quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Colaborador: AMARO LUIZ ALVES











AMARO LUIZ ALVES é carioca de Jacarepaguá. Estudou no Colégio Pedro II-Externato-RJ, cursou a Escola Preparatória de Cadetes do Ar-Barbacena, MG, formou-se em Administração pela UFMG-BH e fez pós-graduação em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública. Trabalhou na Petrobrás (onde compôs a equipe de inauguração e operação da Refinaria Gabriel Passos em 1968), no Ministério da Saúde, no Senado Federal e na Fundação Cultural Palmares. Sua principal condecoração é o Grau de Oficial da Ordem do Rio Branco. Depois da aposentadoria, dedica-se à fotografia de Natureza, tendo publicado duas edições do livro "Aves brasileiras: uma visão fotográfica".

QUE REINE A PAZ PARA TODO O SEMPRE


Por Amaro Luiz Alves


Morei em Belo Horizonte de 1968 a 1973, transferido do Rio de Janeiro para compor a equipe de partida e inauguração da Refinaria Gabriel Passos, em Betim, Minas Gerais, a primeira unidade da Petrobrás fora da faixa atlântica brasileira. Nesse período, dedicava minhas folgas de trabalho para conhecer o interior do estado e dar vazão ao meu encantamento com a sua gente, a sua cultura, os seus sotaques, a sua culinária, a sua religiosidade e a sua Natureza.

No verão de 1969, aceitei convite para passar um fim de semana na fazenda de amigos, em Brumadinho, município próximo à capital mineira. A propriedade era muito bem cuidada e funcionava como instrumento de geração de renda da família, tendo a pecuária e a lavoura de milho como as principais atividades. Apesar da pequena distância da capital do estado, a região era bem modesta, com poucas estradas asfaltadas, tímida infraestrutura social e raros serviços governamentais, onde predominavam casas sem luz elétrica, água encanada ou rede de esgoto. Mesmo assim, as comunidades levavam vida saudável e alegre, com atividade recreativa intensa, por meio de festas comunitárias, banhos de rio, pescarias e jogos de futebol. 

Na noite de sexta-feira, um fazendeiro da vizinhança foi tomar café com quitandas na casa de nossos amigos e a prosa ficou entre pescarias e futebol. Foi então que fiquei sabendo que o fazendeiro Zé Niquim tinha a idade do século, pois nascera em 1900, e desde os 10 anos pescava no rio Paraopeba. Ele falou, com entusiasmo, das épicas lutas com surubins imensos, arrancados das locas pela força de músculos e poderosos cordonês com anzóis de aço. Também relatou sua experiência como fundador, atleta, técnico e presidente do time de futebol do povoado de Areias, o mais próximo da fazenda de meus amigos. No momento, com 69 anos, Zé Niquim se dedicava às funções de presidente de honra do Areias Futebol Clube e sua principal atividade era arregimentar jogadores para o seu time. Por indiscreta revelação dos meus anfitriões, Chico Niquim ficou sabendo que eu jogava futebol no time da Petrobrás.

Na manhã seguinte, Zé Niquim voltou à fazenda para me mostrar os cordonês que usava nas pescarias de surubim, bem antes do surgimento da linha de nylon no Brasil. Mais adiante, percebi que o objetivo da visita era convidar-me para jogar pelo seu time no dia seguinte, pois, no seu imaginário, ser atleta da Petrobrás deveria ser privilégio de grandes jogadores. Ele explicou que procurava reforços, pois seu time havia perdido as últimas quatro partidas contra o seu antigo rival, o Cavalão Futebol Clube, sediado no povoado de Cavalão, a algumas léguas do Areias. A princípio, não me soou bem o nome do time adversário, pois Cavalão deveria ser um time que distribuía coices e patadas, recursos incompatíveis com a boa prática futebolística.

O jogo seria no domingo de manhã e a fazenda oferecia encantos que não seriam usufruídos caso eu aceitasse o convite para defender as cores do Areias Futebol Clube. Havia represa com traíras e carás, pomar de laranjas e tangerinas maduras, córrego límpido para banhos e deliciosas quitandas mineiras sobre o fogão a lenha que nunca se apagava. Todavia, a minha experiência com os eventos brejeiros, como festas populares, pescarias e jogos de futebol de várzea, exigia que fossem feitas as indagações de praxe.

Chamei Zé Niquim para uma conversa no canto da horta e perguntei se o campo do Cavalão ficava longe; se podia ir de carro até o campo; se o time adversário era bom; se ele tinha chuteiras para me emprestar; se costumava haver briga durante os jogos. Ele me disse que eram 9 km de estrada esburacada até a ponte velha; que a ponte estava fechada para trânsito de veículos; que eram mais 3 km depois da ponte, a serem percorridos com os cavalos levados pelo time de Areias; que haveria um cavalo para meu deslocamento da ponte até o campo de futebol, na ida e na volta; que ele tinha chuteiras para me emprestar; que o time do Cavalão era melhor que o do Areias; que haveria briga, como sempre houve nas partidas anteriores, e que os jogadores do Areias fugiriam a galope, desviando-se das pedradas e estilingadas arremessadas pelos jogadores e moradores do Cavalão. 

Comparando as benesses que eu perderia se passasse a manhã de domingo longe da fazenda com os riscos advindos da partida de futebol, achei melhor comunicar ao Zé Niquim que eu não aceitaria seu honroso convite. Expliquei que o principal motivo da minha recusa era a briga certa que teríamos que enfrentar. Em segundo lugar, minha experiência com cavalos se resumia à marcha lenta dos pangarés de hotéis-fazenda e jamais galopara em fogosos corcéis em fuga de combate. Zé Niquim ficou visivelmente abalado com a minha desistência. Pensativo e sério, ele sentou-se no banquinho perto do canteiro de couves por uns minutos.
“Se eu garantir que não vai haver briga, você vai?”, gritou Zé Niquim lá do fundo da horta.
“Claro que vou”, respondi sem pestanejar. 
“Não quero perder a oportunidade de contar com um grande jogador vestindo a camisa do Areias. Vou fazer de tudo para acabar com essa briga”, completou o fazendeiro.
“Não espere de mim o jogo de um profissional, Zé Niquim. Vai com calma nesse seu entusiasmo”, retruquei em defesa própria.

Parece que Zé Niquim nem ouviu minha réplica, tamanha era sua alegria com o imaginário reforço. O fazendeiro esportista correu para casa, selou seu melhor cavalo e dirigiu-se ao povoado de Cavalão, acompanhado de seu genro Geraldinho, goleiro e capitão do time de Areias. Foram horas de conversas, cafés, quitandas, cachacinhas e licores com lideranças e atletas de Cavalão.

Já era tarde da noite de sábado quando a dupla de diplomatas areienses chegou à fazenda de meus amigos com a notícia de que a paz estava selada, pelo menos, para a partida do dia seguinte. 

O domingo amanheceu radiante, ensolarado e frio, tal como acontecia nos veranicos dos grotões da Mantiqueira. Depois do farto café da manhã da fazenda, segui com meu carro para a ponte do rio Paraopeba e passei pelo time do Areias que cavalgava a passo de marcha, levando o cavalo extra que eu usaria após a ponte. A minha montaria seria o baio Gavião, o melhor animal do plantel da fazenda de Zé Niquim. Curiosamente, todos já estavam uniformizados e levavam as chuteiras amarradas pelos cadarços, penduradas nas selas. Fiquei imaginando que o time do Areias já estava acostumado a dispensar volumes e pesos supérfluos para o caso de fuga apressada, abusando dos galopes que eu tanto temia.

