesa. Alvoroço no meio literário e cultural do Rio de Janeiro e do País. O Brasil se vê diante de um grande artista e de uma obra de indiscutível excelência, transgressora, revolucionária em tudo que suscita e propõe, na forma, no tema, na sua estrutura. 

O que eu, leitor menor, indigno, diante da monumentalidade de O Ateneu, da genialidade jamais completamente revelada de Pompeia, de todas as razoabilidades e verdades, invencionices e tolices, que historiadores, críticos e curiosos, disseram sobre a obra, poderia ousar dizer? Apenas impressões, revelações confessionais de um estudioso de pouco saber e muita veneração ao maior dos angrenses, esse fluminense imenso, um gigante brasileiro, um dos maiores artistas da Literatura Universal. Li, confesso, com dificuldades, ainda jovem, a sétima edição definitiva de O Ateneu, “conforme os originais e os desenhos deixados pelo autor”, uma edição da Livraria Francisco Alves, volume a mim cedido por meu pai, que o adquirira numa viagem ao Rio em 1955. Morávamos em Angra. Trata-se de uma edição rara. Meu pai, professor de Literatura Portuguesa e Brasileira na juventude, lera o romance na década de 1930. Mais tarde, na maturidade, reli O Ateneu

Será, mesmo, O Ateneu uma “Crônica de saudades”, como subtitulou Pompeia? Ou um maravilhoso romance de vanguarda à época que foi lançado? Conta a vida e a história de um menino, Sérgio, num colégio interno, o mais famoso da Cidade do Rio de Janeiro, durante dois anos, que saído do aconchego do lar vai “encontrar o mundo”, enfrentar a vida bela e tenebrosa que Nelson Rodrigues irá nos revelar décadas depois. Todos os seus desejos, apreensões, medos, fraquezas, dúvidas, pecados, certezas, ansiedades, tibiezas, alegrias, tristezas, sonhos, angústias, projetos, críticas, olhares, estupefações – são expostas em linguagem literária elevada, em narrativas de mágica arquitetura, plasticidade, poder de comunicar e emocionar. 

O internato é um microcosmo, um espelho da sociedade, suas relações, classes e hierarquias, plena de hipocrisias e contradições. Construções fascinantes. Crônica com ficção? Sim. Romance de realidades verdadeiras? Sim. Então seria uma reportagem? Não. Sérgio é o protagonista que narra o que passou, viu, viveu, cresceu, sofreu, como sonhou e amou, o que pensou, o que aconteceu nele e com ele, e ao seu redor, nos dois anos como interno do Ateneu. Sérgio é, ao mesmo tempo, personagem e narrador. Muito emotivo, tímido, prisioneiro de si mesmo, Sérgio exibe traços da personalidade, do caráter de Raul, o menino angrense que escreve sua “crônica de saudades”, boas e más, belas e tenebrosas, aos vinte e cinco anos. Então seria uma autobiografia? Mais ou menos memória? Sérgio seria o alter ego de Pompeia? Admite-se. É a recriação do internato, são “os fantasmas da adolescência” de Sérgio, na arte literária de Pompeia. Para mim, não são memórias do autor nem pura ficção. Trata-se de um amálgama autobiografia-ficção, construído pela genialidade de um artista. 

Sérgio expõe traços de Raul Pompeia. Solidão, angústias, reflexões profundas sobre si mesmo e o mundo que o cerca, dentro e fora da escola. Sempre o olhar crítico, impiedoso, exigente, sobre si e sobre o mundo. Sérgio rasga o peito em confissões, expondo ideais, sonhos, fraquezas e desajustamentos. O Ateneu é o Colégio Abílio? Sim e não. “Que obra estruturalmente desconexa, contraditória!” – diria alguém. Não. Absolutamente. O qualificativo correto seria revolucionária, inovadora, humanista e universal, “impactante”, como hoje se diz. Humanismo na sua forma mais pura. Arte, Arte, Arte. Há, ainda, verdadeiros poemas em prosa em O Ateneu. Os elementos estruturais do gênero “romance” em O Ateneu são todos novos, diversos, únicos, até 1888 na Literatura Portuguesa e Brasileira. Pompeia aplica as lições literárias dos seus melhores mestres franceses. Se não, vejamos. 

O enredo? Não existe enredo, mas narrativas ricas no conteúdo humano, em forma primorosa. As narrativas viajam pelos caminhos da psiquê e do corpo, para expressar emoção, pensamento, ideias, convicções, ação dramática. Os personagens, além de Sérgio, Pompeia quase inteiro, são riquíssimos, reais, habitaram o Colégio Abílio e receberam outros nomes: Aristarco era uma caricatura do diretor do Ateneu; Dona Emma, paixão onírica e juvenil de Sérgio, era a mulher de Aristarco; Ângela, a empregada da família de Aristarco, objeto da libido de Sérgio, de colegas e até de empregados do colégio; as dezenas de professores e colegas, todos, de certo, existiram e tomaram nomes no romance; os funcionários do internato, idem. Na descrição dos personagens, nas narrativas dos fatos, Pompeia parece querer ferir, vingar-se deles e de tudo. 

As virtudes e excelências do texto. O estilo é ágil; a expressividade é magnífica; nota-se uma riqueza e exuberância léxica, superior, mesmo, a Euclides em Os sertões, posto que este se valeu sobremaneira do vocabulário das Ciências Exatas, da Geografia, da Geologia, da Física, da Botânica, da sua profissão de engenheiro-escritor; construções da linguagem sedutoras, originalíssimas, de notável comunicação; sintaxes preciosíssimas, igualmente originais; construção de quadros de grande movimento e colorido; ritmo das orações e períodos que cativa e encanta; sonoridade ora camerística, ora sinfônica, mas sempre há um solo agudo de clarineta ou baixo de fagote – os sentimentos de Sérgio; exuberante trilha sonora construída com palavras, períodos e pausas; marcas de poeticidade, latentes e explícitas; informação e descrição que antecipam a sétima arte, o Cinema. As imagens, tijolos da Poesia, estão presentes na prosa exuberante de Pompeia. Neste particular, lembremo-nos das narrativas, crônicas e contos, romances, de Nelson Rodrigues e de Fernando Sabino. Ao lê-los assistimos a filmes, vemos as situações, as ambiências, os personagens, os fatos do enredo. Flagrantes em Pompeia são o viço, o pensamento, a verdade, a cor e a beleza que marcam suas histórias, suas críticas, teses e argumentos. Enfim, os recursos da linguagem literária se maximizam em O Ateneu, bem como em toda sua multifacetada obra. Revelam-se o apuro, a acuidade, o requinte em todas as seleções da linguagem: ideológica, léxica, semântica, sintática, fonética. 

Os recursos de uma prosa superior e revolucionária, singular, são notórios: extensão exata e apropriada de cada narrativa; perfeita sucessão e encadeamento dos fatos; expectativa, suspense e surpresas; estrutura que leva à visão dos atos e fatos a um desenvolvimento natural e veraz do texto, que conduz à lógica para pensar e enriquecer o leitor com reflexões, ideias, prazer, impressões e caminhos. 

