sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

QUANTOS EUROS RECEBEU CAMÕES POR TER ESCRITO "OS LUSÍADAS"?


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
 
Este ensaio foi originalmente publicado no semanário EXPRESSO de Lisboa, edição de 27/01/2022, em comemoração do 450º aniversário da publicação de "OS LUSÍADAS" (1572-2022)
O valor da tença atribuída a Camões - uma análise comparativa feita por economistas em relação aos salários médios atuais e às tenças mais elevadas de que beneficiaram outros contemporâneos.
 
Capa da primeira edição de "OS LUSÍADAS"

Camões decidiu regressar a Lisboa em 1567. Trazia consigo o manuscrito de "Os Lusíadas", para o concluir e publicar. Partiu de Goa desgastado por intrigas, por raivas e por invejas. Foi julgado e condenado por não pagar uma dívida a um agiota. A prisão transformou-o radicalmente. Deixou de ser o homem enérgico e desenvolto que se movimentava quer na roda de fidalgos da Corte quer no Malcozinhado, a mais turbulenta tasca de Lisboa, frequentada por ruflas, prostitutas e outros marginais. O retrato desse tempo áureo apresentava-o “de corpo alto de estatura, largo das espáduas, de cabelo ruivo, no rosto sardo, torto de um dos olhos e de entendimento agudo e raro engenho”. 
 
Retrato póstumo de Luís de Camões, oferecido por Fernão Telles de 

Menezes a D. Luiz de Athayde, datado de Goa, 1581 
(Crédito: De Agostini / Getty images)
 
Para conseguir o dinheiro para a viagem contou com a disponibilidade de alguns amigos. Depois de 17 anos no Oriente e em África, desejava voltar a Lisboa. A Índia permitiu-lhe o convívio com o sábio Garcia de Orta (1501-1568), que o honrou com a primeira publicação de versos na abertura do “Colóquio dos Simples e das Drogas”, impresso em 1563 na oficina de Joannes de Endem, em Goa, e com o jovem cronista Diogo do Couto (1542-1616), que lhe preencheu tempos de ócio e registou para a História a realidade quotidiana da vida e da obra do poeta. Camões teve, ainda, outros amigos leais e afetuosos, mas, de resto, a Índia tornara-se “um imenso bolo de mel atacado por um espesso enxame de moscardos vorazes e zumbidores que se atropelavam a devorar quanto podiam”. Em suma: tal como escreveu Camões numa carta, “a Índia era mãe de vilões ruins e madrasta de homens honrados”. 
A viagem de regresso teve de ser interrompida, e Camões permaneceu em Moçambique e depois na ilha de Moçambique. O mar arrebatou alguns dos que lhe acudiram nas horas de infortúnio. Diogo do Couto relatou a situação de Camões em extrema penúria e marcado pelo sofrimento. Mas uma coisa é certa: na "dura Moçambique", para usar as próprias palavras de Camões, o poeta procedeu à revisão de "Os Lusíadas". 
Durante cerca de 25 anos elaborou a concessão do poema e o apuro da escrita. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, a propósito, afirmou: “Principiada com ímpeto juvenil, quando tudo parecia sorrir ao apaixonado e genial fidalgo-cavaleiro e quando o sol da pátria estava perto do seu apogeu, a epopeia foi adiantada devagar; após graves estudos e duras experiências, só saiu à luz quando a velhice batia à porta e as provas de decadência do país se haviam multiplicado.” 
Um dos seus biógrafos, Aquilino Ribeiro, evidencia “a agudeza de retina insuperável” de Camões quando faz a “anotação do real”. Isto só foi possível — observou — por ter sido “soldado raso, sujeito a todos os trabalhos da mareação, calejando os dedos a puxar as adriças, tressuando a dar à bomba e ouvindo, com torva, mas obediente cara, as ordens, descomposturas e impropérios” dos mestres das naus em que viajou. Daí a obra de Camões ser um relato “da sua vida incerta, precária, cheia de baldões e rica de polpa, tanto para o bem como para o mal”. 
“Os Lusíadas”, através dos dez cantos, recriaram as origens de Portugal e a evolução da sua história política, cultural, social, até ao descobrimento do caminho marítimo para a Índia. Camões teve atividade militar, bateu-se com valentia em Ceuta; no Oriente tomou parte na expedição contra o rei de Chembé; e esteve na expedição de vigilância dos estreitos de Meca e de Ormuz. Naufragou na foz do rio Macom. Envolveu-se na fúria dos combates em terra e no mar. Partilhou as horas de confusão e de fascínio em todos os oceanos e continentes. Da ilha de Moçambique embarcou, de novo, com destino a Lisboa, em novembro de 1569. Vinha “na matalotagem” de Antão de Noronha e também de Diogo do Couto, o cronista do “Soldado Prático” e das “Décadas”. 
 