Enquanto estacionava meu carro numa sombra, o grupo chegou e desceu à praia do rio para dar água aos cavalos. Em poucos minutos nosso grupo de 12 cavaleiros atravessou a velha ponte e venceu a meia légua que restava até o Cavalão. O campo de futebol ficava no outro extremo do povoado, o que permitiu que a comitiva do Areias desfilasse garbosamente diante dos moradores do pequeno aglomerado de casas, enquanto eu ia me acostumando a dar comandos ao resfolegante e teimoso Gavião.

Observando à minha volta, percebi que algo de incomum acontecia, por dois motivos: os moradores do Cavalão olhavam insistentemente para mim e externavam semblantes bastante amigáveis, deixando-me apreensivo, mas também curioso com o que Zé Niquim teria falado a meu respeito durante a sua visita diplomática da tarde anterior. Chegando ao campo encontramos o time local já uniformizado e batendo bola. O vestiário dos visitantes era improvisado numa moita de bambu às margens de um riacho de águas frias e transparentes. Após a preleção, Zé Niquim, agora incorporado à função de técnico de futebol, me deu a camisa 10, honraria destinada aos melhores jogadores dos times, em clara referência à camisa usada por Pelé, campeão mundial de 1958 e 1962. Expliquei a Zé Niquim que eu era especialista na lateral direita, geralmente usando a camisa 2, mas ele não me liberou da camisa 10.
“Vê se faz uns golzinhos” insistiu Zé Niquim.

O campo do Cavalão era bem “careca”, como dizíamos na gíria do futebol. Tinha um terço de sua superfície coberta de grama, principalmente nas áreas dos gols e nas laterais. O resto era de pura areia com cascalho, transformando qualquer queda em grave esfolamento de pernas e braços. Apenas um juiz cuidava de “distribuir justiça”, sem bandeirinhas para auxiliá-lo. Alguns termos usados dentro de campo eram bem diferentes daqueles de nossas “peladas” no Rio de Janeiro. Uma goleada era uma “balaiada”. Fazer um gol era “furar um gol”. O drible em se passar a bola sobre a cabeça do adversário era "lençol" no Rio e ali era “chapéu”.

O jogo transcorreu normalmente, sem violência ou deslealdade, mas bastante viril. Prestigiando a minha posição de centroavante, todos do Areias lançavam bolas para mim, o que me permitiu fazer dois gols. Com essa vantagem, no início do segundo tempo, Chico Niquim mandou o time recuar e então eu pude retornar à lateral direita, a minha posição predileta.  Procurei o ponta-esquerda para manter minha marcação sobre ele e descobri que ele nunca corria perto da lateral do campo, “embolando” com o meia-esquerda e prejudicando o entrosamento do seu time. Num lançamento vindo do campo adversário, a bola caiu no lado direito da nossa defesa. Corri para alcançá-la e percebi que o ponta-esquerda estava retardando a passada com a clara intenção de permitir-me chegar antes dele. Desconfiado da “gentileza”, eu consegui ver em tempo hábil uma enorme casa de marimbondos rente ao solo, numa touceira de vassourinhas. Com todo cuidado, contornei o ”perigo” e chutei a bola na direção de um de nossos atacantes. Minutos depois, o Cavalão fez um gol e não passou disso.
   
O jogo terminou com a vitória do Areias, depois de muitos anos de derrotas e brigas no campo do Cavalão. Eu ainda esperei algum “troca-tapas”, mas só vi cumprimentos cordiais entre vencidos e vencedores. O retorno à fazenda dos meus amigos foi tranquilo e relaxante, em clima de vitória, superada a ansiedade causada pelas incertezas da partida de futebol. À frente da comitiva do Areias, ia Zé Niquim,  com a incumbência de segurar o ímpeto dos apressados que ameaçavam “abrir galope”, pois sabia que o baio Gavião acompanharia a tropa e me jogaria ao solo na primeira arrancada. Estava bem claro que o vitorioso presidente do Areias não queria voltar ao  povoado carregando o visitante ferido. Chegando, aliviado, à ponte do rio Paraopeba, despedi-me do inquieto Gavião, embarquei no meu carro e segui para a fazenda de meus amigos, no galope motorizado possível diante de tantos buracos e valetas.
    
Zé Niquim pensou assim: “Meu atleta ilustre está seguro no carro, vencemos o jogo e ninguém do Cavalão nos persegue atirando pedras. Por que não liberar o galope?”  

E foi assim que o Gavião, livre do meu peso, passou pelo meu fusquinha em desabalada e alegre correria, no meio da comitiva do Areias, enquanto que eu seguia desviando dos obstáculos da estrada.                                                                                                                                                                      
O almoço de domingo na fazenda de meus amigos foi um banquete tipicamente mineiro. Lembro do tutu, do lombo de porco assado na banha, da couve fininha refogada no alho e do ovo caipira de gema quase vermelha. Pouco depois eu agradecia a hospitalidade de meus anfitriões e tomava a estrada de volta a Belo Horizonte, na expectativa de uma nova semana de trabalho na Refinaria Gabriel Passos.
    
Depois dessa partida, os jogos não terminaram mais em brigas. Os dois times perceberam a vantagem do clima cordial e, com o fim dos conflitos, começaram a aparecer os vendedores de sucos, doces e salgados. As partidas de futebol transformaram-se em eventos alegres e festivos, com a presença de toda a comunidade, bem diferentes daquelas anteriores ao jogo de que participou o “grande craque da Petrobrás”.
      
No fim dos anos setenta, encontrei com Zé Niquim, por acaso, no Mercado Central de Belo Horizonte. Depois de umas cachacinhas com costelinha de porco, ele me revelou que o maior encrenqueiro do time do Areias, no passado, havia sido ele mesmo, o próprio Zé Niquim. Confessou que adorava puxar brigas e fugir, com o seu time, aos galopes pela ponte do rio Paraopeba. Ele confiava muito no grandalhão Geraldinho, seu genro e fiel guarda-costas, durante as “batalhas campais”. Depois que parou de jogar futebol, ele assumiu a presidência do time, mas continuava interessado numa boa briga. 

Tentei rememorar a célebre visita diplomática ao Cavalão naquela tarde de sábado, mas ele se recusou a revelar o conteúdo das conversas. Disse que gostou muito da fase pacífica inaugurada naquele jogo de 1969 e que, desde então, passou a fugir de brigas e galopes, dedicando-se ao seu propósito de viver todo o século e chegar aos 100 anos de idade.

E foi assim que a paz reinou para todo o sempre entre os povoados de Areias e Cavalão. A única armadilha que ainda existe no campo do Cavalão é a casa de marimbondos reservada para os incautos laterais direitos. Se ainda viver, meu amigo Zé Niquim está com 117 anos, lembrando das brigas com o Cavalão.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

TIRADENTES




Colaborador: RENÊ GUIMARÃES


Por Ronaldo Filizzola Guimarães


O  poeta  e  sua  obra

Entre a montanha e o rio, usando a expressão do poeta, nasceu RENATO TEIXEIRA GUIMARÃES em Santa Luzia, Minas Gerais, no dia 23 de maio de 1904. Era filho do Juiz de Direito Luiz Caetano da Silva Guimarães e de Evangelina Teixeira Guimarães. Ainda na infância, passaram a chamá-lo Renê, cognome que lhe absorveu o nome.

