terça-feira, 29 de março de 2011

"Maestro" e literato Abgar Campos Tirado, glória de São João del-Rei


Por Francisco José dos Santos Braga



- Artigo publicado na Revista da Academia de Letras de São João del-Rei, ano V, nº 5, 2011, p. 77-94, editada pela UFSJ-Universidade Federal de São João del-Rei.


Retorno hoje a este espaço são-joanense para falar de um assunto que muito me é caro: escrever sobre Música e, especialmente, sobre um “maestro” e pianista são-joanense cuja vida tem sido marcada pelo zelo e competência no trato dessa Arte. Refiro-me a Abgar Antônio Campos Tirado, meu mestre de piano, que, nos idos de 1963, a pedido de um amigo comum, o saudoso são-joanense Gil Amaral Campos (São João del-Rei, 1938-São Paulo, 1999), me preparou com orientações seguras para meu ingresso no Conservatório Estadual Padre José Maria Xavier, na classe da saudosa Profª Mercês Bini Couto (1916-2010), o que se deu no ano seguinte. Para isso, Prof. Abgar franqueou minha entrada à sua residência e a utilização diária de seu piano, das 19 às 21 horas, estendendo-se essa benesse por mais de dois anos, até que meu pai conseguisse adquirir um Fritz Dobbert novo para o filho pianista.

Foi dessa forma que tive a oportunidade e o privilégio, nos meus verdes anos, de frequentar a residência dos Tirados Lopes e testemunhar a dor que representou para a família de Abgar a partida precoce da saudosa chefe do lar, mãe, esposa extremada e pianista, D. Águeda Campos Tirado (1903-1962). Essa dor amarga e acerba, que lhe corroía a alma, deixou-a Abgar estampada no seu poema “Mater mea, responde mihi!”, diante do inexplicável “sorriso belo, calmo, sereno e doce” de sua mãe defunta, “indiferente” aos soluços dos circundantes. Da convivência com o saudoso Antônio Tirado Lopes (Nazareno, 1901-São João del-Rei, 1992), pai de Abgar, que exerceu o mandato de vice-prefeito de São João del-Rei, de 1948 a 1951, recordo-me especialmente da gentileza e cortesia com que eu era recebido, sempre esbanjando cordialidade pela minha presença. De sua extrema bondade e hospitalidade franciscana fala Abgar no seu poema “A meu pai”. Ambos os poemas fazem parte do seu livro “Raízes e Coração”.¹

Para homenagear o Prof. Abgar, essa figura ímpar das letras e da música erudita são-joanenses, a amiga Alzira Agostini Haddad, sabedora dessa nossa ligação artística de longa data, teve a feliz ideia de sugerir-me alinhavar uma lauda que retratasse minha admiração pelo amigo e colega musicista. Difícil missão essa que me atrevo a cumprir, já que são insuficientes as páginas de um alentado livro para descrever o gênio e o brilho do meu biografado.

Embora nunca tenha saído do País, suas músicas já chegaram aos quatro cantos do Orbe, tendo Abgar acumulado, através dos anos, experiências e conhecimentos invejáveis que ombreiam com os dos maiores artistas globalizados e enfatuados homens de letras, como se verá a seguir.

Vejamos inicialmente seus projetos atuais no campo da música erudita, sua maior especialidade a meu ver. Em julho, no próximo Inverno Cultural da UFSJ, deve fazer, em primeira audição, o solo do Concertino em forma de suíte “Mandacaru”, para piano e orquestra, de Normando Carneiro da Silva, regente em Natal (fundador da Camerata do Conservatório Estadual Pe. José Maria Xavier, quando Abgar era seu Diretor. Consta também que Normando compôs uma missa inédita dedicada ao Prof. Abgar.) Finalmente me confessou Abgar que planeja tocar o Concerto nº 2, de Carl Maria von Weber, com acompanhamento de orquestra, no segundo semestre deste ano.

Já que falei sobre o nosso querido Conservatório, lembro que Prof. Abgar foi seu ilustre Diretor, durante o longo período de janeiro de 1977 a dezembro de 1991. Dignas de nota foram as suas realizações nesse cargo, dentre as quais importa destacar as seguintes, devido à sua importância cultural: fundação da Camerata e do Coral Opus 78; instalação de masterclasses de diversos instrumentos; duas edições internacionais do CLAMC-Curso Latino-Americano de Música Contemporânea, sob a supervisão dos seguintes compositores: o são-joanense José Maria Neves (1943-2002), os uruguaios Conrado Silva e Coriún Aharonián e a argentina Graciela Paraskevaídis; montagem das óperas Rigoletto e La Traviata de Verdi com solistas do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com participação da Camerata e coral sob a regência de Osman Giuseppe Gioia (que, além de maestro no Conservatório, era assistente de Isaac Karabtchevski, regente da Orquestra Sinfônica Brasileira). Inesquecível foi também a montagem e encenação da ópera Tosca de Puccini que contou só com músicos profissionais sob a regência do maestro Carlos Eduardo Prates, numa promoção do Conservatório. Na sua despedida do Conservatório, em 1991, o Diretor Abgar foi o responsável pela ópera Bastien und Bastienne de Mozart, bem como pela tradução para o português dos diálogos, contando só com a participação de músicos do Conservatório; manteve, porém, os cantos em alemão, disponibilizando para os espectadores a tradução simultânea em tela. Cabe ainda lembrar a reforma do Auditório Ministro Tancredo Neves, que, devido a alterações feitas no seu projeto original, inclusive acústicas, foi promovido a “Teatro Presidente Tancredo Neves”, inaugurado por Risoleta Neves. Pelo que aqui vai dito, pode-se apreciar o prestígio de que gozava o meu biografado junto às autoridades e celebridades de nosso País.

Prof. Abgar teve atuação destacada nos festivais de música erudita de Aiuruoca, no período de 1965 a 1969, Juiz de Fora, Belo Horizonte e Divinópolis, como solista, com acompanhamento de orquestra. Em Ourinhos-SP, a convite do GAMO, apresentou um concerto sob a regência de Osman Giuseppe Gioia. Em Curitiba, a convite do Governo Estadual, em comemoração aos 100 anos do surgimento da Sétima Arte, apresentou-se a quatro mãos com Maria Amélia Viegas. No Rio de Janeiro tocou como solista na Capela do Palácio da Guanabara, por ocasião de um casamento.

Dentre as suas centenas de composições, destaco as mais conhecidas, com o local onde foram apresentadas no Brasil e no exterior: Salve Regina (Argentina), regida por José Rodriguez Fauré, que se comprometeu a levá-la como repertório para sua turnê internacional; Panis Angelicus (Roma e Sicília); Ária Antiga, bem como Prelúdio, Marcha e Final, trilhas sonoras para dois filmes do Festival JB-Mesbla de BH, com destaque para a segunda partitura composta para o filme “Regeneração?” do diretor são-joanense Sérgio Ratton; Improviso em fá menor, tocado por Humberto Rutowitsch Garrón em Wichita, Kansas; e Novena de Nossa Senhora do Pilar, dedicada ao Monsenhor Sebastião Raimundo de Paiva, composta e apresentada em 2008 em nossa cidade. Buscando homenagear Abgar através de sua música, a WM Filmagens, com orientação de Toninho Ávila, lançou em 2009 o DVD - São João del-Rei Barroca, Colonial e Eclética, que é um documentário sobre esta cidade. Além de narrador e autor do texto, Prof. Abgar assina também todas as músicas da trilha sonora.

Outra área em que se impôs seu gênio artístico foi a da composição de hinos, sacros e profanos, especializando-se na autoria tanto da letra quanto da música. Vou citar apenas os mais conhecidos para as seguintes instituições são-joanenses: Albergue Santo Antônio (hino a Frei Cândido), E.E. Inácio Passos, E.E. Mateus Salomé, E.E. Pio XII, Escola Catavento (só música sobre letra das crianças), ASAP (só música, com letra do historiador e escritor Antônio Gaio Sobrinho), Centro Educacional Prof. José Américo da Costa, Coral Infanto-Juvenil do Conservatório Estadual Pe. José Maria Xavier, Nossa Senhora da Lapa (de Matozinhos), Centro Educacional Frei Seráfico, E.E. Carlos Fernandes Góes (só musica), Orquestra Lira Sanjoanense (só letra, com música de Geraldo Barbosa de Souza) e CESEC Prof. José Américo da Costa. Além disso, pode-se citar os hinos compostos para as seguintes instituições de outras cidades, a saber: ASCOAP e FAP de Belo Horizonte (só música); Escola Municipal Pe. Lourival de Salvo Rios de Tiradentes (letra e música); e Colégio Arquidiocesano de Ouro Preto.

Nos seus cursos de formação, Abgar teve como professores de piano Nilce Cavalcante Alves, Mercês Bini Couto e Ismênia Castelli Panzera; e como mestre de coro, Frei Geraldo de Reuver. Frequentou ainda os seguintes cursos de reciclagem oferecidos pelos pianistas Venício Mancini, André Luis Pires, Armando Amado Júnior e Miguel Rosselini. Participou também de cursos públicos de Técnica e alta Interpretação Pianística ministrados por Jacques Klein (RJ, 1963) e Magdalena Tagliaferro (Uberlândia, 1980).

