domingo, 26 de fevereiro de 2023

A ILUSÃO DA LUA


Por Francisco José dos Santos Braga 

 
Dedico este texto a AVELINA Maria NORONHA de Almeida (✰ 13/11/1934 ✞ 25/02/2021, em Conselheiro Lafaiete-MG), colaboradora deste Blog de São João del-Rei, in memoriam.

 



I. A ILUSÃO DA LUA foi a primeira produção literária composta pela imortal Avelina Noronha da ACLCL-Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete, quando aluna do colégio Nossa Senhora de Nazaré. 
A declamação dessa poesia foi gravada pelo Acadêmico Moisés Mota – então presidente da ACLCL – em 2013 durante entrevista sobre a vida e obra de Avelina transmitida pela Rádio Carijós. A declamação obteve grande destaque – diríamos hoje que "viralizou" – e, lançada no YouTube, alcançou tantas visualizações até chegar à gerente do Blog Portugalredecouvertes, Angela Viegas, que, entre outras matérias, cobre "o mundo português e a lusofonia, a descobrir ou a redescobrir". 
Pois bem, Angela Viegas empreendeu a tradução poética (rimada) para o francês do poema em português. Vejamos abaixo o resultado.  
 
A ILUSÃO DA LUA 
Por Avelina Noronha 
 
Veio a noite de mansinho 
e a lua surgiu airosa, 
indo mirar-se, vaidosa, 
na lagoa do caminho. 
 
Achou-se bela deveras, 
sorrindo com aire e orgulho,
e, dando n’água um mergulho, 
banhou-se toda em quimeras. 
 
As horas foram passando 
e os vagalumes piscando 
pra lua cheia de vida, 
 
mas o sol, cruel, chegando, 
foi a ilusão abafando 
e a lua tombou vencida.  
 
L'ILLUSION DE LA LUNE 
Traduzido por Angela Viegas 
 
La nuit vint doucement 
et la lune se leva gracieuse, 
allant se mirer, vaniteuse, 
dans la mare du chemin. 
 
Elle se trouva vraiment belle, 
souriant avec grâce et fierté, 
et, de suite dans l’eau en plongeant, 
de chimères s’est toute baignée. 
 
Les heures allaient en passant 
et les lucioles en clignotant 
à la lune pleine de vie, 
 
mais le soleil, cruel, arriva, 
l’illusion il étouffa 
et la lune tomba anéantie. 
 
 
Além da tradução dessa poesia para o francês por Angela Viegas, ela foi musicada pelo maestro espanhol Cézar Zumel para coro a cappella. A canção foi executada em diversos países, conquistando inúmeros prêmios em festivais. Abaixo assistiremos a três apresentações da canção na Espanha, Argentina e Brasil respectivamente:
1) estreada em 18/02/2014 pelo Coral de Câmara Vadillos (Burgos), regido por Alberto Carrera Ibáñez, no Conservatório Profissional de Burgos, no 25º Aniversário do Instituto de Ensino Secundário "Pintor Luis Saez" (na Espanha)

Link: https://www.youtube.com/watch?v=htue-tSgEf8  👈

2) apresentada numa montagem de Jerónimo Machín, encenada e cantada pelo Coro Club Mendoza Regatas (a cappella) e dirigida por Liliana Sánchez (na Argentina)
 
Link: https://www.youtube.com/watch?v=BXH_M2NNjiY  👈
 
3)  o vídeo que segue é uma edição do Madrigal Roda Viva na interpretação da peça para coral musicada por César Zumel, realizada na Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição, em Conselheiro Lafaiete-MG
 
 
A seguir, analisaremos a ilusão da lua à luz da ciência; é certo que fazendo uso de uma semântica diferente da utilizada por Avelina Noronha. 
 
II. A ILUSÃO DA LUA NO HORIZONTE 
 

 
A ciência ainda estuda oferecer uma explicação científica sólida sobre por que acontece o fenômeno conhecido como A ILUSÃO DA LUA. Você já observou a Lua nascendo ou se pondo e teve a impressão de que ela estava maior do que o normal? Todos nós experimentamos essa mesma sensação ao apreciar nosso belo satélite natural próximo ao horizonte. 
 
A ILUSÃO DA LUA DESDE A ANTIGUIDADE
 
O fenômeno é bem documentado desde o século IV a.C., quando o filósofo grego Aristóteles sugeriu que a atmosfera da Terra pudesse ampliar a imagem da Lua no horizonte, assim como a água pode fazer com que objetos imersos pareçam ampliados aos nossos olhos. O astrônomo grego-egípcio Ptolomeu propôs algo semelhante em seu famoso tratado Almagest, publicado durante o século II d.C., assim como o astrônomo grego Cleomedes, na mesma época, embora ambos atribuíssem o fenômeno a uma mudança na distância aparente da Lua. 
 
No século XI, o matemático árabe Ibn Al-Haytham desenvolveu a primeira teoria plausível de como a ilusão da Lua funciona, sugerindo que a diferença de tamanho tem a ver com a maneira como nossos cérebros percebem a distância e, então, como ajustamos automaticamente o tamanho aparente de um objeto para corresponder a essa percepção. 
 
Apesar de todas as pessoas ao redor do mundo observarem essa ilusão há milhares de anos, ainda não existe uma explicação científica sólida sobre por que isso acontece. A maioria das respostas hoje em dia se baseia na ideia de como nosso cérebro processa a informação de distância dos objetos. Algumas hipóteses consideram, ainda, que árvores, montanhas e edifícios em primeiro plano podem ajudar a enganar o cérebro, que passa a pensar que a Lua estaria mais próxima e seria maior do que realmente é, por estar cercada por esses objetos. 
 
Crédito pela abordagem científica do fenômeno: https://www.ufmg.br/espacodoconhecimento/a-ilusao-da-lua/  👈

sábado, 25 de fevereiro de 2023

ELOGIO AO BRAGA


Por João Carlos Ramos *

O imenso mar do Braga possui uma ilha...


Francisco José dos Santos Braga nasceu no dia 16 de fevereiro de 1949 sob o signo de Aquário, tendo a lua cheia como regente de suas emoções. Seu oposto complementar é Leão, nativo da casa do sol. Bacharel em Letras (FDB-Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras) e em composição musical (UnB-Universidade de Brasília), possui mestrado em Administração (EAESP-FGV). Ficaria horas, citando seu currículo que indubitavelmente iria até a lua. 

Nesta curta crônica, quero enfatizar sobre sua cultura musical e sua altíssima intelectualidade, difundindo cultura e despertando em várias Academias o desejo de convidá-lo para a devida filiação. Hábil maestro e pianista, quis o destino que ele se casasse com a soprano divinopolitana Rute Pardini, dando-lhe a inspiração maior para seu êxito. Historiador, pesquisador e conferencista de renome, sinto-me pequeno diante dele. 

Permitam-me falar como nos conhecemos. Estando eu em meu trabalho, que considero o paraíso das letras, que é a Biblioteca P. M. "Ataliba Lago", no município de Divinópolis-MG, surge o maestro, ao lado de sua digníssima esposa, a fim de conhecer a referida biblioteca. Prontamente me apresentei e passeamos pelas alamedas do conhecimento. Esqueci-me do relógio e conversamos sobre o valioso acervo, composto de milhares de livros. Iniciava uma amizade, digna de um filme de sucesso. Homem de vastíssima cultura, não tive dificuldade em dialogarmos, versando desde a pré-história até nossos dias tempestuosos. O interesse foi recíproco em continuarmos a conversa do mais alto nível. 

Sendo um homem de muita sorte, tive o prazer de acolhê-lo como membro efetivo de nossa Casa de Cultura, quando me achava no exercício de meu segundo mandato como presidente da Academia Divinopolitana de Letras, numa noite memorável em 14 de dezembro de 2016. 

Sendo ele aquariano, pode-se constatar sua visão social e coletiva, odiando as pequenas rixas, por motivos fúteis, tendo o futuro a seus pés e o voo sempre invejando as águias. Sem desprezar os demais amigos fiéis, indubitavelmente encontrei um oásis em sua compreensão. Combatente feroz contra o racismo, ele me acolheu como um irmão. Estou certo de que qualquer Academia ou associações do gênero se sentem honradas em tê-lo em seus quadros. Por isso, integrando várias Academias, Braga sempre se torna o alvo das atenções, devido a sua performance cultural e seu carisma artístico. 

Homem de uma só mulher, me inspirou a escrever um poema sobre o casal Pardini & Braga (hoje conhecido duo musical), divulgado aos quatro ventos: 

Orfeu e Eurídice 

Rute Pardini  
desce aos portões do abismo 
e com seu canto sublime 
transporta ORFEU 
para o encontro com EURÍDICE... 
Cérbero e Perséfone, 
extasiados se emudecem... 
Hades 
outra alternativa não tem, 
ao ver a estrada de ouro 
no lugar dos portões que se fizeram pó... 
(Os amantes retornam 
ao mundo real)... 
Ainda hoje se ouve 
o mavioso canto de Rute Pardini, 
diante do imenso 
mar do BRAGA. 
 
Novamente a inspiração me visita como um pássaro e digo: 
 
O imenso mar do Braga 
possui uma ilha, 
feita de gratidão. 
O amigo 
agora é seu vizinho, 
que é o lar das gaivotas. 
 