Cursou o ginásio no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, diplomando-se no curso superior pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1934. Foi líder estudantil e sustentou, nas tribunas, em calorosos discursos, uma justiça social em favor das classes mais desprotegidas para a qual só agora o Brasil acorda. Sua liderança acadêmica marcou época na gloriosa Casa de Afonso Pena.

Renê exerceu a advocacia em Belo Horizonte durante algum tempo. Conviveu com a elite intelectual da época, jornalistas e políticos, podendo ser citados, entre outros, Djalma Andrade, Fritz Teixeira, Alberto Deodato, Nilo Aparecido, Paulo Pinheiro Chagas, Bartolota, Eurícledes Formiga, Monzeca, Aires da Mata Machado Filho, Sebastião Noronha e o primo Geraldo (Gegê) Teixeira da Costa. Juscelino Kubitschek, segundo dizem, sabia de cor o soneto Normalista, que recitava em diversas ocasiões. Por essa época, conheceu Edmundo Marques Lima o Sô Lima, português do Porto, que foi seu grande amigo e incentivador ao longo de sua vida.

A existência de Renê Guimarães é rica de "casos" contados até hoje, confundindo-se a realidade com o folclore. São exemplos as passagens relacionadas com a Torre da Igreja de Santa Luzia, onde ele se postava prometendo se atirar se não recebesse uma "mesada" extra do pai; ou as que falam de um baile de gala no Automóvel Clube de Belo Horizonte, onde ele teria brigado com o Príncipe de Gales por causa de uma moça e mesmo as que se referem a uma Onça Apaixonada, embeve0cida com os cabelos "de fogo" do poeta...

Nessa época, escreveu parte de sua poesia lírica e social, que era declamada nos bares da moda da jovem capital mineira.

Depois de frequentar a chamada "boêmia intelectual" por muitos anos, casou-se no dia 10 de setembro de 1938 com a jovem Veneranda Filizzola Guimarães, radicada em Sete Lagoas. Inspirado nela, escreveu os sonetos Noivado e Minha Esposa. O casal teve quatro filhos: Vera Lúcia Guimarães dos Santos, casada com o jornalista Márcio Vicente da Silveira Santos; Ronaldo Filizzola Guimarães, Juiz de Direito em Sete Lagoas, casado com a profª Maria Ângela de Carvalho Guimarães; Vanessa Guimarães Carneiro, professora, casada com o empresário Mário Carneiro Costa, e Luiz Carlos Guimarães, advogado, casado com Iara de Oliveira Guimarães.

Transferiu-se o poeta para Sete Lagoas em 1940, onde exerceu a advocacia e consagrou-se na Tribuna do Júri. Foi nessa cidade que ele escreveu extensa parte de sua obra literária. Afeiçoou-se ao povo, amou a cidade e sua gente com uma fidelidade atávica. Juntamente com Wilson Tanure, compôs a música "Sete Lagoas", considerada "um hino de amor à cidade".

Os sonetos de Renê Guimarães foram publicados em revistas especializadas e em jornais, mas quase sempre à sua revelia, pois ele nunca se preocupou com a fama e quem o conheceu sabia que, abstraído no mundo das ideias, sempre esteve acima da vaidade humana. Tanto assim que nunca se preocupou em publicar seu livro. Argumentava, sempre, que se algum valor tivesse sua obra, ela permaneceria. Lembrava ele que Cristo que considerava o maior dos homens jamais editara um livro e, no entanto, as suas ideias são eternas.

Tomado pela inspiração, o poeta sentia necessidade indomável de extravasar seu estro e escrevia em qualquer papel que encontrasse, muitas vezes em papel de embrulhar pão, nas partes brancas de seus livros jurídicos, nos cadernos escolares dos filhos...  No livro de anotações domésticas da esposa compôs vários sonetos. Esse caderno está a salvo, guardado pela família. Não obstante, muitas de suas poesias se perderam.

Vanda, como chamava a esposa, foi quem começou a anotar as poesias que se encontravam perdidas pela casa, evitando que desaparecessem. Graças a ela, a presente obra foi compilada e publicada.

Renê Guimarães faleceu no dia 28 de junho de 1966, no Hospital Nossa Senhora das Graças, em Sete Lagoas, evento que sensibilizou a cidade. No soneto Depois da Morte, como numa premonição, ele descreve o seu falecimento: 
"(...) O silente hospital, as ruas tortas
e as mãos, as magras mãos desesperadas. (...)" 

Por iniciativa do vereador Ataliba Lago, a Câmara Municipal de Belo Horizonte deu o nome de Renê Guimarães a uma rua da Capital e, em Sete Lagoas, através de projeto de lei encaminhado pelo prefeito Sérgio Emílio Vasconcelos, a Câmara Municipal deu o nome do poeta a uma praça da cidade.

Em Sete Lagoas, Renê Guimarães empresta seu nome a uma das dependências da sede da Ordem dos Advogados, à Biblioteca da Escola Estadual Cândido Azeredo e é patrono de uma Cadeira da Academia Sete-lagoana de Letras. A Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais também tem uma Cadeira com o seu nome.

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Renê Guimarães acreditava que sua obra resistiria ao tempo e só admitia sua publicação em livro se ela viesse pela tradição oral. Após 25 anos de sua morte, sua poesia sobrevive e é perenizada em letra de forma. Na Capital, declamam seus sonetos. O jornalista Camilo Teixeira da Costa, seu primo e grande incentivador da publicação desta obra, recita, sem embaraço, Santa Luzia e Rio de Minha Terra, que falam da terra, berço comum, a decantada Santa Luzia; o desembargador William Romualdo da Silva, o soneto Mulata e, assim, uma gama de pessoas questionam sobre o livro do poeta. Da mesma forma, em Sete Lagoas é grande o número de pessoas que declamam a sua poesia. Em exortação aos valores espirituais, o prefeito Sérgio Emílio Vasconcelos fez inscrever numa placa de bronze, na Ilha do Milito, na Lagoa Paulino, os dois tercetos de Minha Aldeia. Os versos, de rara beleza plástica e filosófica, são lidos e copiados pelos visitantes: 
"Eu vinha para a vida esperançoso
De ser grande, ser rico, ser famoso,
Mas, de manhã, vi pássaros em bando

E parei para ouvi-los um segundo.
... E fiquei entre os pássaros cantando
E nunca mais eu me lembrei do mundo." 
A obra de Renê Guimarães foi compilada em uma divisão cronológica. Não obstante, a poesia lírica remonta a primeira fase de criação do poeta; a social começa de seu tempo de acadêmico de Direito e a de reflexão ou filosófica constitui a terceira etapa de sua poética.

A preocupação do poeta sempre foi o ser humano, o sofrimento das classes mais desprotegidas e as injustiças sociais. conhecia a alma mineira com a profundidade de um filósofo e seus versos muito bem revelam essa intimidade. Neste aspecto, destacam-se os sonetos Esposa de Operário, Semeador, Lua dos Humildes, Garimpeiro, Tiradentes, Revolta, Velhas Estradas e Rio de Minas, entre outros. 