Pode-se ainda citar as grandes execuções de Prof. Abgar de obras para piano com acompanhamento orquestral. Inicialmente, executou em 1ª audição, em 30 de março de 1960, no Teatro Municipal de São João del-Rei (SJDR), a Fantasia Livre sobre Melodias Brasileiras, de Nilo Weber, aos 21 anos de idade, acompanhado pela Orquestra da Sociedade de Concertos Sinfônicos de São João del-Rei (ou simplesmente “Sinfônica”) sob a regência do compositor ²; repetiu a façanha 7 dias depois. Mais tarde, notabilizou-se, tocando em quatro ocasiões (duas no ano de 1982, e outras duas em 2006) o Concerto nº 9 em mi bemol de Mozart (em 1982, acompanhado pela referida Camerata do Conservatório, sob a regência de Osman Giuseppe Gioia: a primeira vez, no Teatro do Colégio Santo Antônio, de Ourinhos-SP, e a segunda, no Teatro Municipal de SJDR; as duas outras vezes, respectivamente em 24/6/2006, no Teatro Municipal de SJDR, e em 24/8/2006, no Teatro do citado Conservatório, acompanhado pela Orquestra dos Inconfidentes de SJDR e Prados, sob a regência de Thiago Henrique de Souza. Sobressaiu-se igualmente com o Concerto nº 3 em dó menor de Beethoven em duas outras ocasiões, ambas no Teatro Municipal de SJDR: a primeira, em 21/7/1973, acompanhado pela Sinfônica sob a regência de Adhemar Campos Filho, e a segunda, acompanhado pela Orquestra de Músicos Reunidos de SJDR e Rio de Janeiro sob a regência de Paulo Miranda, em 22/10/1988. Demonstrando absoluto domínio sobre técnicas de diferentes estilos de toque, Abgar interpretou em duas ocasiões, com igual maestria, o Concerto nº 5, em fá menor, de Johann Sebastian Bach: a primeira vez, em 1983, acompanhado pela já citada Camerata do Conservatório sob a regência de Osman Giuseppe Gioia, no Teatro do Colégio Nossa Senhora das Dores, e a segunda, em 1985, acompanhado pela mesma orquestra regida por Isaak Chueke, no Teatro Municipal, ambos em SJDR. Além disso, tocou a Rhapsody in Blue, de George Gershwin, acompanhado pela Sinfônica sob a regência de Teófilo Helvécio Rodrigues, no Teatro Municipal de SJDR, em 18/11/2007. Digna de nota foi ainda sua execução da 1ª parte do 1º movimento do Concerto nº 1 op. 23 em si bemol menor de Tchaikowsky, em duas ocasiões, no Teatro Municipal de SJDR, com a Banda do 11º Batalhão de Infantaria de Montanha, de SJDR: uma, em 11/4/1987, sob a regência do Tenente Lúcio Leitão, e outra, em 16/4/2011, tendo como regente o 2º Tenente Antenor Noé de Sousa.

Além de obras para piano solo, para piano a quatro mãos e acompanhamentos diversos, incluindo operetas e música sacra em harmônio e órgão, podemos citar ainda as grandes execuções por Prof. Abgar das seguintes obras camerísticas:
1. Duos para piano e violino:
Sonata nº 2, op. 12, nº 2, em lá maior, de Beethoven, em 1981, com o violinista Geraldo Ivon da Silva (“Patusca”) e Sonata op. 100, em lá maior, em 1990, com o violinista Alexandre Kanji, ambas no Teatro do Conservatório Estadual, de SJDR.
2. Duo para piano e violoncelo:
Sonata em mi menor op. 38, em 1994, no Teatro Municipal de SJDR, com o violoncelista Robson Fonseca Ferreira.
3. Duo a dois pianos:
Apresentou Paráfrase sobre Dark Eyes, de Gregory Stone, e Marche Héroïque op. 34, de Camille Saint-Saëns, em 1994, com a pianista Mercês Bini Couto; e também tocou, em 1994, a Dança Húngara nº 5, de Brahms, e a Marcha Militar op.51 nº 1, com o pianista Humberto Rutowitsch Garrón, ambos no Teatro Municipal de SJDR.
4. Trio para piano, violino e violoncelo:
Em Barbacena, no Teatro do Colégio Imaculada Conceição, Abgar se apresentou, em 19/10/1991, no “Concerto Mozart”, tocando o Trio nº VI em si bemol de Mozart e acompanhando trechos das óperas A Flauta Mágica, Don Giovanni e Bastien und Bastienne, promovido pela Sala de Música Heitor Villa-Lobos; na ocasião, o violinista era Paulo Miranda e o violoncelista, Robson Fonseca Ferreira.

A título de exemplo, reproduzo neste espaço o programa de um recital que Abgar apresentou no Teatro Municipal de Ouro Preto (Casa da Ópera), em 21 de agosto de 1981, em comemoração ao 43º aniversário de fundação do Grêmio Literário Tristão de Ataíde, promovido pelo referido Grêmio, pela Escola Técnica Federal de Ouro Preto e pela Universidade Federal de Ouro Preto. Naquela noite memorável, Prof. Abgar solou, bem como acompanhou os seguintes músicos são-joanenses: Aluízio José Viegas (flautista), Geraldo Luzia do Sacramento (clarinetista) e Vicente de Paulo Barbosa Viegas (tenor). Eis o citado programa:

1ª Parte

C. Cesarini: Firenze sogna – canto
Abgar Campos Tirado: Ária – clarineta
Abgar Tirado: Improviso – piano solo
Gastaldon: Musica Proibita – canto
W. Popp: Noturno – flauta
Puccini: Che gelida manina – canto

2ª Parte

Abgar Campos Tirado: Ária Antiga – flauta
Franz Liszt: São Francisco de Paula caminhando sobre as ondas – piano solo
Rossini: Cujus Animam (do Stabat Mater) – canto
Abgar Campos Tirado: Prelúdio, Marcha e Final – flauta, clarineta e piano

Igualmente Prof. Abgar ganhou notoriedade em outra área que exige perícia e entendimento perfeito da harmonia: a de pianista acompanhador, fazendo a parte de orquestra nos seguintes concertos, todos executados no Teatro Municipal de SJDR: Concerto em lá menor op. 54, de Robert Schumann, com o solo a cargo de Humberto Rutowitsch Garrón (4/7/1997); Concerto nº 5 op. 73 “Imperador”, de Beethoven (2008) e Concerto nº 2 em ré menor op. 40, de Mendelssohn (2009), acompanhando o solista Franz Ventura. Acompanhou também grandes cantores, como ocorreu em recital em 1986 com as sopranos Ruth Staerke e Leda Cintra, bem como com os tenores Antônio Casanova (português) e Tito Sbar (italiano).

Lembrar os artistas notáveis que freqüentaram a casa de Abgar é uma obrigação. Amigo dos grandes pianistas brasileiros, acolheu alguns dos principais, a saber: Isabel Mourão, que está residindo entre nós são-joanenses, Celina Szrvinsk, Anna Stella Schic (1925-2009), Arnaldo Estrella (1908-1981), Berenice Menegale e Magdalena Tagliaferro (Petrópolis, 1893-Rio de Janeiro, 1986). Além de pianistas, também visitaram a residência de Abgar a soprano Rute Pardini e os compositores José Maria Neves, Gilberto Mendes, Almeida Prado (1943-2010), o português Jorge Peixinho (1940-1995), o francês Michel Philipot (1925-1996), os uruguaios Conrado Silva e Héctor Tosar (1923-2002) e o argentino Eduardo Bértola (1939-1996). ³

Em especial, a amizade imorredoura entre Abgar e Magdalena Tagliaferro, a pianista laureada em todos os teatros do mundo e participante dos mais famosos júris de concursos internacionais, trouxe e tem trazido belos frutos e benefícios incontáveis à nossa cidade que ela amou e incluiu no circuito de suas apresentações, todas as vezes que retornava ao Brasil. Da grande amizade resultou esta comovente colaboração literária de Abgar no livro Magdalena Tagliaferro, um livro biográfico e de depoimentos de personalidades sobre Tagliaferro, a convite da autora Helena Beatriz Greco Laguna:

Sob o ponto de vista artístico, considero Magda Tagliaferro uma das mais geniais pianistas de todos os tempos, uma intérprete do mais alto nível, senhora de uma profunda compreensão musical, de uma técnica exuberante, mas sempre subordinada aos superiores imperativos da Música e nunca exibicionista. Possui uma sonoridade que fascina quem a ouve, ao lado de um frasear lúcido, sutil e do mais refinado acabamento. Sua versatilidade é impressionante e seu repertório, admirável, pela extensão e pela qualidade. Com a mesma superior autoridade e mestria, domina os mais diversos autores, das diferentes épocas e como só acontece com os grandes intérpretes, da mais acurada fidelidade ao texto musical, desponta, magnífica, sua inconfundível personalidade. E sob o ponto de vista humano, poder-se-ia dizer que em Magdalena Tagliaferro, a pessoa é tão admirável quanto a artista (ou ainda mais). Inteligente, culta e sensível, Magda Tagliaferro é possuidora de uma personalidade riquíssima, com notável capacidade de comunicação, profundamente amiga de seus amigos, grande conhecedora da natureza humana, a qual sente e compreende. Demonstra amar intensamente a vida, em todas as suas manifestações e, de modo especial, no que diz respeito ao Belo. O belo dos sons, das formas, das cores e dos corações. E eloquentemente sintetizando o lado artístico e o lado humano de sua personalidade, avulta a Mestra extraordinária, responsável pela formação de tantos artistas notáveis que hoje vêm fascinando as plateias internacionais. Magda Tagliaferro é sem dúvida uma criatura eleita dos céus: uma personalidade digna de ser amada, admirada e celebrada por todas as gerações e em todos os tempos. Abgar Campos Tirado, 01/06/1982

Vale igualmente conhecer o comentário de Abgar que figurou no programa do Recital Chopin que Magdalena Tagliaferro tocou no Teatro do Colégio Nossa Senhora das Dores, em São João del-Rei, em 26 de agosto de 1983, em comemoração ao 30º aniversário do Conservatório Estadual de Música Pe. José Maria Xavier, com o apoio da Prefeitura Municipal e Secretaria de Turismo. Antes de conhecer o pensamento de Abgar, vejamos o programa que a “Grande Dama do Piano Brasileiro” apresentou naquela noite memorável:

Primeira Parte

Polonaise Op. 26 nº 1
Quatro Improvisos: Op. 29, Op. 36, Op. 51 e Op. 66 (Fantaisie-Impromptu)
Tarantela Op. 43

Segunda Parte
Noturno Op. 27 nº 2
Três Estudos Op. 25 nº 5, Op. 10 nº 3 e Op. 25 nº 12
3ª Balada Op. 47

Não imaginávamos que essa seria a última apresentação da pianista em São João del-Rei. Vamos agora ao comentário de Abgar Campos Tirado sobre a concertista da noite:

Falar sobre Magda Tagliaferro é falar sobre uma das mais célebres pianistas de todos os tempos, digna de figurar ao lado de um Liszt, de um Busoni, de um Hofmann ou de um Horowitz; e, ainda assim, ela é única, incomparável. Sobrelevando a seu magistral domínio sobre o material sonoro, tão generosamente rico das mais belas cores e dos mais sutis matizes, existe algo de imponderável, diria mesmo, de metafísico, que envolve suas execuções, conferindo-lhe uma atmosfera transcendente, que arrebata o ouvinte, colocando-o em um estado de êxtase tão intenso, que nele se eterniza, proporcionando-lhe um grau de admiração por Magda Tagliaferro, que se abeira de verdadeiro culto! Nascida em Petrópolis, discípula de seu pai, Paul Tagliaferro, já aos treze anos conquista o Mundo, ao vencer o certame internacional de piano a que se submeteu no Conservatório de Paris, após cursar apenas um ano aquela venerável Instituição. Torna-se então a discípula de Alfred Cortot, que foi seu mestre por excelência e que por ela nutria profunda admiração. E desponta a jovem Magdalena para uma das mais gloriosas carreiras internacionais já registradas na História da Música. E ao lado da celebrada concertista nasce a extraordinária mestra, criadora de escola e método próprios que se imporiam soberbamente na pedagogia pianística, quer através da Cátedra Superior de Piano no Conservatório de Paris, quer através dos Cursos Públicos de alta Interpretação Pianística, ou da Escola Tagliaferro de São Paulo e de Paris. Ocupando posição de tal destaque no cenário pianístico internacional, sua presença é solicitada nos mais vários pontos da Terra na qualidade de intérprete (solando junto às mais célebres orquestras e regentes), de mestra, ou de membro do júri dos mais famosos concursos internacionais de piano, como o Chopin de Varsóvia ou o Tchaikowsky de Moscou, o de Bruxelas, o de Munique, o de Paris, o de Bucarest e outros (em Paris, realiza-se anualmente o Concurso Internacional de Piano Magda Tagliaferro). Possuidora de uma juventude inextinguível, Magda Tagliaferro continua a despertar o mais ardente entusiasmo do público, como em seu apoteótico retorno, em 1979, aos palcos dos Estados Unidos, quando após 39 anos de ausência, o Carnegie Hall, em Nova York, a recebeu de pé, em indescritível delírio, o que vem desde então se repetindo. Magda Tagliaferro de há muito vem gravando excelentes discos, tendo sua gravação dedicada à música de Gabriel Fauré recebido em 1981 o Grand Prix da Academia do Disco de Paris, e publicou, há alguns anos, um encantador livro de memórias, intitulado “Quase Tudo” que, a par da riqueza de conteúdo que nos transmite, revela na grande mestra respeitáveis qualidades de escritora. Desde menina, vem sendo admirada pelos maiores nomes do século como, entre muitos, Fauré, o já citado Cortot, Reynaldo Hahn, Stokowski, Furtwängler, Charles Munch, Villa-Lobos, sendo que muitos dos compositores lhe dedicaram obras. Em recente entrevista, o grande pianista Claudio Arrau falou de sua imensa admiração pela Arte de Magda Tagliaferro. Muito lhe devendo o mundo, principalmente o Brasil e a França, por sua atuação, vem recebendo dos governos os mais altos títulos e condecorações como: Grande Oficial e Comendador da Legião de Honra, Grande Oficial da Ordem Nacional do Mérito, Oficial das Artes e Letras de Paris, entre os franceses; a Condecoração da Ordem do Rio Branco do Brasil; o título de Baronesa de Nauplio; a Ordre Nicham Iftkar da Tunísia, além de outros títulos. Recentemente (agosto/1983) foi-lhe conferido o Título de Grande Oficial da Ordem Nacional do Mérito da Educação em Brasília. Neste ano de 1983, a notável pianista, que uma vez mais fascinou as plateias de Paris, Londres e Nova York, entre outras, comemora 75 anos de carreira internacional, iniciada, brilhantemente, aos quinze anos de idade. Por tudo o que foi dito, conclui-se que Magdalena Tagliaferro não é apenas uma artista de valor excepcional; é, sem dúvida, um dos grandes valores da humanidade e seus recitais, em São João del-Rei, perpetuar-se-ão como luminosos marcos dentro de sua quase tricentenária História Cultural. Abgar Campos Tirado, 26/08/1983

Parece-me oportuno, a título de registro histórico, consignar neste espaço a última carta escrita à mão, de Tagliaferro a Abgar:

Paris, 1º de outubro de 1984
Querido Abgar,
Apenas duas linhas para agradecer sua última carta e para que saibam que estou em plena recuperação e bem melhor. Podem imaginar o quanto me entristeceu o não poder ir ao Brasil nesta temporada. Tive que me conformar. Obrigada também pelos telefonemas da Sylvia. Foi tão bom saber que vocês pensavam em mim! Sofri muito e só depois de radiografias e echografias, os Profissionais chegaram à conclusão de não me operar pois tenho, em particular, uma colite com divertículos no cólon que causou tanto sofrimento. Não fosse a presença da minha Arlette, não sei o que teria sido de mim.
Esperando que esta os encontre todos em perfeita saúde e felizes da vida, aqui vae um grande abraço a São João del-Rei onde fui tão feliz, e a todos os que você sabe que quero bem.
Em particular para Adair e para você, querido Abgar, muito carinho e abraços da sua Magda

Finalmente, a meu pedido, Abgar consentiu em dar o seguinte depoimento sobre sua amizade com Magdalena Tagliaferro:

Desde que a vi pela primeira vez, em recital em Belo Horizonte, no ano de 1956 passei a manter em relação à pianista quase que um culto. Falei com ela em 1964 no Rio de Janeiro, mas somente em 1980, em Uberlândia, teve início nossa grande amizade, incluindo sua maior amiga Arlette Muniz. A convite meu, Magdalena apresentou-se pela primeira vez em São João del-Rei, em 1981. Em 1982 ficou conosco em São João del-Rei, por sete dias, tendo eu, convidado por ela, dias antes, ido a São Paulo para concerto seu com orquestra. Em 1983 veio ela pela última vez a São João del-Rei, ficando conosco por dez dias. Dias depois fui estar com ela no Rio de Janeiro, podendo conversar bastante com ela e com Arlette, no apartamento de Myrian Dauelsberg, onde se hospedavam, indo eu inclusive até o aeroporto em sua partida para Paris. Em 1984 Magdalena tocou também em Londres, mas naquele ano não veio ao Brasil. Mas nos falávamos através de cartas e de telefone. Naquele ano ela se submeteu, na Europa, a tratamento de saúde. Em 1985, voltou ao Brasil e eu estive presente ao Recital de Gala no Teatro Municipal, no Rio de Janeiro, promovido pela Dell' Arte, com a presença do presidente da República, José Sarney, e do Governador Leonel Brizola. Naquela ocasião, o presidente Sarney fez uma bela peça literária em louvor à pianista, lida pelo ator Paulo Gracindo, quando também foi condecorada pelo presidente da República. Ela, em brilhante improviso, fez o agradecimento. A seguir, houve uma recepção no apartamento de Myrian Dauelsberg, para a qual fui convidado. Ali estavam grandes personalidades, entre as quais, Francisco Mignone, Mindinha Villa-Lobos, Austregésilo de Athaíde, Eurico Nogueira França e sua esposa, a pianista Ivy Improta, o pianista francês Daniel Varsano, a pianista Júlia Wagner Cohen e muitos outros nomes notáveis. No dia seguinte voltei ao apartamento para despedir-me de Magdalena, que voltaria para Paris. Em 1986, Magdalena voltou ao Brasil e falei com ela, por telefone, informando-a de que no começo da semana seguinte iria vê-la no Rio, levando-lhe, inclusive, balas “candy” caseiras, que ela muito apreciava. Suas palavras de despedida: “Então, até a semana que vem!”. Mas poucas horas antes de meu embarque, tive a triste notícia: Magdalena falecera repentinamente. Fui para o velório, no Teatro Municipal e acompanhei seu enterro, no cemitério de São João Batista. O falecimento se deu a 09 de setembro de 1986 e o funeral, no dia seguinte. De Magdalena, além de cartas, fotos e gravações, tenho velha partitura do Carnaval de Viena, de Schumann, que a ela pertenceu e com a qual estudou, ainda quase menina, essa peça musical. Há na partitura anotações de seu mestre (Marmontel? Cortot?). Tenho muito orgulho dessa posse. Sinto-me muito feliz de ser considerado como pertencente ao círculo mais íntimo, familiar, da grande pianista. Abgar Campos Tirado, 25/03/2011

Prof. Abgar também mostrou domínio absoluto do universo musical e filosófico de Nietzsche, ao discorrer e solar peças escolhidas do renomado filósofo-músico na PUC-BH, na UFJF e no Campus Dom Bosco da UFSJ.

Outra área de sua competência, pelo menos desde 1993, é a de comentarista sacro da Semana Santa de São João del-Rei. Suas explicações do texto sacro e da música constituem um ponto alto das festividades na Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar, transmitidas pela Rádio São João del-Rei e TV Campos de Minas, além de outros veículos, disponibilizadas também na Internet para todo o mundo em tempo real. São altamente comovedores os seus comentários sobre os Ofícios de Trevas, levando amiúde o público às lágrimas.

Atualmente Prof. Abgar é o Presidente de Honra da Sociedade de Concertos Sinfônicos. Também outra atividade em que se destacou foi sua participação em várias bancas julgadoras, cabendo citar as mais importantes: em Juiz de Fora e Varginha (de piano) e na UFSJ (literária).

Bacharel e licenciado em Letras Anglo-Germânicas pela Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras em 1962 (atual UFSJ), Abgar foi orador pela turma saudando o paraninfo Cardeal Dom Carlos Carmello de Vasconcelos Motta (1890-1982).

Professor de Português e Inglês por concurso de provas e títulos na rede estadual, hoje Prof. Abgar está aposentado, mas atua ainda como professor voluntário de Latim no Seminário Diocesano São Tiago. Através do magistério, orgulha-se de ter colaborado para o florescimento de novas lideranças locais e até nacionais, e para a melhoria do padrão intelectual e espiritual de seus alunos. Não sei se estou cometendo uma indiscrição, mas soube de fonte segura que Prof. Abgar, aos 26 anos, submeteu-se a dois concursos realizados em Belo Horizonte, para titular, respectivamente, da cadeira de Português e da de Inglês do Colégio Estadual “Cônego Osvaldo Lustosa” de SJDR. Pois bem: em ambos, logrou alcançar o primeiro lugar no Estado de Minas Gerais.

Ainda cabe lembrar que Abgar é sempre convidado por diversas entidades a palestrar sobre assuntos variados que brilhantemente domina, tais como: Hino Nacional Brasileiro, Beethoven, Villa-Lobos, Pe. Antônio Vieira (em 2008, em comemoração pelo IV centenário do nascimento do orador sacro português) e outros.

Sobre a participação ativa de Abgar em academias, institutos e entidades beneficentes e culturais cabem algumas palavras. Inicialmente, é membro efetivo da Academia de Letras de São João del-Rei desde 1972. A cadeira que Abgar ocupa tem como patrono o saudoso Prof. Domingos Horta (Itabira, 1904-São João del-Rei, 1967). Salvo engano, Abgar é o membro efetivo vivo mais antigo da Arcádia são-joanense.