Jayro José Xavier, meu professor no Curso de Comunicação Social da UFF, me alerta que O Ateneu é um tipo de romance que os alemães chamam de “Bildungsroman”, palavra sem tradução, mas que os estudos literários chamam de “romance de formação” ou “romance de iniciação”, que no Brasil se compara aos romances Infância, de Graciliano Ramos, e Minha formação, de Joaquim Nabuco. Disse a Jayro que seria como um romance “de formação da personalidade e caráter de alguém contando como fora forjado para a vida e o mundo”. Jayro concordou e me informou: “Há mesmo quem situe O Ateneu ao lado de Os Anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Göethe, segundo me consta iniciador de narrativa”. Eu comento: A diferença e a vanguarda de Pompeia, ou melhor, o intrigante em O Ateneu, é que, mesmo com as semelhanças do que se pode chamar de enredo em Goethe, especialmente a crítica social, na obra de Pompeia ele constrói o narrador, cria um personagem que é o personagem-protagonista Sérgio, escreve o romance com traços autobiográficos aos vinte e cinco anos, jovem, recém-formado em Direito, se revela e se desnuda completamente, na sua psiquê e na sua ideologia estética e sociopolítica, com genialidade, estilo fulgurante, efeitos expressivos perfeitos e riquíssima erudição, sobre várias artes e ciências, vaticinando o homem inteiro, pronto, que desapareceria sete anos após a edição do romance. Já Graciliano e Nabuco escrevem memórias, em forma de romance, sendo eles os narradores e protagonistas. Por outro lado, o poeta e prosador alemão, simplesmente, escreve mais um romance da sua imensa obra, porém com mais de cinquenta anos de idade. Ademais, não há marcas autobiográficas ou semelhanças psicológicas entre Meister e Sérgio. Infância é editado quando Graciliano contava cinquenta e quatro anos; Minha formação chega ao público quando Nabuco havia, igualmente, ultrapassado a quinta década de vida. Graciliano e Nabuco já haviam vivido, realizado e publicado muito, expostos e julgados na Literatura e na Vida Pública, eram homens com personalidades e caracteres plasmados, experientes, astros consagrados na Literatura e na Cultura Brasileira. 

Posso arriscar dizendo que O Ateneu representa para a Literatura Brasileira, o que, talvez O crime do Padre Amaro ou O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, representou para a Literatura Portuguesa; As memórias de além- túmulo, de Chateaubriand, ou Os Miseráveis, de Victor Hugo, para a Francesa; Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, para a Espanha; Hamlet, de Shakespeare, para a Literatura inglesa; ou Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévsky, para a Literatura russa. 

Para Capistrano de Abreu,  “O Ateneu é o mais forte livro da nossa Literatura”. 

Força que Temístocles Linhares qualificou, além da supremacia estética, de “destrutiva , punitiva e masoquista”. 

Livro de saberes, se espargem no romance, sempre críticos e propositivos, conhecimentos em abundância da Filosofia, das Ciências e das Artes: Educação, Ensino, Pedagogia e Didática; Psicologia individual e coletiva; Cultura Popular e Folclore; História e Política; Física, Química, Matemática; Língua e Linguagem; Artes Plásticas incluindo a Arquitetura e o Desenho; Literatura e Artes Cênicas. E, pasmem, senhores, Pompeia é apontado como um dos precursores da Psicanálise, quando ainda não estava sistematizada por Sigmund Freud. 

Indubitavelmente, assim como ninguém analisou, pensou e compreendeu mais o Folclore e a Cultura Popular do Brasil e do mundo (territórios das Ciências Sociais diversos stricto sensu) do que Câmara Cascudo; ninguém mais interpretou o Brasil e a Educação, propôs mais ao País como Darcy Ribeiro – com segurança, posso afirmar que nenhum escritor brasileiro, até hoje, criticou, autocriticou, refletiu, enunciou e ensinou mais nos campos da Estética, da Filosofia da Arte, do que Raul Pompeia. São fartas, originais, profundas, preciosas, as suas reflexões e lições sobre Estética. A sua reunião daria uma obra, um livro, um curso. Não apenas em O Ateneu, mas, também, nas Canções sem metro, nas suas críticas literárias e crônicas, discorrendo sobre as Artes em geral no Brasil e no mundo, ao final do Século Dezenove. 

Escreveu Pompeia: 

A arte que não tem apoio na convicção da própria força sucumbe; a hesitação atrofia e anula; a arte forte cresce de si mesmo, organicamente”. 

 E mais ensinou Pompeia: 

A arte é primeiro espontânea, depois intencional. Manifesta-se primeiro grosseiramente, por erupções de sentimento, faz o amor concreto, a interjeição, a eloquência rudimentar, a poesia primitiva, o primitivo canto. Manifesta-se mais tarde, progressivamente, por efeitos de cálculo e meditação e dá o epos, a eloquência culta, a música desenvolvida, o desenho, a escultura, a arquitetura, a pintura, os sistemas religiosos, os sistemas morais, as ambições de síntese, as metafísicas, até as formas literárias modernas, o romance, feição atual do poema do mundo”. 

Freud, sexo e Humor 

O advogado Melquíades Picanço, membro desta Academia, fundador da Cadeira 48, do Visconde de Sepetiba, foi o primeiro estudioso da obra de Pompeia a vislumbrar em O Ateneu, ainda nos anos de 1930, a Teoria das Ideias Recalcadas, escrita em 1899 e publicada por Freud no clássico A interpretação dos sonhos em 1900. Pompeia, em 1888, antecipou-se a Freud em algumas passagens do seu romance. O filho de Melquíades, Aloysio Tavares Picanço que ocupou a mesma Cadeira décadas depois, no seu trabalho publicado na década de 1990, sob o título Raul Pompeia e a Teoria sobre as ideias recalcadas, reafirma a constatação do pai. Diz ele: “Pompeia fez o estudo do homem, na sua alma”. Ele e outros estudiosos defendem que Pompeia é um precursor da Psicanálise. E Aloysio cita dois trechos de O Ateneu. O primeiro, quando Sérgio, ao subir para o dormitório, sente e vê que a imagem de Ema, a bela e sensual mulher de Aristarco, “dançava-me no espírito”. O segundo, um sonho erótico que Sérgio teve com ela. 

Juntando-se a Melquíades e a Aloysio, irmanava-se na precedência de Pompeia sobre Freud no que se refere à dita Teoria, Henrique Castrioto, fundador da Cadeira no 5, de Andrade Figueira, que pronunciou conferência nesta Sala sobre o tema, e o erudito professor Ovídio Cunha, que se manifestou diversas vezes a respeito. 

Um dos inúmeros talentos de Pompeia que me tocaram foi a sua vocação para o Humor, o domínio que tinha do Humor Literário, filosófico e psicológico, domando, com arte e originalidade, as técnicas de fazer rir, como um criador do risível, quando, com fina e inteligente perspicácia e ironia, destruía doutrinas e modismos, desconstruía vaidades, combatia a estupidez, destronava falsos “vultos”, pseudointelectuais, incensados pelas elites. O Humor de Pompeia, sarcástico, cruel, condenava sarcasticamente. E condenava não apenas personagens, atitudes e situações, mas principalmente, as relações sociais, os sistemas educacionais, familiares, que as geravam. 