     * Cronista e poeta, é membro da Academia Divinopolitana de Letras, Cadeira nº 15, Patrono: Humberto de Campos.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

NAPOLEÃO BONAPARTE E MARIA WALEWSKA


Por Danilo Gomes

Maria Waleska, por François Gérard. Palácio de Versailles. Wimedia Commons


No livro A vida íntima de Napoleão, Arthur Lévy escreve, à pág. 107: 
“Recém-chegado à capital da Polônia, Napoleão devia encontrar a única mulher que, nas suas aventuras extraconjugais, lhe provocou um sentimento de amor verdadeiro. Ele conheceu em Varsóvia o único idílio de toda a sua vida. Foi somente aí que, pela primeira vez, Napoleão travou contato com as delícias de um amor verdadeiramente correspondido. Nem Josefina, como já vimos, nem Maria Luísa, como veremos dentro em pouco, tiveram para com o imperador a afeição profunda e sincera de Madame Walewska. (...) Ela tinha vinte e dois anos, era loura, de olhos azuis, e a pele de uma brancura sedutora. Madame Walewska não era alta, mas possuía um corpo de linhas perfeitas e de porte encantador. Uma leve aparência de melancolia, que transparecia em toda sua pessoa, tornava-a mais sedutora ainda. Recentemente casada com um nobre idoso, de temperamento de costumes extremamente rígidos, ela deu a Napoleão a impressão de ser uma mulher sacrificada, infeliz no casamento. Esta ideia fez crescer no imperador o interesse apaixonado que Madame Walewska lhe inspirou desde que ele a viu.”
Napoleão tinha 37 anos. A Polônia precisava de sua proteção. Varsóvia tomou conhecimento do romance. Desconfiada, Josefina queria ir a Varsóvia e o imperador lhe recomendava as muitas inconveniências da viagem. Autoridades polonesas e – dizem alguns historiadores – até o velho marido ranzinza estimularam Madame Walewska a se jogar nos braços do ardente petit caporal corso. Prossegue Arthur Lévy, à pág. 111: 
“O amor de Madame Walewska para com Bonaparte não se extinguiu. Além de dar-lhe a imensa alegria de torná-lo pai, ela nunca lhe causou o menor aborrecimento. Madame Walewska manteve-se na obscuridade durante toda a duração do reino imperial. Não a vemos reaparecer senão nos momentos de sofrimento, quando sente que seu amante tem necessidade de palavras consoladoras, já então batido pelos golpes dos reveses e decepções espantosos ! Vemo-la então dirigir-se para a ilha de Elba, para levar algum consolo ao exilado que rolara das alturas, sem prestígio e sem fortuna ! Esta figura de mulher constante, desinteressada, sensível à desgraça, paira como um anjo acima das deserções, das vilanias e das traições que vemos acumular de todos os lados quando se inicia o declínio da estrela de Napoleão.” (Tradução de Emil Farhat para a edição brasileira, Companhia Editora Nacional, 1943; a 1ª edição francesa é de 1893, Napoléon intime.)

Na ilha de Elba, Napoleão, exilado, esperou em vão pela imperatriz Maria Luísa e pelo filho, dito o Rei de Roma, mas a bela princesa austríaca já estava de amores com seu patrício, um militar, o conde de Neipperg, com quem mais tarde se casaria. 

O historiador Arthur Lévy vai adiante, à pág. 136: 

“No melancólico exílio da ilha de Elba, aos dolorosos golpes sofridos vem acrescentar-se a ansiedade de receber nenhuma manifestação de afeição da parte de Maria Luísa e nenhuma notícia de seu filho adorado. O único testemunho de lealdade que Bonaparte receberá, para lhe aliviar a alma desolada lhe é dado por Madame Waleswska. Esta mulher nobre e desinteressada sentiu a distância, as pulsações dolorosas do coração de seu antigo amante e levou-lhe, no dia 1º de setembro, o doce consolo de seu amor. Ela permaneceu três dias em Marciana, findos os quais Napoleão ficou novamente na sua triste solidão.”

 

Em Napoleão - uma biografia política, do americano Steven Englund, traduzido no Brasil por Maria Luíza X. de A. Borges para a Zahar, Rio, 2005, 630 páginas, vamos encontrar estes trechos sobre a apaixonante beldade polonesa: 
“Ela foi apresentada a Napoleão em janeiro de 1807 com o mais cru dos propósitos: encorajada por patriotas (entre os quais, talvez, o próprio marido), deveria seduzir Napoleão ‘para a Causa’. (...) Por fim, a ‘esposa polonesa’ (Maria Walewska) fez uma rápida visita à ilha com o filho.”
O filho de Napoleão Bonaparte e Maria Walewska, Alexandre, nascido em 1810, mais tarde ficou conhecido como o conde Walewski (sobrenome do velho e rabugento marido de Maria). Ele, Alexandre, desempenhou um importante papel no Segundo Império francês (1852- 1870). Constant, o camarista, amigo e confidente de Napoleão, registrou em suas memórias estas palavras da bela polonesa sobre o imperador: 
“Todos os meus pensamentos, toda minha inspiração vêm dele e a ele retornam; ele é toda minha felicidade, meu futuro, minha vida.” (Apud Steven Englund, ob. cit.)

 

Dizem os especialistas em Napoleão I que o principal biógrafo de Maria Walewska é Antoine-Philippe-Rodolphe d'Ornano, 4º conde d’Ornano, autor de Marie Walewska, l' épouse polonaise de Napoléon, obra traduzida para o francês em 1938, aparecida originalmente em inglês em 1935 com o título The life and loves of Marie Walewska.
 
Eis a narrativa de Paul Johnson: 
“Ao atravessar triunfalmente a Polônia no inverno de 1806, um grupo de jovens bem-nascidas , vestidas de camponesas, fez-lhe [a Napoleão] uma serenata em uma das paradas da carruagem. A beleza de uma delas o impressionou, e ele mandou buscá-la para ser trazida à sua presença. Era uma jovem de 18 anos, mulher do idoso conde Walewski e mãe de um menino. Não desejava tornar-se amante de Bonaparte, mas as autoridades polonesas, o marido e a família exerceram intensa pressão para que concordasse. Disseram-lhe que a independência da Polônia dependia de sua compreensão.”

 Não reproduzo as palavras que se seguem por muito fortes...

 São ainda do excelente biógrafo Paul Johnson estas palavras: 

“A condessa Maria Walewska, entretanto, não seria a beneficiária. Recebeu ordens de voltar ao marido e registrar o filho como sendo dele (o conde Alexandre Walewski chegou a ser ministro do Exterior de Napoleão III). Bonaparte disse a seu irmão Lucien: “Minha preferência teria sido dar uma coroa a minha amante, mas razões de Estado obrigam-me a aliar-me com soberanos.”
Cabe acrescentar que Alexandre lutou pela independência da Polônia.
 
E mais: Maria Walewska tornou-se amante do imperador por amor à Pátria e depois se apaixonou por ele. Foi visitá-lo quando ele, derrotado, estava exilado na ilha de Elba. Segundo alguns autores, ela ficou hospedada com a mãe dele: consta que o imperador não deu à visitante a devida atenção. Embora os biógrafos não deixem de insinuar que ela foi o grande amor do imperador.
 
No seu livro (de 780 páginas) Napoleão - o homem atrás do mito, Adam Zamoyski declara, à pág. 442: 
“Na noite anterior, num baile oferecido por Talleyrand em um dos palácios de Varsóvia, Napoleão dançou com uma jovem que viu numa recepção dez dias antes e estava encantado. O nome dela era Maria Walewska. Tinha vinte anos e era casada com um septuagenário, e, apesar de não amar o marido, tinha princípios sólidos e acreditava na santidade do casamento.” (Tradução de Rogério Galindo para a Editora Planeta do Brasil - Crítica, São Paulo, 2020.) 
No vaivém desta narrativa (a vida política de Napoleão foi um rocambolesco tumulto, até que o Destino o fixou para sempre em seu último exílio: a longínqua e desolada ilha de Santa Helena), ainda temos espaço para um dos maiores biógrafos do famoso general, que morreu com apenas 51 anos. Refiro-me ao historiador inglês Vincent Cronin, autor de Napoleão – Uma vida.
 
Vincent Cronin (também biógrafo de Luís XIV e de Maria Antonieta) nos relata que Maria Walewska era filha de um nobre polonês que morreu em batalha quando ela era ainda criança; a família ficou praticamente arruinada e vivia numa “mansão sombria cheia de morcegos”. Ainda assim, ela teve aulas em casa com Nicholas Chopin, pai de Frederick. Foi expulsa de uma escola-convento por sua “obsessão por política”. Ela tinha retratos de Napoleão nas paredes de sua casa, pois o incluía entre seus heróis poloneses, uma vez que o imperador lutava contra a Rússia e a Prússia, inimigas da Polônia.
 
Napoleão tinha 27 anos e Maria, 20. Ela estava casada com um rico nobre 49 anos (escreve Vincent Cronin) mais velho que ela; esse casamento arranjado salvou a família da ruína total. Segundo nosso autor, Napoleão logo se encantou com Maria Walewska: 
“Napoleão foi atraído por seus cabelos cacheados claros, seus olhos azuis afastados, seu fogo juvenil.” 
A visita de Maria Walewska ao exilado Napoleão, na ilha de Elba, levando o filho deles, Alexandre, foi brevíssima. Vincent Cronin deixa claro que a amante polonesa não ficou hospedada com a mãe de Napoleão, Letícia Ramolino. Maria Walewska queria ficar em Elba, mesmo que numa casa afastada do bem-amado, ainda casado com Maria Luísa. Mas o imperador despachou-a de volta e com isso a valente polonesa ficou irada. Embarcou em Porto Longone, num brigue, para Nápoles, mesmo sob uma fortíssima tempestade. 
“O vento uivava, árvores tombaram. Napoleão, alarmado, enviou um mensageiro para chamar Marie [Vincent Cronin registra o nome Marie e não Maria] de volta, mas era tarde demais.”

