quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Morreu TELÊMACO NEVES


Por José do Carmo Barbosa  
 

Crônica escrita e apresentada ao microfone da ZYI-7 (Rádio São João del-Rei, "a rádio da nossa história") pelo locutor José do Carmo Barbosa ¹

A morte do maestro desferiu na tradicional Orquestra RIBEIRO BASTOS mais um profundo golpe, mais profundo mesmo, nas suas características, que aquele cujas cicatrizes ainda persistem a morte do maestro JOÃO PEQUENO. 

Desapareceram, assim, dois grandes vultos da música sanjoanense. Duas colunas mestras do grande edifício, duas colunas onde se assentava o magnífico conjunto orquestral de renome fora das nossas fronteiras e que de maneira admirável vem resistindo à ação destruidora de uma época de indiferentismo, de uma época prosaica e materializada. 

Um desapareceu lentamente, como uma sonata, cujos últimos acordes perdem-se suavemente no espaço misterioso e infinito. João Pequeno desapareceu depois de dar a essa orquestra as energias de sua mocidade, dirigindo-a e nela atuando como seguro violinista e tenor de raras qualidades. Como chefe prudente, que vê aproximar-se o fim de seu comando, transfere-o ao seu auxiliar imediato, e sentiu-se satisfeito. 

TELÊMACO VICTOR NEVES ² recebeu de João Pequeno o comando da Ribeiro Bastos, e como soldado que serviu às ordens de seu grande e experimentado comandante, honrou e dignificou o legado de seu superior. 

Se bem, atribuamos a morte do maestro Telêmaco Victor Neves aos altos desígnios da Providência, para nós ela explodiu como meteoro em tarde azul de primavera. A notícia de sua moléstia súbita surpreendeu-nos. A sua morte imediata produziu em nós o vácuo semelhante, nos seus efeitos, a grandes explosões. 

Um desapareceu tranquilo, calmo porque chegou feliz ao fim da meta. O outro desaparece quando mal havia iniciado a etapa à qual se devotara com denodo e afinco. 

Avalio, e posso mesmo sentir as agruras e torturas da sua agonia, se Deus misericordioso não o privou de suas faculdades perceptivas nos últimos instantes de sua vida. 

Elevado tão justamente ao extremo da maior alegria qual a de saber um filho seu dignificado pelo sacerdócio, não lhe permitiu o Supremo Criador, esperasse ele na terra dia tão feliz. Morreu com o pensamento neste filho distante. Sua alma, prestes a dar entrada na eterna mansão, ajoelhava-se, por certo, na sua última prece. 

Não é pelos bens materiais, nem pelos bens de fortuna, que o homem se projeta e se fixa no cenário da vida. As virtudes são que enobrecem e perpetuam nas gentes a lembrança dos que partem. 

O maestro Telêmaco Victor Neves impôs-se aos seus concidadãos pela retidão de seu caráter, pela inteireza de seus atos e pela simplicidade e bonança de seu coração. 

Funcionário público, nem um mais zeloso e compenetrado de seus deveres, substituindo, com não menos eficiência, José Vicente na direção da Biblioteca Municipal. 

Telêmaco Victor Neves (12/04/1898-24/06/1950)
  

CHEFE DE FAMÍLIA, soube e procurou cumprir os deveres de pai cristão, criando e educando numerosa prole dentro dos sãos princípios de honradez e honestidade.  

CIDADÃO, evidencia-nos sua vida pública. 

MESTRE, sobressaiu-se pela energia sem autoritarismo aliada à noção de responsabilidade que aceitava no desempenho da árdua e ingrata missão de ensinar. 

MAESTRO. Poderia para muitos não ser uma revelação como condutor exímio, mas nenhum houve que o sobrepujasse no amor, na dedicação, no carinho, no zelo, no trabalho pela Orquestra Ribeiro Bastos, qualidades sem as quais fracassariam mesmo os maiores condutores. 

Correndo a cortina do grande palco, assinala-se o entreato da grande sinfonia. Deu-se um stacatto brusco da orquestra. Não houve o interlúdio sentimental. Este, substituiu-se por pesado e funéreo silêncio. A mão do Regente Supremo da orquestra da vida fez baixar para sempre o braço que empunhava a batuta. 

Fonte: O Correio, São João del-Rei, edição de 2 de julho de 1950, Ano XXIII, nº 2.378. (Obs.: Na ocasião, o diretor do jornal era Tancredo de Almeida Neves)


Crédito pela cessão: D. Elza Rosa Neves Lombello, filha do Maestro Telêmaco Neves


II. NOTA EXPLICATIVA DE FRANCISCO JOSÉ DOS SANTOS BRAGA



¹  José do Carmo Barbosa foi farmacêutico e sócio do Sr. Silvano Carneiro (proprietários da farmácia de manipulação e de atendimento "Ouro Preto", localizada próximo aos "Quatro Cantos"), locutor e diretor da ZYI-7 Rádio São João del-Rei, secretário do C.A.C.-Centro Artístico e Cultural, além de secretário geral e professor do Conservatório Estadual de Música Pe. José Maria Xavier.
Foi paraninfo da turma de diplomandos do ano de 1966 no referido Conservatório, constituída pelos seguintes formandos: Maria Helena Machado (Curso de Professor de Música), Salete Maria da Silva Bini (Curso de Canto), Anizabel Nunes Rodrigues (Curso de Flauta), Maria Salomé de Moraes Silva (Curso de Piano) e Sadik Haddad (Curso de Clarineta).
Nos programas de auditório dirigidos pelo inesquecível Jeú Torga (Jehudiel Torga), José do Carmo Barbosa era um coadjuvante indispensável, por sua capacidade inigualável como preparador de texto.
Inesquecível deve soar ainda para muitos de nós são-joanenses a voz daquele grande locutor, contando as lendas de nossa terra em transmissão radiofônica. 
É autor de outra crônica envolvente, publicada no Blog de São João del-Rei em 11/12/2014, intitulada "Uma cidade vive há 2 séculos mergulhada nas ondas musicais", publicada originalmente no Correio da Manhã, Ano LX, nº 20740, na edição de 4 de novembro de 1960, que pode ser lida no link abaixo:
 
Conservatório Estadual de Música Pe. José Maria Xavier por volta de 1965. 
Na primeira fila, da esq. p/ dir.: Profªs Maria Stella Neves Valle, Jânice Mendonça de Almeida, Mercês Bini Couto, Rita Nascimento (func.); na segunda fila: Profs. João Américo, Joaquim Laurindo, Maria Auxiliadora Lelis, Maria Salomé de Moraes Silva, Sargento Almeida; na terceira fila: Emílio Viegas, José do Carmo Barbosa (secretário), Jorge Chala Sade; na última fila: Joaquim da Rocha, Sílvio Padilha (diretor) e Geraldo Ivon da Silva ("Patusca")