Meu homenageado pertence também à Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais, que se reuniu extraordinariamente em São João del-Rei para dar posse ao nosso conterrâneo ilustre. A cadeira que Abgar ocupa tem como patrono o grande orador são-joanense Dr. Belisário Leite de Andrade (São João del-Rei, 1911-Rio de Janeiro, 1977).

Devo ainda salientar que o Prof. Abgar é membro de outras ilustres entidades, tais como sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei e do Rotary Club; sócio correspondente da Academia Valenciana de Letras (para a qual escreveu artigo sobre Beethoven, intitulado “A Vitória do Espírito sobre a Adversidade”.

Da Fundação Oscar Araripe em Tiradentes é membro curador. Abgar também é colaborador permanente do jornal da ASAP sobre temas os mais variados. É também conselheiro do CEREM – Centro de Referência Musicológica José Maria Neves.

Por essas razões, e por muitas outras que não foi possível destacar aqui, mas que estão na memória dos são-joanenses, o título de "glória de São João del-Rei" para o Prof. Abgar não constitui nenhum exagero de minha parte, mas a expressão fiel da gratidão da comunidade são-joanense pelo muito que ele tem feito em prol do engrandecimento de sua terra natal.


NOTAS DO AUTOR


¹
TIRADO, A. C.: Raízes e Coração, A Voz do Lenheiro Editora, São João del-Rei, 2ª edição, 1997. Conforme Eric Ponty assinalou na Apresentação ao referido livro de Abgar, “quem já leu seus poemas sabe que sua veia clássica transparece nos versos livres e metrificados, com a maestria de quem dedilha a língua como as teclas de um piano, ou seja, a virtuosidade de sempre."

² GUERRA, A.: Pequena História de Teatro, Circo, Música e Variedades em São João del-Rei: 1717 a 1967, editado pela Sociedade Propagadora Esdeva "Lar Católico", Juiz de Fora-MG, p. 306.

³ Prof. Abgar, com sua elegância tão conhecida de todos os que convivemos ou convivem com ele, faz a seguinte ressalva, digna das pessoas finas e escrupulosas: “Citar todos meus amigos musicistas compreenderia uma lista interminável e certamente conteria omissões imperdoáveis. Mesmo assim, considerando sua relevância no cenário musical e/ou a convivência fraterna, tento fazer uma relação desses nomes, a maior parte integrantes de nossas corporações musicais. Além dos já enumerados, especialmente meus mestres de piano, como também meus parceiros em apresentações públicas, não podendo igualmente esquecer os professores de nosso Conservatório (aqui representados pela Profª Vera Bittar), de nossa UFRJ e de entidades musicais de outras localidades, ouso ainda citar os seguintes, alguns dos quais já falecidos:
- os pianistas Homero de Magalhães, Eduardo Hazan, Luís Henrique Senise, Ricardo Castelo Branco, Márcio Nacif, Ronaldo Mansur, Alfredo Amaral de Carvalho, Jayme Cabral Guimarães, Anderson Daher, Thiago Bertoldy, Eduardo Tagliacci, Humberto Rutowitsch Garrón, Estela Caldi, Carla Reis, Cora Pavan Capparelli, Clara Paes Leme, Lídia Limp, Maria Lúcia Coutinho, Giselle Nacif Witkowski, Maria Inês Nacif, Hugo Adaad, Maria Salomé Moraes, Marcos Leite, Sérgio Vianna, Lygia Cardoso de Assis, Maria Rita Bizzotto, Maria Amélia Viegas, Adriana Abid Mundim, Aline dos Santos e Ananda Nicolau;
- os violinistas Diomedes Garcia de Lima, Carmélio de Assis Pereira, Milton Couto, Márcio Valadão, José Lourenço Parreira, Santino Parpinelli, Mariuccia Yacovino, Cleiton Ribeiro, Laetícia Ferreira, Jorge Sade, Geraldo Ivon da Silva ("Patusca"), Anthony C. Moura Nery, Paulo Márcio G. Amaro e Rafael Dias;
- os clarinetistas Walter Alves de Souza, Ney Franco, Luciano Trindade do Carmo, Sadik Haddad, Edson Sales, Antônio Carlos Rozzeto e Jonas Fernando;
- o clarinetista e saxofonista José dos Santos;
- o clarinetista e oboísta Sílvio Padilha;
- os violoncelistas Santiago Sabino de Carvalho, David Chew, Robson Fonseca Ferreira e Abel Moraes;
- os flautistas Joaquim da Rocha, Stael Viegas Malamut, Expedito Vianna, César Augustus Diniz, Antônio Carlos Guimarães, Maria Salomé Viegas, Fabiana Coelho, Daniel Della-Sávia, Fernando Sales, Mauro A. dos Santos, Nilson Padilha Castanheira e Edmundo da Silva Filho;
- os trompistas Celso Rodrigues Benedito, Edmar Ávila ("Mazinho") e Francisco Valim;
- a violista Ivone Cavalcante Lage;
- o violonista: José Severino de Assis (representando os demais);
- o bombardinista: Ajax Zanetti de Oliveira;
- o trompetista Francisco Mangabeira;
- o fagotista Romeu Rabelo;
- as cantoras e atrizes Celma e Célia;
- o pianista e cantor Tarcísio do Nascimento Teixeira;
- os cantores Emanoel C. Velozo, José Geraldo da Silva ("Tuca"), José Raimundo de Ávila, Dêivide Ávila, Lucilene Silvério, Elisabeth Almeida, Claudiney Gouveia, Diemes Evandro, Rubens Rodrigo, Ary Rodrigues, Maria Panamá, José R. Lobato Costa, Antônio Moura (Toné), Vicente Viegas, Sérgio Silva, Belchior dos Santos, Dimas Luís, Anacleto Pimenta, Antônio Geraldo Reis, Euclides J. Corrêa, Célia Montrezor, Salete Bini, Jânice Mendonça de Almeida, Leda Neto Zarur, Leila Taier, Maria do Carmo Hilário ("Quiquinha"), Marta Hilário Teixeira, Ângela M. Tirado dos Santos, Gina Biavati, Lilia Assis, Elisabete Mendonça, Kissya Oliveira, Danúbia Terra, Maria Catarina Guimarães, Maria Aparecida Fonseca, Márcia Silva, Selma Silva, Nilcéia Neves, Fátima Batista Lopes, Denise Tavares, Elenis Guimarães e Maria da Conceição Santos;
- os regentes (e instrumentistas ou cantores): João Cavalcanti, Pedro de Souza, Emílio Viegas, Carlos Eduardo Assis Camarano, Willer Silveira, Paulo Miranda, Enivaldo Arruda, Luiz Antônio Bini, Benigno Parreira, Adilson Cândido, Ilan Sebastian Grabe, Rodrigo Sampaio, Hélio Magalhães, Maria Stella Neves Valle, Anizabel Rodrigues de Lucas e Marily Assis;
- Inês R. Frância (regência de coral);
- André Luis Pires (piano e órgão);
- Loló Carvalho (canto e piano);
- Lúcio Barreto (violoncelo e canto);
- Irene Sacramento (violino e teclado);
- Vicente Valle (composição);
- Gustavo de Carvalho ( Maestro "Guaraná") (arranjador e regente da Rádio Nacional);
- José Rodríguez Fauré (maestro e compositor argentino);
- Geraldo Barbosa de Souza (composição, regência e instrumentos);
- Marcelo Ramos (regência, violoncelo e composição);
- Aluízio José Viegas (regência, instrumentos e musicologia);
- Francisco José dos Santos Braga (composição eletroacústica e piano);
- Ernani Aguiar e Normando Carneiro da Silva (composição e regência);
- Emmanuel Coelho Maciel (violino, composição e regência);
- Paulo André Tirado dos Santos (composição e teclados);
- Teófilo Helvécio Rodrigues (regência, composição e trompete);
- Franz Ventura (piano e composição);
- Oswaldo C. de Paula (violão e composição);
- Chekrouni Mohamed (Diretor do Conservatório Municipal de Música de Meknes, Marrocos)."

LAGUNA, H.B.G.: Magdalena Tagliaferro, Irmãos Vitale Editores, São Paulo, 1983, p. 117.

O elogio ao Prof. Domingos Horta, pronunciado em 1979, está estampado na Revista da Academia de Letras, Ano I, nº 1, 2005, editada pelo Setor de Gráfica da UFSJ, São João del-Rei, p. 127-136.

O elogio a Belisário pronunciado por Abgar por ocasião de sua posse está estampado na Edição Comemorativa do 33º Aniversário da Academia Municipalista de Minas Gerais, Edições AMULMIG, Belo Horizonte, 1996, p. 15-24.

Artigo publicado no Livro Comemorativo dos 60 anos da criação da Academia Valenciana de Letras, vol. 1, nº 1, Editar Editora Associada, Valença-RJ, 2009, p. 147-152.

Imagem principal: Foto do autor desta matéria ao lado de Prof. Abgar, tirada na sede do Rotary Club de São João del-Rei, em fins de julho de 2010


* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, além da Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas culturais, musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do patrimônio histórico nacional.Mais...

domingo, 27 de março de 2011

Registro civil tardio de Nhá Chica

Por Wainer Carvalho Ávila


Este é um momento histórico para os católicos brasileiros. Uma menina de mãe escrava, pobre, negra, analfabeta, com humildade e coragem assumiu um destino reservado a pouquíssimas pessoas chamadas à santidade, se levarmos em consideração o contexto social e econômico em que nós brasileiros vivemos.


Essa menina, na Capela de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, filial da Matriz de São João del-Rei, foi batizada em 26 de abril de 1810, com o nome de Francisca. Hoje está em processo de beatificação na Santa Sé, com o nome de Francisca Paula de Jesus, a Nhá Chica, venerada em todo o Sul de Minas, cujo túmulo se encontra no interior do Santuário de Nossa Senhora da Conceição, na cidade de Baependi. Por sorte ou por possível capricho do destino, veio às mãos do Monsenhor Sebastião Raimundo de Paiva um livro de batizados do começo do século XIX que se encontrava desaparecido, onde constava o assento referente ao batizado da menina Francisca, como se verá com maior detalhe dentro da petição inicial e da sentença prolatada pelo MM. Juiz de Direito da 3ª Vara Cível da Comarca de São João del-Rei.