Sua poesia não cai no vazio da rima; ela tem essência; de fato, toca a alma, aflora lembranças, mostra que a felicidade está no dia-a-dia, nas coisas simples, no amor que surge, no rio que corre, na vida que está passando, na saudade que fica. Ele mesmo, no soneto Poesia, só admite o ofício de poeta e a própria poesia como criação de beleza suprema:
Eco da prima treva violada!
Som do sopro de Deus, criando a vida! 
A obra de Renê Guimarães revela a dimensão de sua cultura humanística, neoclássica, sociológia, filosófica e teológica, aliada a uma aguda capacidade de mergulhar na verdade das coisas, trazendo à tona ilações lindas e profundas, às vezes singelas e inebriantes. Veja-se o soneto Libertação, em que ele penetra na metafísica com tamanha simplicidade de ideias, nunca antes cogitada, que nos extasia pela beleza das imagens, transmitindo um sentimento de eternidade da alma em composição com o universo: 
(...) Morrer é debruçar-se sobre a aurora,
É encher a noite, solitária agora,
Da música divina do silêncio!  
No poema Mater Dolorosa, a conotação mística é grandiosa. O diálogo bíblico entre o Cristo agonizante e a Virgem Maria tem rara beleza plástica, teológica e filosófica.

No soneto dedicado à terra natal Santa Luzia, mostra que a felicidade está no ato de viver e sentir "a voz das madrugadas", "a paz da tarde, onde a andorinha voa", para concluir, segundo a filosofia positivista de Comte, que 
(...) Sou um pouco de ti, eu te copio:
sou o rumor das águas do teu rio
e um reflexo de luz da tua história! 
Já no soneto Música, o poeta revela que a arte é o homem psíquico, pois ela procura reeditar as emoções vividas: 
(...) A música é nosso eu em sons transfeito...
Ela é o amor cantando em cada boca
e o ódio soluçando em cada peito! 
Em sua poesia lírica, Renê Guimarães busca emoções vividas, paixões, solidão e êxtase, vazada em estilo rico de imagens, como se vê no soneto Serenidade
(...) Mas tu passaste pela minha vida
Como serena, pela altura, passa
A estrela Vésper pelo céu da tarde! 
 E o exemplo maior de permanência da obra é o soneto Mulata, conhecido de cor por centenas de pessoas e transcrito em antologias: perfeito na forma, ele é ensaio sociológico e mensagem de brasilidade transpostos em imagens colossais.


Agora reunidos em livro, os sonetos de Renê Guimarães devem ser lidos e relidos: primeiro, para sentir-se a beleza do conjunto e, depois, para penetrar sua mensagem, eco autêntico da vida emanado de um espírito iluminado, de uma inteligência privilegiada, de um homem puro de coração   que dedicou um incomensurável amor à humanidade. 


Fonte:  "E o Poeta Falou" (obra completa), Belo Horizonte: Editora Lemi S.A., 1994, pp. 07 a 12 de um total de 165 pp.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

JOSÉ MARIA NEVES NA SÉRIE "TRAJETÓRIAS"


Por José Maria Neves


José Maria Neves, musicólogo que ocupou a Cadeiranº 12 da 
Academia Brasileira de Música patroneada por José Maria Xavier, tendo sido seu presidente entre 2001 e 2002, até seu falecimento; presidente da ANPPOM por duas gestões, de 1995 a 1999


SÉRIE TRAJETÓRIAS
Palestrante: Acadêmico José Maria Neves
Local: Praia do Flamengo, 172 / 12º
Data: 07 de maio de 2002
Hora: 18h: 30min

Quando nós optamos por adotar a tecnologia, às vezes nós levamos rasteira dela e eu não tenho a mínima certeza se o Power Point vai querer funcionar aqui como funcionou na minha casa. Se não funcionar, faremos outro tipo de comunicação. Tomara que saia como eu planejei porque vocês reconhecerão na sequência de fotografias várias caras conhecidas e pode ser bem divertido nós nos lembrarmos de coisas que foram comuns a todos nós. 

Quem me conhece bem sabe que Guerra-Peixe me influenciou em vários aspectos e um dos mais fortes foi que Mário de Andrade era uma espécie de guru universal dos nacionalistas. Ora, a minha experiência de cinco anos de estudo com Guerra-Peixe me fez pensar que devemos buscar a multiplicidade, a variedade, o enriquecimento e, sem maiores pretensões, eu gostaria de dizer que, se eu não sou o que o Mário de Andrade disse dele mesmo, eu gostaria que eu pudesse um dia dizer isso:
“Não sou folclorista não. Me parece que não sou nada, na questão dos limites individuais, nem poeta. Sou mais é um indivíduo que, quando sinão quando, imagina sobre si mesmo e repara no sêr gosado, morto de curiosidade por tudo o que faz no mundo. Curiosidade cheia daquela simpatia que o poeta chamou de “quasi amor”. Isto me permite ser múltiplo e tenho até a impressão que bom.” Mário de Andrade, “Música, doce música” (São Paulo, Martins, 1963, p. 67). 
Se eu tenho alguma pretensão quanto a pesquisador e músico, creio que é uma pretensão de ser múltiplo e de tentar ser bom sempre que possível.
 
O fio da minha meada começa em São João del-Rei, foi lá que eu nasci ¹, e minha vida girou em torno de três instituições que para mim são importantíssimas. Em primeiríssimo lugar, a Orquestra Ribeiro Bastos ² que há três gerações vem sendo dirigida por pessoas da minha família. Meu pai foi o penúltimo diretor antes que, em 1977, eu mesmo assumisse a chefia da Casa. Então, na verdade, a minha vida gira em torno da Ribeiro Bastos. E quando as pessoas muitas vezes me perguntam: “como é que dá para juntar música do século XX com música do século XVIII?” Eu sempre disse que não precisava juntar porque já estava junto, já nasceu junto. Não se tem que criar ligações artificiais. Música é música! Em segundo lugar, duas pequenas escolas do interior, uma municipal e outra estadual, onde na verdade eu pude aprofundar de maneira mais sistemática aquilo que na Orquestra Ribeiro Bastos era totalmente assistemático. Não estou dizendo, de maneira alguma, que há um progresso ou que há um passo a mais. Não há este tipo de diferença. Apenas, existem diferenças de metodologia. Mas, continuo achando que a grande escola de música do País ainda é a Banda de Música, ainda é o grupo de música popular, ainda é o lugar onde as pessoas vivenciam esta prática musical que nós, na Academia, depois depuramos, organizamos, damos títulos, classificamos, mas que, na verdade, o bom está lá fora. Para mim, o bom começou em três instituições da maior importância. 
 
Esta foto eu não resisti em colocar porque fotografa a primeira vez em que eu participei da Orquestra Ribeiro Bastos, quando tinha por volta dos meus 5 anos. Acho uma foto extremamente expressiva, aquela saída, certamente de Igreja, certamente de Semana Santa, provavelmente uma Sexta-feira da Paixão, todos de preto, circunspectos, com o antigo vigário, Monsenhor Almir
³, que era a fera da cidade, todos o admiravam e o temiam ao mesmo tempo. Isso foi logo depois da morte de meu pai. Este era o seu Milico, o regente na época, a quem eu fui suceder em 1977. 

O momento seguinte é o dos estudos secundários que me encaminharam de maneira bastante segura para outro tipo de prática musical curiosa. Era uma escola de dominicanos franceses, a Escola Apostólica de São Domingos, onde a música tinha um papel importantíssimo. Se olharem a listinha, reconhecerão pelo menos dois nomes. Um deles é o de Clarisse Stückert, que morreu há dez anos, e que foi uma grande cantora da ópera de Viena. Ela se refugiou no Brasil e era a preparadora coral desse coro. Ela viajava para Juiz de Fora para fazer preparação coral de coros cujos maestros eram Frei Sebastien Tauzin, Frei Eliseu Lopes e Reginaldo Carvalho, que vai ter um papel fundamental na minha vida, na minha biografia pessoal mesmo, porque alguns anos depois, em 1968, já no Rio, com uma carreira musical iniciada e Reginaldo, recém-nomeado diretor do Instituto Villa-Lobos, ele me convida e consegue a minha nomeação como professor da UNI-RIO. Então, é uma coincidência extraordinária feita por esse músico absolutamente extraordinário que optou por ficar deitado na rede, bebendo água-de-coco em Teresina, onde está há mais de 20 anos, e não quer outra coisa na vida.