 

O resto da história todos sabem. Napoleão fugiu de Elba, voltou a Paris, fez o chamado governo dos Cem Dias, foi derrotado por Wellington e Blucher na célebre batalha de Waterloo, renunciou no castelo de Malmaison e foi parar na remota ilha de Santa Helena, seu exílio final.
 
Com a palavra, ainda, Vincent Cronin, à pág. 407 de seu livro, na edição brasileira da Amarilys, Barueri, SP, 2013, trad. de Anna Lim e Lana Lim: 
“Napoleão passou cinco dias em Malmaison. Marie Walewska veio com seu filho dizer adeus, e implorou que ele permitisse que ela o seguisse no exílio.” 
Mas o imperador derrotado não queria complicar mais uma situação já bem complicada. Ele pretendia pedir asilo ao inimigo, o governo inglês, ou partir para a América. Nada disso deu certo. Seu terrível destino era Santa Helena, onde morreu depois de seis anos de sofrimento. Nunca mais veria seus filhos, sua ex-esposa Maria Luísa, sua antiga amante polonesa; nunca mais veria sua mãe ou seus irmãos e irmãs.
 
Vincent Cronin relata detalhadamente a morte de Napoleão Bonaparte. Deitado em sua cama rústica, na antiga fazenda em Longwood, o destronado imperador dos franceses agonizava: 
“Às 17h41 o sol se pôs e, à distância, ouviu-se o disparo de um canhão. Seis minutos depois Napoleão emitiu um suspiro. Este foi seguido, em intervalos de um minuto, por mais dois suspiros. Imediatamente após este terceiro suspiro, ele parou de respirar. Antommarchi gentilmente fechou seus olhos e parou o relógio. Eram 17h49 de 5 de maio de 1821 e Napoleão ainda não completara 52 anos.” 
François Antommarchi era um médico de 31 anos de idade, corso como o ilustre falecido. Causa da morte: câncer de estômago.
 
No fim da tarde, Hudson Lowe (futuro Sir Hudson Lowe), governador de Santa Helena, despachou pelo Oceano Atlântico o navio Heron, para levar à Inglaterra e ao mundo a notícia da morte de Napoleão Bonaparte.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

QUANTOS EUROS RECEBEU CAMÕES POR TER ESCRITO "OS LUSÍADAS"?


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
 
Este ensaio foi originalmente publicado no semanário EXPRESSO de Lisboa, edição de 27/01/2022, em comemoração do 450º aniversário da publicação de "OS LUSÍADAS" (1572-2022)
O valor da tença atribuída a Camões - uma análise comparativa feita por economistas em relação aos salários médios atuais e às tenças mais elevadas de que beneficiaram outros contemporâneos.
 
Capa da primeira edição de "OS LUSÍADAS"

Camões decidiu regressar a Lisboa em 1567. Trazia consigo o manuscrito de "Os Lusíadas", para o concluir e publicar. Partiu de Goa desgastado por intrigas, por raivas e por invejas. Foi julgado e condenado por não pagar uma dívida a um agiota. A prisão transformou-o radicalmente. Deixou de ser o homem enérgico e desenvolto que se movimentava quer na roda de fidalgos da Corte quer no Malcozinhado, a mais turbulenta tasca de Lisboa, frequentada por ruflas, prostitutas e outros marginais. O retrato desse tempo áureo apresentava-o “de corpo alto de estatura, largo das espáduas, de cabelo ruivo, no rosto sardo, torto de um dos olhos e de entendimento agudo e raro engenho”. 
 
Retrato póstumo de Luís de Camões, oferecido por Fernão Telles de 

Menezes a D. Luiz de Athayde, datado de Goa, 1581 
(Crédito: De Agostini / Getty images)
 
Para conseguir o dinheiro para a viagem contou com a disponibilidade de alguns amigos. Depois de 17 anos no Oriente e em África, desejava voltar a Lisboa. A Índia permitiu-lhe o convívio com o sábio Garcia de Orta (1501-1568), que o honrou com a primeira publicação de versos na abertura do “Colóquio dos Simples e das Drogas”, impresso em 1563 na oficina de Joannes de Endem, em Goa, e com o jovem cronista Diogo do Couto (1542-1616), que lhe preencheu tempos de ócio e registou para a História a realidade quotidiana da vida e da obra do poeta. Camões teve, ainda, outros amigos leais e afetuosos, mas, de resto, a Índia tornara-se “um imenso bolo de mel atacado por um espesso enxame de moscardos vorazes e zumbidores que se atropelavam a devorar quanto podiam”. Em suma: tal como escreveu Camões numa carta, “a Índia era mãe de vilões ruins e madrasta de homens honrados”. 
A viagem de regresso teve de ser interrompida, e Camões permaneceu em Moçambique e depois na ilha de Moçambique. O mar arrebatou alguns dos que lhe acudiram nas horas de infortúnio. Diogo do Couto relatou a situação de Camões em extrema penúria e marcado pelo sofrimento. Mas uma coisa é certa: na "dura Moçambique", para usar as próprias palavras de Camões, o poeta procedeu à revisão de "Os Lusíadas". 
Durante cerca de 25 anos elaborou a concessão do poema e o apuro da escrita. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, a propósito, afirmou: “Principiada com ímpeto juvenil, quando tudo parecia sorrir ao apaixonado e genial fidalgo-cavaleiro e quando o sol da pátria estava perto do seu apogeu, a epopeia foi adiantada devagar; após graves estudos e duras experiências, só saiu à luz quando a velhice batia à porta e as provas de decadência do país se haviam multiplicado.” 
Um dos seus biógrafos, Aquilino Ribeiro, evidencia “a agudeza de retina insuperável” de Camões quando faz a “anotação do real”. Isto só foi possível — observou — por ter sido “soldado raso, sujeito a todos os trabalhos da mareação, calejando os dedos a puxar as adriças, tressuando a dar à bomba e ouvindo, com torva, mas obediente cara, as ordens, descomposturas e impropérios” dos mestres das naus em que viajou. Daí a obra de Camões ser um relato “da sua vida incerta, precária, cheia de baldões e rica de polpa, tanto para o bem como para o mal”. 
“Os Lusíadas”, através dos dez cantos, recriaram as origens de Portugal e a evolução da sua história política, cultural, social, até ao descobrimento do caminho marítimo para a Índia. Camões teve atividade militar, bateu-se com valentia em Ceuta; no Oriente tomou parte na expedição contra o rei de Chembé; e esteve na expedição de vigilância dos estreitos de Meca e de Ormuz. Naufragou na foz do rio Macom. Envolveu-se na fúria dos combates em terra e no mar. Partilhou as horas de confusão e de fascínio em todos os oceanos e continentes. Da ilha de Moçambique embarcou, de novo, com destino a Lisboa, em novembro de 1569. Vinha “na matalotagem” de Antão de Noronha e também de Diogo do Couto, o cronista do “Soldado Prático” e das “Décadas”. 
 
A CHEGADA A CASCAIS 
 
Foram surpreendidos, ao atracar em Cascais a 7 de abril de 1570, com um surto de peste que grassava em Lisboa e arredores. Tamanha calamidade mantinha a população em sobressalto. Um documento da época descreve que, no ano anterior, o ano inesquecível da peste grande, não houve dia de junho, julho e agosto em que não falecessem 500, 600, 700 pessoas. Esgotaram-se os espaços dos adros das igrejas para as sepulturas. Daí alargarem-se outras covas para enterrar, em cada uma, dezenas de mortos. 
Correram, entretanto, vaticínios tenebrosos: uma sucessão de sismos arrasaria Lisboa — e com tal intensidade e tal violência que o Castelo de São Jorge se juntava ao Convento do Carmo. Um outro contemporâneo, o padre jesuíta Diogo de Carvalho, acerca dos boatos sobre os tremores de terra em Lisboa, referiu: “Não havia na cidade mais do que gritos, desmaios e andar a gente doida e sem siso. Ocupou a gente que desta cidade saía sete ou oito léguas ao redor de Lisboa, e porque não havia casas se punham pelos campos ao pé das oliveiras: e como não havia água e não iam providos de comer bastante [...] morrem por lá com fome, sede” e outras fatalidades. 
 