Este fato vem dizer que a fé ainda é a força viva que move o mundo e que se você, leitor, tem a sorte de ser uma pessoa de fé, ajude-nos a levar em frente, com força e determinação, o processo de santificação de Nhá Chica, falecida há 116 anos em Baependi. O registro civil constante destes autos ocorrerá no dia 30 de abril em Rio das Mortes, com a presença do Revmo. Bispo Diocesano de São João del-Rei, Dom Frei Célio de Oliveira e toda a comunidade que crê no poder de intercessão da Santa Nhá Chica. Participe e apóie da forma que puder ou julgar mais conveniente. Certamente estará fazendo um bem e terá retorno em nome da mulher e santa que soube dar uma vida de 85 anos sem nada pedir mas tudo ofertando, na pobreza e na humildade - algo que está faltando a este mundo materialista.


Aguardemos com o maior interesse o anúncio que será feito por Sua Santidade Papa Bento XVI sobre a beatificação de dois luminares da fé católica: beatos João Paulo II e Nhá Chica, evidenciando que, mesmo considerando as distâncias de tempo e de lugar em que ambos viveram, a enorme e edificante fé os une e aproxima.



1) Petição Inicial



Exmo. Sr. Juiz de Direito da 3ª Vara Cível da Comarca de S. João del-Rei, MG.



Os requerentes Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, sociedade civil com finalidades cientificas e culturais, sem fins lucrativos, CNPJ 18 994 319/0001-45, com endereço na Rua Santa Tereza nº 127-Centro (Casa mais antiga), São João del-Rei/MG, representado por seu presidente José Antônio de Ávila Sacramento; o Rotary Clube de São João del-Rei (Distrito 4580), entidade civil de direito privado, CNPJ 02 599 941/0001-70, com endereço na Rua Antônio Tirado Lopes, 51, Villa Marchetti, São João del-Rei/MG, representado pelo seu presidente Agnelo Alencar Dias; a Associação de Amparo e Promoção ao Carente do Distrito do Rio das Mortes, CNPJ 21 274 063/0001-06, com endereço na Rua Antônio Luiz Carvalho, 67, distrito do Rio das Mortes/São João del-Rei, representado pelo seu presidente Sérgio William de Oliveira, pela presente ação, com fundamento nos mais elevados e altruísticos interesses de São João del-Rei e região de sua influência, particularmente a comunidade de fé católica, por intermédio do advogado in fine assinado, inscrito na OABMG sob o número 11544 e constituído em virtude dos inclusos mandatos que passam a integrar esta peça vestibular, sustentado pelo Código Civil e disposições adjetivas civis pertinentes à espécie, vêm à presença de V. Exa. para, após a exposição constante dos itens abaixo, requerer a prestação jurisdicional pelos motivos de relevante valor moral, religioso, social e legal do presente feito.


Demandam os jurisdicionados signatários desta peça inaugural de justificação destituída de caráter contencioso, o REGISTRO CIVIL TARDIO da conterrânea FRANCISCA PAULA DE JESUS - NHÁ CHICA, cujos procedimentos canônicos, com trâmites na Santa Sé, encontram-se em fase avançada, o que culminará com a sua ascensão à dignidade de PRIMEIRA SANTA BRASILEIRA da Igreja Católica Apostólica Romana, para gáudio e orgulho da maior nação católica do planeta.


O que se pretende, MM. Juiz, com este procedimento regimental, com supedâneo nos artigos 50, parágrafos 4º e 52 em seu § 2º, todos da lei 6.015 de 31 de dezembro de 1973, que versam sobre registros públicos, é o REGISTRO CIVIL, QUAE SERA TAMEN, da nacionalmente conhecida e venerada Senhora FRANCISCA PAULA DE JESUS, a qual está nos compêndios religiosos com a sublime e carinhosa alcunha de NHÁ CHICA, nascida no distrito são-joanense de RIO DAS MORTES PEQUENO (topônimo que poderá ser reabilitado, dependendo da representação política e da vontade do povo daquela comunidade).


O tema ora protocolizado e submetido à justiça encontra amparo legal nos artigos 75, 76 e 76 em seu parágrafo único do Código Civil e 3º e 4º do Diploma Processual Civil e estão evidentes a legitimatio ad causam, a legitimatio ad processum e o jus postulandi.


Esta causa, embutida nas razões expostas no presente petitório, transcende os limites do rigorismo legal e a rijeza e formalismos jurídicos, pois se uma causa for limitada ou sofrer efeitos de limitação por qualquer forma de imposição humana, produzirá, por conseqüência, efeito também limitado “limitata causa limitatum effectum producit.”


A veneranda e venerada senhora foi levada à pia batismal em Rio das Mortes, no dia 26 de abril de 1810 e assim está escrito ao receber o primeiro e mais importante sacramento da Igreja Católica (doc. junto):



FRANCISCA – aos vinte e seis dias de abril de mil e oitocentos e dez na capela de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, filial desta Matriz de São João del Re, de licença do Reverendo Joaquim José Alves batizou e pôs os Santos Óleos a Francisca, filha natural de Isabel Maria, e foram padrinhos Ângelo Alves e Francisca Maria Rodrigues todos daquela Aplicação. O Coadjutor Manoel Ant. de Castro.



É, portanto, este o único documento de que dispôs a imaculada Serva de Deus que semeou tanto sobre a terra que pisou, particularmente a nobre terra de Baependi-MG, onde foi reconhecida e continua merecendo o respeito e a admiração daquela gente sábia e culta, de princípios sólidos e decisões inabaláveis, conforme se extrai das obras ali existentes, de altíssimo cunho social e caritativo e onde se afirma terem ocorrido fatos considerados milagres pelas súplicas à Santa Nhá Chica.


Ainda com respeito à inabalável fé nela depositada, pede-se a especial atenção de todos que vierem a ter oportunidade de manifestação nestes autos, para os dois grandes e suntuosos Congressos ou Encontro de Estudos sobre Nhá Chica, Mulher de Deus e do Povo no Contexto da História. O Primeiro Encontro ocorreu nos dias 21 e 22 de maio de 2004; o segundo terá início em 16 de junho do corrente ano de 2006, A FIM DE DAR PROSSEGUIMENTO AOS TRABALHOS JÁ DESENVOLVIDOS E COMO PREPARAÇÃO PARA A BEATIFICAÇÃO DA SANTA DE BAEPENDI, (documento anexo que passa a ser parte integrante deste feito para posteridade e para que a História faça justiça aos eminentes promotores de tão altruísta iniciativa, que deveria ser, por nós, imitada).


O primeiro Encontro ou Congresso teve a participação de eminentes e cultuados professores, teólogos e filósofos, a exemplo dos estudiosos e pensadores José Nicoliello Viotti, Maria José Turri Nicoliello e Maria do Carmo Nicoliello Pinho; houve participação de conferencistas de destaque no cenário nacional, com a presença do Excelentíssimo e Reverendíssimo Dom Frei Diamantino Prata de Carvalho e Presidente de Honra o Arcebispo de Mariana Dom Luciano Mendes de Almeida. O segundo vem com acréscimo do cardeal Emérito Dom Serafim Fernandes de Araújo, na Presidência de Honra, e estará lembrando os 111 anos do falecimento da Serva de Deus.


Para nos situarmos no contexto histórico da época, era São João del-Rei a mais promissora das vilas, ao lado de Vila Rica do Ouro Preto, e foi escolhida como capital de uma das grandes comarcas da capitania mineira: a Comarca do Rio das Mortes. Em 1714 a Capitania das Minas Gerais sediava três importantes comarcas: a de Vila Rica, com sede na hoje Ouro Preto, a do Rio das Velhas, cuja sede era Vila Real, hoje Sabará e a terceira e talvez mais importante, a nossa de Rio das Mortes, que tinha seu fórum em São João del-Rei. A Comarca de Rio das Mortes, para a cobrança do quinto do ouro, teve dilatado o trecho da capitania que se estende do Ribeirão das Congonhas, nas divisas da Comarca de Vila Rica até à Vila de Guaratinguetá, pela serra da Mantiqueira ao sul, não lhe assinalando a linha do oeste, por se tratar, como explica Diogo de Vasconcelos, de sertão desconhecido. Modificações tiveram lugar em 1823, data da sedição de Ouro Preto, quando São João del-Rei sediou o governo da capitania durante todo o período de comoção, até que fosse restaurada a ordem. A importância política deste foro foi de tal ordem na colônia e de tal expressão para a coroa lusa que pouca atenção de dá, entre nós, ao estudo e à pesquisa histórica dessa “quadra” da história pátria.


As localidades de São Miguel do Cajuru e Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno tiveram presença sólida nesse período e na capela onde recebeu o sacramento do batismo, na pia de pedra-sabão ainda prestando seus sagrados serviços, FRANCISCA iniciou sua profícua vida religiosa e de muitos sofrimentos e perseguições, na sua condição de filha natural de mãe escrava. Na mesma capela, cujas pedras de alicerce ainda estão vivas e a cobrar sua reconstrução, foram feitas peregrinações memoráveis. Ali celebrou-se o casamento de Diogo Garcia da Cruz com a ilhoa Júlia Maria da Caridade, em 29 de junho de 1724, e em dois de janeiro de 1722 instalou se o Compromisso da Irmandade de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, sendo Juiz o Cap. Pedro da Silva e manda que a “treze do mês de junho se celebre a festa do Bem-aventurado Santo Antônio, padroeiro desta nossa Irmandade com a maior devoção que e puder ser, a saber: Missa cantada ou rezada, sermão com sua procissão e será dada de esmola ao reverendo Vigário seis oitavas de ouro, e ao diácono e subdiácono duas oitavas de ouro a cada um”.


Auguste de Saint Hilaire fornece dois textos de real valia para elucidação do que deve ter acontecido e transcrevemos dois excertos, o primeiro com a seguinte redação:



Depois de me ter despedido de meu velho hospedeiro, o sr. Anjo, de sua filha D. Rita e de sua companheira D. Isabel, eu me pus a caminho. O velho Anjo chorou ao me abraçar e todos exprimiram o seu pesar com a minha partida. Anjo devia ter uns setenta anos, mas era muito ativo, ria e resmungava muito. Contudo, a todo instante dava provas da bondade de seu coração.”



Em 1822, voltando a São João del-Rei, o sábio pesquisador e explorador escreveu:



O Anjo e suas duas mulatas parecem rever-me comovidos (...) não foi sem emoção que deixei os bons habitantes do Rio das Mortes, que também tinham lágrimas nos olhos quando nos separamos... separamo-nos para sempre. Há nestas palavras algo de solene que sempre me causou profunda impressão quando necessitei dizê-las a quem tanto estimava”.