 
 
²  O Blog do Braga publicou em 23/10/2021 o artigo "Maestro são-joanense Telêmaco Victor Neves na pauta da Câmara dos Deputados", ocasião em que era comemorado o centenário de nascimento do Maestro homenageado.

domingo, 24 de outubro de 2021

O dia em que a Esquadrilha da Fumaça bagunçou a feira do Crato


Por Geraldo Ananias Pinheiro  

Voo rasante da Esquadrilha da Fumaça na feira do Crato

Meados da década de 60, do século passado, por aí. Dia de feira no Crato (CE). 
Acordei cedinho lá no Sítio Almécegas, zona rural do Crato, onde morávamos e trabalhávamos, em regime de economia familiar. Tínhamos (lá) criação de alguns animais (gado, porcos, galinhas), e da nossa terra tirávamos nossa sobrevivência. 
Papai tinha uma bicicleta alemã, ano 1951, que, depois dos jegues, era o meio de transporte mais eficiente que tínhamos para ir ao Crato. Não havia transporte melhor, pois, obviamente, não precisava alimentá-la, tampouco dar-lhe água, quando fosse para a cidade, ao contrário do que acontecia com os jegues. 
Já estava combinado que, naquele longínquo dia, eu desceria na garupa da bicicleta do papai, que era o único e exclusivo piloto desse fascinante veículo de duas rodas. Por falar em garupa da bicicleta, já ouvi discussão de minha mãe com ele por causa disso: 
— Olhe, Assis (apelido do meu pai), não quero saber de você dar bigu (carona) na garupa da bicicleta para aquela cadela (uma moça nova e bonita que costumava pedir carona a meu pai), ouviu?! 
Acordei apreensivo, pois havia a confirmação de que o Comandante Macedo — filho da terra e comandante da Esquadrilha da Fumaça em Fortaleza, — realmente viria, com diversos aviões, fazer umas putarias (acrobacias) no Céu do Crato. E o pior de tudo, num dia de feira. E mais importante ainda, havia pessoas — moradoras do pé da Serra do Araripe e dos sertões que nunca tinham visto avião. Imagine o que estava para acontecer! 
lá com meu pai no meio da feira. Daí a pouco a gente vê é um reboliço dos diabos: o Céu do Crato “cheio de uns besouros grandes, com dois caçuás de lado, voando ligeiro e roncando mais que a besta-fera” (descrição feita por uma velhinha que nunca tinha visto avião). 
E como o Comandante da esquadrilha era filho do Crato, parece que ele “pôs pra lascar” mesmo, no capricho. Eu mesmo quase que me lasco de medo, no momento em que uma aeronave — deveria ser a do comandante, pois sempre se encontrava à frente das demais — fez um vôo tão rasante por cima da rua principal do Crato, que chegou a levantar poeira, pó de goma e de farinha da feira, além de ter causado “um estrondo da gota serena”. Parecia realmente o fim do mundo... Arre égua! 
Já se pode imaginar o que aconteceu com os mais variados tipos de produtos (farinha, goma, arroz, feijão, fava, milho, pequi, frutas e por aí vai), que eram simplesmente colocados livremente em cima de lonas, por todas as ruas da feira. O pessoal saiu correndo com medo dos aviões e pisou em tudo, misturando e destruindo o que encontrava pela frente: parecia um tsunami. 
Só ouvia era gente gritando: 
Valei-me, Meu Deus do Céu, chegou o fim do mundo! 
Outros: 
— Isso é obra dos seiscentos mil diabos! 
Uma romeira chegou a gritar: 
— Isso é castigo mandado pelo meu Padin Pade Ciço pra acabar com o Crato (historicamente, há rivalidade entre o Crato e o Juazeiro do Norte). 
Meu pai me pegou pelo braço e falou: 
— Não fique com medo, meu filho, isso é muito bonito. É a nossa gloriosa aviação, dando demonstração de sua perícia. É o Comandante Macedo mostrando o valor de um filho da Terra. 
E completou: 
— Fico muito orgulhoso com isso. Que coisa linda é nossa aviação no céu! 
 
 (Capítulo extraído do livro FOI ASSIM..., p. 49-51)
 
 
 
II.  BIBLIOGRAFIA
 
 
PINHEIRO, Geraldo Ananias:  FOI ASSIM..., Brasília: Thesaurus Editora de Brasília Ltda., 2006, 214 p.

sábado, 23 de outubro de 2021

MAESTRO SÃO-JOANENSE TELÊMACO VICTOR NEVES NA PAUTA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS


Por Francisco José dos Santos Braga  

I. APRESENTAÇÃO 
 
No dia 8 de abril de 1998, na Sessão Extraordinária da Câmara dos Deputados, o Deputado Aécio Neves prestou uma homenagem pelo transcurso dos cem anos de nascimento do maestro Telêmaco Victor Neves (12/04/1898-24/06/1950), sendo aparteado pelos Deputados Manoel Castro e Leur Lomanto, que se uniram ao Deputado Aécio na homenagem. 
O Deputado Aécio Neves, ao prestar sua homenagem ao maestro Telêmaco Neves, salientou a importância do músico mineiro na preservação das partituras das músicas setecentistas e oitocentistas, como também a continuidade do espírito musical por meio de seus seguidores na Orquestra Ribeiro Bastos, inclusive sua filha, a Maestrina Maria Stella Neves Valle, e seu filho, o Maestro José Maria Neves, recipiendários do seu legado: a fé católica e a sublime interpretação da música sacra. 
 
Crédito pelo opúsculo: D. Elza Rosa Neves Lombello, filha do Maestro Telêmaco Victor Neves

 
 
II. HOMENAGEM AO CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DO MAESTRO TELÊMACO VICTOR NEVES PELA CÂMARA DOS DEPUTADOS 
 
1ª página do opúsculo

 

O SR. PRESIDENTE (Hélio Rosas) - Concedo a palavra ao nobre Deputado Aécio Neves para uma Comunicação de Liderança, pelo PSDB. 

O SR. AÉCIO NEVES (PSDB-MG. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, serei bastante breve. Costumeiramente, não venho a esta tribuna prestar homenagens pessoais, por mais que algumas sejam extremamente legítimas. 
Sr. Presidente, hoje não poderia me furtar em fazer aqui um registro acessório a um pronunciamento que certamente também ficará gravado nos Anais desta Casa no momento em que se comemora não apenas no Estado de Minas Gerais, mas também em todo o País, o centenário do nascimento de um dos mais importantes músicos do Brasil, originário da minha cidade, São João del-Rei. 
 
