segunda-feira, 30 de novembro de 2015

IRMÃ GEMA : EXEMPLO DE VIDA


Por José Carlos Hernández Prieto


 

Rugiam os vagalhões das ondas em 7 de março de 1911, batendo a costa norte da Espanha, mais precisamente em El Ferrol, base naval protegida do oceano proceloso pelas reentrâncias desse fiorde galego. Era inverno no hemisfério norte. Inverno daqueles antigos, frigidíssimo. Estação das águas sem fim. É tentador imaginar o vento e as rajadas de chuva açoitando as paredes da casa, onde, naquele dia, nascia, no aconchego da lareira, uma menina a que deram o nome de Ramona. 
Estaleiro de El Ferrol no início do século XX


Ramona Ferraces Seijo. Esse foi seu nome no registro civil. Veio ao mundo numa família numerosa. Ela e mais oito irmãos. Seu pai era oficial da Marinha e, por esse motivo, servia na base naval. Viveu seus anos de infância e juventude naquele ambiente militar, cristão, austero e dedicado ao bem comum. A tal ponto que dos nove irmãos, três moças – Ramona entre elas – abraçaram a vida religiosa.
Ramona em sua juventude laica


O jornal “La Merced”, da Venerável Ordem Terceira e Confradias de Madrid, publicava, em seu número de 15 de março de 1936, a notícia enviada pelo Convento de Zumárraga (no País Basco espanhol), dando conta que, em 2 de janeiro de 1936, (em tradução livre) as postulantes que tomaram o Santo Hábito Juana Lete, Antonia Larrarte, Lucía Maiz e Ramona Ferraces receberam os nomes de Sor. Maria Rosario, Sor. Juliana de Jesús, Sor. María Ascensión de Jesús e Sor. Gemma de Jesús.   
Convento de Zumárraga - País Basco Espanhol

A partir daí, Ramona passou a se chamar Gemma de Jesús. Eram tempos difíceis na Espanha. Tinha sido proclamada a república. A agitação comunista, patrocinada por Stalin, incendiava o país. Arderam igrejas, conventos... morreram padres e freiras. A história nos dá conta de cerca de vinte mil igrejas e conventos arrasados e queimados e quase sete mil sacerdotes e religiosas assassinados (entre eles, treze bispos). Isso tudo, apenas entre 1931 e 1939, período que durou aquela república de triste memória. Não foi à toa que o Vaticano, ao longo dos três últimos pontificados, beatificou 1.253 mártires da fé. Todos eles, assassinados na Espanha naquele período. João Paulo II beatificou 233 em 2001; Bento XVI fez o mesmo com 498 em 2007; e Francisco, com 522 em 2013, conforme noticiava o jornal “Folha de São Paulo” em 13.10.2013.
Igreja vandalizada na década de 1930

Previsivelmente, esse estado de coisas não podia durar. O exército sublevou-se em 18 de julho de 1936 para tirar a Espanha dessa hecatombe. Começava a guerra civil, que duraria até 1939. No início da guerra, nossa Irmã Gemma estava no convento de Zumárraga. Essa cidade permaneceu em poder dos comunistas até 20 de setembro de 1936. Esses dois meses foram muito tensos. Não obstante todo o ódio instilado pela filosofia comunista e pelo stalinismo contra a religião, as irmãs do convento não deixaram de fazer aquilo para o qual tinham dedicado sua vida: a caridade. Caridade para com os combatentes comunistas feridos em batalha..., que acorriam aos cuidados das freiras, nesses aflitivos momentos em que se viam entre a vida e a morte...
Em Zumárraga, os comunistas locais capitularam em 20 de setembro daquele ano. Mas boa parte da Espanha ainda sofreria os horrores da guerra, até março de 1939. Nesse meio tempo, a irmã Gemma manifestou seu desejo de ser missionária no Brasil. Seu desejo foi atendido. Vieram algumas freiras. Mas, por causa da guerra, a viagem foi cheia de tribulações. Os portos da Espanha estavam minados. Então, tiveram que ir por terra, atravessar a fronteira, até Lisboa, para só então embarcar rumo ao Brasil.
Chegaram em 20 de julho de 1938. Aqui, a irmã Gemma foi “rebatizada” como Gema, nome que conservou e com o qual a conhecemos. Desenvolveu seu trabalho em vários pontos deste país: Campos do Jordão, Recife, São João del-Rei, novamente Campos do Jordão, Paraná e, por fim, para não mais sair, São João del-Rei.
Especificamente a São João del-Rei, as irmãs mercedárias chegaram em 21.06.1948, tal como consta em placa comemorativa afixada no saguão de entrada do Hospital de N. Sra. das Mercês. Tinham vindo atendendo aos pedidos da direção do hospital, que vinha sendo construído desde abril de 1942. No início, a irmã Gema (tal como as demais irmãs mercedárias) dedicou-se a ajudar na implantação do Hospital. Era incansável. Acordava cedo. Assistia à missa diariamente às cinco da manhã na Matriz do Pilar e, com a força revigorada pela fé, um dia saía de ônibus visitando todas as fazendas da redondeza e pedindo ajudas para a construção do hospital. Noutro dia, suas andanças eram por toda a cidade. Voltava tarde, mas com a satisfação de ter combatido o bom combate. Seus esforços não foram em vão e o Hospital foi inaugurado, ainda inacabado, em 05 de novembro de 1949. As obras se estenderam até o ano seguinte, quando o edifício foi totalmente concluído.
Hospital N. Sra. das Mercês em construção