Havia esse coro com o qual tive o privilégio de visitar praticamente todos os Estados brasileiros; viajava-se sem parar para financiar as despesas da própria escola e os diretores franceses diziam que aquilo era uma forma de trabalho. Não era nem lazer, nem arte, nem divertimento; trabalhava-se para pagar a escola - construção, casa, comida, etc. Há algumas fotos dessa época que são curiosas. Fazíamos turnês que não acabavam nunca, e as pessoas eram obrigadas a juntar a escola com as artes, se quiserem, com um sentido de responsabilidade que eu diria que na década de 50, para crianças entre sete e doze anos, talvez fosse um pouquinho pesado. Lembro-me de um recital no Maracanãzinho, com um repertório e um público que não acabavam mais. Havia uma moça chamada Ana Maria Martins, de Belo Horizonte, como solista, um mezzo-soprano brilhante, terminando o programa com Invocação em Defesa da Pátria, de Villa-Lobos, recital realizado no dia 19 de novembro, morte de Villa-Lobos. Uma coisa bastante impressionante. Como sempre se fazia naquela época, havia uma multiplicidade de uniformes. A primeira parte era sempre de música religiosa, então havia uma imitação brasileira de modelo francês de coro infantil. 

De 1962 a 1964, há uma interrupção radical, eu entro para o convento dos dominicanos e durante dois anos estudo Filosofia na Ordem Dominicana
, com outro nome e tudo. Um prêmio para quem souber como eu me chamava quando era dominicano. Ninguém sabe? Fiquei dois anos estudando em Belo Horizonte, depois em São Paulo, e eu me chamava Frei Vítor. Interrompi em 1964, seguro de que não era aquilo o que eu queria, e que eu queria mesmo era retomar meus estudos musicais. Nesse momento, quando eu venho para o Rio, entro para a Escola de Música e resisto apenas um ano e meio. As pessoas mais experientes nas lides da Escola de Música entenderão a minha falta de paciência. A diretora era Dona Lide Sodré e havia outras personalidades que vocês conhecem.

Continuei os estudos com as pessoas que efetivamente eu respeitava que eram Guerra-Peixe e Esther Scliar
. Foram cinco anos de estudos com os dois no Seminário de Música Pró-Arte, e certamente foi o local onde eu pude rever os grandes conceitos musicais. Estou seguro que tanto Guerra-Peixe quanto Esther Scliar me fizeram rever esses conceitos dentro daquela mesma linha de acúmulo, de possibilidades de crescimento, sem escolhas discricionárias porque na realidade um equilibrava o outro. Lembro-me com total nitidez: cada vez que um exercício era levado ao Guerra-Peixe e ele dizia que estava bom, no momento seguinte a Esther desancava o exercício. Cada vez que a Esther dizia que um exercício estava muito bom, o Guerra-Peixe o destruía na aula seguinte. Esta coisa era muito criadora porque fatalmente nos levava a começar a discutir um pouco mais as grandes questões. Em um certo sentido, eu diria que Guerra-Peixe tinha mais curiosidade que a Esther, na medida em que ela tinha uma leitura muito mais dirigida e pragmática. Enquanto que a Esther era uma mulher extraordinariamente bem informada e que mobilizava muito a gente. 

Até 1969 eu continuo na Pro-Arte, e durante este período acontecem coisas muito divertidas. Esta foto é de um momento que documenta o primeiro dinheiro grande que eu ganhei com música. Em 1966, Guerra-Peixe me recomenda ao Aires de Andrade e ao Pascoal Carlos Magno, inaugurando a Sala Cecília Meireles com a Orquestra Sinfônica Brasileira, nós fizemos o segundo concerto. E pegam uma peça que eu tinha escrito um ano antes, em São Paulo, chamada Missa de São Benedito e fazemos essa missa, com um coro de câmara pequenininho, mas que soava muito bonito, com Elcio Belito tocando percussão, não era tímpano, era tampar do Tamba Trio, eu mesmo de violão e a grande solista Clementina de Jesus. Foi um grande êxito. Eu me lembro que em duas ou três apresentações na Sala Cecília Meireles, ainda se fazia isto, eu saí, entrei numa loja e comprei um piano, porque eu não tinha piano em casa. Com dois ou três concertos o piano estava comprado. O regente era Antônio Lage, não sei o que foi feito dele. Clementina deve ter feito trinta réplicas dessa peça em muitos lugares, nunca cantou de cor, mas também nunca cantou lendo, ela pegava uma imensa partitura e fazia o que era possível, mas ela nunca deixou de pegar a partitura dela na hora do concerto, era genial. No final da Missa, ela estava com a partitura na mão. 

Eu tenho um dos poucos exemplos de peça escrita no final dos anos 60, é um Duo para flauta e clarineta, que nessa época foi muito tocado. Não faz muito tempo, Laura Rónai, fazendo concurso para a UNI-RIO, tocou essa peça com o Paulo Sérgio Santos e eu tenho essa gravação. Superficialmente, bem por cima, eu vejo mais a presença da Esther do que a de Guerra-Peixe, aquele toque levemente neo-clássico que a Esther escondia, apesar dos outros apegos todos mais modernos. Não me desgosta essa peça não, diria que, até para mim, ela marca um tempo bem importante. 

Em 1969, a primeira bolsa do governo francês, naquela época em que o infeliz do artista que fosse ousar pedir uma bolsa receberia um tratamento bastante pouco cordial, porque não passava pela cabeça das pessoas que a música fosse efetivamente um objeto de pesquisa em pós-graduação ou de investigação científica sistemática. Então, a única saída realmente era a bolsa estrangeira. E eu me lembro que em 1969, quando eu viajei, saiu do Rio de Janeiro um Boeing 707 cheio de bolsistas que vinham do Chile, Argentina, Uruguai e Brasil. Isto era extraordinário porque os franceses ainda acreditavam que essa era uma maneira de difundir a cultura francesa, mas depois se desiludiram porque, apesar de todos os esforços, nós nos tornamos americanizados. 

Na França, o primeiro objetivo da viagem era um curso de regência na Escola Nacional Superior de Música de Paris, onde estudei composição e análise musical, com Louis Saguer, da esquerda francesa reunida em torno do partidão. E a minha ida para lá foi gratuita. Poucos meses antes da minha viagem, eu tive uma longa conversa com o Cláudio Santoro, que me disse para ter cuidado com a direita francesa. E ele tinha razão, a direita francesa continua perigosa até hoje. 