A CHEGADA A CASCAIS 
 
Foram surpreendidos, ao atracar em Cascais a 7 de abril de 1570, com um surto de peste que grassava em Lisboa e arredores. Tamanha calamidade mantinha a população em sobressalto. Um documento da época descreve que, no ano anterior, o ano inesquecível da peste grande, não houve dia de junho, julho e agosto em que não falecessem 500, 600, 700 pessoas. Esgotaram-se os espaços dos adros das igrejas para as sepulturas. Daí alargarem-se outras covas para enterrar, em cada uma, dezenas de mortos. 
Correram, entretanto, vaticínios tenebrosos: uma sucessão de sismos arrasaria Lisboa — e com tal intensidade e tal violência que o Castelo de São Jorge se juntava ao Convento do Carmo. Um outro contemporâneo, o padre jesuíta Diogo de Carvalho, acerca dos boatos sobre os tremores de terra em Lisboa, referiu: “Não havia na cidade mais do que gritos, desmaios e andar a gente doida e sem siso. Ocupou a gente que desta cidade saía sete ou oito léguas ao redor de Lisboa, e porque não havia casas se punham pelos campos ao pé das oliveiras: e como não havia água e não iam providos de comer bastante [...] morrem por lá com fome, sede” e outras fatalidades. 
 
A CENSURA DA INQUISIÇÃO 
 
Camões aguardou em Cascais o momento propício para chegar a casa. Encontrava-se velho, doente, alquebrado, reduzido à miséria. Aos 45 anos tinha as marcas de um homem exausto e desamparado. Perdera a exuberância. Mas ganhara humanidade: “As estrelas e o fado sempre fero,/ com meu perpétuo dano se recreiam,/ mostrando-se potentes e indignados/ contra um corpo terreno,/ bicho da terra vil e tão pequeno.” 
Confrontava-se, ainda, com outra “peste”. A Inquisição, fundada em 1536, foi endurecida pelo Concílio de Trento (1545-1664), que estabeleceu regras e dogmas inflexíveis para as estruturas do Tribunal do Santo Ofício. Além do domínio eclesiástico, interferia em todos os sectores políticos, sociais e culturais. O terror prolongou-se até à eclosão da Revolução Liberal, em 1820. A população de Lisboa assaltou o Palácio, implantado onde viria a ficar o Teatro Nacional D. Maria II. A estátua da Fé, obra monumental de Machado de Castro voltada para o Rossio, foi apedrejada e destruída. Abriram os cárceres. Estava abolida a censura. 
Camões residiu — até à morte — entre a Mouraria e a Calçada de Santana, em cujo cemitério terá sido sepultado. Ficava a curta distância da Igreja de São Domingos, a ordem religiosa que tinha a seu cargo o funcionamento da Inquisição e abrangia, portanto, a censura literária. Alguns eruditos admitem que Luís de Camões — garantido o apoio de um mecenas — aproximou-se dos Dominicanos, como visita assídua, para trocar impressões acerca dos temas mais escaldantes de “Os Lusíadas”. Terá sido a primeira leitura crítica, antes de requerer, nos termos habituais, a censura oficial. 
Coube depois a frei Bartolomeu Ferreira fazer o exame. Admitem alguns eruditos, como Sousa Viterbo, que houve conversações e reajustamentos entre o censor e o autor. No despacho que exarou frei Bartolomeu Ferreira pode ler-se: “Não achei neles [“Os Lusíadas”] cousa alguma escandalosa, nem contrária à fé e aos bons costumes.” A justificação sobre as narrativas pagãs, os versos incendiados de exaltação sexual, nomeadamente no Canto Nono, o da ilha dos Amores, salientou: “Como, isto é, poesia e fingimento, e o autor, como poeta, não pretende mais que ornar o estilo poético, não tivemos por inconveniente ir esta fábula na obra. E por isso me parece o livro digno de se imprimir, e o autor mostra nele muito engenho e muita erudição nas ciências humanas.” 
Ultrapassados estes requisitos imprescindíveis, Camões solicitou à Mesa dos Desembargadores do Paço e ao regedor da Justiça a licença para impressão. Um alvará régio, de 4 de setembro de 1571, não só autorizou a impressão como garantiu, a favor de Luís de Camões, a propriedade literária por dez anos. 
 