A CENSURA DA INQUISIÇÃO 
 
Camões aguardou em Cascais o momento propício para chegar a casa. Encontrava-se velho, doente, alquebrado, reduzido à miséria. Aos 45 anos tinha as marcas de um homem exausto e desamparado. Perdera a exuberância. Mas ganhara humanidade: “As estrelas e o fado sempre fero,/ com meu perpétuo dano se recreiam,/ mostrando-se potentes e indignados/ contra um corpo terreno,/ bicho da terra vil e tão pequeno.” 
Confrontava-se, ainda, com outra “peste”. A Inquisição, fundada em 1536, foi endurecida pelo Concílio de Trento (1545-1664), que estabeleceu regras e dogmas inflexíveis para as estruturas do Tribunal do Santo Ofício. Além do domínio eclesiástico, interferia em todos os sectores políticos, sociais e culturais. O terror prolongou-se até à eclosão da Revolução Liberal, em 1820. A população de Lisboa assaltou o Palácio, implantado onde viria a ficar o Teatro Nacional D. Maria II. A estátua da Fé, obra monumental de Machado de Castro voltada para o Rossio, foi apedrejada e destruída. Abriram os cárceres. Estava abolida a censura. 
Camões residiu — até à morte — entre a Mouraria e a Calçada de Santana, em cujo cemitério terá sido sepultado. Ficava a curta distância da Igreja de São Domingos, a ordem religiosa que tinha a seu cargo o funcionamento da Inquisição e abrangia, portanto, a censura literária. Alguns eruditos admitem que Luís de Camões — garantido o apoio de um mecenas — aproximou-se dos Dominicanos, como visita assídua, para trocar impressões acerca dos temas mais escaldantes de “Os Lusíadas”. Terá sido a primeira leitura crítica, antes de requerer, nos termos habituais, a censura oficial. 
Coube depois a frei Bartolomeu Ferreira fazer o exame. Admitem alguns eruditos, como Sousa Viterbo, que houve conversações e reajustamentos entre o censor e o autor. No despacho que exarou frei Bartolomeu Ferreira pode ler-se: “Não achei neles [“Os Lusíadas”] cousa alguma escandalosa, nem contrária à fé e aos bons costumes.” A justificação sobre as narrativas pagãs, os versos incendiados de exaltação sexual, nomeadamente no Canto Nono, o da ilha dos Amores, salientou: “Como, isto é, poesia e fingimento, e o autor, como poeta, não pretende mais que ornar o estilo poético, não tivemos por inconveniente ir esta fábula na obra. E por isso me parece o livro digno de se imprimir, e o autor mostra nele muito engenho e muita erudição nas ciências humanas.” 
Ultrapassados estes requisitos imprescindíveis, Camões solicitou à Mesa dos Desembargadores do Paço e ao regedor da Justiça a licença para impressão. Um alvará régio, de 4 de setembro de 1571, não só autorizou a impressão como garantiu, a favor de Luís de Camões, a propriedade literária por dez anos. 
 
O EDITOR DA COSTA DO CASTELO 
 
Ao tempo havia 16 oficinas em Lisboa. Uma das autoridades na matéria, António Joaquim Anselmo (“Bibliografia das Obras Impressas em Portugal no Século XVI”, Biblioteca Nacional, 1926), enumera desde as mais famosas até às mais modestas. Camões optou por António Gonçalves, com oficina própria na Costa do Castelo. Não tinha o prestígio de outros impressores que lançaram obras de personalidades de relevo oficial, hoje colocadas na devida dimensão perante a grandeza do génio de Camões. 
António Gonçalves, segundo António Joaquim Anselmo, depois de “Os Lusíadas”, foi impressor de Jorge Arco, bispo de Lisboa. Depois editou, por exemplo, em 1573 o “Comentário do Cerco de Goa e Chaul”, de António de Castilho, em 1574 o “Sucesso do Segundo Cerco de Diu”, de Herónymo Corte Real, e em 1576 a “História da Prouíncia Sãcta Cruz”, de Pero de Magalhães de Gandavo. 
Publicaram-se, em 1572, duas edições de “Os Lusíadas”, sem qualquer prefácio e dedicatória. Apenas se refere na primeira página: “Com privilégio real. Impressos em Lisboa com licença da Santa Inquisição e do Ordinário: em casa de Antonio Gonçalvez, Impressor.” Existem nas edições de 1572 assinaláveis diferenças, a começar pela capa: a disposição do pelicano. Os investigadores de estudos camonianos indicaram: no alto da portada, o pelicano tem o bico voltado para a esquerda de quem olha; na outra edição, o mesmo pelicano tem o bico voltado para a direita. 
Mas logo nas primeiras estrofes verificam-se alterações relevantes. Serão erros de impressão ou o poeta quis modificar o texto? Entre os investigadores portugueses que nos séculos XIX e XX escreveram sobre Camões destacam-se, entre outros, os estudos biográficos, as interpretações críticas e a coordenação editorial do visconde de Juromenha, Teófilo Braga, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Sousa Viterbo, José Maria Rodrigues, Epifânio Dias, Hernâni Cidade, António José Saraiva, José Hermano Saraiva e Jorge de Sena. Mais próximo de nós temos os estudos de Vítor Aguiar e Silva e Maria Vitalina Leal de Matos. 
Todavia, David Jackson, ao consultar 34 exemplares de “Os Lusíadas” de 1572, não só em Portugal e no Brasil mas em bibliotecas públicas e privadas dos Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Espanha, França e Alemanha, detetou, nos respetivos textos, mais de duas mil diferenças. E numa longa entrevista que me concedeu, para o “Diário de Notícias”, David Jackson, na altura professor da Universidade de Yale, pronunciou-se acerca da tradicional controvérsia em torno das edições de 1572. 
No seu entender, não terá havido duas edições, “mas apenas uma grande sequência da impressão com numerosas correções e, ainda, novos erros”; a diferenciação não se reduz ao pelicano incluído na portada, umas vezes virado à esquerda e outras à direita; nem se deverá circunscrever a E e EE, classificação de José Maria Rodrigues, em 1921, correspondente às variantes do verso 7 da primeira estrofe do primeiro canto. 
 
O REI, O ALVARÁ E A TENÇA 
 
Garrett, no poema “Camões”, publicado em 1820, contribuiu para uma visão romântica, lendária e fabulosa da vida e da obra de Camões, que virá a ser desmontada por muitos dos eruditos que recorreram às fontes documentais. O pintor António Carneiro (1872-1930) imaginou a leitura aos frades de São Domingos. Outros artistas imaginaram a leitura ao rei D. Sebastião. 
Contudo, não resta dúvida de que Camões deu conhecimento de “Os Lusíadas” ao rei D. Sebastião. A obra define os contornos de Portugal, seguindo a disposição do cartógrafo Álvaro Seco no primeiro mapa impresso (1561) que representou a nossa extensão geográfica e que se mantém até hoje: “Eis aqui, quase cume da cabeça/ da Europa toda, o Reino Lusitano,/ onde a terra se acaba e o mar começa.” É com orgulho que Camões a identifica: “Esta é a ditosa Pátria minha amada.” 
Camões celebrou a ação dos portugueses nas descobertas e conquistas: “Assim fomos abrindo aqueles mares,/ que geração alguma não abriu,/ as novas ilhas vendo e os novos ares/ que o generoso Henrique descobriu.” Ao dirigir-se a D. Sebastião, incentiva o rei a defender Portugal entre os povos europeus: “Fazei, Senhor, que nunca os admirados/ alemães, galos, ítalos e ingleses,/ possam dizer que são pera mandados,/ mais que para mandar, os Portugueses.” 
Encontra-se na Torre do Tombo o alvará lavrado a 27 de julho de 1572 que, em nome do rei D. Sebastião, atribuiu a Camões uma tença, tendo em apreço o serviço prestado “nas partes da Índia, por muitos anos e aos que ao diante me fará e a informação que tenho do seu engenho e habilidade e suficiência [sic] que mostrou no livro que fez das cousas da India [sic]. Hei por bem e me praz de lhe fazer mercê de quinze mil réis de tença em cada um ano [...] a contar de doze dias do mês de Março deste ano presente de mil quinhentos e setenta e dois em diante e a serem pagos no meu Tesoureiro-Mor ou quem seu cargo servir”.
 
200 EUROS POR MÊS?
Três análises comparativas da equivalência, em moeda atual, da tença de 15 mil réis por ano atribuída pelo rei D. Sebastião. 
 
A agenda cultural de 2022-2023, no âmbito das comemorações dos 450 anos da publicação de “Os Lusíadas”, tem realizado em todo o país conferências, debates, até exposições e organização de percursos e, ao mesmo tempo, tem promovido no estrangeiro idênticas atividades culturais onde existem núcleos de ensino, de investigação e de difusão da língua portuguesa. 
Estão por esclarecer aspetos fundamentais da vida e da obra de Camões. Quando nasceu? Terá sido em 1524 ou em 1525? E onde nasceu? Terá sido em Lisboa? Quando faleceu em Lisboa? Terá sido em 1579 ou em 1580? Como sentiu a derrota de Alcácer-Quibir e a morte de D. Sebastião? Como reagiu perante a sucessão e a morte do cardeal D. Henrique e as decisões nas Cortes de Lisboa e de Almeirim? Faleceu antes da invasão comandada pelo duque de Alba, as lutas de D. António Prior do Crato ou a entrada de Filipe I para integrar Portugal na Espanha? 
Um dos temas possíveis reside em saber o atual valor da tença de 15.000 réis por ano atribuída a Luís de Camões, a partir do alvará lavrado a “doze dias do mês de março de mil quinhentos e setenta e dois”; renovado por duas vezes ate à morte do poeta e que terá sido solicitado pela mãe, Ana de Sá, que lhe sobreviveu. 
 
