quinta-feira, 25 de abril de 2024

25 de Abril para continuar


Editorial do PÚBLICO por David Pontes
 
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, edição da quinta-feira, de 25/04/2024, na coluna Editorial, p. 4.

 

25 de ABRIL-50 ANOS-O caminho da liberdade

 

Capitão do Exército Português que liderou as forças revolucionárias durante a Revolução de 25 de Abril de 1974 ou Revolução dos Cravos, que marcou o final da ditadura em Portugal. Fotografado no Largo do Carmo (Lisboa).

Propaganda da Revolução dos Cravos


Este deveria ser um editorial muito fácil de escrever: 50 anos do 25 de Abril. Evocar aqueles rostos jovens dos capitães que não queriam ir à guerra e foram pelas cidades dizer que era precisa acabar “com o estado a que chegámos”. Soldados pela esperança, a descobrirem que havia um povo farto de esperar, cansado de calar. Juntos na rua terminaram com o silêncio, cantaram canções novas, descobriram como chamar sua a liberdade. 

Quantos povos poderão celebrar a data fundacional da sua democracia com uma revolução feita quase sem sangue, de cravo na ponta da arma, nenhuma vontade de vingança e com o fim de uma guerra que fez brotar múltiplos novos países? Como não nos emocionarmos com o momento em que metade de nós, as mulheres, pela primeira vez na centenária história do país, pôde sonhar em ter os mesmos direitos da outra metade? Abraçar quem estava proibido de voltar a casa, abraçar o mundo, poder ler, ver, sorrir, falar sem ter de olhar por cima do ombro. 

Tantas coisas num só dia há 50 anos, que podia ser só mesmo agradecer, com um obrigado imenso, a quem nos libertou e a todos os que antes deles sofreram por sonhar, pagaram por ousar, morreram a tentar mudar. Muito, muito obrigado e editorial acabado. 

Só que são mesmo 50 anos e isso é muito, mesmo para um país de tempo longo como o nosso, e por essa razão o agradecimento não pode acabar logo ali, nesse “dia inicial inteiro e limpo”. Porque em 25 de Abril de 1974 não tínhamos só 2162 funcionários de polícia política e 20 mil informadores, tínhamos também uma guerra longínqua a devorar a juventude. Porque nos envergonhávamos com uma taxa de mortalidade infantil das mais elevadas da Europa, com quase um quinto da população analfabeta e em que só 4,2% frequentavam o ensino superior. Vivíamos em casas em que menos de metade tinha água canalizada e só 60% ligação à rede de esgotos. Éramos pobres, sujos e mal-educados e continuávamos com rota traçada para continuar pobres, ainda focados em industrializar o país, quando pelo continente já se falava em desindustrializar. 

É certo que em muitos parâmetros ainda somos pobres, mas a abertura política e a abertura à Europa, que o 25 de Abril possibilitou, fizeram com que nos tornássemos um país tão bom para viver que até quem nasce em sítios bem mais ricos por aqui quer ficar. Sim, claro que é porque somos baratos, mas também porque nestes 50 anos conquistámos tanta coisa, na saúde, na educação, no apoio social, na cultura, nas infra-estruturas, que até nos damos ao luxo de achar que não é nada, que tudo está num caos e pouco se aproveita. Um engano imenso que um editorial pode facilmente rebater com os números que não enganam, mesmo que haja quem não os queira ler. Um editorial de conforto, por termos chegado até este lugar, a partir do qual ainda falta muito, mas de onde é possível ver o tanto que já se conseguiu. 

Mas este não está talhado para ser um editorial fácil. Porque como nunca nestes 50 anos de crescimento este corpo esteve tão ameaçado. Há um cancro a minar-lhe as entranhas, capaz de dizer com desfaçatez que “no tempo da outra senhora é que era bom”, cuspindo na razão e na cara de todos os que lutaram e trabalharam para chegar até aqui. Capaz de afirmar, sentado na vice-presidência da Assembleia da República, que “a liberdade não existe de facto, existem narrativas, continua a existir censura (...), continua a existir um Estado ocupado, não vivemos em liberdade e é isso que temos de reconquistar, essa liberdade autêntica que não nos chegou com o 25 de Abril”. 

“Reconquistar”? O que precisamos de reconquistar é algum sentido de decência e de vergonha que faça regressar a mentira ao buraco obscuro de onde nunca devia ter saído. Enquanto não o fizermos, a democracia a que nos conduziu o 25 de Abril está sob ameaça, não só pelas ideias que defendem os que a atacam, mas pelas ferramentas que usam para o fazer. Não é possível construir uma sociedade democrática e saudável sem verdade. É por isso que a equipa deste jornal continua a lutar diariamente com maior empenho, porque sentimos que nunca, como hoje, a mentira teve uma perna longa e nunca, como hoje, foi capaz de dividir para reinar no descontentamento. 

Este podia ser um editorial fácil, cheio de gratidão e de regozijo. Mas nos tempos que vivemos não basta, tem de ser também um editorial de luta. Hoje, quando desfilarmos pelas ruas que ainda continuam a ser de todos, gozando da liberdade autêntica que nos chegou com a Revolução dos Cravos, vamos ter de juntar ao obrigado uma jura de que não vamos deixar que nos interrompam o 25 de Abril. Ele veio para sempre e tem de continuar.