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, 
venho hoje a esta tribuna, para prestar uma homenagem a um importante maestro e grande divulgador da música em nosso país. 
Trata-se do Maestro Telêmaco Victor Neves, cujo centenário de nascimento será celebrado no próximo dia 12 de abril em sua cidade natal, São João del-Rei. 
Esta celebração merece ultrapassar os limites municipais e estaduais, por tratar-se de um brasileiro que representa um dos mais significativos exemplos de Mestre de Música dentro das nossas tradições.
Músico completo, Telêmaco Neves, aliava as atividades de compositor, de regente e de professor, a mais importante das missões como Mestre de Música, a de renovar o repertório, atividade que por si mesma era a primeira garantia de sobrevivência do fato cultural. Os manuscritos da Orquestra Ribeiro Bastos e de vários outros arquivos mineiros mostram a enorme quantidade de obras antigas recopiadas pelo Maestro, assim como de adaptações de músicas para atender aos instrumentistas da época, que chegaram até nossos dias como um dos mais preciosos acervos musicais do período setecentista e oitocentista. 
A vida de Telêmaco Neves, Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, é um exemplo de abnegação e de dedicação à música. Católico convicto e praticante, deixou registrado o seu toque sublime na música sacra em sua época. 
Filho do músico e Oficial de Sapateiro Antônio Bernardino, pertencente ao mesmo ramo familiar do Comendador José Antônio das Neves, nascido nos Açores, cuja descendência tornaria o Maestro Telêmaco Neves primo do pai do saudoso Presidente Tancredo Neves. 
Antônio Bernardino, que foi pai de quatro filhos no primeiro casamento com a Sra. Maria Silvéria do Nascimento, teve em seus filhos Altamiro e Marcondes dois proeminentes precursores do movimento teatral em São João del Rei, participando da fundação do Teatro Artur Azevedo e contribuindo para o desenvolvimento de um dos mais importantes movimentos culturais em Minas Gerais. 
Ao ficar viúvo, Antônio Bernardino casou-se novamente com a Sra. Eugênia Malaquias da Cunha e com ela teve apenas mais um filho, Telêmaco. 
Antônio Bernardino faleceu em 1910, aos cinqüenta anos de idade, deixando Telêmaco Neves ainda criança, o que obrigou a sua mãe a encaminhá-lo a exercer uma atividade profissional, iniciada como aprendiz em oficina de sapateiro. Desde então, o menino sapateiro passa a prover o sustento de sua mãe, e vai com muito esforço galgando os degraus da profissão, passando ainda muito jovem de aprendiz a oficial, indo atuar então na principal sapataria da cidade, a tradicional Casa Dilascio. 
 
Profª Margarida Alacoque Moreira
Maestro Telêmaco Victor Neves
Em 1924, Telêmaco casou-se com a professora Margarida Alacoque Moreira, que teve o cuidado de registrar a única anotação sobre a formação musical do Maestro Telêmaco, que fez seus primeiros estudos como Prof. Japhet Maria da Conceição, o grande violinista, discípulo do Mestre Martiniani Ribeiro Bastos, que certamente complementou e apurou o primoroso aprendizado de Telêmaco Neves, conforme os depoimentos de músicos como Emílio Viegas e Carmélio de Assis Pereira, que foram discípulos do Maestro Martiniano ao mesmo tempo que Telêmaco. 
A importância da obra de Telêmaco Neves, Sr. Presidente, tem início a partir de 1912, por ocasião do falecimento do maestro Martiniano Ribeiro Bastos, cuja tradição musical foi recebida do Mestre Francisco José das Chagas, que foi o mais notável intérprete e divulgador em Minas das músicas do período oitocentista. O ainda adolescente Telêmaco teve a sensibilidade e a dedicação de resgatar e manter viva esta esplêndida tradição e técnicas musicais. 
O Mestre Telêmaco Neves, além de ter reescrito estas belíssimas obras musicais dos séculos dezessete e dezoito, proporcionou entretenimento aos cidadãos de São João del Rei, trabalhando como músico do cinema mudo e ao atuar como excelente trombonista e depois violinista na Orquetra Ribeiro Bastos. Participou da Sociedade de Concertos Sinfônicos e também como músico do Clube Teatral Artur Azevedo, onde atuavam seus irmãos mais velhos Altamiro e Marcondes, tendo, sob a liderança de Nequinha Guerra, o apogeu do movimento teatral sanjoense na primeira metade do século XX. 
A versatilidade do Mestre Telêmaco Neves ia muito além de suas atividades de compositor e de regente de música para o teatro, pois compunha também músicas de operetas e para revistas encenadas pelo Clube Teatral. Dedicava ainda todo o seu tempo disponível a preparar elementos para a Orquestra Ribeiro Bastos e instrumentar músicas para melhorar sua disciplina. 
As preocupações do Mestre Telêmaco pela preservação da corporação dos músicos e de seu acervo musical estão registradas de forma indelével nas ações do professor dedicado e competente que foi, e tendo a consciência de que dele dependia a formação de novos músicos, em uma época em que não existiam as estruturas formais de ensino musical, os conservatórios e as escolas de música. Através da ação pedagógica do Mestre, dava-se a transmissão do conhecimento musical. 
Da adolescência até 1941, o já consagrado músico mineiro atuou como Oficial de Sapateiro, para prover o sustento de sua família, não sendo reconhecido como Mestre de Sapateiro por não possuir oficina própria onde pudesse receber aprendizes. 
A grande mudança em sua vida verificou-se no dia 31 de julho de 1942, quando o Prefeito Antônio das Chagas Viegas concedeu-lhe o título de Bibliotecário Efetivo da Prefeitura Municipal de São João del Rei, o que lhe permitiu dividir seu tempo entre os coros das igrejas coloniais, onde a Orquestra Ribeiro Bastos tocava sob sua regência, e a Biblioteca Municipal, com o seu importante acervo de publicações. 
Ao assumir em 1940 a direção e a regência da Orquestra Ribeiro Bastos, Telêmaco passou a formar muitas dezenas de músicos, que iriam suprir as necessidades da cidade durante as décadas seguintes. Foi o responsável pela reestruturação formal da corporação musical setecentista, conseguindo aprovar os primeiros estatutos modernos do grupo de músicos, que passaram a funcionar como associação civil. 
Telêmaco, sempre imbuído em resgatar o passado da música e com os olhos voltados para o futuro, entendeu que seria preciso um espaço próprio para a Orquestra Ribeiro Bastos, pois as velhas corporações musicais não tinham sede própria e os ensaios eram feitos em coros de igrejas, sendo que os acervos e manuscritos eram conservados nas residências dos diretores de cada grupo, o que freqüentemente levava à dispersão de valiosas coleções de manuscritos, principalmente por ocasião do falecimento de antigos maestros, cujas famílias não se preocupavam em transferir a totalidade da documentação musical a seus sucessores. 
A preocupação do Maestro em assegurar um espaço definitivo para dar continuidade ao trabalho de conservação da música pela Orquestra Ribeiro Bastos propiciou a construção de sua sede, a partir da compra de um terreno na rua Santo Antônio, em 1947, com a sala de ensaios sendo inaugurada em 22 de novembro de 1948 e com a finalização das obras em junho de 1949, que contou com a presença do ilustre compositor francês Fernand Jouteux. A inauguração definitiva do prédio só ocorreu em 1952, após o falecimento do Mestre Telêmaco Neves em 24 de junho de 1950. 
Ao sepultamento do Maestro Telêmaco Neves, contam os registros da época, compareceram todos os sacerdotes e irmandades religiosas, que prestaram suas homenagens ao fervoroso católico e magistral intérprete de música sacra, em cortejo acompanhado por banda de música que tocava um de seus belíssimos arranjos musicais. 
A profícua obra deste músico, que nos deixou um dos mais importantes acervos musicais de Minas Gerais, foi prosseguida por dois de seus filhos, que o seguiram como músicos na mesma orquestra. Hoje, quase cinqüenta anos após sua morte, temos à frente da Orquestra Ribeiro Bastos a Maestrina Maria Stella Neves Valle e o Maestro José Maria Neves. 
Telêmaco Victor Neves viveu cinqüenta anos e não assistiu à realização de tudo aquilo que plantou, mas a sua semente foi abençoada por Deus e frutificou em esplendor, deixando seus seguidores na música, através de seus filhos maestros e na fé religiosa de seu filho primogênito, o Cardel Arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil, D. Lucas Neves. 
Era o que tinha a dizer.
 