Quando li, pela primeira vez, O Ateneu, eu era um profissional do Humor, ofício ao qual me dediquei ininterruptamente por mais de dez anos. O humorista Raul Pompeia saltou-me aos olhos das páginas do romance. E eu projetei realizar um trabalho que se chamaria O Humor em O Ateneu de Pompeia (poderia buscá- lo em toda a sua obra, se disponibilidade e energia tivesse), onde iria apontar a arte do Humor nos seus textos, analisando e comentando cada pérola criada, identificando a técnica intuitiva, natural ou elaborada pelo gênio, para emocionar e conduzir o leitor à reflexão com sorriso, riso e gargalhada. 

Ouçam esta caricatura, uma perfeita descrição física, moral, profissional e espiritual do Diretor Aristarco, cujas atitudes são valoradas pelo dinheiro que pode auferir, a soberbia e a arrogância, o prestígio que poderia obter no trato com alunos ricos, mesmo medíocres, retrato feito por Sérgio. Crítica, ironia, no mais elevado e puro Humor: 

Nas ocasiões de aparato é que se podia tomar o pulso ao homem. Não só as condecorações lhe gritavam o peito como uma couraça de grilos: Ateneu! Ateneu! Aristarco todo era um anúncio. Os gestos, calmos, soberanos, eram de um rei – o autocrata excelso dos silabários; a pausa hierática do andar deixava sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia para levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino público: o olhar fulgurante, sob a crispação áspera dos supercílios de monstro japonês, penetrante de luz as almas circunstantes – era a educação da inteligência; o queixo severamente escanhoado, de orelha a orelha, lembrava a lisura das consciências limpas – era a educação moral. A própria estatura, na imobilidade do gesto, na mudez do vulto, a simples estatura dizia dele: aqui está um grande homem... Não veem os côvados de Golias!... Reforça-se sobre tudo isto um par de bigodes, volutas maciças de fios alvos, torneadas a capricho, cobrindo os lábios, fecho de prata sobre o silêncio de ouro, que tão belamente impunha como o retraimento fecundo do seu espírito, – teremos esboçado moralmente, materialmente, o perfil do ilustre diretor. Em suma, uma personagem que, ao primeiro exame, produzia-nos a impressão de um enfermo, desta enfermidade atroz e estranha: a obsessão da própria estátua. Como tardasse a estátua, Aristarco interinamente satisfazia-se com a afluência dos estudantes ricos para o seu instituto. De fato, os educandos do Ateneu significavam a fina flor da mocidade brasileira. 

O meu projeto do Humor em Pompeia está até hoje na gaveta. Os caminhos, atalhos e contingências da vida não permitiram que eu produzisse o ensaio. Tudo ficou num maço de anotações, registros, pontos a desenvolver. Porém, anos depois, aluno da disciplina de Filosofia da Arte na UFF, no Curso de Comunicação Social, apresentei, na Universidade, um pioneiro trabalho, de vanguarda, sobre O Riso, no qual tentei demonstrar o que faz rir, quais elementos, categorias e mecanismos que levam ao Riso, procurando, somente no campo da Filosofia, dos gregos da Antiguidade até os pensadores dos anos 1970, os motores do Riso. A propósito, quase todos os filósofos, muitos deles além de vir ou ir para a Matemática, produziram Humor com seus silogismos, críticas, enunciados e tratados, de Sócrates, Platão, Aristóteles a Maritain, passando por Kant, Newton, Schopenhauer, Nietzsche, Jean Paul Sartre, Bachelard, entre outros. Sem falar dos escritores geniais e quase- filósofos Stendhal, Bernard Shaw e Oscar Wilde. 

Mas apreendamos, também, implícita e explicitamente, na obra de Pompeia, acerca do Amor, do Belo, do Justo. Observemos o Erotismo, a Sensualidade, a Ecologia (área na qual o seu conterrâneo, o político e tribuno Lopes Trovão, e Fagundes Varela, o poeta do Amor e da Natureza, foram vanguardas na História da Cultura Brasileira). Façamos a compreensão dos sentimentos e ideais de Fraternidade, Solidariedade, Igualdade e Democracia Republicana em Pompeia, este último que ele bebeu especialmente na filosofia de Comte e nas doutrinas de Spencer. O niilismo de Schopenhauer, um fundamentado pessimismo, parece que permeia toda a sua obra. Pompeia fez da Literatura e do Jornalismo instrumentos de influência e mudança social. Fez-se um revolucionário. Ele é sólido e impiedoso, satírico, na crítica social e política, aos costumes e dissimulações do seu tempo, aos modelos de Educação, domésticos e formais, escolares, às autoridades do Estado, aos políticos e administradores, à burocracia que entorpece, tudo atrasa ou aniquila, à ineficiência dos serviços públicos. Condena o egoísmo, a arrogância, a sordidez, a ganância, a vaidade, a mentira, a inveja, a corrupção, as fraquezas e pecados travestidos de méritos, absorvidos e perdoados pela Hipocrisia, pelo Poder e pela Igreja. Nada escapava ao seu olhar julgador: o ridículo, o vulgar, a frivolidade, o cômico, o trágico. A sua alta inteligência, extensa cultura, eloquente lucidez, não viam saída para a vida, para o Homem. Visão pessimista, gosto amargo, em tudo e em todos. Até em si próprio. Nevrótico, impulsivo, era a inquietação intelectual personificada. Temístocles Linhares viu, com acerto, em Pompeia a “convicção de que não havia nada de bom nas relações humanas”. Pompeia não se eximia das críticas e das reflexões ferinas que dilaceravam a sociedade, as famílias, os colegas. As misérias humanas que habitavam e nutriam a vida no internato e no mundo externo. Ele nelas se incluía, em desencanto, se autocriticava, se censurava e se punia implacavelmente, com ressentimentos, sem condescendência ou remorso. 

Analisou, com o bico da pena e o fino pincel impressionista, ao contrário das manchas largas e maciças, instintivas, do Naturalismo, as hipocrisias, imposturas, falsidades, vilezas e maldades nas relações entre os colegas e os professores no ambiente escolar, obscuro e opressivo. As descrições materiais e humanas de Pompeia no romance colocam o leitor dentro do internato, como participante das “crônicas” e, ao mesmo tempo, faz com que um filme seja visto, assistido com todas as cores, tons, planos, cenários, sonoridades e falas. Eis os argumentos dos que conceituam a obra como “realista”. 

Por outro lado, as imersões nas mentes e corações dos personagens, ao trespassar as suas relações, expõe um psicologismo, ora vigoroso, lancinante, ora sutil, discreto, à meia-luz, presente não apenas no romance, mas em toda obra do escritor, propiciando a tendência majoritária dos críticos em identificar Pompeia como escritor impressionista. Concluo sobre o perfil literário de O Ateneu e seu criador. Romance realista, mesmo não estando o narrador na terceira pessoa; texto cinematográfico, com tintas impressionistas e naturalistas. 