O EDITOR DA COSTA DO CASTELO 
 
Ao tempo havia 16 oficinas em Lisboa. Uma das autoridades na matéria, António Joaquim Anselmo (“Bibliografia das Obras Impressas em Portugal no Século XVI”, Biblioteca Nacional, 1926), enumera desde as mais famosas até às mais modestas. Camões optou por António Gonçalves, com oficina própria na Costa do Castelo. Não tinha o prestígio de outros impressores que lançaram obras de personalidades de relevo oficial, hoje colocadas na devida dimensão perante a grandeza do génio de Camões. 
António Gonçalves, segundo António Joaquim Anselmo, depois de “Os Lusíadas”, foi impressor de Jorge Arco, bispo de Lisboa. Depois editou, por exemplo, em 1573 o “Comentário do Cerco de Goa e Chaul”, de António de Castilho, em 1574 o “Sucesso do Segundo Cerco de Diu”, de Herónymo Corte Real, e em 1576 a “História da Prouíncia Sãcta Cruz”, de Pero de Magalhães de Gandavo. 
Publicaram-se, em 1572, duas edições de “Os Lusíadas”, sem qualquer prefácio e dedicatória. Apenas se refere na primeira página: “Com privilégio real. Impressos em Lisboa com licença da Santa Inquisição e do Ordinário: em casa de Antonio Gonçalvez, Impressor.” Existem nas edições de 1572 assinaláveis diferenças, a começar pela capa: a disposição do pelicano. Os investigadores de estudos camonianos indicaram: no alto da portada, o pelicano tem o bico voltado para a esquerda de quem olha; na outra edição, o mesmo pelicano tem o bico voltado para a direita. 
Mas logo nas primeiras estrofes verificam-se alterações relevantes. Serão erros de impressão ou o poeta quis modificar o texto? Entre os investigadores portugueses que nos séculos XIX e XX escreveram sobre Camões destacam-se, entre outros, os estudos biográficos, as interpretações críticas e a coordenação editorial do visconde de Juromenha, Teófilo Braga, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Sousa Viterbo, José Maria Rodrigues, Epifânio Dias, Hernâni Cidade, António José Saraiva, José Hermano Saraiva e Jorge de Sena. Mais próximo de nós temos os estudos de Vítor Aguiar e Silva e Maria Vitalina Leal de Matos. 
Todavia, David Jackson, ao consultar 34 exemplares de “Os Lusíadas” de 1572, não só em Portugal e no Brasil mas em bibliotecas públicas e privadas dos Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Espanha, França e Alemanha, detetou, nos respetivos textos, mais de duas mil diferenças. E numa longa entrevista que me concedeu, para o “Diário de Notícias”, David Jackson, na altura professor da Universidade de Yale, pronunciou-se acerca da tradicional controvérsia em torno das edições de 1572. 
No seu entender, não terá havido duas edições, “mas apenas uma grande sequência da impressão com numerosas correções e, ainda, novos erros”; a diferenciação não se reduz ao pelicano incluído na portada, umas vezes virado à esquerda e outras à direita; nem se deverá circunscrever a E e EE, classificação de José Maria Rodrigues, em 1921, correspondente às variantes do verso 7 da primeira estrofe do primeiro canto. 
 