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O SR. MANOEL CASTRO - Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Hélio Rosas) - Tem V.Exa. a palavra.
O SR. MANOEL CASTRO (PFL-BA. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, quero associar-me a esta singela, mas significativa homenagem do Deputado Aécio Neves pelo transcurso do centenário de nascimento do Maestro Telêmaco Victor Neves.
Como baiano, como católico, como amigo pessoal do eminente Cardeal Primaz do Brasil e Presidente da CNBB, Dom Lucas Moreira Neves, estou habituado a ler os artigos publicados pela imprensa nacional, assim como os livros que trazem uma coletânea desses artigos. Hoje, leio no Correio Braziliense artigo escrito por Dom Lucas Moreira Neves sobre o centenário de nascimento do Maestro. 
Estou vivamente impressionado com as referências pessoais feitas pelo Deputado Aécio Neves, que já havia comentado comigo sobre o assunto e sobre o artigo de Dom Lucas. O Maestro teve um sonho de vida extremamente interessante, formou gerações de músicos e foi muito importante, sobretudo, para a preservação de partituras musicais, num momento em que o País não tinha uma orientação quanto ao arquivo e à memória, que é muito importante para a cultura brasileira. Por cerca de dez anos, foi maestro de uma importante orquestra de São João del-Rei, a Orquestra Ribeiro Bastos, além de membro da Orquestra Sinfônica daquela cidade.
Impressionou-me sobremaneira o fato de esse maestro tão importante para o cenário musical brasileiro ter sido oficial de sapataria. Como tal, trabalhava de dia muito intensamente e, nos horários vagos, dedicava-se não só à música, mas também à escola. Mais tarde, foi nomeado bibliotecário da Biblioteca Municipal e, ainda assim, continuou exercendo forte influência na mocidade de São João del-Rei e na formação musical de dezenas, talvez, centenas de pessoas que contaram com a sua orientação, com a sua sensibilidade.
Fico feliz também por saber da sua profunda fé católica, que compartilhava com a sua esposa, D. Margarida, o que permitiu que o primeiro de seus dez filhos, o primogênito, se tornasse padre tempos depois. Refiro-me a Dom Lucas Moreira Neves, hoje Cardeal Primaz do Brasil.
Portanto, em meu nome e em nome do povo baiano, quero prestar uma homenagem muito sincera a Dom Lucas Moreira Neves, não só pelo pastor que é, mas também pela memória de seu pai, que foi um maestro que honra a tradição e a cultura musical brasileiras.
Sr. Presidente, peço que o artigo publicado seja incorporado ao pronunciamento do Deputado Aécio Neves. 
Era o que tinha a dizer.  
 