Pompeia, primoroso esteta, niilista, pessimista, radical, um artista do mais raro e peculiar estilo, analista da mente e da alma humana, amável e odioso, cruel e algoz, às vezes de si mesmo, minucioso observador do comportamento humano. 

Arremato os meus comentários sobre Raul Pompeia, o autor de um único romance, a obra-prima que não é apenas dele, mas da Literatura Brasileira e Universal, assentando que o romancista nada fica a dever aos grandes artistas do gênero, em todos os cantos do mundo, como Flaubert, Balzac, Maupassant, Dostoiévsky, Kafka, Proust, José de Alencar, Eça, Machado, Fritzgerald, Henry Muller, Thomas Mann (filho de uma fluminense de Paraty), Joyce, Orwell, Guimarães Rosa, Agatha Cristie, Graham Greene, Hemingway, Jorge Amado, Salinger, Garcia Marquez, Cortázar, entre outros. 

Voltemos a 1888, quando O Ateneu é publicado. Neste mesmo ano, o Diário de Minas, de Juiz de Fora, Minas Gerais, publica até início de 1890, a série de crônicas A vida na Corte. Com a Proclamação da República em novembro de 1889, Pompeia muda o título do seu espaço para Da Capital

Em 1889, no Rio, é redator da revista semanal A Rua, dirigida por Pardal Malet, ao lado de Olavo Bilac e Luís Murat, assinando matérias com um ponto de interrogação – “?” – o sinal de pontuação, o sinal gráfico que representa uma pergunta, que dá entonação a uma oração, a uma dúvida, entendido como a busca de uma resposta. O ponto de interrogação transforma-se em mais um dos pseudônimos de Raul Pompeia. Escreve o romance Angústia, cujos originais se perdem e no qual a montanha carioca do Corcovado seria personagem e aquele sítio, a ambiência da história. Em agosto de 1889, retorna ao Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, permanecendo até 1892, onde faz, nos rodapés do diário, a seção Aos Domingos, alterando depois o título para Lembranças da Semana e, finalmente, para Cavaqueando

Um tiro num coração republicano 

Em 15 de novembro de 1889, é proclamada a República, assumindo a chefia do Governo Provisório o Marechal Deodoro da Fonseca, tendo como Vice-Presidente o Marechal Floriano Peixoto. Com a renúncia de Deodoro, no final do ano seguinte, Floriano assume o poder, governando com “mão-de-ferro” até 1894, quando ocorrem eleições que levam Prudente de Morais à Presidência. Pompeia, nacionalista e anti-monarquista, republicano radical, temendo movimentos da chamada “Restauração”, apoia incondicionalmente, com forte argumentação histórica, ideológica e política, o Marechal Floriano à frente de um governo tido como “militarista, anticonstitucional, ditatorial”. Escreve e discursa, frenética e febrilmente, em defesa da República. Esta posição de Pompeia o conflita com vários amigos e companheiros de Literatura e Imprensa. Republicano intransigente, militante, possuía uma consciência admirável, uma inarredável responsabilidade profissional como escritor, crítico, jornalista, colocando-se, sempre a serviço dos interesses do País, pois praticava um nacionalismo lúcido, radical e coerente, que a hora exigia. 

Em 1890, Raul Pompeia é nomeado, pelo Governo Provisório, Secretário da Escola Nacional de Belas-Artes, assumindo, no ano seguinte, a Cadeira de Mitologia na instituição. Acumula as duas funções. 

Em 1891, passa a ser o correspondente no Rio do jornal O Estado de São Paulo, trabalhando até 1892, quando se frustra um duelo entre Pompeia e o poeta Olavo Bilac, por razões políticas. Pompeia, Rodolfo Amoedo, Ferreira de Araújo, entre outros, eram defensores irredutíveis de Floriano. Pardal Malet, Bilac e Luís Murat, antiflorianistas. 

Em 1893, cumprindo a sua trajetória ativista, consciente e corajoso, contra “os resquícios do colonialismo português e outras tentativas de dominação externa”, dizia, escreve o prefácio do livro Festas Nacionais, do seu amigo Rodrigo Otávio. Nesse texto, Pompeia defende o militarismo de Floriano como necessário, indispensável, para a consolidação da República, “em defesa da pátria em perigo”, justificava. Reinava um clima de efervescência e exacerbação política, um tempo de doestos, enfrentamentos, opróbrios, insultos, sob todas as formas e meios. 

Em 1894, Pompeia é nomeado, pelo Presidente Floriano Peixoto, Diretor da Biblioteca Nacional, cargo que acumula com o de Diretor Geral de Estatística da União (origem do atual IBGE), que já vinha exercendo desde junho de 1893 e o faz até agosto de 1895. Atento a tudo que ronda o novo regime e contra ele conspira, Pompeia edita o folheto Carta de Cortesia em resposta à d’Alforria, esta escrita pelo Conselheiro Tomás Ribeiro, quando da chegada de D. Pedro II a Portugal, após a Proclamação da República. Tomás Ribeiro, naquele momento, era Embaixador de Portugal no Brasil. 

Em junho de 1895, morre o Marechal Floriano. No enterro, presente Prudente de Morais, Pompeia faz um discurso vibrante e apaixonado, considerado por muitos como “ofensivo” ao chefe do Governo, “um desacato” ao Chefe da Nação, “escandaloso” qualificou-se, em homenagem a Floriano e em defesa da República. Em seguida, Prudente de Morais demite Pompeia do cargo de Diretor da Biblioteca Nacional. Agora, o seu ex-amigo Luís Murat publica, em um jornal de São Paulo, o artigo Um louco no cemitério, no qual insulta Pompeia e considera a sua demissão como correta. Pompeia não soube do artigo de Murat e publica em O Nacional, jornal florianista, O grande imortal, exaltando Floriano Peixoto. 

Em dezembro de 1895, inicia colaboração no jornal A Notícia, do Rio de Janeiro, que publica seus dois últimos artigos. Toma conhecimento do artigo de Murat. Escreve uma resposta forte, viril, que o jornal não publica. Muito abatido, sentindo-se humilhado e injustiçado, e, ainda, insatisfeito com a forma de como aqueles dois artigos haviam sido editados pelo jornal, Raul Pompeia, está deprimido, indignado. Indivíduo desconfiado e sujeito a mudanças repentinas de humor, da brincadeira e alegria ao amuo e à cólera, sem motivos aparentes, era pessoa de difícil trato. Um amigo comentou comigo recentemente: “Um ansiolítico de três miligramas seria oportuno, evitaria o que se anunciava”. No sobrado da Rua São Clemente, 116, esquina com a Rua Eduardo Guinle, em Botafogo, zona sul da Cidade do Rio de Janeiro, apenas a mãe Dona Amélia e as irmãs Dulce e Alice, a caçula. Eram 13 horas do Dia de Natal de 1895. Raul, na plenitude intelectual e artística dos seus trinta e dois anos, entra em seu quarto e desfere um tiro no coração. A mãe e a irmã correm ao seu encontro. Ao ver a irmã caçula desfalecendo à porta, profere suas últimas palavras: “Acuda a Alice.