A partir daí, a irmã Gema compatibilizou suas atividades no hospital com uma nova missão: desenvolver sua obra social no bairro Tijuco, onde promovia aulas de corte e costura para moças e servia sopa às crianças. Sempre gostou muito de futebol e, por causa disso, promoveu times de futebol feminino, incentivando as moças através do esporte. Fundou também uma fábrica de bolas de futebol nas dependências de sua obra social.
Seria ocioso repetir aqui o quanto a irmã Gema representou em termos de trabalho social e abnegação cristã a serviço dos mais carentes nesta São João del-Rei. Era incansável na procura de recursos entre os poderosos (políticos, doutores, empresários, etc.). Seus contatos ultrapassavam fronteiras. Graças a Deus (e graças a ela), pode-se dizer que sua vida foi de uma eficácia sem par a serviço de sua obra.
Comemoração dos 100 anos de Irmã Gema - 2011


Conheci a Irmã Gema quando eu ainda era criança, pouco tempo depois que cheguei a São João del-Rei, com meus pais e irmãos, em novembro de 1960. Logo que chegamos, vindos da Espanha, ficamos sabendo que existia um hospital administrado por freiras espanholas. Não demorou muito, e fizemos uma primeira visita às freiras. Para conhecê-las, e para que nos conhecessem. Começou então uma longa amizade da família com as irmãs. As visitas ao hospital se sucederam e viraram rotina. Sempre aos domingos à tarde! A amizade rendeu frutos. Dando um exemplo, entre muitos, tive a satisfação de ver meus dois filhos nascerem pelas mãos amorosas da saudosa Irmã Eleutéria, antes que o também saudoso Dr. Cid Valério pudesse terminar os partos, ambos naturais.
Já viúva, minha mãe, sabendo da paixão da Irmã Gema pelo futebol, passou a convidá-la para almoçar, naqueles domingos em que a televisão transmitia, à tarde, jogos do Real Madrid, time de coração da Irmã. Nessas ocasiões, minha mãe se esmerava no almoço, preparando-o com todos os ingredientes indispensáveis a uma autêntica paella a la marinera, recheada com todos os frutos do mar de praxe. Almoçando, a Irmã dizia que podia sentir o cheiro do mar. Daquele mar bravio que conheceu, ainda menina, nas costas galegas batidas pelas ondas e pelos ventos.
Após aqueles almoços, lembro-me, com muito carinho e saudade, das duas sentadinhas no sofá da sala. Minha mãe, fazendo-lhe companhia. E a Irmã Gema, torcendo, vibrando e até reclamando do juiz (sem palavrões, claro), quando este “fazia por merecer”, como ela dizia. Naqueles breves momentos, a Irmã Gema permitia-se dar lugar à “Doña Ramona” que renascia dentro de si, apreciando as jogadas do Real Madrid, daquele time “merengue”, todo vestido de branco. Da mesma cor imaculada do seu hábito, o qual nunca abandonou. 
Ela nos deixou. Na missa de corpo presente, podia-se, ao lado de seu ataúde, sentir o odor de santidade que dele exalava e inebriava o ambiente e os presentes à sua volta. Que me perdoe a Congregação para as Causas dos Santos, mas, ouso dizer que pressinto ter tido a honra de conhecer pessoalmente uma santa. Em seu devido tempo, o Vaticano dirá se me assiste razão. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:



2.     La Merced – Órgano de su Venerable Orden Tercera y Cofradías – Número 3 – Editorial Católica Toledana, 15.03.1936, p. 95.  







9.     Grêmio Espanhol – 100 anos de História – 1911-2011 – José Carlos Hernández Prieto... [et al.] – Belo Horizonte: Speed, 2011, p. 192.

10.  Arquivo particular.

OBS.: Todas as leituras dos links acima foram feitas em 12.11.2015.