No conservatório, fiz o curso de Pierre Schaeffer
, que na época tinha o nome pomposo de Música Fundamental e Aplicada ao audiovisual. Na verdade, era uma espécie de introdução teórica com as práticas que eram feitas num estágio de música eletroacústica, com o grupo de pesquisas musicais da chamada UFF. E, depois de alguns meses da minha chegada, faço um agradecimento público pela primeira vez, graças à indicação de Flávio Silva, eu fui visitar Jacques Chailley , com o Luís Heitor Corrêa de Azevedo e entrei na musicologia, o que não era o meu objetivo. Eu não fui para fazer isso. Na verdade, foi Flávio que me apresentou a Chailley e, através dos dois, comecei esse Mestrado em Musicologia, que Chailley só aceitou porque Luís Heitor aceitou e orientou. Porque Chailley não se sentia à vontade tratando dos Choros, de Villa-Lobos, no meu mestrado e, em seguida, no doutorado

Essa obra é de 1969, é um Quarteto de Cordas que, como vocês verão, seguia todas as modas composicionais do final da década de 60, com muito glissando pra cima e pra baixo, com muitos risquinhos exóticos, e que interessava bem pela forma de grafia, talvez mais pela grafia que pelo produto musical, mas confesso que não me desagrada totalmente. Vamos ouvir com uma gravação feita em um teatro enorme, gravado a quilômetros de distância. É um quarteto de cordas, o que soa é um miado que só tem algo pior: o miado do próprio ouvido. Este é o meu Quarteto número 2

Essa próxima foto é de uma peça editada em 1968 que na verdade é uma brincadeira. A capa da partitura é um coro no qual todos os cantores têm a boca redonda, exceto um, que canta com a boca quadrada e o regente lhe pergunta: você não pode cantar como todos os outros? Esta peça é uma espécie de estudo coral com grafias diferentes, com exploração de materiais. Foi uma obra muito cantada lá pelo final da década de 60, 70 nas escolas e conservatórios de música mais “abertos” que nós tivemos. Cecília vai se lembrar de todas elas, escolas onde pessoas que nós conhecemos entravam dizendo: “abaixo Bach, abaixo Beethoven, abaixo Mozart!” 

E essa é uma foto de 1969, começo do inverno na entrada da Casa do Brasil, onde estão Jorge Antunes, eu, Flávio Silva e Ana Maria. 

Foto (sem Ana Maria) publicada no ensaio de Flávio Silva, intitulado "Variações sobre um tema de Jorge Antunes", in Uma POÉTICA MUSICAL brasileira e revolucionária, Brasília: Sistrum Edições Musicais, 2002, p. 19.  Não se trata da foto citada, porque esta foi tirada em Paris, em 1971. Crédito: Flávio Silva.

Esta outra foto é de como eu era, levemente black power, e que as pessoas achavam que era um pouquinho exagerado demais para um professor universitário. Eu me lembro que o professor Graça, que era o Diretor do Instituto Villa-Lobos, muitas vezes entrou na minha sala de aula para dizer que um professor não fazia o que eu estava fazendo agora: lugar de sentar é na cadeira e não da mesa. As pessoas eram muito mais rígidas e realmente esta cara meia de fauve me faz lembrar-me de alguém que o Vasco Mariz provavelmente conhece, e que Manuel Corrêa do Lago conhece bem. Ela gostava muito de fazer essa brincadeira, me falava que eu era o fauve.

Essa outra foto é de quando eu volto para o Brasil, em 1971, e com várias pessoas importantíssimas para a música brasileira, Dona Amália Conde, Cecília Conde, Cleoffe Person de Mattos, Ana Maria Porto Moura, Alda Oliveira. Registra quando começamos um segundo movimento da educação musical no Rio de Janeiro, seguindo o que Cecília trazia de Liddy Mignone e que vai dar por origem à Sociedade Brasileira de Educação Musical que presidi de 1972 a 1974. Através dessas fotografias, a gente via reconhecendo uma porção de gente que fez um trabalho muito bonito pela Educação Musical Brasileira naquele comecinho dos anos setenta.

Na próxima foto, temos Dona Virginia Salgado Fiúza e maestro Nuremberg, Arnaldo Bello, Carlos Alberto Figueiredo.

O ano de 1973 é o da grande virada porque é quando, finalmente, depois daqueles anos de exceção dos quais todos nós no serviço público éramos cooperadores, colaboradores, etc., começaram os concursos. É neste ano de 1973 que faço concurso para Professor Assistente na UNI-RIO, o que vai se prolongar por alguns anos de atividade pedagógica como Professor Titular
, em 1987, e como Professor Emérito, em 1997.

Logo em seguida, de 1974 a 1976, segunda bolsa francesa, que teve por objetivo claríssimo fazer o doutorado
¹. Naquele momento, eu já não tinha dúvida, mas que teve como complemento importante um curso maravilhoso de Regência Coral feito no Instituto Católico de Paris, com o maestro Stéphane Caillat, que fazia um trabalho extraordinário de repertório coral sinfônico, tipo Cantos de Natal, de Britten, Canto de Prisão, de Della Piccola, esta coisa toda com o conjunto coral Stéphane Caillat que era professor do Instituto Católico. Eu estudei durante dois anos com ele e também continuei o estágio eletroacústico, não mais com Pierre Schaeffer, porque a paciência não deu, mas me transferi para o Instituto americano. Por que não deu para continuar a estudar com Schaeffer? Porque eu descobri o método dele e quando a gente conhece o segredo, já não funciona mais. No dia em que eu descobri que Schaeffer era o Gourdier francês, era o cara que tinha aprendido com o guru dele que para ser guru tinha que maltratar, tinha que bater, tinha que destruir, a mágica não dá mais certo. Só se pode ter uma relação sado-masoquista na escola, e também fora, quando a coisa é assumida de alguma maneira. Mas, Schaeffer fazia com seus alunos o que o Gourdier havia feito com Catherine Mansfield, por exemplo, a mulher morrendo de tuberculose, ele mandou fazer um jirau em cima de um chiqueiro e a colocou respirando durante meses aquele cheiro alegando que aquilo iria curá-la. E ela morreu. Nem sempre a relação funciona muito bem, nem sempre o produto é bom. Preferi largar Schaeffer com toda a tecnologia da UFF e ir para um pequeno centro que funcionava no American Center de Paris onde se tinha enorme liberdade.

A volta ao Brasil, em 1976, é o novo mergulho na Orquestra Ribeiro Bastos
¹¹. Eu diria que desde que eu saí, no final da década de 50 até 1976, a minha relação foi muito intermitente. A volta em 1976 é definitiva. Eu vou reencontrar esse personagem que foi tão importante que, por ter dirigido esse grupo no qual estou até agora, o grupo adotou o seu nome. O grupo tem duzentos anos, mas ele foi tão importante que quando ele morre, em 1912, o grupo não é mais a Orquestra do Ribeiro Bastos, mas Orquestra Ribeiro Bastos, simplesmente. Já diz aí da minha admiração por esta pessoa. Desde então, em 1977 eu divido a Semana Santa com o maestro Milico Viegas, e a partir de então fazemos uma primeira turnê com o grupo ao Rio. Então, com minha irmã Stella Neves Valle, eu passo a dividir esta atividade com todas as festas, novenas, procissões de Semana Santa, de maneira quase ininterrupta até 2002. Em 2003, estarei lá.
Diploma de Canto recebido em 1962 - Crédito pela imagem: Conservatório Estadual Pe. José Maria Xavier de São João del-Rei
Saudade da maestrina Stella: pronta para ser condecorada com a Comenda da Liberdade e Cidadania (1ª edição, 2011). Da esq. p/ dir.: um pouco antes de sermos agraciados comendadores, Stella e Jorge Antunes (meus dois indicados), Rute Pardini e eu, Francisco Braga, então secretário da Comenda

Essa próxima foto mostra meu pai, um pouquinho antes do falecimento dele em 1950, dirigindo uma cerimônia de rua, na Semana Santa, que é a procissão do Enterro, na qual a minha irmã que dirige o grupo hoje comigo cantava a ária da Verônica. Isto deve ter sido em 1948 ou 1949. Alguns anos depois, já não é meu pai, mas Milico Viegas na mesma cena. Se vocês forem a papelarias em São João del-Rei encontrarão dezenas de cartões postais como estes, com outra Verônica e comigo dirigindo Manoel Dias de Oliveira, que é o autor dos Motetos.