Deixa um bilhete: “À Notícia e ao Brasil declaro que sou um homem de honra”. 

E o foi. Inteiriço, íntegro, reto, honesto, digno. Agia e escrevia de acordo com as suas ideias e convicções. E era voluntarioso, audaz, emotivo, psicossomático, do tipo que os médicos chamam de “sanguíneo”. Elói Pontes escreveu que Pompeia, “como cavalheiro andante da honra, julgando-se atingido pela onda de lama da covardia triunfante, achou só uma porta aberta para sua dignidade ofendida – o suicídio”. 

Logo após o suicídio de Pompeia, Machado de Assis escreveu e publicou: 

“À beira de um ano novo e quase à beira de outro século, em que se ocupará esta triste semana? Pode ser que nem tu, nem eu, leitor amigo, vejamos a aurora do século próximo nem talvez a do ano que vem. Para acabar o ano faltam trinta e seis horas em tão pouco tempo morre-se com facilidade, ainda sem estar enfermo. Tudo é que os dias estejam contados. Algum haverá que nem precise tê-los contados; desconta-os a si mesmo, como esse pobre Raul Pompeia, que deixou a vida inesperadamente, aos trinta e dois anos de idade. Sobravam- lhe talentos, não lhe faltavam aplausos nem justiça aos seus notáveis méritos. Estava na idade em que se pode e se trabalha muito. A política, é certo, veio ao seu caminho para lhe dar aquele rijo abraço que faz do descuidado transeunte ou do adventício namorado um amante perpétuo. A figura é manca; não diz esta outra parte da verdade – que Raul Pompeia não seguiu a política por sedução de um partido, mas por força de uma situação. Como a situação ia com o sentimento e o temperamento do homem achou-se ele partidário exaltado e sincero, com as ilusões todas – das quais se deve perder metade para fazer a viagem mais leve – com as ilusões e os nervos”. 

A obra literária de Raul Pompeia, personalíssima, de elevada e incomparável expressão artística, de sofisticada e revolucionária técnica verbal, estilo inimitável, a toda hora, surpreende, extasia, encanta, confunde e intriga estudiosos e críticos do Brasil e do exterior, onde chegam os seus escritos, pelo conteúdo denso e seminal, pela riqueza e exuberância formal, pela sua originalidade e beleza.  

Um artista superior, plural e único 

O Ateneu, obra da qual tanto já falamos, é qualificada pela maioria desses estudiosos como “um romance naturalista”, como julgaram Silvio Romero, Ronald de Carvalho e Mário de Andrade. Este último considera o romance “um dos aspectos particulares mais altos no Naturalismo brasileiro”. Outros classificam Pompeia como autor de uma literatura “de traços naturalistas, mas com predominância de elementos impressionistas”, como Araripe Júnior e Agripino Grieco. Outros, ainda, veem O Ateneu como “um superior modelo do Simbolismo”. Já, Afrânio Coutinho, talvez, o maior dos pompeianos, o grande Ledo Ivo, Otto Maria Carpeaux e Silviano Santiago, legendam a obra: “Um monumento do melhor Impressionismo em nossas Letras”. As impressões mais subjetivas que objetivas, certamente, os levaram a essa qualificação. 

Todos, no entanto, nas suas diferentes análises e conclusões, convergem: Um romancista genial, sem parâmetros, sem rótulos, um mestre da Literatura. Porém, a maioria dos estudiosos e críticos contemporâneos confere a O Ateneu o estilo impressionista. Alguns até como uma obra “pré-modernista”. 

O próprio Raul Pompeia resolve essas polêmicas de estilo, de enquadramentos literários, de engajamentos a correntes estéticas e de escolas. Escreve ele: 

“O romance é um arcabouço dramático, em que o autor, ao mesmo tempo em que tem de animar os personagens, deve ser o cenógrafo, o marcador, o ensaiador, o contrarregra e o anotador das atitudes dos figurantes. Às vezes é, ao mesmo tempo, o público e comenta, com observações suas, os gestos, as palavras, as situações dos seus fantoches. Para cada um desses deveres do romancista há gênero especial de estilo. O romance não pode ser uniforme em estilo”. 
Ouso asseverar que, não apenas no romance, mas em qualquer gênero ou forma literária exercitada, não havia uniformidade em Pompeia. Adonias Filho, sobre o gênio angrense, escreveu no seu centenário de nascimento: 
“Em Raul Pompeia, e quando sempre se rever a ficção brasileira, encontrar-se-á o escritor sem aproximações. Tudo nele a si próprio pertence: a percepção, a linguagem, a técnica. Romancista isolado, de obra reduzida – e por assim dizer do livro definitivo que é O Ateneu – explica-se sua contemporaneidade em todas as gerações. Raros conseguiram, como ele, tamanha penetração psicológica sem trair o interesse humano e o documentário social.” 

De 1880 a 1895, portanto dos dezessete aos trinta e dois anos, Raul Pompeia, em apenas quinze anos de atividades como jornalista e escritor público, publicou artigos políticos, crônicas, reportagens, crítica literária e de artes plásticas, e literatura (romances, contos, poesia em prosa), em trinta e nove jornais e revistas do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Pernambuco. Afora o que fora publicado em livros – O Ateneu, as Canções sem metro e Uma tragédia no Amazonas – a sua obra esteve por quase um século dispersa em folhetins, nesses jornais e revistas, em arquivos públicos e particulares. 

De 1981 a 1984, o brilhante crítico, ensaísta e pesquisador, um benfeitor da Literatura Brasileira, o professor Afrânio Coutinho, que ocupou a Cadeira patronímica de Raul Pompeia na Academia Brasileira de Letras, com a assistência do seu filho, também mestre universitário, Eduardo de Faria Coutinho, após vinte anos de trabalho ininterruptos, de pesquisa, estudo, leituras, autenticações, análises e definições sobre as formas definitivas dos textos, na Oficina Literária Afrânio Coutinho – OLAC, na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ – organizou a coedição de toda a obra de Raul Pompeia pelo então Ministério da Educação e Cultura, no ano do seu cinquentenário, a Fundação Nacional de Material Escolar – FENAME, a OLAC e pela falecida Editora Civilização Brasileira, do saudoso Ênio Silveira. São dez volumes, sendo que o último se viabilizou graças ao empenho de Alípio Mendes junto à Prefeitura Municipal de Angra dos Reis, que patrocinou a publicação do décimo volume. A Coleção Obras de Raul Pompeia reuniu toda a produção literária e jornalística do escritor e é formada pelas edições de inéditos em livro e reedições definitivas em livro. A coleção reúne as duas novelas Uma tragédia no Amazonas e As joias da Coroa (que alguns consideram ambos romances); O Ateneu (primeira edição do texto verdadeiro, fidedigno, revisto por Pompeia, segundo a vontade autoral); 53 Contos; as Canções sem metro e Outros Poemas em Prosa; 92 Artigos/Escritos Políticos; centenas de Crônicas; e o último volume intitulado Miscelânea e Fotobiografia, contendo: 