O REI, O ALVARÁ E A TENÇA 
 
Garrett, no poema “Camões”, publicado em 1820, contribuiu para uma visão romântica, lendária e fabulosa da vida e da obra de Camões, que virá a ser desmontada por muitos dos eruditos que recorreram às fontes documentais. O pintor António Carneiro (1872-1930) imaginou a leitura aos frades de São Domingos. Outros artistas imaginaram a leitura ao rei D. Sebastião. 
Contudo, não resta dúvida de que Camões deu conhecimento de “Os Lusíadas” ao rei D. Sebastião. A obra define os contornos de Portugal, seguindo a disposição do cartógrafo Álvaro Seco no primeiro mapa impresso (1561) que representou a nossa extensão geográfica e que se mantém até hoje: “Eis aqui, quase cume da cabeça/ da Europa toda, o Reino Lusitano,/ onde a terra se acaba e o mar começa.” É com orgulho que Camões a identifica: “Esta é a ditosa Pátria minha amada.” 
Camões celebrou a ação dos portugueses nas descobertas e conquistas: “Assim fomos abrindo aqueles mares,/ que geração alguma não abriu,/ as novas ilhas vendo e os novos ares/ que o generoso Henrique descobriu.” Ao dirigir-se a D. Sebastião, incentiva o rei a defender Portugal entre os povos europeus: “Fazei, Senhor, que nunca os admirados/ alemães, galos, ítalos e ingleses,/ possam dizer que são pera mandados,/ mais que para mandar, os Portugueses.” 
Encontra-se na Torre do Tombo o alvará lavrado a 27 de julho de 1572 que, em nome do rei D. Sebastião, atribuiu a Camões uma tença, tendo em apreço o serviço prestado “nas partes da Índia, por muitos anos e aos que ao diante me fará e a informação que tenho do seu engenho e habilidade e suficiência [sic] que mostrou no livro que fez das cousas da India [sic]. Hei por bem e me praz de lhe fazer mercê de quinze mil réis de tença em cada um ano [...] a contar de doze dias do mês de Março deste ano presente de mil quinhentos e setenta e dois em diante e a serem pagos no meu Tesoureiro-Mor ou quem seu cargo servir”.
 
200 EUROS POR MÊS?
Três análises comparativas da equivalência, em moeda atual, da tença de 15 mil réis por ano atribuída pelo rei D. Sebastião. 
 
A agenda cultural de 2022-2023, no âmbito das comemorações dos 450 anos da publicação de “Os Lusíadas”, tem realizado em todo o país conferências, debates, até exposições e organização de percursos e, ao mesmo tempo, tem promovido no estrangeiro idênticas atividades culturais onde existem núcleos de ensino, de investigação e de difusão da língua portuguesa. 
Estão por esclarecer aspetos fundamentais da vida e da obra de Camões. Quando nasceu? Terá sido em 1524 ou em 1525? E onde nasceu? Terá sido em Lisboa? Quando faleceu em Lisboa? Terá sido em 1579 ou em 1580? Como sentiu a derrota de Alcácer-Quibir e a morte de D. Sebastião? Como reagiu perante a sucessão e a morte do cardeal D. Henrique e as decisões nas Cortes de Lisboa e de Almeirim? Faleceu antes da invasão comandada pelo duque de Alba, as lutas de D. António Prior do Crato ou a entrada de Filipe I para integrar Portugal na Espanha? 
Um dos temas possíveis reside em saber o atual valor da tença de 15.000 réis por ano atribuída a Luís de Camões, a partir do alvará lavrado a “doze dias do mês de março de mil quinhentos e setenta e dois”; renovado por duas vezes ate à morte do poeta e que terá sido solicitado pela mãe, Ana de Sá, que lhe sobreviveu. 
 