TRÊS DEPOIMENTOS 
 
Para o efeito recorremos a autoridades na matéria: Nuno Alves, diretor do Gabinete de Estudos do Banco de Portugal, Maria Eugénia Mata, catedrática da Universidade Nova de Lisboa (que nos responderam por escrito), e Helena Garrido, jornalista de Economia e Finanças. Agradecemos os depoimentos prestados acerca deste tema bastante problemático. 
“Em relação à informação acerca da equivalência, em moeda atual, da tença anual de 15.000 réis (quinze mil réis) atribuída por D. Sebastião, o Departamento de Estudos Económicos calculou com um mínimo de fiabilidade a equivalência monetária”, declarou Nuno Alves. Reconheceu, todavia, que “constitui matéria complexa, para a qual não dispomos, infelizmente, de uma resposta direta. Não obstante, podemos recorrer a várias medidas que, apesar de mais ou menos simplistas, fornecem uma aproximação ao poder de compra dos 15.000 reais de 1572, quer atualmente, quer à época”. 
“Se combinarmos”, prosseguiu, “o índice de preços apresentado nas ‘Estatísticas Históricas Portuguesas’ (2001) com o Índice de Preços no Consumidor disponibilizado pelo Instituto Nacional de Estatística, os 15.000 reais de 1572 equivaleriam a cerca de 2200 euros de 2021. Porém, se optarmos pela paridade ouro desse valor (ou seja, o valor de mercado atual do ouro fino a que equivaliam, em 1572, os 15.000 reais), então a equivalência atual subiria para cerca de 5780 euros, assumindo o preço da onça à cotação de 1700 euros. Como o valor do ouro está em alta, poderíamos usar uma cotação pré-pandemia (p. e., €1300/onça), caso em que a equivalência desceria para cerca de 4400 euros, ainda assim o dobro do sugerido pela conjugação de índices.” Esclareceu Nuno Alves que “importa realçar que estes valores são meramente indicativos”. “Um alqueire de trigo poderia custar, em Évora, 100 a 200 reais. Tomando o preço mais elevado, a tença que refere permitiria adquirir 75 alqueires de trigo, ou cerca de 1050 litros. Em Lisboa, uma arroba de arroz poderia custar entre 580 a 772 reais, ou seja, a tença permitiria comprar entre 19,4 e 25,9 arrobas (286 a 380 kg). Seria ainda suficiente para adquirir mais de um quintal de pimenta (51 kg), que era um importante produto de reexportação na capital.” 
A concluir, referiu: “Comparemos ainda a tença com o ordenado de alguns oficiais da Casa da Moeda de Lisboa: o tesoureiro e o escrivão da casa auferiram ambos 30.000 reais (tal como um cirurgião no Hospital de Todos-os-Santos), o mestre da balança ganhava 20.000 reais e o conservador 15.000 reais.” Por último, Nuno Alves indicou, “para mais informações sobre preços históricos portugueses, a consulta do site ‘Prices, Wages and Rents in Portugal, 1300-1910’” (acessível através da ligação pwr-portugal.ics.ul.pt/). 
As mesmas questões foram submetidas ao critério de Maria Eugenia Mata, outra conceituada especialista na matéria. Respondeu-nos, também por escrito (recorrendo a Carlos Bastien, “Prices and Wages” in Nuno Valério; e ”Portuguese Historical Statistics”, Lisboa, INE, págs. 629-664), que entre 1580 e 1997 os preços multiplicaram-se por 19.235. Considerando também o índice de preços de 1997 até hoje e as mudanças para o escudo e para o euro, cada real de 1580 valerá hoje cerca de 15 a 16 cêntimos do euro”. 
“A tença de 15.000 réis”, acentuou Maria Eugenia Mata, “serão 2250 a 2400 euros, muito acima do rendimento médio português da época. Esse rendimento médio à época seria de 800 a 880 euros a preços de 2000 (segundo Nuno Valério, “Portuguese Economic Performance, 1850-2000” in J. Morilla, J. Hernández Andreu, J. L. García Ruiz, J. Ortiz-Villajos (organizadores), Homenaje a Gabriel Tortella, LID, Universidad de Alcalá, Alcalá de Henares, 2010, págs. 431-444). Possivelmente, concluiu Maria Eugénia Mata, “o problema seria a tença ser realmente paga”. 
 
QUATRO ASPETOS FUNDAMENTAIS 
 
A morte de Camões terá sido em 1579 ou em 1580. Assim ficou registado numa das entradas do dicionário temático “Camões”, nos textos de Maria Vitalina Leal de Matos, catedrática da Faculdade de Letras de Lisboa. Para saber os quantitativos mensais ou a totalidade do pagamento contactei Helena Garrido, que realçou quatro aspetos fundamentais nesta síntese. “Dificilmente conseguiremos um valor exato. Usaria os valores fornecidos por Nuno Alves e Maria Eugénia Mata, que são calculados com a evolução dos preços e a conversão para o euro. Diria que a tença de Camões está estimada entre 2200 e 2400 euros anuais, ou seja, de 183,3 euros a 200 euros mensais (dividido por 12). A utilização da cotação do ouro parece-me mais complicada.” 
Qual o poder de compra mensal dessa tença? “Usando os dados de Nuno Alves — uma arroba de arroz poderia custar entre 580 a 772 reais —, com essa tença de 15.000 reais ou 1250 reais por mês podia comprar no mínimo 2,1 arrobas de arroz (cerca de 30 kg de arroz, com a arroba a equivaler a 14.688 kg). Levando em conta o valor do rendimento médio na altura de 800 a 880 euros que se supõe anuais, Camões tinha uma tença que era, pelos mínimos, 2,75 vezes o rendimento médio. O rendimento disponível médio português em 2020 foi de 34.798 euros (INE, coligido pela Pordata), cerca de 2342 euros mensais, dividido por 14.” 
A questão formulada por Maria Eugénia Mata — “o problema seria a tença ser realmente paga” — tem pleno cabimento. O camoniano visconde de Juromenha assinalou no “Livro da Fazenda” que houve atrasos no pagamento. 
Uma última questão intensifica a polémica. O matemático e cosmógrafo Pedro Nunes, por lecionar ao infante D. Luís, recebia uma tença anual de 40.000 réis. Numa investigação sobre tenças, da autoria de Afonso Mexia, verifica-se, nomeadamente, que a tença paga a Afonso de Albuquerque era de 150.000 réis e a tença paga a João de Barros era de 400.000 réis. Todos os comentários são legítimos. E demonstram, através dos séculos, os critérios de avaliação do poder, em cada época, em relação aos protagonistas da cultura. Camões teve direito ao rendimento social mínimo. 
 
Foi muito? Foi pouco? O que representou em face de outras tenças? São alguns aspetos a pormenorizar, noutro local, desta retrospetiva camoniana. 
 
Com a informação disponível há 100 anos, Almada Negreiros emitiu este comentário fulminante na “Cena do Ódio”, ao interpelar “a pátria onde Camões morreu de fome/ e onde todos enchem a barriga de Camões!”. 
Se há uma maioria de opinião que elege “Os Lusíadas” como a obra máxima da cultura portuguesa da época, outros inclinam-se para a “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, e ainda outros para os relatos que constituem a “História Trágico-Marítima”. Embora não haja unanimidade de critério (e não esqueçamos que Eça de Queirós preferia as “Décadas”, de João de Barros, em vez de “Os Lusíadas”), há um ponto de convergência: a afirmação do “humanismo universalista” — definido por Jaime Cortesão — que caracteriza o português, em qualquer obra, ou em qualquer autor, mais conhecido ou menos conhecido, mas que exprime as contingências, os riscos e as proezas da viagem. A força de ousadia e a capacidade de irradiação através do Velho Mundo e Novo Mundo. 
“Os Lusíadas” constituem à escala nacional e internacional o exemplo mais significativo. 
 
Portugal e os portugueses continuam dentro de “Os Lusíadas”. Camões menciona qualidades e não oculta defeitos no comportamento do povo português. 
 
Sentimentos nobres como a generosidade, a coragem e a honra. Defeitos lamentáveis como o suborno, a corrupção e a inveja. Também fixou a língua portuguesa que falamos hoje e seguiu de perto os grandes problemas do seu tempo, muitos dos quais continuaram a ser objeto de reflexão das gerações seguintes. É um moderno perante os clássicos e um clássico perante os modernos. 
 
* Investigador, jornalista em Portugal (carteira profissional nº 1), sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente (Cadeira nº 3) da Academia Brasileira de Letras.

Colaborador: ANTÓNIO VALDEMAR

 

ANTÓNIO VALDEMAR nasceu em Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, Açores, em 18 de março de 1938; é jornalista profissional e investigador. Repórter do quotidiano e analista e crítico de questões culturais e cívicas, a sua investigação e abordagem circunscrevem–se, ao âmbito da língua e literatura portuguesa e da literatura brasileira; da literatura francesa e da literatura espanhola; da valorização e defesa do patrimônio, á historia e problemática da cidade de Lisboa e da região dos Açores. Autor de livros sobre história, literatura, arte e patrimônio. Radicou-se em Lisboa desde 1953, ano em que ingressou no Colégio Moderno e se tornou amigo de Mário Soares, como o antigo Presidente da República reconheceu no prefácio de uma obra do autor intitulada "República em Loures a 4 de Outubro". Regressado aos Açores em 1957, voltou definitivamente à capital, em 1959, para iniciar o seu percurso jornalístico no jornal República

Jornalismo 

Foi repórter do jornal República, onde iniciou a sua atividade em 1959; e redator do Diário de Notícias, a partir de 1960; d’ A Capital (integrou o grupo fundador, em 1967/70); chefe da redação, da Vida Mundial e de O Primeiro de Janeiro, substituindo Jaime Brasil (1968-1980), na chefia da redação deste jornal em Lisboa. Possui, desde 2019, a carteira profissional número 1. Exerceu funções no Conselho Geral do Sindicato dos Jornalistas. Orientou em diversos locais do País cursos de Comunicação Social e de Cultura Portuguesa (séculos XIX e XX); lecionou jornalismo no Instituto Politécnico de Santarém; e participou no desenvolvimento do programa de incentivo ao livro e à leitura. Manteve colunas semanais no Diário de Notícias e no Diário Popular.

Academias 

Pertence à Academia das Ciências, desde 1993 e é sócio efetivo da Classe de Letras, desde 2006 (sétima secção que, ao ser criada, neste ano, incluiu, pela primeira vez, de forma explicita, a comunicação social, a ciência politica, as ciências musicais, a analise geo-estratégica, os estudos bíblicos e a exegese religiosa e, ainda, a defesa e valorização da lusofonia). 
Também faz parte da Academia Portuguesa de História, 1998; e integra a Academia Nacional de Belas Artes, desde 1982, correspondente, efetivo a partir de 1985, (vice presidente de 1997 a 2007 e presidente, em dois mandatos de 2007 a 2015). Foi designado representante de 1987 a 2014, em Portugal e no estrangeiro da Academia Nacional de Belas-Artes no Conselho Europeu das Academias de Belas-Artes. Foi designado o representante oficial da Academia das Ciências de Lisboa e da Academia Nacional de Belas Artes, nas comemorações nacionais, do centenário da Republica. 
Ainda é o titular, desde 2013, da cadeira nº 3 dos sócios correspondentes portugueses da Academia Brasileira de Letras. 