Perfis; Crítica Literária e Artística; um texto intitulado Em torno da Biblioteca Nacional; Correspondência; Poesia; Notas (Caderno de Notas Íntimas) e Pensamentos; as reflexões filosóficas Alma Morta ou Cartas para o Futuro; o texto Passeio ao Silvestre; o texto Niomey e Hygdar; o trabalho A Mão de Luis Gama; Dispersos; ilustrações, desenhos, caricaturas e fotografias

O difícil, longo e árduo trabalho de Afrânio Coutinho só foi possível graças a outro, pioneiro, do estudioso e crítico Elói Pontes, autor da primeira biografia sobre o gênio angrense – a obra A vida inquieta de Raul Pompeia – e que foi depositário, pelos descendentes do escritor, de todo o arquivo pessoal e profissional do escritor: manuscritos, livros e cadernos de anotações, desenhos e caricaturas, todo o precioso acervo de Pompeia, cedido pelo filho de Elói a Afrânio Coutinho que se encontra na preservado na OLAC, espaço aberto ao público para visitação e pesquisa, na UFRJ. Além do acervo de Elói, Afrânio teve à sua disposição outro valioso arquivo, o de Rodrigo Otávio, pai, amigo íntimo, certamente o amigo mais próximo de Pompeia. 

A Gazeta de Angra, jornal de Alípio Mendes, editou, com apresentação de Camil Capaz, antecipando-se e fora da coleção de Afrânio Coutinho, as Reflexões Filosóficas Alma Morta ou Cartas para o Futuro e Excursão Ministerial

Os Discursos e Orações de Pompeia, de várias naturezas, objetivos e em circunstâncias várias, pronunciadas da puberdade até a sua partida, quase todas feitas de improviso, sem leitura, não foram registradas. Perderam-se. 

Além de Um moço do povo, Pompeu Stelle o sinal de interrogação (“?”), Pompeia usou os seguintes pseudônimos: Y, Niomey e Hygdard, R., Lauro, Fabricius, Raul D., Raulino Palma, Lauro, Fabricius e Pulchinello.  

O Ateneu já ganhou diversas edições condensadas, foi adaptado para crianças, inclusive ilustrado, várias vezes, como revista em quadrinhos. 

Em março de 1968, meu pai, Câmara Torres, o saudoso filólogo, Professor Artur de Almeida Torres, certamente o maior dos pompeianos que passou por esta Academia, e eu visitamos, juntos, a casa onde nasceu Raul Pompeia na Jacuecanga, em Angra dos Reis, em companhia do Prefeito do município. Meu pai, após muita luta e um longo processo junto aos Poderes Públicos, conseguiu que o imóvel do Século Dezoito, pertencente à Prefeitura, hoje um prédio bastante descaracterizado, agredido, deformado, degradado, um verdadeiro pardieiro, ocupado, há décadas, por quatro famílias, fosse incluído na lista de bens tombados pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - INEPAC. E a ocupação do prédio por essas famílias é que, incrivelmente, tem mantida a estrutura do casarão. Porém, jamais meu pai, nem qualquer cidadão ou entidade conseguiu que a Prefeitura, o Estado, a União, empresa ou instituição pública ou privada se sensibilizasse, compreendesse o valor cultural e histórico imaterial da edificação, visando à restauração do belo solar colonial, com frente para o mar, com base em fotografias e pinturas de época. Trágica ironia é que a casa de Pompeia, nas terras da fazenda do pai de Pompeia, hoje funciona um importante terminal da Petrobrás, a maior empresa nacional, que sempre investiu valores vultosos em programas de preservação e desenvolvimento da Cultura Brasileira. 

Em 2011 e agora, novamente, em abril deste ano, o Núcleo de Radiodramaturgia da Rádio MEC apresentou, nessa emissora e na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, contos de Raul Pompeia dramatizados. 

Em 1987, o falecido diretor teatral Carlos Wilson adaptou, com Adriana Maia, o romance de Pompeia, e montou, no Rio de Janeiro, o espetáculo O Ateneu, drama com 37 atores, com música de Milton Nascimento e Fernando Brant e uma equipe técnica com mais de 60 profissionais, que revelou uma geração de atores, entre eles, Selton Mello, Eduardo Moscovis, Marcelo Serrado e Bianca Comparato. Em 2017, a peça foi remontada, voltou aos palcos cariocas, com a classificação de 16 anos e duração de 110 minutos, agora sob a direção de Oberdan Júnior e Marcelo Cavalcanti, com o mesmo número de atores, com destaque para Vitor Thiré e Caio Manhente. 

Em 2013, quando celebraríamos os cento e cinquenta anos do nascimento de Raul Pompeia, elaborei, de moto próprio, gratuitamente, na minha condição de filho de Angra dos Reis e Membro do Ateneu Angrense de Letras e Artes, o Projeto Raul Pompeia volta à sua Terra, que pretendia levar para Angra dos Reis os restos mortais do escritor, que jazem no Cemitério São João Batista, em mausoléu descuidado, que se arruína pelo tempo, e criminosamente, por descaso do Poder Público e por vândalos. Ou seja, o projeto pretendia devolver aos braços da mãe saudosa, Angra dos Reis, o filho amado. Durante meses trabalhei na concepção e redação do projeto, em várias dimensões, e a demandar custos antípodas: de uma singela missa pela alma do escritor a um monumental evento de repercussão nacional e internacional. Detalhei a sua operacionalização, com orçamentos, nos quais não se gastaria um centavo de dinheiro público. O trabalho foi enviado a então Prefeita de Angra dos Reis, uma professora – imaginem! – e ao Presidente da Câmara de Vereadores. Ambos, não me responderam, nem sequer acusaram o recebimento do trabalho que ofereci a Angra dos Reis. As celebrações reuniriam eventos institucionais, cívicos, religiosos, artísticos, literários propriamente ditos, certames, dramatizações, exposições, lançamento de publicação da Efeméride etc. Confesso que, idealista, realista e sincero, mesmo doando-me ao esforço com afinco, não nutria outra expectativa se não aquela, pois estávamos a tratar de Memória, de Arte, de Cultura, no Brasil. Realizei o trabalho como um direito de cidadão e um dever de um operário intelectual daquela terra. 

Caminho para o final da minha oração, sintetizando o meu pensamento, sobre o meu conterrâneo e Patrono da Cadeira 37 que passo a ocupar. 

Raul Pompeia é qualificado por mim como O gênio feito Homem

Pompeia é um dos mais nobres estetas da Língua Portuguesa. Vulto fulgurante da Cultura Brasileira, um romancista singular, único, originalíssimo, incomparável na sua criação, escritura e estilo, um artista plural, notabilíssimo, proeminente em todos os seus fazeres e conquistas intelectuais.  

Críticos e cretinos 

Enigma para uns, complexo e sempre novo para outros, um artista a ser descoberto, sempre novo, Pompeia desafia estudiosos em todo o mundo. 