TRÊS DEPOIMENTOS 
 
Para o efeito recorremos a autoridades na matéria: Nuno Alves, diretor do Gabinete de Estudos do Banco de Portugal, Maria Eugénia Mata, catedrática da Universidade Nova de Lisboa (que nos responderam por escrito), e Helena Garrido, jornalista de Economia e Finanças. Agradecemos os depoimentos prestados acerca deste tema bastante problemático. 
“Em relação à informação acerca da equivalência, em moeda atual, da tença anual de 15.000 réis (quinze mil réis) atribuída por D. Sebastião, o Departamento de Estudos Económicos calculou com um mínimo de fiabilidade a equivalência monetária”, declarou Nuno Alves. Reconheceu, todavia, que “constitui matéria complexa, para a qual não dispomos, infelizmente, de uma resposta direta. Não obstante, podemos recorrer a várias medidas que, apesar de mais ou menos simplistas, fornecem uma aproximação ao poder de compra dos 15.000 reais de 1572, quer atualmente, quer à época”. 
“Se combinarmos”, prosseguiu, “o índice de preços apresentado nas ‘Estatísticas Históricas Portuguesas’ (2001) com o Índice de Preços no Consumidor disponibilizado pelo Instituto Nacional de Estatística, os 15.000 reais de 1572 equivaleriam a cerca de 2200 euros de 2021. Porém, se optarmos pela paridade ouro desse valor (ou seja, o valor de mercado atual do ouro fino a que equivaliam, em 1572, os 15.000 reais), então a equivalência atual subiria para cerca de 5780 euros, assumindo o preço da onça à cotação de 1700 euros. Como o valor do ouro está em alta, poderíamos usar uma cotação pré-pandemia (p. e., €1300/onça), caso em que a equivalência desceria para cerca de 4400 euros, ainda assim o dobro do sugerido pela conjugação de índices.” Esclareceu Nuno Alves que “importa realçar que estes valores são meramente indicativos”. “Um alqueire de trigo poderia custar, em Évora, 100 a 200 reais. Tomando o preço mais elevado, a tença que refere permitiria adquirir 75 alqueires de trigo, ou cerca de 1050 litros. Em Lisboa, uma arroba de arroz poderia custar entre 580 a 772 reais, ou seja, a tença permitiria comprar entre 19,4 e 25,9 arrobas (286 a 380 kg). Seria ainda suficiente para adquirir mais de um quintal de pimenta (51 kg), que era um importante produto de reexportação na capital.” 
A concluir, referiu: “Comparemos ainda a tença com o ordenado de alguns oficiais da Casa da Moeda de Lisboa: o tesoureiro e o escrivão da casa auferiram ambos 30.000 reais (tal como um cirurgião no Hospital de Todos-os-Santos), o mestre da balança ganhava 20.000 reais e o conservador 15.000 reais.” Por último, Nuno Alves indicou, “para mais informações sobre preços históricos portugueses, a consulta do site ‘Prices, Wages and Rents in Portugal, 1300-1910’” (acessível através da ligação pwr-portugal.ics.ul.pt/). 
As mesmas questões foram submetidas ao critério de Maria Eugenia Mata, outra conceituada especialista na matéria. Respondeu-nos, também por escrito (recorrendo a Carlos Bastien, “Prices and Wages” in Nuno Valério; e ”Portuguese Historical Statistics”, Lisboa, INE, págs. 629-664), que entre 1580 e 1997 os preços multiplicaram-se por 19.235. Considerando também o índice de preços de 1997 até hoje e as mudanças para o escudo e para o euro, cada real de 1580 valerá hoje cerca de 15 a 16 cêntimos do euro”. 
“A tença de 15.000 réis”, acentuou Maria Eugenia Mata, “serão 2250 a 2400 euros, muito acima do rendimento médio português da época. Esse rendimento médio à época seria de 800 a 880 euros a preços de 2000 (segundo Nuno Valério, “Portuguese Economic Performance, 1850-2000” in J. Morilla, J. Hernández Andreu, J. L. García Ruiz, J. Ortiz-Villajos (organizadores), Homenaje a Gabriel Tortella, LID, Universidad de Alcalá, Alcalá de Henares, 2010, págs. 431-444). Possivelmente, concluiu Maria Eugénia Mata, “o problema seria a tença ser realmente paga”. 
 
QUATRO ASPETOS FUNDAMENTAIS 
 
A morte de Camões terá sido em 1579 ou em 1580. Assim ficou registado numa das entradas do dicionário temático “Camões”, nos textos de Maria Vitalina Leal de Matos, catedrática da Faculdade de Letras de Lisboa. Para saber os quantitativos mensais ou a totalidade do pagamento contactei Helena Garrido, que realçou quatro aspetos fundamentais nesta síntese. “Dificilmente conseguiremos um valor exato. Usaria os valores fornecidos por Nuno Alves e Maria Eugénia Mata, que são calculados com a evolução dos preços e a conversão para o euro. Diria que a tença de Camões está estimada entre 2200 e 2400 euros anuais, ou seja, de 183,3 euros a 200 euros mensais (dividido por 12). A utilização da cotação do ouro parece-me mais complicada.” 
Qual o poder de compra mensal dessa tença? “Usando os dados de Nuno Alves — uma arroba de arroz poderia custar entre 580 a 772 reais —, com essa tença de 15.000 reais ou 1250 reais por mês podia comprar no mínimo 2,1 arrobas de arroz (cerca de 30 kg de arroz, com a arroba a equivaler a 14.688 kg). Levando em conta o valor do rendimento médio na altura de 800 a 880 euros que se supõe anuais, Camões tinha uma tença que era, pelos mínimos, 2,75 vezes o rendimento médio. O rendimento disponível médio português em 2020 foi de 34.798 euros (INE, coligido pela Pordata), cerca de 2342 euros mensais, dividido por 14.” 
A questão formulada por Maria Eugénia Mata — “o problema seria a tença ser realmente paga” — tem pleno cabimento. O camoniano visconde de Juromenha assinalou no “Livro da Fazenda” que houve atrasos no pagamento. 
Uma última questão intensifica a polémica. O matemático e cosmógrafo Pedro Nunes, por lecionar ao infante D. Luís, recebia uma tença anual de 40.000 réis. Numa investigação sobre tenças, da autoria de Afonso Mexia, verifica-se, nomeadamente, que a tença paga a Afonso de Albuquerque era de 150.000 réis e a tença paga a João de Barros era de 400.000 réis. Todos os comentários são legítimos. E demonstram, através dos séculos, os critérios de avaliação do poder, em cada época, em relação aos protagonistas da cultura. Camões teve direito ao rendimento social mínimo. 
 