CENTENÁRIO DO MAESTRO 
 
Por Dom Lucas Moreira Neves * 
 
Por ser a Quinta-feira o aniversário litúrgico da instituição da Eucaristia e do Sacerdócio, faz mais de dez anos que, na véspera desta data, este artigo tem sido consagrado aos padres. 
Hoje uma circunstância toda particular leva-me a evocar, com natural ternura, um homem a quem, depois de Deus, mais devo o ser padre. Ele desejou apaixonadamente ter um filho padre mas teve a sabedoria de jamais, de modo algum, forçar-me a vocação. Seu modo de ajudar-me no caminho para o sacerdócio foi ensinar-me, pelo seu exemplo, os valores morais e religiosos, sobretudo um imenso amor a Cristo e à Igreja. 
Falo de meu pai. Na véspera de mais uma Quinta-feira Santa agradeço-lhe ter-me levado até ao limiar do sacerdócio, entregando a Deus sua alma 15 dias antes que a imposição das mãos do querido Dom Alexandre Gonçalves Amaral, arcebispo emérito de Uberaba, até hoje vivo naquela cidade, me fizesse padre. 
A circunstância peculiar que me faz focalizar nesta coluna a imagem do maestro Telêmaco Victor Neves é a passagem, no próximo Domingo de Páscoa, do centenário do seu nascimento. 
Nasceu em São João del-Rei, a 12 de abril de 1898, último filho de Antonio Bernardino das Neves e de sua segunda esposa, Eugênia Malachias da Cunha Neves. 
Pelo lado paterno, entrava, ao nascer, em uma família já então numerosa e portadora de uma história. Descendia de José Antonio das Neves, açoriano, da Ilha Terceira, natural da localidade de Santa Bárbara, naquela Praia da Vitória que visitei, emocionado, há cinco anos, depois de presidir, na ilha vizinha, a incomparável festa do Bom Jesus dos Milagres. 
Não sei que bons ventos levaram o alferes denominado, em várias fontes, o comendador, a emigrar da sua ilha natal para o Campo das Vertentes. Sei que pôs os pés na acolhedora São João del-Rei nos inícios do século XIX, pelos anos 20. Sei que aí se casou com uma moça da terra (mais exatamente de Bom Jardim do Rio Grande) de nome Ana Luíza de Lacerda Chaves. Do casal, nasceram sete filhos e uma filha, todos batizados com nomes duplos, incomuns, sonoros, impostos não se sabe se pelo açoriano ou pela mineira. Tibério Justiniano, Galdino Emiliano, Juvêncio Martiniano, Galiano Emílio, Joviniano Firmino, Arcádio Bernardino, Belisandra Jesuína e Gustavo Baldoíno. Juvêncio Martiniano será pai de José Juvêncio, pai de Francisco de Paula, pai de Tancredo e de seus doze irmãos. Arcádio Bernardino, por sua vez, será o pai de Antonio Bernardino, pai de Telêmaco Victor, meu pai. 
A adolescência encontra este último já bastante prático no ofício de sapateiro exercido na Casa Dilascio. No mesmo ofício permanecerá até os 40 anos sob as ordens do sr. Nicolau. Italiano de Lauria, na Basilicata, vindo com os pais para o Brasil, casado, em São João del-Rei, com a doce Zulmira, com el teve uma honrada família, que conta com dois padres e uma freira; para o empregado, foi mais amigo do que patrão. Adolescente, ao que me consta, inicia-se Telêmaco na arte musical, primeiro com o pai e depois na prestigiosa e eficiente escola do professor Martiniano Ribeiro Bastos. A música será sua vida. A música aprendida com uma perfeição que surpreendia os contemporâneos, quer na teoria, quer no manejo de vários instrumentos de corda e de sopro. 
A música ensinada com paixão, com grande sacrifício, pois ensinava ao voltar da sapataria ou, nos últimos dez anos, da Biblioteca Municipal da qual se tornou um diretor inteligente e prestimoso. A música praticada na quase bicentenária Orquestra Ribeiro Bastos, por ele dirigida por pouco mais de dez anos, e na Orquestra Sinfônica de São João del-Rei. Quando, aos cinquenta e dois anos, cai-lhe dos dedos a batuta, recolhem-na e a detêm até hoje os filhos Maria Stella Neves Valle e José Maria Neves. 
A direção da "Ribeiro Bastos" em três missas semanais, nas famosas novenas e, de modo especial, na belíssima Semana Santa de São João del-Rei, permitiu ao maestro formar inúmeros músicos para tocar ou cantar na orquestra. Permitiu-lhe também pesquisar, descobrir, valorizar e, em alguns casos, salvar um precioso acervo de música barroca mineira dos séculos XVIII e XIX. 
Revejo com emoção centenas de partituras por ele recopiadas, noites a dentro, com um capricho inimitável. Nesse sentido, Telêmaco Victor Neves prestou inestimável serviço à cultura da sua cidade natal, do seu estado e do seu país. 
Casado, em 1924, com aquela que ele chamava, em versos, a sua meiga Margarida, junto com ela, transmitiu a dez filhos inapreciáveis valores humanos, morais e religiosos, especialmente da profunda fé católica que viveram. No que concerne ao maestro, foi essa fé a inspiradora da sua música. 
Recordo-me tê-lo ouvido replicar a esposa, temerosa de que, na regência da orquestra, ele não seguisse bastante o ritual da missa: "Bis ora qui cantat Quem canta (toca ou rege a orquestra) reza duas vezes". Algum dos eruditos sacerdotes diocesanos ou franciscanos de São João del-Rei lhe terá ensinado a irresponsável frase de Santo Agostinho, como antídoto aos escrúpulos de Dona Margarida... Volto a dizer que a fé viva, o senso de Deus, a prática religiosa, o amor à igreja demonstrados pelo casal na vida diária foram, sem dúvida, a íntima raiz da vocação sacerdotal do primogênito. Não queria deixar de proclamá-lo nesta Quinta-feira Santa. 
E aos leitores, será que devo pedir compreensão e desculpas por lhes trazer, nesta coluna de jornal, esse olhar de relance do filho padre sobre o maestro centenário? 
 
* Dom Lucas Moreira Neves é cardeal-primaz do Brasil
 e presidente da CNBB
 
 
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O SR. LEUR LOMANTO - Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Hélio Rosas) - Tem V.Exa. a palavra. 
O SR. LEUR LOMANTO (PFL-BA. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, também me associo ao pronunciamento do nobre Líder do PSDB, Deputado Aécio Neves, que homenageia o grande maestro, o grande músico Telêmaco Neves, que, no próximo dia 12 de abril, estaria comemorando o centenário do seu nascimento. 
Este grande músico brasileiro, mineiro, que participou da Orquestra Sinfônica de São João del-Rei, aquela cidade histórica, é pai do nosso Cardeal Primaz do Brasil, Dom Lucas Moreira Neves. 
Então, é com muita satisfação e alegria que me associo, em nome de nossa bancada, pois também já se pronunciou no mesmo sentido o Deputado Manoel Castro, às homenagens prestadas nesta manhã pelo Deputado Aécio Neves a esse grande maestro brasileiro, Telêmaco Neves.
 
 
III.  CONCERTO IN MEMORIAM DO MAESTRO TELÊMACO VICTOR NEVES
 
 
Enquanto isso, em São João del-Rei, realizava a Sociedade de Concertos Sinfônicos, sob a regência de Aluízio José Viegas, o seu Concerto nº 377 comemorativo do centenário de nascimento do Maestro Telêmaco Victor Neves (12/04/1898-24/06/1950), conforme imagem abaixo:

Crédito pela imagem: São João del-Rei Transparente

 
 
IV. AGRADECIMENTOS
 
 
Agradeço carinhosamente à minha amada esposa Rute Pardini Braga pelo trabalho fotográfico, edição e formatação das fotos. 
Em segundo lugar, sou grato à D. Elza Rosa Neves Lombello, filha do Maestro Telêmaco Victor Neves, por disponibilizar a este autor o opúsculo impresso pela Câmara dos Deputados para prestar uma digna homenagem ao Maestro são-joanense, bem como as duas fotografias de seus pais. 
Finalmente, manifesto também minha gratidão ao Sr. Sandro Silva, responsável pelo Memorial Dom Lucas Moreira Neves, em São João del-Rei, que envidou todos os esforços para atender meus insistentes pedidos.
 
 
 
V.  BIBLIOGRAFIA
 
 
CÂMARA DOS DEPUTADOSHOMENAGEM AO CENTENÁRIO DO MAESTRO TELÊMACO VICTOR NEVES, Série Separatas de Discursos, Pareceres e Projeto nº 29/98, 50ª Legislatura - 4ª Sessão Legislativa, 14 p.

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

UMA BANDEIRA DO BRASIL PARA OS HERÓIS DO REGIMENTO TIRADENTES


Por José Lourenço Parreira


 

O Capitão Benigno Parreira foi Maestro da Banda de Música do Regimento Sampaio, Rio de Janeiro, e da Banda de Música do Regimento Tiradentes, da Orquestra da Sociedade de Concertos Sinfônicos de São João del-Rei e da Lira Sanjoanense, a mais antiga Orquestra das Américas e a segunda do mundo. Benigno Parreira é meu querido irmão e fecundo memorialista. Disse-me, certa vez, que, quando São João del-Rei enviou seus filhos para lutarem na Itália, cada casa ostentava uma placa que dizia: "DESTA FAMÍLIA, PARTIU UM UM SOLDADO PARA DEFENDER O BRASIL, NA GUERRA!
 