Edições, Publicações 

Dentre muitas outras, destacam-se as seguintes: 
Lisboa na Poesia e na Prosa, 1966, antologia de autores portugueses, em coautoria com Tomaz Ribas, Edição Bertrand 
O Centenário de Camões de 1880, 1981, inserido in Estudos Sobre Camões, Imprensa Nacional Casa da Moeda 
Garrett, vida e Obra, 1999, Clube do Colecionador 
Nemésio, sem limite de idade, 2001, Clube do colecionador 
Tentativas da Introdução da Tipografia no Brasil, 2007, Edição Imprensa Nacional Casa da Moeda 
O Iluminismo Luso-Brasileiro, 2007, Edição Academia das Ciências de Lisboa e Academia Brasileira de Letras 
República em Loures a 4 de Outubro, 2010, com prefácio de “Mário Soares”, Edição Assembleia Municipal de Loures 
José Leite de Vasconcelos (1858-1941): Peregrino do Saber, 2015, em coautoria com Abel Baptista et al, Imprensa Nacional Casa da Moeda 
 
Condecorações 
 
Comendador da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada - 1991 (Presidente Mário Soares – no dia de Portugal); Grande-Oficial da Ordem do Mérito - 2000 (Presidente Jorge Sampaio); Ordem do Cruzeiro do Sul, Oficial, (Presidente Fernando Henrique Cardoso); Medalha de Honra, Sociedade Portuguesa de Autores, 2008 (atribuída, por unanimidade) 
 
Atividade atual 
 
Integrou o grupo de trabalho que elaborou, em 2007, o Campeonato da Língua Portuguesa, promovido pelo jornal Expresso. Escreve presentemente no jornal Público e na Revista do Expresso.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

TRAGÉDIA NA FLORESTA AMAZÔNICA


Por TARCÍZIO DINOÁ MEDEIROS
 
Este artigo foi originalmente publicado na COLETÂNEA 2017 da Academia de Letras de Brasília, da qual o autor foi também revisor e organizador. 

Coletânea 2017 da Academia de Letras de Brasília

 

A tragédia de que trato aqui e da qual escapei (confesso que independentemente de minha vontade ou de minha decisão pessoal), aconteceu meio século atrás, conforme vou contar, de modo bem pormenorizado. 

Havia naquele tempo, em Roraima, onde então eu morava por força do meu trabalho, o padre Calleri, italiano de nascimento, com nome de batismo Giovani, aportuguesado para João – padre João Calleri, como era conhecido. Era ele membro do Instituto Missionários da Consolata e dirigia a Missão Catrimâni, dos índios ianomâmis. 

Ele foi contatado, em 1967, e convidado, em 1968, pelo Chefe do 1º Distrito Rodoviário Federal, sediado em Manaus, unidade do antigo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), com o aval do seu Diretor-Geral, do presidente da FUNAI e do Ministro do Interior, para tentar aproximação com os índios que viviam no trajeto por onde passaria um trecho da estrada BR-174 (Manaus-Boa Vista-fronteira da Venezuela), com o objetivo de transferi-los para outra área ou convencê-los de que a abertura da estrada não os prejudicaria. 

Na realidade, eram aqueles índios os uaimiris-atroaris, considerados, naquela época, ferozes e intransigentes na defesa do seu território, e que, se dizia, não poupavam quem o invadisse. 

O padre aceitou a incumbência e passou a preparar a sua expedição pacificadora, com urgência, uma vez que a frente de trabalho de desmatamento e terraplenagem da empresa contratada para a construção daquela estrada, no trecho Manaus-Caracaraí, já estava próxima do limite da área ocupada por aqueles índios e havia paralisado suas atividades. 

Em fins de setembro de 1968, o padre Calleri esteve em minha residência, em Boa Vista, falou da expedição e me convidou para acompanhá-lo por trinta dias naquela missão, para fazer a cobertura fotográfica da viagem e dos primeiros contatos com os índios. 

Aceitei o convite. Eu era aficionado da arte fotográfica, possuía excelente equipamento, que ainda tenho guardado (uma câmera Leica, com lente Zeiss, grande angular e teleobjetiva, e uma Nikormat FT, também com teleobjetiva, lentes para close-up e macrofotografia e diversos filtros). Ele sabia de minha paixão pela fotografia, e me conhecia bem, porque me havia encontrado na sede da Prelazia várias vezes e eu havia estado na sua missão do Catrimâni onde conseguira excelentes fotos dos índios ianomâmis. 

Combinamos que eu levaria filmes para fotos em preto e branco, slides (diapositivos) e filmes coloridos – estes eram os que eu menos utilizava, porque não eram revelados em Boa Vista e nem em Manaus (embora houvesse em Boa Vista alguns fotógrafos com laboratório para revelação de filme preto e branco de terceiros, eu tinha meu próprio laboratório em minha casa; mas os slides eram enviados para Georgetown, na Guiana, e daí iam para Londres ou Nova Iorque – em duas ou três semanas recebia-os de volta, com revelação de excelente qualidade). 

Viajei, no dia seguinte, a Manaus, para solicitar ao Inspetor da Alfândega, a quem era subordinado, conceder-me um período de férias, a partir de 15 de outubro, e aleguei, o que era verdade, jamais haver usufruído daquele direito estatutário. 

O Inspetor era Milton Bittencourt Cantanhede, funcionário exemplar, competente, sério e honestíssimo, educado, já no topo da carreira, muito querido e respeitado tanto pelos funcionários como pela sociedade. 

Perguntou-me ele o motivo de eu querer as férias assim tão de repente. Falei-lhe da expedição que se organizava. Ouviu-me, paciente e atenciosamente. E deu a decisão: 

– Não posso dar-lhe férias agora. É um direito seu gozar férias, porém, nem as requeira, porque negarei. Não disponho de quem possa substituí-lo em Boa Vista, assim de imediato. 

Tomei um susto e respondi-lhe: 

– Pois, então, vou requerer meu direito junto ao Diretor-Geral, no Rio de Janeiro. 

E ele, sem se alterar, falando baixo e mansinho, como sempre: 

– O Diretor-Geral mandará, com certeza, ouvir-me no processo e informar-lhe-ei da real dificuldade de substituí-lo no período requerido. 

Antes que eu protestasse, ele continuou: 

– Dinoá, você já me falou, antes, que visita as tribos de Roraima e fotografa índios. Eu sou de Manaus, conheço a história do Amazonas e sei que os índios da região do rio Jauaperi e seus afluentes estão sempre em guerra com quem invade seu território e contra os brancos, até por vingança, por causa de antigas expedições punitivas organizadas por governos do Amazonas, desde quando era província e, depois, mesmo quando já Estado da Federação. Eles estão em um estágio diferente dos índios das missões de Roraima. Você não tem ideia de como eles são. E se lhe acontecer algum infortúnio na expedição, vou ter remorso por não lhe haver negado as férias. 

Voltei para Boa Vista e comuniquei ao padre Calleri, com tristeza e até um pouco de revolta, não haver conseguido as férias. 

Antes de o padre viajar para Manaus, a fim de iniciar sua aventura, despediu-se de mim e me deu um exemplar do projeto Pacificação Waimiris Atroaris, o qual guardo até hoje. No projeto, muito simples, estava prevista a expedição ser composta por doze pessoas, das quais nove eram homens, incluídos o próprio padre, e mais três mulheres. 

Havia sido combinado concentrarem-se todos os membros da expedição no acampamento mantido pelo Departamento de Estradas de Rodagem do Amazonas (DER–AM), no rio Abonari, para onde alguns foram de avião ou de helicóptero, e, outros, por via fluvial, levando embarcações com equipamentos e utensílios, mantimentos para trinta dias pelo menos, e presentes para os índios. O acampamento do DER–AM distava um pouco mais de duzentos quilômetros de Manaus. 

Daí, a partir do citado acampamento, no dia 22 de outubro, de manhã, a expedição iniciou sua viagem. 

À tarde, foi alcançado o acampamento da construtora da estrada, de onde estavam sendo evacuados os trabalhadores, e, em seguida, a expedição chegou ao igarapé Santo Antônio do Abonari, onde acampou. 

O grupo, previsto no projeto a ser composto por doze pessoas, contava com só dez (um homem – eu – e uma mulher deixaram de incorporar-se), e era integrado pelo padre Calleri e mais Aragão Rodrigues de Oliveira e sua mulher, Marina Pinto da Silva; Benigno Ribeiro Mendes (Piauí); Francisco Eduardo de Oliveira; João Geraldo de Oliveira (Cara de Onça); Manuel Mariano Ferreira; Manuel Nascimento Filho; Maria Mercedes Sales; e Álvaro Paulo da Silva, chamado Paulo Mineiro, cujo papel seria relevante para o êxito ou o fracasso da expedição, como se verá. 

À noite, o padre Calleri expediu a primeira mensagem pelo rádio, e deu notícia do itinerário percorrido até o acampamento do igarapé Santo Antônio. 

Em Boa Vista, íamos à sede da Prelazia, todas as noites, Júlio Augusto Magalhães Martins, eu e, às vezes, mais alguma outra pessoa, para, juntos com Dom Servílio Conti, Bispo Prelado, ouvir, pelo rádio, o padre Calleri – o rádio de que dispúnhamos tinha só áudio, não havia como falar com ele; só podíamos ouvi-lo e o fazíamos com especial atenção. 