O conferencista do Primeiro Encontro, representando a Universidade Federal de São João del-Rei, Antônio Gaio Sobrinho, realizado em Baependi, em 2004, levanta considerações de que muito provavelmente NHÁ CHICA e sua mãe Isabel tenham sido escravas de seu padrinho Ângelo (nome que está na certidão de batismo) e se mudaram para Baependi após a sua morte, em 1823. Levanta ainda a hipótese que não pode ser desprezada de que Ângelo, o mesmo citado por Saint Hilaire como Anjo, seja o pai da menina, pois Ange, do francês, tanto pode ser Anjo como Ângelo. Levanta também, com propriedade, a devoção de Nhá Chica a Nossa Senhora da Conceição, quando a padroeira dos negros era Nossa Senhora do Rosário e, ainda, o fato de que NHÁ CHICA, mulher, analfabeta, negra e pobre, no terrível sistema discriminatório da sua época, se tornou mulher conhecida pela História. Realmente a História não guardou muitos nomes de mulheres e quando o fez retratou rainhas e princesas. Para ilustrar esta petição, e não dissertar interminavelmente, anexamos aos autos a conferência proferida por Gaio no Primeiro Congresso para Beatificação da senhora do Rio das Mortes (doc. acostado).


Contribuição valiosa vem do escultor sacro Osni Geraldo de Paiva que vasculhou baús e alfarrábios até encontrar a certidão de batismo da mãe de FRANCISCA, chamada Isabel:




Paróquia da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar


Diocese de São João del-Rei



CERTIDÃO


Certifico que, às folhas 190 (cento e noventa”do Livro de Registro de batismos de 1780 a 1784, Tomo II, desta Paróquia encontra-se e do teor seguinte: IZABEL – Aos treze de outubro de mil e sete centos, e oitenta e dois na Capella do Cajurú filial desta Matriz o reverendo Capelão Gonçalo Ribeiro Britto batizou e pos os Santos Óleos a = Izabel filha de Roza Banquela solteira escrava de Costodio Ferreira Braga: forão padrinhos Victorino e Faustina pardos solteiros escravos de Dona Quitéria Correa de Almeida todos desta frequezia. / O Coad.tr Joaquim Pinto da Silveira.


Nada mais continha o dito assentamento, que foi fielmente copiado do original a que me reporto.



Ita in fide Parochi.


São João del-Rei, 22 de abril de 2006.



Assinado: Mons. Sebastião Raimundo de Paiva


Pároco



O fato é validado pelos senhores Mons. Luiz Gutierrez, Frei Paolo Lombardo e Irmã Célia Cadorim in “Nhá Chica –A Pérola de Baependi”, pág. 27, trecho aqui transcrito:



Portanto, Francisca era filha de Izabel Maria, que era filha de Roza Banguela ou Benguela, (era comum designar os escravos pelo nome da região africana de onde provinham), solteira, escrava de Costódeo Ferreira Braga. No batistério de Francisca – como em quase todos relativos aos escravos – não consta o nome do pai, que terá sido um outro escravo ou alguém proprietário daquelas terras.



O advogado in fine firmado escreveu em outro processo do mesmo teor (Registro Civil Tardio do Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes – pela 3ª Vara desta Comarca) que a memória brasileira não é muito deificada e inquestionável é o misoneísmo mineiro, culminando com algum descaso que os pesquisadores e historiadores são-joanenses dedicam às personagens de nosso culto histórico. Partindo-se desta premissa não é raro encontrarem-se manuscritos ou qualquer forma de documento antigo jogado às traças, goteiras ou cupins, sem mencionar, por vergonha ou pejo, o que serve de pasto a roedores e de divertimento para vandalismo de não poucos. Mas há os que, por abnegação e a duros sacrifícios, tornam-se credores de nossa gratidão e perseguem os tesouros históricos a feros padecimentos, tesouros que revelam apenas o que sobrou da nossa História.


Lamentável é que há pouco interesse de nossas instituições, autoridades, pesquisadores a respeito desta mulher valorosa. Não é preciso ser religioso ou mesmo ter fé profunda para avaliar e aceitar o valor dela. Não é só pelo lado espiritual que ela tem importância para a comunidade são-joanense; sua obra representa muito e sua ascensão será boa para São João del-Rei. Não devemos permitir que ocorra com ele o que aconteceu com o Tiradentes e a Fazenda do Pombal, aqui pertinho e onde 90 por cento (talvez 99%) de nosso povo nunca foi e nem pretende ir. O Tiradentes, que nasceu em São João del-Rei e foi executado no Rio de Janeiro, tem o Governo Mineiro em Ouro Preto na data de sua imolação em holocausto. Não somos uma comunidade de reações conscientes; quase não temos voz e portamos subdesenvolvimento mental bastante conhecido, é excusado dizer mais.


Apenas com o fim de ilustrar, ouvi de Monsenhor Sebastião Raimundo de Paiva que um desconhecido apresentou-se portando um embrulho rústico e pedindo alguns vinténs pelo objeto. Aberto o estranho pacote, verificou o sacerdote que se tratava de um livro antigo de registro de batizados e que em seu bojo estava o assento de FRANCISCA PAULA DE JESUS.


Não há dúvida de que se persistirmos em descurar da reconstituição das verdades estaremos cometendo o pecado, ou o crime, de omissão, muito mais prejudicial que o da ação, como dizia o Padre Vieira:



Sabeis cristãos, sabeis príncipes. Sabei Ministros, que se vos há de pedir estreita conta do que fizeste; mas muito mais estreita do que deixaste de fazer. Pelo que fizeram se hão de condenar muitos; pelo que não fizeram, todos.



O filho ilustre desta terra, o mais ilustre de todos, Joaquim José da Silva Xavier, o Alferes Tiradentes, da mesma forma que FRANCISCA, não tinha documento conhecido. Por morte do religioso Alberto Bastos seus papéis velhos não encontrariam outra destinação senão a fogueira. Hoje estão nos autos da ação de Registro Civil Tardio do Tiradentes, sob o número 0625 05 048873-7, distribuída por sorteio para o juiz da 3ª Vara Cível. Do Fórum Carvalho Mourão, para gáudio e proveito das próximas gerações e desta urbe, terra-mater do Patrono Cívico da Nação Brasileira.


FRANCISCA, DÁDIVA DE DEUS AOS POBRES E AFLITOS é focalizada em sua individualidade de Serva de Deus nos contextos sócio-políticos e histórico-religiosos de sua época, bem como sua atualidade no século XXI, com reverências à sra. Anália Vilas Boas Sales Moreira, Notária do Tribunal pela Causa de Beatificação de NHÁ CHICA. Tudo nos leva a crer que chega a hora de a Santa Sé se pronunciar pela Beatificação, tais os documentos e provas no Vaticano, pois



Praticar o bem é a mais prática forma de devolver ao mundo os benefícios que dele recebemos e não há partida, quando as pessoas que partem deixam pegadas na terra em que pisaram (...) pois há os que levam muito e nunca há os que não levam nada.



Para nós a História foi pródiga em personagens e feitos, mas em favor dela, FRANCISCA, mulher ou santa ou mulher e santa, o que podemos dizer se formos perguntados? Estamos assistindo ao sublime trabalho desenvolvido pela sua ascensão ao altar dos Santos, onde reuniões e congressos se sucedem. O Segundo encontro será este mês no sul do Estado, pois no dia 14, 111 anos terão transcorrido de sua morte. E nós, são-joanenses, conterrâneos e irmãos de NHÁ CHICA de Rio das Mortes Pequeno, o que estamos fazendo?


É vasta já a literatura sobre a conterrânea e vai a citação de alguns autores e obras publicadas: “Virtudes e Devoção de Francisca Paula de Jesus – Nhá Chica”, de Monsenhor Geraldo Junqueira; “Francisca Paula de Jesus Isabel – Nhá Chica” de Monsenhor José do Patrocínio Lefort; “Anais, Primeiro Encontro de Estudos sobre Nhá Chica – Mulher e Deus e do Povo no Contexto da História”, compêndio de vários autores; “Nhá Chica, a Pérola de Baependi”, de Monsenhor Gutierrez, Irmã Cadorim e Frei Lombardo. De nossa cidade há publicações literárias sobre Nhá Chica, do professor Antônio Gaio Sobrinho e do pesquisador José Antônio de Ávila Sacramento. O Instituto Histórico e Geográfico local vem se empenhando na causa de Nhá Chica, com visíveis resultados (textos acostados).


Francisca poderá, sem dúvida, ser beatificada na visita do Papa Bento XVI ao Santuário de Aparecida. O Papa Sixto V criou a Sagrada Congregação dos Ritos com a Constituição Immensa Aeterni Dei, em 1588. Paulo VI, em 1969, fez a Constituição Apostólica Sacra Rituum Congregatio, com uma Congregação para o Culto Divino e outra para a Causa dos Santos com Departamento Judicial, do promotor Geral da Fé e o Histórico-Jurídico, conforme queria Pio XI em 1930. A Constituição apostólica Divinus Perfeccionis Magister, de 25 de janeiro de 1983 e as Normae Servandae in Inquisitonibus as Episcopis Faciendis in Causis Sanctorum criou o colégio de relatores para preparação das Positiones Supervita et Virtutibus (ou super martyrio) dos Servos de Deus, mudado para Congregação para Causas dos Santos, na Pastou Bonus, de João Paulo II, em 1988 e o Studium que tem a tarefa de cuidar da atualização do INDEX AC STATUS CAUSARUM. Pelos exemplos de santidade (pródigos em Nhá Chica), pelo martírio e virtudes heróicas o Santo Padre procede às canonizações e delega a celebração das Beatificações. É precisamente o que poderá estar em curso até a vinda de Bento XVI ao Brasil.


Ex positis, estabelecida a pretensão do registro civil, vem em nosso socorro o veredito do juiz Cândido José Martins de Oliveira, da Comarca de Montes Altos, Maranhão, e professor da Universidade Federal daquele Estado, in “Janelas Para a Cidadania”:



O registro civil tardio, com dificuldades de provas, com os pais do interessado já falecidos ou desconhecido o seu paradeiro, obtido mediante sofrida e dificultosa justificação, é muito mais uma facilidade ou um mero documento; significa um grau de libertação da exclusão pessoal em que se encontrava, resgatando a dignidade que já tinha direito como ser, mas também mediante consagração constitucional, dado que a Carta de 1988 lança a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito no artigo 1º, Inciso III”.