Na Orquestra Ribeiro Bastos algo tem que acontecer: a gente não passa incólume por lugar nenhum. A gente sempre tem projetos de vida, de acontecimentos, de produção e eu diria que três coisas foram especialmente fundamentais: a primeira foi o rejuvenescimento do grupo. Em 1977, o primeiro ano em que eu regi a Missa, do Presciliano Silva, na Quinta-feira Santa, eu tive a impressão de que se viesse um pé de vento, aquela brisa da qual os franceses fogem dela, eu tinha a sensação de que morreria metade do grupo porque a média do grupo estava por volta de setenta anos. Qualquer corrente de ar destruiria duzentos anos de história. Realmente, rejuvenescer o grupo era fundamental. Era preciso trazer gente jovem não só por causa da gripe, mas também porque havia uma coisa de auto-estima a ser reconquistada. As pessoas tinham que se reconhecer naquela música e eles estavam começando a perder isto.

Segunda feita fundamental foi a redefinição do repertório. Vou mostrar alguns programas e vocês verão aberrações inaceitáveis. Em 1976, o auge da Semana Santa em São João del-Rei foi feito com fragmentos porque inteiro as pessoas não aguentariam, o Stabat Mater, de Rossini, tocado como podiam tocar, cantado como podiam cantar. Uma redefinição de repertório tinha que ser provocada, o que causou sofrimento. Eu me lembro de pessoas que iam lá e diziam: no ano passado foi mais bonito! Eu dizia: o Stabat Mater, do João de Deus, também é! Foi uma briga forte para restaurar o repertório antigo e que teve como ponto de partida a catalogação dos arquivos de manuscritos musicais. Enorme quantidade de manuscritos não tocados e que nós começamos a tirar da gaveta e a colocar na estante de novo, alguns em situação bastante curiosa. Eu me lembro que quando encontramos a Missa Grande, de Antonio dos Santos Cunha, ela vinha embrulhada em um papel meio pardo e escrito com imensas letras do lado de fora: “impossível de ser tocada”. Porque era impossível de ser ensaiada, as pessoas não tinham paciência, era mais fácil pegar uma coisa da rotina qualquer e fazer. A última coisa
que os antropólogos me perdoem , que eu fiz foi também um pouquinho de invenção da tradição. Em alguns momentos da liturgia, percebia-se que coisas haviam sido deixadas pra trás, e foi feito todo um trabalho político com o Bispo convidado para que ele se lembrasse que há três anos tinha havido, mas era mentira. Então, a gente reintroduziu um monte de coisa, a gente reinventou tradição de 200 anos. Por exemplo, se alguém, foi a São João del-Rei mais recentemente se lembra que agora a Verônica canta dentro da Igreja, antes não cantava. Mas havia duas coleções de partituras. Uma para fora e outra não servia para nada. Ah! É? Vai servir. Depois da Sagração da Cruz, "tome de Verônica" nos ouvidos das pessoas e ficou uma coisa muito mais brilhante e emocionante dentro da Igreja. Então, nós inventamos algumas tradições sem nenhum medo dos antropólogos mais xiitas.

Eu falei de tradição, de manutenção de práticas, mas se fica achando que essa tradição e manutenção da prática ficam muito só no teórico, que não é muito verdadeiro, é coisa de acadêmico. Não é verdade. Essa bandeira foi benta na Igreja em julho de 1876 (sic) e estas faixas que estão aí têm o nome de todos os grandes músicos brasileiros do século XVIII: Padre José Mauricio, Padre João de Deus, Emerico Lobo de Mesquita, etc., o que quer dizer que estes compositores frequentavam o conhecimento das pessoas. Isto está presente, está registrado em uma bandeira que tem 150 anos. Padre José Mauricio existia em 1876, Emerico Lobo de Mesquita existia em 1876 em uma bandeira popular.
Estandarte original da Sociedade Lyra S. Joanense, trabalho de Luiz Batista Lopes, benzido solenemente a 31/03/1889.
Mesmo estandarte refeito em 1976 a partir do original. Ambos os estandartes encontram-se na sede da Orquestra Lira Sanjoanense, em São João del-Rei.
Essa é uma fotografia de 1976, da primeira vez em que se saiu para o Rio, com o grupo um pouquinho rejuvenescido, já há umas pessoas com cara de 40, de 30, de 20 anos. Hoje, o grupo tem 104 pessoas, com uma média de idade que deve estar em torno de 22 a 25 anos. Não é qualquer gripe que mata, é preciso ser espanhola.

1934, uma viagem do grupo onde aparecem pessoas de São João del-Rei. Há meu pai, esta senhora que ainda está no grupo até hoje com 85 anos, e o maestro no centro é João Pequeno, sogro de Nélia Pequeno, pessoa muitíssimo competente, que dirigiu o grupo de 1912 a 1938 ou 1940.

Aquela ilustração que eu queria mostrar é de 1962, Ave Maria, de Perosi; não tem cabimento, com um repertório riquíssimo da tradição mineira colonial, estar fazendo Perosi em São João del- Rei! Perosi é ruim na Itália, em São João del-Rei vira coisa trágica. Em compensação, alguns mineiros ainda resistiam bravamente; gostavam da Ave Maria do italiano.

1983 já é fase do meu reinado, se quiserem, e vocês verão que, quando não é de São João del-Rei é porque é mineiro, quando não é mineiro é porque é brasileiro, não tem nenhuma hipótese de um estrangeiro botar o pé ali, apesar de termos feito alguns estrangeiros em outras situações. Fizemos Rossini uma vez porque as pessoas estavam com desejo, então programamos em uma solenidade não oficial.

Tenho uma série de pequenas fotos curiosas. Sempre no final, o grupo se reúne para uma foto e tenho uma sequência delas. Aqui, há uma de 1983, com uma porção de gente jovem. Isto é uma foto de comemoração de 45 anos do Conservatório Brasileiro de Música, na Igreja do Carmo, na Praça XV, a Catedral antiga, com solistas do CBM e nosso grupo.

Só para lembrar, algumas atividades profissionais em Educação Musical, na SOBREART, com Dona Zoé Chagas Freitas, mas já quando trabalhei na SOBREART era Lélia Frota a presidente, do qual fui vice-presidente.

Tive o enorme prazer de trabalhar na equipe internacional dos Cursos Latino-Americanos de Música Contemporânea, que ao longo de dezessete anos realizou dezessete cursos trazendo gente no padrão de Luigi Nonno, John Cage, etc. e tal, cursos que eram itinerantes, a cada ano em algum canto da América Latina. Fizemos cinco no Brasil e doze em outros países. A Equipe Internacional Permanente dos Cursos Latino-Americanos de Música Contemporânea, no ano em que nós resolvemos fechar as portas, há dez anos, era composta por Coriún Aharonián, compositor armênio, que mora no Uruguai, Graziela Parasquevaídes, que é compositora grega que agora também mora no Uruguai, mas ela é argentina também, e casada com Coriún, Conrado Silva que durante muito tempo esteve em São Paulo, mas que é um brasiliense já assumido, professor da Universidade de Brasília, Sergio Prudêncio, que a meu ver é um dos melhores compositores jovens de toda a América Latina, das pessoas mais talentosas que circulam por aí. Nós já não tínhamos mais fôlego para manter essa coisa itinerante, em vários países e por isso fechamos as portas
¹².