No dia seguinte, 23 de outubro, a expedição avançou até entrar onde começava o território dos índios, e, antes do meio-dia, acampou na margem direita do mesmo igarapé Santo Antônio. 

Aí foi feito o acampamento-base, onde se descarregaram os mantimentos, utensílios e muitos presentes para os índios. Na outra margem havia várias ubás (canoas feitas de troncos de árvores), mais de dez, e, um pouco para dentro, uma maloca queimada. Foram dados tiros para o alto, com o fito de avisar aos índios a sua presença. 

No outro dia cedo, o padre deixou cinco homens e uma mulher a cuidar daquele acampamento-base e prosseguiu por água, com os outros, na canoa com motor de popa, e levando o rádio. Paulo Mineiro aconselhara, e insistira, que o padre fosse por terra, seguindo a trilha que saía da maloca queimada. Mas o padre preferiu, prudentemente, ir por água, por ser “território neutro”. 

Havia chovido muito, e o avanço foi difícil. Lembro-me que o padre disse, pelo rádio, não haver ainda visto índios, mas sentia o grupo ser observado por eles. 

Pernoitaram num charco. Na manhã do outro dia, 25, o grupo prosseguiu a viagem e, no fim da tarde, avistou a primeira maloca habitada pelos índios que procuravam. O grupo acampou a cerca de um quilômetro da maloca, na margem oposta do igarapé. 

No dia 26, de manhã, o acampamento foi mudado para a outra margem, mas bem em frente à maloca atroari. 

Aproximaram-se os índios, arredios e desconfiados. Por gestos, padre Calleri demonstrou-lhes ser amigo. Eles ofereceram-lhe banana e beiju, mas não lhe permitiram entrar na maloca. Como haviam visto alguns presentes na canoa, os índios quiseram pegá-los. Calleri, porém, com jeito, convenceu-os a descarregar a canoa, o que fizeram, e prepararam um lugar ao lado da maloca para depositar os presentes. 

Depois, os índios construíram uma boa e grande armação de palhoça para o grupo, um pouco distante da maloca. No meio da tarde ofereceram bebida – o padre calculou uns noventa índios ao redor do seu grupo. À tardinha foram distribuídos os presentes. O padre aproveitou aquele momento de euforia e conseguiu entrar na maloca. À noite, pelo rádio, narrou os acontecimentos daquele dia. Informou estar tudo bem, e que o tuxaua daquela maloca – Maroaga, era o seu nome para os brancos, e, soube-se depois, Sapata, para os índios – passara sua saliva nos lábios do padre, e molhara o dedo na saliva do padre e o levara aos próprios lábios, em sinal de amizade. E disse o padre, ainda, ter contado mais de cem redes na maloca. 

Por quatro dias seguidos, não houve qualquer mensagem dele. Ficamos apreensivos. O que teria acontecido? Finalmente, o rádio voltou ao ar no dia 31 – houvera uma pane, Cara de Onça fizera o possível e o impossível até consertar o aparelho, mas a gasolina para o gerador chegara ao fim, e tiveram necessidade de buscá-la no acampamento do DER-AM. 

Então ficamos sabendo que o padre deixara os outros três membros do grupo na palhoça perto da maloca e fora, com um grupo de índios, buscar o resto da bagagem e também os outros companheiros (entre estes, Paulo Mineiro) que haviam ficado no acampamento-base, distante quase quarenta quilômetros. 

O padre informou ter feito duas viagens com os índios para buscar o que ficara naquele pouso anterior, e que, agora, todos os membros da expedição já estavam no acampamento da maloca atroari. Notamos ele estar demonstrando preocupação, ao dizer haver sabido que aqueles índios quando andavam pelo rio Uatumã e encontravam caçadores ou seringueiros tratavam-nos muito bem, recebiam presentes e, então, depois, matavam-nos. ¹

Disse, mais, que, naquele dia, talvez os índios achassem os membros do grupo serem seringueiros. E ressaltou, também, que os estava achando muito estranhos, porque ora faziam sinais de amizade, ora sinais de guerra, batendo nas próprias nádegas, alternados com sinais de amizade e novos sinais de guerra. Terminou dizendo que, de madrugada, havia abandonado a expedição o mais experiente dos mateiros. Não citou seu nome. Referia-se, porém, a Álvaro Paulo da Silva, Paulo Mineiro. Era 31 de outubro de 1968. 

Foi esta a última transmissão do rádio da expedição Calleri. 

Voltamos, Júlio Martins e eu, todas as noites seguintes à sede da Prelazia, na vã esperança de que só tivesse ocorrido uma nova pane no rádio, e que ele houvesse sido consertado durante o dia, como acontecera poucos dias antes. 

No quarto ou quinto dia sem qualquer comunicação, Dom Servílio Conti viajou a Manaus, a fim de movimentar autoridades no sentido de conseguir localizar a expedição. 

Havia em Manaus uma amiga do padre Calleri, freira da Congregação das Irmãs Missionárias Capuchinhas, de nome Hugolina Maria, que também acompanhava o trajeto da expedição e sempre estava em contato com o Serviço de Rádio do DER/AM, tanto para apanhar mensagens enviadas pelo padre como, também, para levar notícias a serem transmitidas a ele. 

A freira começou, logo, a movimentar-se. Foi à Delegacia da FUNAI, onde lhe disseram que, possivelmente, o rádio estava novamente em pane; em outra visita disseram-lhe a expedição estar, talvez, voltando para Manaus. 

O Chefe do 1º Distrito Rodoviário Federal, engenheiro Altamiro Veríssimo da Silveira, também estava muito preocupado e mandou um avião sobrevoar toda a área onde poderia estar a expedição. Contudo, o mau tempo, as nuvens baixas e a floresta fechada não deixaram nada ser visto. Em 15 de novembro, ele telegrafou ao Bispo Prelado de Roraima e, praticamente, informou dar a expedição como perdida. 

Por meio de telefonemas a várias autoridades, conseguiu o engenheiro que fosse acionado o PARA-SAR, da Força Aérea, que iniciou sua participação no episódio a partir do dia 20, logo após uma de suas equipes chegar a Manaus. 

* * * 

Cinco dias antes, no dia 15, Paulo Mineiro descia o rio Uatumã, numa canoa, com dois caçadores, e foi ao encontro do barco Alfredinho, que havia levado carga da expedição Calleri até o acampamento-base e, agora, prestava serviço a dois geólogos do Departamento Nacional de Produção Mineral, os quais faziam pesquisas na área banhada por aquele rio. 

Paulo Mineiro passou para o barco e os outros dois homens seguiram rio abaixo. Aos dois geólogos e ao barqueiro ele disse, mentirosamente, haver pedido desligamento da expedição, porque o padre tratava os índios muito mal e ele previra uma chacina; e que a canoa na qual viajava afundara, aqueles dois caçadores o haviam salvado e prontificaram-se a levá-lo ao Alfredinho. Ele ficou no barco até o dia 23 (novembro), quando os geólogos, terminada a pesquisa, levaram-no a Itacoatiara, na margem do rio Amazonas. 

Ao chegar a essa cidade, Paulo Mineiro telefonou para a freira que mencionei acima, Irmã Hugolina, e perguntou-lhe, para surpresa dela, se a expedição já estava em Manaus. 

No barco, ele havia contado ter abandonado a expedição com autorização do padre Calleri, com quem estava na maloca queimada no dia 31. Aí havia ficado, para descer o rio, mas de madrugada, resolveu ir à maloca de Maroaga para ver como estavam as coisas – ao chegar, logo viu dois cadáveres, e, por isto, escondeu-se, e, à noite, conseguiu fugir até o acampamento-base, onde deixara uma pequena canoa que ele mesmo fizera do tronco de uma seringueira. 

Depois de muito remar, contava ele, sempre perseguido pelos índios, que o seguiam por terra, teve a má sorte de a canoa ter virado – então, passou a correr por terra, de dia, e escondia-se, quando possível, até ser encontrado pelos dois caçadores que o haviam levado para o Alfredinho. Ele dissera, ainda, aos deste barco, não saber se alguém mais havia escapado. 

Depois, os dois caçadores que o haviam conduzido até o Alfredinho disseram já ter avistado Paulo Mineiro antes, a 9 de novembro, em uma canoa com um homem branco, a quem já haviam visto com mais outro homem, em uma barreira do rio – os dois, na ocasião, disseram-lhes ser fiscais de caça e pesca, e que tinham mais dois companheiros de trabalho que não estavam ali, naquele momento, porque se haviam embrenhado na floresta. 

Pois bem, disseram os dois caçadores, depois, que quando Paulo Mineiro lhes pediu ajuda estava acompanhado do mesmo homem com quem eles o haviam visto no dia 9. 

Aos membros do PARA-SAR, Paulo Mineiro disse os índios haverem atacado a expedição e ele não saber se alguém mais havia escapado, e que se demorara por dois dias no acampamento da construtora da estrada aguardando se alguém mais conseguira fugir dos índios. Mas, à sua mulher, diria haver voltado à maloca de Maroaga e que vira toda a expedição ter sido trucidada. 

Ele foi, então, incorporado à equipe do PARA-SAR, como conhecedor que era da região e da maloca atroari. 

A esta altura, já se havia constatado, por avião, terem os índios feito uma nova maloca ao lado da anterior. 

A FUNAI mandou, então, para Manaus o seu talvez mais experiente indigenista, João Américo Peret. No dia 24, o tempo estava bom, e o PARA-SAR, com um helicóptero e um avião Catalina, foi à maloca atroari. 