Tomando nas mãos a obra "De São João del-Rei ao Vale do Pó" do luminar Tenente Gentil Palhares, padrinho de crisma de Benigno, releio valiosa efeméride, em face de a sra. Heleninha Resende ter partido desta vida,  em 10 de outubro de 2021. 
Segundo Palhares, no dia 21 de agosto de 1944, o III Batalhão do 11º Regimento de Infantaria, de São João del-Rei, desfilou pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, onde todo o Regimento se adestrava para atravessar o Atlântico e lutar na sangrenta guerra na Itália! 
A cerimônia que se seguiu foi junto ao Palácio Tiradentes. Estavam presentes, altas autoridades civis, militares e religiosas, representantes da imprensa, do rádio, bem como uma caravana ilustre representativa de todas as classes sociais de São João del-Rei e chefiada pelo então prefeito, Dr. Antônio das Chagas Viegas, que seguiu para a Capital Federal, a fim de solenemente, em praça pública, fazer a entrega da Bandeira Nacional, oferecida pelo povo da legendária cidade mineira. 
Falou pelo povo são-joanense, em nome do prefeito, o Dr. Augusto Viegas. 
O Padre Mário Quintão deu a bênção à Bandeira Nacional guarnecida por uma Guarda de Honra. A população batia palmas, mas chorava, também. A Bandeira Nacional foi entregue ao General Euclides Zenóbio da Costa, por sete jovens senhoritas da Terra de Tiradentes, a saber: Carmem Viegas, Áurea Müller Dias, Lêda Castanheira Neto, Zélia Castanheira Neto, Geralda Viegas, Maria Helena Abreu e Maria da Vitória Abreu. Essa bandeira, relíquia de imenso valor patriótico, fora confeccionada com todo o zelo pelas delicadas mãos da srta. Helena Resende de Farias, conhecida por "Heleninha Resende", para a tropa do 11º Regimento de Infantaria seguir para a guerra! Dentre todas da caravana, sobressaiu-se a talentosa senhorita, falecida no dia 10 de outubro p.p., e que detinha o honroso título de "amiga do Regimento de São João"! 
No comovente ato de oferta da Bandeira do Brasil ao General Zenóbio, a jovem Beatriz de Castro Albergaria declamou poesia da lavra de Asterack Germano de Lima. Ei-la: 
"Esta Bandeira querida, 
Que é toda de ouro bordada, 
Representa a nossa vida, 
Nossa Pátria idolatrada! 
 
Representa a Pátria inteira, 
Num cantinho está São João, 
Foi servida esta Bandeira, 
Por mãos da gente mineira, 
Com civismo e coração. 
 
Nos mais longínquos recantos, 
Nos países de além-mar, 
Pavilhão cheio de encantos, 
Hás de, forte, tremular. 
 
Esta Bandeira bonita 
Que o vento da Pátria agita, 
No azulado firmamento, 
Traz o sopro da amizade, 
Da gratidão, da saudade, 
Ao nosso 11º Regimento. 
 
Aqui está São João del-Rei 
Vibrando, sempre de pé, 
Pela vitória da lei 
Da liberdade e da Fé!" 
 
Toda essa edificante História é viva na memória de cada filho de São João del-Rei, de cada combatente do Heróico Batalhão e de seus Comandantes, sempre que se canta a Canção do Batalhão, que assim se encerra: 
(...) 
Eis-nos de volta brasileiros, 
sempre ao lado do fuzil 
que das pelejas trouxe glória 
e honra para o Brasil! 
 
Temos Montese e Castelnuovo, 
as epopeias mui valorosas, 
por nossas armas conquistadas, 
em arrancadas gloriosas.
 
E para arrematar esta minha crônica, acrescento esta última observação igualmente importante: Conversando com o saudoso musicólogo ALUÍZIO JOSÉ VIEGAS, disse-me ele que o desenho na capa do livro de Gentil Palhares é obra do seu talentoso irmão, o genial pintor PEDRO PAULO VIEGAS, apelidado "Pedrinho", o que pode ser conferido na imagem abaixo. Deu detalhes de como foi tudo meio artesanal, do que infelizmente não mais me recordo.

 

BIBLIOGRAFIA

 

PALHARES, Gentil (da F.E.B.): De São João del-Rei ao Vale do Pó: Documentário Histórico das Ações do 11º, 6º e 1º R.I.,  São João del-Rei: Gráfica Diário do Comércio, 1951, 411 p. 
Obs. Os fatos aqui narrados encontram-se nas pp. 185-7 do livro.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

MEDICINA E LITERATURA


Por Raquel Naveira 
 
 
Medicina é a ciência que tem por fim prevenir e curar doenças. 
A Medicina é exercida pelo homem desde a mais remota antiguidade. Como relacionasse os fenômenos naturais com a manifestação de poderes sobrenaturais, a Medicina teve, a princípio, um caráter religioso. Umas divindades tinham poder profilático, outras, curador, e outras aliavam ambas as modalidades de proteção médica. 
A profissão de médico encontrava-se já regulamentada no Código de Hamurábi, havendo considerável desenvolvimento da medicina entre os assírios e os babilônicos. Conheciam as virtudes terapêuticas dos banhos, das ventosas, das compressas, bem como tinham noções de higiene. 
Nível bem mais elevado foi atingido pela medicina egípcia. Os papiros dão indicações sobre seu considerável desenvolvimento, sobretudo quanto às aplicações da cirurgia e da farmácia. Os conhecimentos químicos revelados pela arte do embalsamamento influenciaram a prática médica. 
A medicina da Índia misturava-se com magia e filosofia. 
Os judeus tinham terapêutica singela e natural, cirurgia desenvolvida e codificaram preceitos relativos à habitação, à higiene sexual, ao vestiário, cumpridos pelo povo como normas de inspiração divina. 
A medicina chinesa está mesclada de elementos fantasiosos. Foram peritos em massagens e ginásticas.
Na civilização helênica, houve acentuado fundo religioso, bem como a influência de práticas médicas dos povos vizinhos. O deus da medicina seria Asclépio, o Esculápio dos latinos. Data de então o culto da serpente e sua relação com Esculápio, que usava um cajado, em volta do qual se enroscava uma cobra, símbolos do auxílio e da sagacidade. 
 
 
Hipócrates é considerado o pai da Medicina. Sistematizou a ciência médica de seu tempo. 
Juramento de Hipócrates: "Antes de tudo, não causar dano (ao paciente)."
 