Homem de rara inteligência e vasta erudição, observação primorosa, apurado senso crítico e imensa criatividade, possuía inesgotável capacidade para produzir. Foi jornalista, romancista, contista, cronista, novelista, romancista, pensador, professor, desenhista, caricaturista, escultor, dirigente de instituições culturais. Escritor internacionalmente reconhecido e cultuado, sua obra – literatura, pensamento e estética – são pesquisadas e interpretadas por estudiosos e universidades do País e de centros de estudos brasileiros no exterior. O interesse pela sua obra é espantoso. As criações, ousadias e vanguardas de Pompeia continuam a intrigar e a desafiar a Psicologia, a Psicanálise, a Teoria e História Literária, a Filosofia da Arte. 

Além dos grandes biógrafos, críticos e ensaístas que já citei que se debruçaram sobre a obra do gênio fluminense, é meu dever registrar outros trabalhos: a telúrica conferência feita pelo historiador angrense Corintho de Souza, em 1941, quando afirmou que Pompeia “era de fato a maior expressão do gênio artístico da nacionalidade!”; a série de valiosos trabalhos de vanguarda, de análise e crítica literária, do Professor Artur de Almeida Torres, autor de dezenas de trabalhos em diversos campos da Língua Portuguesa. Como disse, foi ele o maior dos pompeianos deste cenáculo. Publicou: Retrato psíquico de Raul Pompeia, ensaio-conferência de 1959, repetida nesta sala em 1963, e publicada, em duas tiragens em 1967, tratando, pioneiramente, dos aspectos da Psicologia e da Psicanálise da obra de Pompeia. Em 1968, Almeida Torres nos brinda com Raul Pompeia – Estudo psico-estilístico, sulcado passeio por personagens e fatos de O Ateneu, abrangendo léxico, sintaxe, figuras de linguagem, semântica, fonologia, imagística e outras faces da estilística, atrelando-os e os interpretando à luz da Psicologia e da Psicanálise. 

Em 1969, lança Novos aspectos estilísticos de Raul Pompeia, minucioso ensaio destacando o ritmo e a musicalidade da prosa em O Ateneu e os inúmeros recursos poéticos e figuras de estilo de sua prosa. Finalmente, em 1970, Artur de Almeida Torres publica Em defesa de Raul Pompeia, refutando objeções à personalidade e à obra do escritor angrense que ele, presencialmente, já havia destruído em sessão da Federação das Academias de Letras do Brasil em 1968, mas que, no mesmo ano, a revista da entidade ratificou tais objeções. Almeida Torres, então, viu-se forçado a respondê-las, uma a uma, em livreto, como a invencionice, segundo a qual, Pompeia odiaria o pai. Também, recentemente, foi criada e divulgada a pecha, à época desmoralizante, segundo a qual, dizia o libelo, são “da maior importância as manifestações de homossexualidade...” do escritor. Como se autor ou personagem ou personagens com tendências ou sinais de homossexualidade, explícitas ou latentes, resultado de deduções ou ilações, atribuiriam mais ou menos excelência ou redução, lograriam fama, causariam demérito ou precarização ao romance. 

Na verdade, foi Artur de Almeida Torres o autor de vanguarda de diversos trabalhos desse importante e sério diálogo entre a Psicologia, a Psicanálise e a Análise Literária de O Ateneu e acerca de Pompeia. O Psiquismo, por conta dos trabalhos de vanguarda de Almeida Torres, tornou-se fértil terreno para dezenas de estudos, teses e dissertações sobre O Ateneu e o seu criador. Até psicanalistas se atrevem em pesquisar e enunciar sobre o assunto. Complexo de Édipo, homossexualidade, a educação opressora do internato, marcas, patologias e conflitos resultantes de traumas da infância e adolescência decorrentes da autoridade paterna – são temas recorrentes nesses estudos sobre as personalidades do personagem Sérgio e de Pompeia que tais estudos tentam identificar e discutir. 

A propósito, atualmente, são inúmeras as teses e dissertações e artigos explorando, discutindo, polemizando, a suposta homossexualidade de Pompeia, de Sérgio e de outros personagens de O Ateneu. Alguns professores que não dão aulas e intelectuais de orelhas de livros chegam a ressaltar que O Ateneu é “o primeiro romance homossexual da Literatura Brasileira”, como se isto premiasse ou promovesse a obra. Algum avanço, por isto, da Estilística iluminando a obra de Pompeia? Nenhum. Apenas moda, jargões. Modismos. Irrelevâncias. Aliás, o fato de um homem, bonito, culto e prestigioso como Pompeia não ter se casado antes dos trinta anos, conduzia, à época, os corvos de plantão a insinuações desse jaez. Hoje, com o justo reconhecimento da homossexualidade, da condição de homossexual, consciente ou não, não agrava o caráter de Pompeia nem o canoniza literariamente. Falsos temas, fantasiosas polêmicas de desocupados e oportunistas. Irrelevâncias. 

Além dos grandes escritores, de historiadores e críticos importantes da nossa Literatura já citados nesta oração, lembro a esta Academia de outros nomes que se ocuparam de Pompeia e sua obra ímpar e múltipla: Honório Lima, Rodrigo Otávio, Valentim Magalhães (publicado em Lisboa), José Veríssimo, Adelino Magalhães (na oração de posse como fundador da Cadeira 37 desta Casa), Oswald de Andrade, Eugênio Gomes; Ronald de Carvalho, Nestor Vítor, João Ribeiro, Bráulio Sanchez Saez (publicado no Chile), Manuel Bandeira, Domício da Gama, Lúcio de Mendonça, Sérgio Milliet, Aurélio Buarque de Holanda, José Lins do Rego, Álvaro Lins, Jorge Amado, José López Heredia (tese de Doutoramento na Universidade de Nova Iorque), Tristão de Athayde, Lúcia Miguel Pereira, Sérgio Buarque de Holanda, Lídia Besouchet e Newton Freitas (publicados na Argentina), Celso Luft, Josué Montelo, Terezinha Bartholo, Rubem Braga, Jacinto do Prado Coelho (publicado em Portugal), Franklin de Oliveira, Luciana Picchio (publicada na Itália), Antônio Cândido, Rubens Falcão, Antônio Olinto, José Guilherme Merquior, Wilson Martins, Alfredo Bosi e dezenas de outros. 

Nos últimos anos, além do hercúleo e relevante trabalho de Afrânio Coutinho que organizou e viabilizou a edição em dez volumes das obras completas de Raul Pompeia, destaque para as teses, ensaios e artigos da escritora e professora da Universidade de São Paulo – USP, e importante crítica literária brasileira, Leyla Perrone-Moisés, hoje, a mais respeitada, a maior especialista em Raul Pompeia e sua obra. Mestra e Doutora pela Sorbonne, lecionou nessa universidade e em outras no Canadá, Estados Unidos e na PUC de São Paulo. Em 1980, publicou, em Paris, Ducasse, Pompeia, ensaio onde busca as identidades existenciais e literárias entre o gênio brasileiro e Isidore Lucien Ducasse, mais conhecido pelo pseudônimo artístico de Conde de Lautréamont, poeta uruguaio que viveu em França, onde morre aos vinte e quatro anos. No Brasil Perrone-Moises voltou a publicar, no mesmo ano, o ensaio Lautréamont e Raul Pompeia. Lançou, no centenário da obra-prima do gênio fluminense, o livro O Ateneu – retórica e paixão, pelas editoras Braziliense e pela Editora da USP- EDUSP. Leyla Perrone- Moisés é autora de vários trabalhos sobre Pompeia e sobre O Ateneu na França e no Brasil. Na USP, coordena o Núcleo de Pesquisa Brasil-França, do Instituto de Estados Avançados. Recebeu comendas do governo francês e vários prêmios nacionais no Brasil por seus estudos literários. 