Foi muito? Foi pouco? O que representou em face de outras tenças? São alguns aspetos a pormenorizar, noutro local, desta retrospetiva camoniana. 
 
Com a informação disponível há 100 anos, Almada Negreiros emitiu este comentário fulminante na “Cena do Ódio”, ao interpelar “a pátria onde Camões morreu de fome/ e onde todos enchem a barriga de Camões!”. 
Se há uma maioria de opinião que elege “Os Lusíadas” como a obra máxima da cultura portuguesa da época, outros inclinam-se para a “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, e ainda outros para os relatos que constituem a “História Trágico-Marítima”. Embora não haja unanimidade de critério (e não esqueçamos que Eça de Queirós preferia as “Décadas”, de João de Barros, em vez de “Os Lusíadas”), há um ponto de convergência: a afirmação do “humanismo universalista” — definido por Jaime Cortesão — que caracteriza o português, em qualquer obra, ou em qualquer autor, mais conhecido ou menos conhecido, mas que exprime as contingências, os riscos e as proezas da viagem. A força de ousadia e a capacidade de irradiação através do Velho Mundo e Novo Mundo. 
“Os Lusíadas” constituem à escala nacional e internacional o exemplo mais significativo. 
 
Portugal e os portugueses continuam dentro de “Os Lusíadas”. Camões menciona qualidades e não oculta defeitos no comportamento do povo português. 
 
Sentimentos nobres como a generosidade, a coragem e a honra. Defeitos lamentáveis como o suborno, a corrupção e a inveja. Também fixou a língua portuguesa que falamos hoje e seguiu de perto os grandes problemas do seu tempo, muitos dos quais continuaram a ser objeto de reflexão das gerações seguintes. É um moderno perante os clássicos e um clássico perante os modernos. 
 
* Investigador, jornalista em Portugal (carteira profissional nº 1), sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente (Cadeira nº 3) da Academia Brasileira de Letras.

4 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
O Blog de São João del-Rei tem o prazer de hospedar o ensaio da autoria do conceituado jornalista ANTÓNIO VALDEMAR, que se dispõs a investigar, por ocasião das comemorações dos 450 anos da publicação de "OS LUSÍADAS" (1572-2022), o valor da pensão (tença) mensal recebida por Camões às expensas do Estado português. O valor da tença atribuída a Camões demandou uma análise comparativa feita por economistas em relação aos salários médios atuais, ao poder de compra da tença em comparação com o valor de outras commodities e com outras tenças mensais recebidas por figuras ilustres contemporâneas de Camões; ou seja, a pesquisa requereu do autor um trabalho de fôlego.
Cabe finalmente acrescentar que "a agenda cultural de 2022-2023, no âmbito das referidas comemorações, tem realizado conferências, debates, até exposições e organização de percursos e, ao mesmo tempo, no estrangeiro, tem desenvolvido idênticas atividades culturais".

TEXTO
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BREVE BIOGRAFIA DO AUTOR
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/02/colaborador-antonio-valdemar.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Gustavo Dourado (escritor, poeta de cordel e presidente da Academia Taguatinguense de Letras) disse...

Gratidão ao confrade.
Saúde e paz.
Tudo de bom.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga.

Maravilhoso artigo desse notável erudito açoriano!
Nos cálculos dos(as) especialistas sobre o poder de compra no século XVI, época pré-industrial, talvez haveria de se levar em consideração também a quantidade de bens e serviços existentes que, de certa forma, tinham efeitos importantes na qualidade e expectativa de vida das pessoas.
Muitíssimo grato.
Congratulações !
Cupertino

João Alvécio Sossai (escritor, autor de "Um homem chamado Ângelo e outras histórias, ex-salesiano da Faculdade Dom Bosco e ex-professor da UFES (1986-1996)) disse...

Obrigado, Francisco. Muito interessante e curioso o relato.