Aristóteles elucidou a Fisiologia e a Anatomia humanas. 
No período medieval houve uma decadência da Medicina, pela concentração de cultura em mãos de sacerdotes e pela superstição. Os bizantinos distinguiram-se na conservação de textos médicos. Os árabes criaram bibliotecas, hospitais, consultórios. 
No Renascimento, predominou a Medicina Escolástica. A cirurgia foi renovada e Paracelso teve a idéia da base químico-biológica da Medicina. 
O século XVIII marcou grande avanço com a descoberta do microscópio. Surgiram a Anatomia Geral, a Neurologia, a Dermatologia, a humanização da Psiquiatria e progrediu a Pediatria. 
O século XIX marcou novo avanço com a prática de laboratório e as descobertas de Pasteur. Acentuou-se o caráter social da medicina. Surgiram a Embriologia e a Endocrinologia. A anestesia facilitou o trabalho do cirurgião. 
No século XX, a Medicina refletiu o progresso geral da técnica: emprego de antibióticos, sulfas, radiações, novos processos cirúrgicos. Surge a Psicologia. 
 
O livro O Médico, do pedagogo, poeta e filósofo, Rubem Alves, um dos intelectuais mais famosos e respeitados do Brasil, apresenta-nos uma meditação humana a respeito dessa figura ao mesmo tempo lendária e humana que é o médico. 
Rubem Alves reflete que antigamente a simples presença do médico irradiava vida, eles eram também uma espécie de feiticeiros, detentores de poder sobre a vida e sobre a morte. Naquele tempo os médicos sabiam das coisas. O médico era um herói romântico, vestido de branco. 
Hoje, ser médico transformou-se num risco e ninguém acredita na sua santidade. São apenas portadores de conhecimentos especializados, que vendem serviços. Os médicos têm saudade de uma imagem que não existe mais. 
Para Rubem Alves, a doença, emissária da morte e da perda, tem função iniciática: é por meio dela que se pode chegar a um maior conhecimento de nós mesmos. As doenças são sonhos sob a forma de sofrimento físico. A vida é uma entidade estética. O homem cria beleza como remédio para sua doença, como bálsamo para seu medo de morrer. A criação é fruto do sofrimento. Os artistas são doentes. 
Vida e Morte são irmãs. A morte não é algo que nos espera no fim. É companheira silenciosa nos convidando à sabedoria da vida. A fé bíblica pondera que somente Deus pode curar. A cura é um dom divino oferecido aos homens. O médico, instrumento de algo superior, deveria sentir afeição profunda pelo ser humano, afagando suas dores e eliminando seus males. 
Que livro magistral o Médico de Homens e de Almas, de Taylor Caldwell! Conta a história de São Lucas, o autor do Terceiro Evangelho, amigo dileto de Paulo, um dos seus mais fiéis colaboradores, o glorioso médico, um homem complexo e fascinante. Sua história é a história da peregrinação dos homens através das trevas da vida, do sofrimento e da angústia, da dúvida e do cinismo. Lucas, humildemente, reconhece Jesus como O Médico e se põe a seu serviço, depois de longas lutas interiores. 
O acadêmico Murilo Melo Franco nos esclarece que sempre houve entendimento da Medicina com as Letras. Vários médicos foram também escritores. São pessoas inspiradas num ideal de beleza, de ciência e de cultura. Combinam a arte de medicar com a magia de escrever. Sentem atração pelas inquietações literárias. São mestres do bisturi, das receitas, dos laudos, das radiografias, mas também amantes da literatura, que encontram refúgio e consolo nos romances, nos ensaios, nos poemas. 
A Academia Brasileira de Letras, com seu prestígio, solenidade e mistério, tem toda uma linhagem de magníficos médicos e cientistas, como os que se seguem: Francisco de Castro, baiana, professor de Clínica Médica, autor do livro de poesia, Harmonias Errantes; Osvaldo Cruz, pioneiro da Medicina Experimental, que erradicou a febre amarela no Rio de Janeiro; Aloísio de Castro, autor de obras musicais, literárias e médicas, como Semiótica do Sistema Nervoso; Fernando Augusto Ribeiro de Magalhães, obstetra e ginecologista, fundador da Pró-Matre, excepcional orador; Miguel Couto, reformador do ensino da Clínica Médica, autor de Diagnóstico Precoce da Febre Amarela; Miguel Osório de Almeida, criador da teoria matemática da radioterapia, escreveu o romance Almas sem abrigo; Antônio Austregésilo Rodrigues Lima, o Antônio Zilo, escreveu dois livros de prosa poética: Manchas e Novas Manchas; Clementino da Rocha Fraga, que publicou Fronteiras da Tuberculose; Júlio Afrânio Peixoto, baiano, doutorou-se com a tese Epilepsia e Crime, diretor do Instituto Médico-Legal; João Guimarães Rosa atuou como médico voluntário junto às tropas que combatiam o movimento constitucionalista de São Paulo, entrou na carreira diplomática, chefiando o Departamento de Fronteiras do Itamarati e escreveu o célebre romance épico, Grande Sertão: Veredas; João Peregrino da Rocha Fagundes Júnior, professor e presidente da Policlínica Geral do Rio de Janeiro, escreveu o livro de contos Histórias da Amazônia; Maurício Campos de Medeiros, psiquiatra, autor de Psicoterapia e suas modalidades; Antônio da Silva Melo escreveu livros que alcançaram as fronteiras da antropologia, da moral e da filosofia como Religião: prós e contras e Estudos sobre o negro; Carlos Chagas Filho, organizador do Instituto de Biofísica; Deolindo Augusto Nunes Couto, piauiense, fundador do Instituto de Neurologia, autor de Clínica Neurológica. Além de Ivan Lins e Afrânio Coutinho, diplomados em Medicina, mas que não exerceram a profissão, um, atraído pelo positivismo e outro pela crítica literária. 
A Academia tem ainda Ivo Pitanguy, o famoso cirurgião plástico, mestre da estética. 
Todos esses médicos não teriam se tornado cultores das letras se não tivessem, como afirma Celso Barros Filho, “a mente moldada à contemplação do lado espiritual do homem, onde se revela o ser sensível, o artista, com a capacidade de exercitar o talento pelo lado da emoção e fortalecer a vontade na busca do seu ideal”. 
É interessante observar que quase todos esses médicos-escritores foram também professores, formaram escolas, gostavam de ensinar, pois uma particularidade dos grandes homens, como nos explica o Dr. Ivo Pitanguy, pois “o homem de conhecimento sabe que o gênio solitário está fadado ao esquecimento e para perpetuá-lo deve difundir o seu saber aos mais jovens, mantendo ao mesmo tempo acesa a chama da curiosidade permanente”. Há renovação no confronto diário com os alunos. 
Neste ponto, vamos reforçar a figura do extraordinário médico, Osvaldo Cruz, que nasceu em São Luís de Paraitinga, São Paulo, no dia 05 de agosto de 1872 e morreu em Petrópolis, Rio de Janeiro, a 11 de fevereiro de 1917. Estudou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a partir de 1903 e empregou todos os esforços para debelar em três anos, conforme prometera ao governo, a febre amarela. Incompreendido, diante da oposição do povo em serem aplicadas medidas enérgicas de profilaxia, pediu demissão. O presidente Rodrigues Alves recusou-a e deu-lhe apoio integral na execução de sua obra higienista. Em 1908, quando houve uma epidemia de varíola, a vacinação foi aceita como medida necessária. Durante a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, novamente foi solicitada sua cooperação para o saneamento da zona em que a estrada operava e ele conseguiu uma redução significativa do número de mortes. Escreveu a tese de doutorado, A Água como Veículo dos Micróbios e Relatório sobre a Moléstia Reinante no Porto de Santos
O médico-escritor gaúcho, Moacyr Scliar, filiado à corrente do realismo mágico que varreu as literaturas latino-americanas e a brasileira nas décadas de 70 e 80, fez sua estréia com História de um Médico em Formação. Sem abandonar o exercício da medicina, publicou vários livros, entre eles Sonhos Tropicais, em que narra a saga de Osvaldo Cruz. O médico Pedro Nava provocou grande impacto no surto memorialístico do movimento modernista brasileiro com sua obra monumental. A revelação do prosador memorialista foi tardia, a partir de 1972, quando da publicação de seu primeiro volume de memórias, o Baú de Ossos. Escreveu-as com humor, vasta erudição e experiências literárias. Chão de Ferro, Beira-Mar, Galo das Trevas, Círio Perfeito, Balão Cativo, são ao todo seis volumes de memórias. Pedro Nava preocupou-se com documentos, garantindo ao leitor a veracidade dos relatos. Constituiu um verdadeiro arquivo com questionários dirigidos aos biografados, depoimentos de terceiros e apontamentos que acumulou através do tempo. 
No seu projeto, Pedro Nava seguiu uma certa cronologia distinguindo etapas de origens, infância, estudos e formação, finalmente o exercício da profissão escolhida, a Medicina, numa abrangência de mais de meio século. Dá início ao longo depoimento sobre o ensino médico da época, percalços e progressos, ao lado de perfis de colegas de estudo e de profissão, de ilustres professores com destaque aos grandes médicos do período. 
Conforme Beira-Mar, o ingresso do memorialista na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, em 1923, foi por vocação e exemplo de família, não obstante seu gosto literário e pendor artístico. 
Em Galo das Trevas predomina o relato do exercício da Medicina, primeiro em Minas Gerais-Belo Horizonte e interior, a seguir no oeste paulista e finalmente no Rio de Janeiro. Viveria a experiência da revolução de 1930 em Belo horizonte e de 32 no interior de São Paulo. Deixa-nos um painel da vida médica brasileira em hospitais, pronto-socorros, clínicas e consultórios. História da medicina repassada pelos elogios justos ou merecidos dos grandes médicos das 3 ou 4 primeiras décadas deste século e pelas críticas severas aos maus colegas de profissão. 
Em suma, as memórias de Pedro Nava são um vasto e minucioso panorama de uma época vivida, sentida, investigada, poética e criticamente. 
Lembrei-me de dois personagens médicos. Primeiramente, o Dr. João Semana do singelo livro As Pupilas do Senhor Reitor, do romântico português, Júlio Diniz, cuja temática gira em torno da tese segundo a qual a vida simples e natural torna as pessoas alegres e felizes. Júlio Diniz descreve o campo, os tipos humanos, os hábitos e as idéias, com o propósito de uma moralização de costumes pela vida rural e pela influência de um clero convertido ao liberalismo. As personagens são autênticas, são cópias do natural. O Dr. João Semana é o retrato fiel do cirurgião João José da Silveira, que no tempo da estada de Júlio Diniz em Ovar, exercia a profissão médica com grande sucesso naquela região, conforme explica o crítico literário Egas Moniz. 
O outro é o “quase médico”, Cirino, do livro do romântico brasileiro, Visconde de Taunay, Inocência. Inocência é um romance regionalista, onde Taunay descreve os hábitos, costumes e cenários da vida do sertão do sul de Mato Grosso, que ele tão bem conheceu nas viagens e campanhas militares. A história diz respeito a um caso de amor contrariado, tendo como protagonistas uma meiga moça de nome Inocência e um “médico” viajante, o Cirino. Como esquecer a cena, em que ele, jovem, de “presença agradável, olhos negros e bem rasgados, barba e cabelo cortados à escovinha e ar tão inteligente quanto decidido” penetrou no quarto de Inocência doentinha, pálida, de uma beleza deslumbrante, à luz de uma vela de sebo? Cirino, impressionado, receitando-lhe sulfato, quina e folhas de laranjeira? 
Está fazendo o maior sucesso o livro Medicina Espiritual - O Poder Essencial da Cura, do cardiologista americano, Herbert Benson e da jornalista, Marg Stark. O livro sintetiza algumas recentes descobertas sobre a relação entre mente e saúde corporal. Evidências científicas mostram como são relevantes as emoções e os pensamentos na prevenção e na cura de inúmeras doenças. A ciência está respaldando as práticas que as pessoas cultivam há milhares de anos, como meditar, fazer ioga, relaxar e rezar para despertar a cura interior. Mostra que fé religiosa é fator de manutenção da saúde. 
Esses médicos-escritores compreenderam em plenitude o sentido humanístico da vida como um todo. Cultuaram a fé na ciência, aliaram a racionalidade da medicina à sensibilidade literária. Foram motivados na Medicina e na Literatura pelo amor, pela compaixão e pelo profundo respeito a seu semelhante. 
 