Para ilustrar, sem outro motivo, apenas com o escopo de fundamentar a legitimidade do pleito e da prestação jurisdicional, chama-se aos autos fato jurídico ocorrido em 1998. Não tendo sido localizado nenhum registro de Ana Maria de Jesus Ribeiro, divergiu-se, aqui e no estrangeiro, sobre a data e o local de nascimento da heroína ANITA GARIBALDI. Disputavam tal direito os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e as cidades de Viamão, São Gabriel, Mostardas, laguna e até montevidéu, no Uruguai, pois foi ali que contraiu núpcias com o carbonário italiano Giuseppe Garibaldi. A sentença do magistrado, ouvido o Ministério Público, reconheceu a nacionalidade brasileira e a naturalidade lagunense e determinou o registro tardio da “heroína de dois mundos”, conforme atestam documentos anexos, ilustrativos da argumentação em favor do pedido anteriormente exposto. Saliente-se que a combatente sulista não dispunha de registro de batizado, mas apenas de uma declaração constante de seu consórcio com um piemontês, no Uruguai.


Com FRANCISCA não estamos fazendo nenhum favor ao reparar u erro histórico e resgatar sua cidadania, visto que, sob aspecto legal rigorista, ela não existe. É a História que está a exigir que sua vida civil e jurídica esteja de acordo com as exigências legis modernas e civilizadas; que a sua genealogia seja restabelecida; que o liame seja posto e legitimado, com força de lei, quales principes, tales populi.


Devidamente instruído o pleito e cumpridas as formalidades legais e de estilo é o presente para que se proceda a averbação, por mandado a ser expedido ao Cartório do Registro Civil de Rio das Mortes, do assentamento de NHÁ CHICA,, constando ali o seu nome próprio – Francisca Paula de Jesus – e o que consta no documento batismal, ouvido o digno representante do Ministério Público, ou seja, como está no livro de 1808/18, verso, pág. 300, na Catedral do Pilar:



Aos vinte e seis de abril de mil oitocentos e dez, na capela de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, filial desta Matriz de São João del-Rei, de licença, o reverendo Joaquim José Alves batizou e pôs sos Santos Óleos a Francisca, filha natural de Isabel Maria. Foram Padrinhos Angelo Alves e Francisca Maria Rodrigues. O Coadjutor Manoel Antonio Castro.



Informam os peticionários que este registro casa-se perfeitamente com o que se encontra em seu inventário em Baependi e documentos ecumênicos do Bispado de Campanha, que poderão ser consultados ou ouvidos em Juízo, podendo o mandado adotar a forma prescrita em lei para o registro, que deverá ser cumprido no distrito de Rio das Mortes, comunidade que tem nos céus uma poderosa advogada, constando, inclusive, se necessário o nome da avó materna.


A partida de Izabel para o sul de Minas, com duas crianças, não encontra explicação lógica. Há registros de cativos forros, no Museu Regional do IPHAN, a exemplo de José da Nação Africana, “como se de ventre livre tivesse nascido” (Fazenda Jaguara – Nazareth), ou de Mariana Parda, da Fazenda do Pega-Bem, “por haver dela recebido cem mil réis”, em 1809 (o córrego do Pega-Bem fica em Rio das Mortes). Izabel de Benguela (Angola), se não amealhou recursos para sua manumissão ou o houve de alguma Irmandade Religiosa Parda, pode ter sido escorraçada por indesejada. É caso a merecer estudo e por este edital peço ajuda.


O alegado encontra guarida em arestos de nossos tribunais e pode ser provado por todos os meios admissíveis em direito, notadamente requisição de informes, juntada de documentos, pareceres de mestres versados na questão, provas testemunhais qualificadas e outros meios a critério de Vossa Excelência e seu honrado Juízo – magistratum legem esse loquentem. Anexando documentos que atestam a veracidade do exposto, dá-se à causa, para efeitos meramente de alçada, o valor simbólico de um mil reais.


Requer, finalmente, seja concedido aos autores o pálio da gratuidade judicial em vista de serem entidades filantrópicas e sem qualquer fim lucrativo, e, também, por tratar-se a questão de causa nobre e de elevado interesse público.


P. e E. deferimento.


São João d’El-Rey, MG, 14 de junho de 2006



(Data do 111º aniversário de falecimento de Nhá Chica)




Wainer Carvalho Ávila


OAB MG 11544




2) Decisão judicial (sentença)




Processo nº: 06 056045-9 - Registro Civil




Requerentes: Instituto Histórico e Geográfico de São João del Rei, Rotary Clube de São João del Rei (Distrito 4580) e Associação de Amparo e Promoção ao Carente do Distrito do Rio das Mortes






Sentença





Vistos, etc.





RELATÓRIO




Instituto Histórico e Geográfico de São João del Rei, Rotary Clube de São João del Rei (Distrito 4580) e Associação de Amparo e Promoção ao Carente do Distrito do Rio das Mortes, todos devidamente representados nos autos, aviaram a presente ação de justificação objetivando o registro tardio de Francisca de Paula de Jesus, conhecida como Nhá Chica, com base nos fatos e fundamentos contidos na inicial de fls. 02/11, aduzindo, em síntese, que a mesma é nascida neste Município e Comarca, onde, portanto, deve se fazer o respectivo registro tardio.



Com a exordial foram acostados os documentos de fls. 12/55.



Regularizada a representação processual, seguiu-se os autos com vistas ao M.P., cujos requerimentos constantes das fls. 61/65 resultaram, em parte, implementados.



Citou-se, por edital, possíveis interessados, e ainda, aos Institutos Históricos e Geográficos, Brasileiro e do Estado de Minas Gerais.



O feito foi saneado (fls. 136), tendo sido deferido prazo para que os autores implementassem as demais provas requeridas pelo Ministério Público.



Finalizada a fase de instrução pugnaram os autores pela procedência do pedido, reiterando a tese inicialmente sustentada.



O Ministério Público em seu parecer final opinou pela improcedência do pedido (fls.216/222).



Vieram-me os autos conclusos para prolação de sentença.



Este, em apertada síntese, é o relatório.



DECIDO.





FUNDAMENTOS



Não há questões de ordem a serem examinadas prefacialmente.



Comungo inteiramente do entendimento de que a pretensão ao reconhecimento da naturalidade de Francisca de Paula de Jesus, conhecida como Nhá Chica, encerra modalidade de tutela de interesse difuso, pela sua histórica representação ante a fé popular como serva de Deus, havendo notícias, inclusive, da tramitação, junto ao Vaticano, de processo de beatificação da mesma.



Tem, pois, esta ação, natureza de ação civil pública, resultando, desta forma, legitimados os autores, a teor do que, por analogia, de depreende do art. 5º, II da Lei 7.347/85.



No mérito, tenho que a procedência do pedido é medida que se impõe.



Cuido inicialmente de destacar que já tive oportunidade de julgar processo análogo a este, em que se pretendeu o registro tardio do grande herói nacional Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, cujo desate dado foi a extinção do feito sem resolução de mérito, ao entendimento de que o insigne Mártir da Inconfidência Mineira já tinha registro, elaborado conforme os ditames legais da época. Houve recurso da aludida sentença que, em segundo grau de jurisdição foi integralmente mantida.




Confira-se o julgado:



“AÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO - REGISTRO TARDIO DE JOAQUIM JOSÉ DA SILVA XAVIER ""TIRADENTES"" - AUSÊNCIA DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO - INTERESSE DE AGIR - SENTENÇA TERMINATIVA - RECURSO NÃO PROVIDO.” (TJMG, Apel. Civ. 1.0625.05.048873-7/001, Rel. Des.(a) BRANDÃO TEIXEIRA, J. 02/06/2009)



A meu sentir, no entanto, o presente caso tem particularidades que diferem daquelas retratadas no processo de registro tardio de Joaquim José da Silva Xavier.



E a essência de tal diferença é que, o que se tem do conteúdo do registro da época da pessoa de Francisca de Paula de Jesus, não a qualifica, efetivamente como pessoa, pelo simples fato que não havia referência a seu nome de família. E nem poderia. Nascida em 1810, Francisca era filha de escrava, Isabel Maria que, igualmente não tinha nome de família e, portanto, também escrava. É de se destacar que já naquela época as pessoas tinham sua efetiva identificação pelo nome de família.



Desta forma, a omissão em seu registro quanto ao seu nome de família, estabelecendo sua ascendência e efetiva identificação justifica a realização do registro tardio. No caso em tela, somente após o advento da abolição da escravatura é que Francisca teve nome de família agregado ao seu nome de batismo, de forma a identificá-la.



No caso dos autos, o registro importa em reconhecer a existência de uma pessoa devidamente identificável pelo nome de família, e constitui-se num dos direitos mais relevantes da personalidade.



Neste sentido, trago à colação o aresto que se segue:



“PEDIDO DE LAVRATURA DE ASSENTO DE NASCIMENTO - PESSOA SEM REGISTRO CIVIL - DIREITO DA PERSONALIDADE - INICIATIVA PROBATÓRIA DO JUIZ - OBRIGATORIEDADE - BUSCA DA VERDADE REAL. - O direito ao nome é um dos mais importantes direitos da personalidade e imprescindível para o exercício da cidadania e, assim, não se pode negar acolhimento à pretensão da pessoa que pretende ver lavrado o seu registro civil sem que tenham sido esgotadas todas as possibilidades de esclarecimento acerca de sua filiação e idade.- Havendo dúvida quanto a tais fatores e possibilidade de realização de outras provas que a parte não teve a iniciativa ou a oportunidade de apresentar, deve o Juiz, por cautela, proceder à dilação probatória, de ofício, objetivando-se alcançar decisão provida de maior grau de certeza, em vista da relevância da questão, com graves repercussões nas relações sociais. - No procedimento de lavratura de registro civil deve ser priorizado o princípio da verdade real.” (TJMG, Apel. Civ. 1.0024.06.132022-2/001, Rel. Des.(a) HELOISA COMBAT, j. 20/11/2007)




Neste sentido temos que a pretensão dos autores consiste no registro tardio de Francisca de Paula de Jesus, Nhá Chica. Fundamentam tal pedido com base na certidão de batistério obtida junto à Igreja Matriz do Pilar desta cidade, haja vista que o batizado ocorreu na Capela de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, distrito desta cidade, onde ela nasceu. Adotam o precedente consistente no fato que Anita Garibaldi teve deferido o seu registro tardio por decisão do MM. Juiz da Comarca de Laguna, no Estado de Santa Catarina, de forma a também fundamentar a pretensão deduzida.