Disse Pompeia: “A crítica não ensina a fazer obras de arte, ensina a compreendê-las”. 

Na década de 1970, uma editora europeia publicou uma Antologia de Literatura Universal, elegendo os maiores escritores de todos os tempos de vários países, de cada uma dessas Literaturas. O critério era a Língua aplicada. Da Literatura de Língua Portuguesa foram publicados perfis e excertos de Camões, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, portugueses, e Machado de Assis, o único brasileiro escolhido. Críticos de Portugal, França, Alemanha e Inglaterra, criticaram a ausência de Raul Pompeia no rol dos integrantes da Literatura de Língua Portuguesa, estranharam do porquê Machado restava solitário entre os brasileiros. Na verdade, O Ateneu já possuía edições na França e em Portugal e Pompeia já era estudado em várias universidades da Europa. 

 Soldado, herói e mártir 

O angrense Raul Pompeia foi um dos artífices mais importantes da língua culta falada e escrita no Brasil, um dos principais arquitetos da nossa Literatura. Constitui um capítulo destacado da nossa História Literária, uma das personalidades mais nobres e produtivas das Artes, do Jornalismo e da Política do seu tempo. Pleno, audaz, foi um artista que doou todos os seus portentosos talentos à construção da Cultura Brasileira. Repórter, jornalista político combativo, foi, também, um homem de ideias, de ações desassombradas em defesa da Liberdade e da Democracia, pelos valores e causas nacionalistas, lutando, sem tréguas, pela Abolição da Escravatura e pela instauração e consolidação da República. Do regime republicano poder-se-ia dizer que foi um soldado, um herói e um mártir. 

Ideólogo e militante, jamais claudicou ou transigiu com o oportunismo, as conveniências, os recuos, as covardias, as negociatas e ambiguidades – comuns nos ambientes literários, nos terrenos da Imprensa, do Poder e da Política. 

A inveja, a vileza, a deslealdade, a mentira, a infâmia de que foi vítima, contrastadas com a forte e complexa personalidade de um homem que não se vergava, que era fiel às suas ideias e convicções – constituíram fatores que, aliados a uma personalidade complexa, temperamento de elevada sensibilidade, inteligência superior e uma estrutura psicoemocional frágil e vulnerável, causaram-lhe a morte prematura e inesperada, no auge de sua capacidade produtiva. O seu caráter sem jaças, a sua consciência e responsabilidade profissionais, tenaz em suas ideias e atitudes, a sua altivez cívica e dignidade intelectual, eram intangíveis, indestrutíveis, inegociáveis. O princípio vivido por Pompeia, herança do pai, o austero magistrado Doutor Antônio, foi captado por Capistrano: “O homem não provoca, mas agredido, não se verga, não cede nem recua”. Pompeia tinha verdadeira obsessão pela honra, valor, para ele, inexorável. Integérrimo, sem forças para sustentar esses valores, para ele supremos, vítima de incompreensões e de insultos, não suportando a calúnia e a injustiça, sobre Pompeia abateram-se a revolta, a solidão, a nostalgia, a depressão, que o conduziram ao suicídio. 

Este pensamento de Pompeia expressa a sua personalidade e nos ajuda a entender o seu gesto extremo. Escreveu ele: “Os caracteres inteiriços são como as antigas caldeiras – não têm válvula de segurança e, em caso de pressão desesperada, despedaçam-se"

Duas frases ele repetiu nos seus últimos dias, antes do ato extremo, após a agressão verbal e gestual que sofreu de Bilac, lançada à sua face, na Rua do Ouvidor, em meio a um grupo de amigos, e após os preparativos para os três duelos com o poeta parnasiano, todos frustrados pelos próprios amigos. A primeira frase: “O meio-termo é o status quo da covardia”. A segunda frase que o martirizou: “Sou um homem que está sendo desonrado”. Por outro lado, Bilac se dava por satisfeito com a ofensa feita a Pompeia na Rua do Ouvidor e com a não realização do duelo, solução pregada pelo seu ex-amigo de Pompeia, Pardal Malet, arauto do duelo, que estimulava e pregava como solução para as questões de honra. 

Bastaria O Ateneu para consagrá-lo definitivamente. E assim ocorreu, não obstante os seus outros brilhantes cometimentos literários e jornalísticos, como artista e homem de ideias, notável revelador da realidade, do homem e da alma brasileira do seu tempo. Mas o seu gênio e as suas façanhas foram maiores que o indivíduo, que o cidadão, ultrapassaram a sua curta, tumultuada e sofrida existência. O Artista suplantou o Homem. Raul Pompeia sonhou, criou, lutou, construiu. E se eternizou. Deixou-nos uma obra grandiosa, originalíssima, brasileira e universal. Para a nossa Cultura, um tesouro de vida, arte e beleza, um patrimônio da Nação. Raul Pompeia é o Patrono da Cadeira no 33 da Academia Brasileira de Letras, sugerida a sua criação por Rodrigo Octávio, e cujo fundador foi Domício da Gama. Hoje é digna e brilhantemente ocupada pelo filólogo, lexicógrafo e gramático Evanildo Bechara, um sábio e sereno guardião da Língua Portuguesa. 

Consultor – criador e realizador – em diversas áreas da Cultura há mais de quarenta anos, chego a esta Casa para, além dos meus deveres acadêmicos, aliar-me aos meus pares, a fim de contribuir com o nosso ínclito e dinâmico Presidente Waldenir de Bragança, visando a colaborar na revivificação da Academia Fluminense de Letras que ele, com firmeza e competência, vem empreendendo, a fim de que ela retome o seu caminho natural e insubstituível de instituição ativa, contemporânea, integrada à sociedade e às outras entidades irmãs, à Academia Brasileira de Letras e àquelas dos municípios fluminenses, com administração e recursos suficientes para sustentar suas atividades culturais. 

Prometo e espero, com os meus parcos talentos e algum saber, honrar a Cadeira 37, ter o privilégio de conviver e aprender com as Senhoras e Senhores Acadêmicos, defender a memória e a obra de Raul Pompeia, dignificar a minha presença nesta secular, proeminente e mais importante Casa da Cultura do Estado do Rio de Janeiro. 

( Muito obrigado )

Marcelo Câmara proferindo sua oração-ensaio "Raul Pompeia: o Gênio feito homem", ao tomar posse da Cadeira 37 da Academia Fluminense de Letras