Lá, o helicóptero baixou, permaneceu com as hélices ligadas, cinco militares e Paulo Mineiro desceram. O Catalina, com Américo Peret a bordo, ficou fazendo círculos sobre a área, como apoio para o caso de alguma emergência. 

A equipe de terra se demorou 45 minutos e, além de não ver índios, nada detectou, exceto “cantos de aves e barulho de animais na mata”, como teria constado do relatório da viagem, o que levou Américo Peret a deduzir aquele pessoal nada entender de índios e, menos ainda, de floresta, pois o barulho das hélices do helicóptero e o do catalina teriam afastado as aves e os animais, para longe. Os sons ouvidos por eles teriam sido produzidos pelos próprios índios, os quais se achavam escondidos e, possivelmente, muito próximos dos visitantes. 

No dia 26, o tempo estava bom, novamente. Repetiu-se idêntica operação, sem qualquer outro resultado, além de os paraquedistas constatarem que, possivelmente, a expedição partira às pressas, pois havia restos de comida estragada, faltavam o rádio e muitos utensílios na sua palhoça. 

O tempo só permitiu nova operação quatro dias depois – a 30 de novembro. Desta vez, Américo Peret integrou a equipe do helicóptero, para descer ao chão. 

Em terra, resolveu-se fazer uma varredura, homens ao lado uns dos outros, desde as malocas (a antiga e a nova) até o rio. Mas Américo Peret foi sozinho, por uma trilha a que os outros não deram atenção, por ser antiga. Logo, experiente como era, notou ele haver pequenos ramos de mato quebrados, e ao continuar, viu que as plantinhas do meio da trilha estavam amassadas, como se algo houvesse sido arrastado por cima delas. E sentiu mau cheiro. 

Andou mais quarenta metros e encontrou um esqueleto com uma calcinha e um sutiã, o que indicava ser de mulher, cujos ossos e costelas estavam totalmente soltos, os antebraços e as pernas amarrados com cipós; a cabeça, separada do resto do esqueleto, estava mais adiante – fora cortada por golpe de facão, e a parte superior do crânio não foi encontrada, muito possivelmente levada por algum animal, que, com urubus, haviam descarnado o cadáver. 

Então, João Américo Peret gritou haver achado os restos mortais dos integrantes da expedição. 

Alguns esqueletos estavam em terra, outros em poças de água, e mais outros dentro do rio, que havia subido por causa das últimas chuvas. Um esqueleto feminino mostrava que o corpo havia sido cortado em dois, desde as entrepernas até o ombro, e outro tinha as pernas quebradas. 

Foram encontrados todos os nove esqueletos da expedição (lembro ao leitor que esta era composta por dez pessoas quando iniciou a viagem, mas Álvaro Paulo da Silva, Paulo Mineiro, havia deixado o grupo). Todos tinham braços e pernas amarrados por cipós. 

De oito pessoas, as têmporas tinham sido cortadas a facão; entretanto, a fronte do padre Calleri, identificado por duas coroas dentárias que ele tinha, estava quebrada e não cortada. 

Os ossos, levados em caixões para serem velados na catedral de Manaus, foram sepultados nessa cidade, exceto os do padre Calleri, transferidos para Boa Vista, onde a população, muito comovida e pesarosa, inclusive este autor, esteve presente a seu enterramento, em 4 de dezembro de 1968, numa quarta-feira. 

Na segunda-feira seguinte, 9 de dezembro, viajei a Manaus, para agradecer, comovido, ao Inspetor da Alfândega, Dr. Milton Bittencourt Cantanhede, por não me haver concedido as férias que lhe pedira. 

Sem alterar a voz baixa e mansa, ele só me disse: 

– Agradeça a Deus, Dinoá, porque eu só fiz o que tinha de fazer. 

E mudou de assunto. 

* * * 

Mas a história continua. Por falta de verbas, ou por outros motivos, a construção da estrada BR-174 ficou paralisada, e só foi recomeçada anos depois. 

No fim de 1974, a FUNAI abriu um novo posto de atração para os uaimiris-atroaris, o Abonari II, e entregou-o aos cuidados do seu funcionário Gilberto Pinto Figueiredo Costa, considerado indigenista experiente, que em junho de 1968 (antes do início da viagem da expedição Calleri), havia feito contato com Maroaga, principal chefe dos uaimiris-atroaris – foi um relatório dele que registrou no trajeto da futura BR-174 haver só índios desse povo, o que foi entendido como facilitador para o possível entendimento entre índios e brancos, relativamente à estrada. 

Em 22 de dezembro de 1974, Maroaga e alguns índios chegaram muito cedo ao posto de atração, para invadi-lo. No posto, havia mais outros seis funcionários da FUNAI, cinco dos quais índios aculturados. Gilberto Pinto, como ele era conhecido, abriu a porta para acalmar os índios e recebeu duas flechadas, uma no fígado, a outra, no coração. Todos os cinco índios aculturados também foram trucidados. Só um, não índio, não foi morto, porque fugira um pouco antes numa canoa, rio abaixo. 

O leitor adivinha quem escapou? Álvaro Paulo da Silva, o Paulo Mineiro

Pois bem. Depois, descobriu-se que Paulo Mineiro trabalhava para uma equipe de americanos que, clandestinamente, pesquisava e explorava alguns minérios na área dos uaimiris-atroaris. 

* * *

Trinta anos depois da morte do padre João Calleri e dos seus companheiros, o padre Silvano Sabatini, que fora presidente da Comissão Pro-Índio da Prelazia de Roraima e o principal incentivador para aquele padre assumir a empreitada, publicou o livro Massacre, no qual transcreve entrevistas por ele feitas com alguns daqueles índios que haviam participado do macabro evento ou o haviam testemunhado. 

Em resumo, assim se deram os fatos: sempre que Paulo Mineiro, ainda no acampamento-base, contatava índios, como, por exemplo, quando foram com o padre buscar os presentes, dizia-lhes ser necessário matar o padre e seus companheiros, por serem eles muito maus.

Na madrugada do dia 31 de outubro de 1968, quando ele fingiu abandonar a expedição, na realidade escondeu-se nas proximidades da maloca uaimiri-atroari, e tentou convencer Maroaga e outros guerreiros a liquidarem a expedição naquele mesmo dia – por isto os índios faziam sinal de guerra, mas não estavam convictos quanto à conveniência da matança e, por isto, faziam, também, sinais de amizade, alternadamente.

Muito cedo, ao primeiro clarão do amanhecer do dia seguinte, 10 de novembro, todos dormiam; Paulo Mineiro, com mais quatro comparsas não índios, vestidos com roupas camufladas e que estavam escondidos nas imediações e não haviam aparecido antes, chamou os índios e lhes disse que era hora de exterminar a expedição ou ele e seus amigos os matariam.

Padre Calleri também dormia e um dos homens brancos atirou na barriga dele, mas ele era forte, levantou-se, e Paulo Mineiro mandou que lhe atirassem flechas – o padre recebeu duas flechadas e caiu debruçado sobre sua rede.

Seus companheiros foram atacados com flechas pelos índios e com facões pelos cinco homens. Os que caíam flechados tinham a cabeça partida a golpe de facão. Um membro da expedição atirou com um revólver, atingiu a mão do índio que depois se chamou Tomás – este desmaiou, e quando tornou a si, todos da comitiva já estavam mortos, contou ele ao padre Silvano Sabatini. 

Paulo Mineiro mandou um dos seus comparsas cortar em dois, com facão, o corpo de Maria Mercedes Sales, da vagina até o ombro. Torpe e cruel vingança por ela não lhe haver concedido favores sexuais.

Em seguida, ele determinou aos índios levarem os corpos para o mato, mas eles se recusaram a fazê-lo, por temor de que os espíritos dos mortos viessem trazer-lhes mal.

Então, um dos homens brancos cortou cipós, amarrou as pernas e os braços de cada um dos cadáveres e orientou os índios a que os arrastassem ou os carregassem suspensos pelos cipós em uma vara, e nada lhes poderia acontecer, uma vez que não tocariam nos cadáveres. E assim se procedeu.

Os índios levaram os mortos para o mato, perto do rio, por uma picada que quase não utilizavam. Por fim, Paulo Mineiro deu a entender aos índios que se contassem aquilo a alguém ele viria com mais amigos e os mataria também.

A cena do assassinato fora tão brutal, que um índio dos mais velhos e que havia participado do morticínio falou ao padre Silvano Sabatini – e um índio jovem traduziu a conversa – que alguns índios chegaram mesmo a combinar dar cabo de Paulo Mineiro e seus companheiros, ali mesmo, mas tiveram medo de os cinco reagirem com armas de fogo e matarem muitos deles.

No mesmo dia, os índios começaram a fazer uma nova maloca, próxima da outra, uma vez que padre Calleri havia entrado naquela em que eles moravam “e o espírito dele poderia vir, só por vingança, fazer mal a seus filhos e a suas mulheres”! 

* * * 

Alguns anos antes do encontro do padre Silvano Sabatini com os uaimiris-atroaris, Paulo Mineiro foi posto na prisão, em Manaus, em 1981, não sei por qual motivo, e ali se desentendeu com outros presos, que o mataram. 

 

O autor entre os ianomâmis



 

 

 

 

 

 



 

 

 

 

 

 

 

 

 

I. NOTA EXPLICATIVA 

¹  Ao que tudo indica, foi Paulo Mineiro quem passou esta informação ao Padre Calleri, porque este não tivera contato com ninguém de fora do seu grupo. E durante a viagem, e após a chegada à maloca, o mateiro convenceu os índios de que a expedição era composta de pessoas más.
 
 
II. AGRADECIMENTO
 
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste artigo.