Cuidei e examinar detidamente toda a documentação aportada aos autos.



Assim, vejamos.



Todo nascimento de pessoas católicas ocorrido no Brasil antes de 1º de janeiro de 1889 resultava demonstrado por força das certidões de batismo extraídas dos livros eclesiásticos. Isto significa que, naquele tempo, o batismo assinalava a existência da pessoa natural para todos os efeitos da vida civil.



Neste sentido confira-se a balizada doutrina que assevera, verbis:



“Carlos de Carvalho (Nova Consolidação das Leis Civis, Porto, 1915, art. 78) afirmava: “O nascimento das pessoas católicas ocorrido no Brasil antes de 1º de janeiro 1889 prova-se pelas certidões de batismo extraídas dos livros eclesiásticos e o das acatólicas pelos assentos do registro regulado pelo Decreto nº 3069, de 17 de abril de 1863, no art. 19.” (apud Wilson de Souza Campos Batalha, Comentários à Lei de Registros Públicos, Forense, 1997, p. 13).



Desta forma, tem-se que constituía atribuição da Igreja proceder aos registros de nascimentos através do assentamento do batismo, onde se fazia constar, tão somente, o nome do pai e da mãe legítimos. Quanto àqueles que não eram católicos “o registro era disciplinado pela lei de 11.09.1861, art. 2º, e pelo Decreto de 17/04/1863, arts. 19,31 e 47.”(ob. cit. p. 12)



Conclui-se, pois, com clareza meridiana que, para todos os feitos da lei civil, o assentamento de batismo, registrado em livro eclesiástico próprio assinalava a existência da pessoa natural para todos os efeitos.



Ocorre que, no caso em testilha, conforme se infere dos documentos de fls. 35/36/121/141, tem-se as certidões de batismo da pessoa chamada apenas Francisca, filha de Izabel Maria, tendo sido batizada em 26 de abril do ano de 1810, na Capela de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, conforme consta do Livro de assentos de batizados da freguesia de Nossa Senhora do Pilar da Vila de São João del Rei, denominação à época desta cidade e Comarca de São João del Rei.



Conforme já salientado, àquele tempo era o registro do batismo que se prestava a assinalar a existência jurídica das pessoas cristãs. E neste diapasão, resulta evidenciado que a pessoa de Francisca teve seu registro realizado nesta cidade, no Distrito de Rio das Mortes Pequeno, que ainda hoje é denominado Distrito do Rio das Mortes.



Resta pois, a meu sentir, analisar, pelos elementos de prova aportados aos autos se Francisca, referida nas certidões de batismo mencionadas alhures é a mesma Francisca de Paula de Jesus, a Nhá Chica, de modo a justificar a realização do registro tardio, ante a inexistência de procedimento regular, capaz, pelas razões já alinhadas, de identificar a pessoa registrada com base no seu nome de família e não somente pelo prenome.



Com efeito, a certidão de óbito de fls. 143 corrobora com todos os demais documentos trazidos aos autos, e não só as certidões de batismo, mas também os trabalhos dos historiadores, que se encontram retratados nos livros “Nhá Chica - A pérola de Baependi” (2004), “Nhá Chica Biografia, por Helena Ferreira Pena (1951) e “Anais – I Encontro de Estudos sobre Nhá Chica” (2004). Vejamos ainda, que a referida certidão de óbito, obtida junto ao Oficial do Cartório do Registro Civil de Baependi, em 08 de abril de 2008, retratando o fato da extinção de Nhá Chica, noticia que ela é natural de São João del Rei.



Francisca, Francisca Isabel, por conta do nome de sua mãe, e posteriormente, Francisca de Paula de Jesus, nome que adotou, são a mesma pessoa, que ficou conhecida popularmente como Nhá Chica.



Todo o trabalho dos pesquisadores, que se encontram retratados nas obras literárias supra referidas, todas inclusas aos autos, soam unânimes nas suas conclusões, ou seja, que Nhá Chica, cujo nome era Francisca Isabel, e posteriormente Francisca de Paula de Jesus, que mudou-se ainda menina para a cidade de Baependi, nasceu no Distrito do Rio das Mortes nesta cidade de São João del Rei.



Igualmente, e no mesmo sentido, o trabalho de pesquisa realizado por Victorino Chermont de Miranda (fls. 126/130), encaminhado pelo Presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (fls. 125), bem como o trabalho realizado pelo Sr. Adalberto Guimarães Menezes(fls. 119/120), encaminhado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais(fls. 118), e ainda, o conteúdo da declaração de fls. 139, firmado pelo Monsenhor Sebastião Raimundo de Paiva, Pároco da Matriz de Nossa Senhora do Pilar, nesta cidade de São João del Rei, os quais são merecedores de total e absoluta credibilidade.



Afinal, nenhum dos referidos documentos foram objeto de qualquer impugnação. E não poderiam ser diferente ante a coerência de seus conteúdos.



Com efeito, o que pretendem os autores é exatamente promover o registro tardio do nascimento de Francisca de Paula de Jesus, porque o seu registro, como realizado ao tempo do seu nascimento, não faz retratar, com a necessária individualização, a pessoa que se registrou. Esta particularidade, volto a gizar, é o que difere a pretensão deduzida neste processo daquele em que se pretendeu o registro tardio de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, registro sobre o qual não havia qualquer dúvida quanto à sua existência.



A pretensão retratada nestes autos visa afastar toda e qualquer dúvida, até então existente, pela ausência da necessária individualização pelo nome, quanto ao local do nascimento de Francisca de Paula de Jesus, a Nhá Chica.



O registro tardio, regulado no ordenamento jurídico vigente (Lei 6.015/73), tem cabimento no caso de inexistência de registro.



Confira-se que, conforme inteligência dos dispositivos de regência em vigor, todo nascimento que ocorrer no território nacional deverá ser dado a registro, no lugar que tiver ocorrido o parto ou no lugar da residência dos pais, dentro do prazo de quinze dias, que será ampliado em até três meses para os lugares distantes de mais de trinta quilômetros da sede do cartório. É facultado aos nascidos anteriormente à obrigatoriedade do registro civil requerer, isentos de multa, a inscrição de seu nascimento.



Tratando-se de registro fora do prazo legal o oficial, em caso de dúvida, poderá requerer ao Juiz as providencias que forem cabíveis para o esclarecimento do fato.



É daí que decorre a necessidade e a possibilidade da efetivação do registro tardio de nascimento, o que vem amparado pelo art.52 §2º da Lei n. 6015/73 que, in casu, deve ser interpretado em conformidade o art. 50, § 1º , do mesmo diploma legal.” (p. 29, vol.1)



A meu entendimento, conforme já salientado, a ausência de referência a nome de família no registro de batismo da pessoa então chamada apenas de Francisca, importa em reconhecer a própria inexistência do registro na forma como é próprio das pessoas físicas. A certidão de batismo, neste caso, então, constitui num elemento de prova de que a pessoa cujo poucos dados ali se encontra retratado, e chamada somente de Francisca é, efetivamente, Francisca de Paula de Jesus, a Nhá Chica, mercê de toda a prova carreada para os autos.



O fato do registro de batismo com somente o prenome, como no caso de Francisca, decorria do processo de coisificação dos escravos, que não tinham o tratamento adequado como pessoas físicas sujeitas de direitos e obrigações, mas como bens dos seus respectivos senhores. Daí porque não se poder considerar como existente o registro de nascimento de Nhá Chica, nos moldes como instrumentalizado, inclusive para própria época, justificando, desta forma, a necessidade de se promover, neste caso, excepcionalmente, face aos elementos trazidos a estes autos, o seu registro tardio.



O objeto do presente processo deve ser visto como uma forma de se resgatar e retratar uma verdade que interessa a toda uma coletividade, pela importância da pessoa no contexto histórico, cultural e da própria fé popular. Daí a excepcionalidade da situação posta.



Afinal de contas, segundo Wilson de Souza Campos Batalha:



“Os Registros Públicos tem em mira constituir formalidades, essenciais ou não, para a validade do ato em si mesmo, ou apenas para sua eficácia perante terceiros (erga omnes).”(Comentário à Lei dos Registros Públicos, Forense, 1997, Vol. 1, p. 23)



O ato registral visa, no âmbito as sua formalidade cautelar, conferir segurança e autenticidade ao mesmo. Daí, face as particularidades do caso em testilha, conforme já salientado alhures, a necessidade de se acolher a pretensão inicial, e proceder ao registro tardio de Francisca de Paula de Jesus, com os elementos capazes de indentificá-la.



Por fim o registro deve retratar o maior número de dados relativamente à pessoa registrada. Desta forma, conforme se desume dos autos, Francisca de Paula de Jesus era filha de Isabel Maria, sendo o pai desconhecido, e sendo avó materna Roza Banguela, esta que, segundo registros históricos teria vindo de Angola na África, na região de Banguela, daí o nome, sendo o avô materno também desconhecido. A data de nascimento, conforme costume da época deve prevalecer a do batismo. Até porque, embora haja referências ao nascimento no ano de 1808, não há qualquer elemento a corroborar tal fato.





DISPOSITIVO



Pelo exposto, julgo procedente o pedido inicial para determinar que se proceda ao registro de nascimento Francisca de Paula de Jesus, devendo constar como sendo sua genitora, Izabel Maria e avó materna Roza Banguela, e ainda, como data de nascimento o dia vinte e seis de abril do ano de 1810, razão pela qual extingo este processo, com resolução de mérito.



Transitada em julgado esta sentença baixar e arquivar, após a expedição do mandado.



Sem custas processuais, posto que sob o pálio da assistência judiciária.



Cumprida a sentença, baixar e arquivar.



P. Registre-se. Intimem-se.



São João del Rei, 10 de janeiro de 2011.





Hélio Martins Costa


Juiz de Direito





* Wainer Ávila, graduado em direito pela Universidade Católica de Minas Gerais, é o atual Presidente da Academia de Letras de São João del-Rei, ocupante da cadeira Embaixador Gastão da Cunha. É Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, ocupante da cadeira Alferes Tiradentes. Membro Definidor da Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis da Diocese de São João del-Rei. Sócio Benemérito e Conselheiro do Athetic Clube de São João del-Rei. Sócio Honorário do Rotary Club. Sócio Correspondente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto. Sócio Correspondente da Academia Valenciana de Letras. Conselheiro do Centro Cultural Feminino de São João del-Rei. Membro do Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico de São João del-Rei. Mais...