 
BIBLIOGRAFIA 
 
 
ALVES, Rubem. O Médico. Campinas/SP: Papirus, 2002. 
 
Boletim da Academia Paulista de História-ano XV, nº 105, abril/2003. Artigo: “São Lucas, o historiador cuidadoso...”, de Luiz Gonzaga Bertelli. 
 
CALDWELL, Taylor. Médico de Homens e de Almas. Rio de Janeiro: Record, 5ª ed. 
 
CASTELLO, José Aderaldo. A Literatura Brasileira: Origens Unidade, vol II. São Paulo: Edusp, 1999. 
 
DINIZ, Júlio. As Pupilas do Senhor Reitor. Coleção “Obras imortais da nossa literatura”. São Paulo: Três, 1972. Enciclopédia Brasileira Mérito-vol.13. 
 
MOISÉS, Massaud. A Literatura Brasileira através dos Textos. São Paulo: Cultrix, 19ª ed. 
 
Revista Brasileira. Academia Brasileira de Letras. Fase VII-Out-Nov-Dezembro de 2002. Ano IX, nº 33. 
 
SCLIAR, Moacyr. Sonhos Tropicais. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, 5ª ed. 
 
TAUNAY, Visconde de. Inocência. Coleção Obras imortais de nossa literatura. São Paulo: Três, 1972.