Essa foto ilustra o Prêmio Nacional da Música, criado pela Valéria Peixoto quando diretora de Música da FUNARTE, que recebi na categoria de musicólogo, em 1996
¹³.

Em 1998, uma equipe de um cineasta alemão fez um documentário em longa metragem sobre música mineira e ele precisava de um regente que pudesse reger e tivesse uma cara mineira. Então, quem fez o personagem, o mulato maestro, fui eu.

Quero concluir com duas informações. Uma delas muito rápida que se refere às atividades de criação: de fato, o meu fogo diminui muito dos anos 70 para cá. Eu descobri que a minha questão não era ficar escrevendo música, que eu até gosto de fazer arranjos de coro, eu até gosto dessas coisas, mas que a minha praia não é composição. Independente disto, eu pude fazer algumas coisas que me deram muito prazer, diria que muito particularmente na área do teatro, onde durante cinco, seis, sete anos, fiz a direção musical do Teatro Ziembinsk. Isso quer dizer que todas as peças daquele teatro, naquele período áureo do Walmor Chagas, foram feitas com música minha, inclusive uma belíssima versão do “Santo e a Porca”, com o Ítalo Rossi e Zezé Polessa, da qual eu tenho a gravação, mas não passo aqui em hipótese alguma, porque é um xaxado para flauta e zabumba e sei lá o que mais.

Continuei fazendo algumas coisas de caráter experimental e eu gostaria de concluir mostrando um pequeno exemplo de 1971, com uma peça na qual eu uso exclusivamente três materiais sonoros. É uma espécie de enormes temas com variações usando uma estética que na época se falava muito dela, uma composição de eletroacústica pobre.

Quero lembrar que na área musicológica publiquei alguns textos que acredito que causaram algum impacto, não tanto pelo conteúdo específico deles, mas, sobretudo, pelo lado mobilizador. Acho que se algo aconteceu foi porque deu uma balançada no terreno, numa época em que o terreno acadêmico no sentido da universidade esclerosada estava bem voltado para trás. Deu para dar uma sacudida em muitas pessoas e como produto surgiram textos que despertaram interesse bem grande. Eu queria terminar esse nosso encontro com uma peça que dura em torno de sete minutos que se chama Um x dois, que está gravada numa antologia de música eletroacústica latino-americana, e numa segunda versão numa antologia brasileira, o que significa que ao menos duas pessoas pensaram que esta peça é antológica. Marcou aquele tempo. Obrigado.” 


Cf. in http://abmusica.org.br/downloads/2002JMNeves.pdf



NOTAS EXPLICATIVAS por Francisco José dos Santos Braga 



N. B.: Maiores informações são fornecidas pela Profª Salomea Gandelman in Homenagem a José Maria Neves - Sessão de abertura da ANPPOM ( 18 de agosto de 2003). Da sua palestra na sessão de abertura da ANPPOM-Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, colhemos informações mais detalhadas às vezes, outras vezes complementares, que serão reproduzidas abaixo, quando for o caso.
Cf. in http://www.anppom.com.br/revista/index.php/opus/article/view/83/0

¹   José Maria Neves nasceu em São João del-Rei em 20/08/1943 e faleceu no Rio de Janeiro em 27/11/2002. Sua família era constituída por seus pais, Telêmaco Vítor Neves, bibliotecário da Biblioteca Municipal de São João del-Rei, violinista, compositor e mestre de capela; sua mãe, Margarida Alacoque Moreira Neves, professora primária. Esse casal teve os seguintes filhos, todos nascidos em São João del-Rei: 
a) Dom Lucas Moreira Neves O.P. (Ordem dos Pregadores ou Ordem Dominicana), nascido em 16/09/1925 e falecido em Roma em 08/09/2002
b) sete irmãs, dentre as quais Maria Stella Neves Valle, nascida em 17/06/1928 e falecida em São João del-Rei em 28/04/2014
c) José Maria Neves, caçula dos nove irmãos, que, ainda em São João del-Rei, iniciou seus estudos musicais com a irmã, Maria Stella Neves Valle, prosseguindo-os na Escola Municipal de Música e, em seguida, no Conservatório Estadual de Música Padre José Maria Xavier, onde concluiu o curso de Educação Musical.

²   Uma das duas orquestras centenárias de São João del-Rei. A aqui mencionada Orquestra Ribeiro Bastos, que foi dirigida por José Maria Neves, no período de 1977 a 2002, fundada em 1840 por Mestre Francisco José das Chagas, encontra-se em atividade ainda hoje. A outra orquestra são-joanense, também ainda atuante, não mencionada no presente trabalho, é a Orquestra Lira Sanjoanense, fundada em 1776 pelo Mestre José Joaquim de Miranda, e é a mais antiga das Américas.

³  Monsenhor Almir de Resende Aquino (pároco da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar, de abril de 1948 a janeiro de 1967), natural de São João del-Rei, nascido em 24/02/1917 e falecido em 18/06/2001 em Carmópolis de Minas.

⁴  Segundo Gandelman, nesta época ele ingressou no curso de filosofia do Studium Generale Dominicano, em São Paulo, quando sua vida sofre um desvio brusco e passageiro. 

  Gandelman informa que no Seminário de Música Pro-Arte estuda Teoria e Solfejo com Esther Scliar e Harmonia, Contraponto, Fuga e Composição com Guerra-Peixe. 

⁶  Pierre Schaeffer é o renomado autor de "Traité des objets musicaux". A edição que possuo é de 1966 (Éditions du Seuil), 672 pp. 

⁷  Jacques Chailley é o famoso autor de "Compendio de Musicologia" em espanhol, traduzido do "Précis de Musicologie" de 1984 (editado pela primeira vez em 1958), ampliado e revisto com a colaboração de diversos musicólogos e professores. A minha edição é de 1991, pela Alianza Editorial de Madri, 566 pp.

  Gandelman esclarece que em 1969, como bolsista do governo francês, José Maria "foi para Paris, onde permaneceu por dois anos. Durante esses dois anos realizou cursos de aperfeiçoamento em composição, regência, regência coral e música eletroacústica, a última no Conservatório Nacional Superior de Música de Paris, com Pierre Schaeffer, junto a quem estagiou no Groupe de Recherches Musicales da ORTF. Paralelamente aos cursos, fez seu mestrado em Musicologia, concluído em 1971, na Universidade de Paris IV, sob a dupla orientação de Jacques Chailley e Luiz Heitor Correa de Azevedo." Dessa orientação conjunta resultou uma obra posteriormente publicada em forma resumida pela Ricordi do Brasil, Villa-Lobos, o Choro e os Choros. Segundo Gandelman, "nesse livro, José Maria estuda o compositor, um chorão apaixonado, as ligações entre o "choro" popular e os Choros do compositor, concluindo com uma análise detalhada dos 14 Choros e dos Dois Choros (Bis) que fazem parte da monumental série."

  Gandelman relata que, "por ocasião do concurso para professor titular, José Maria apresentou um estudo intitulado A Orquestra Ribeiro Bastos e a vida musical em S. João del-Rei. Através de levantamento bibliográfico sobre a cidade de S. João del-Rei em que aborda seus aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais; revisão de documentos dos arquivos religiosos e civis; entrevistas formais e informais com antigos músicos da cidade; e consultas a coleções de jornais sanjoanenses dos séculos XIX e XX, José Maria apresenta uma visão sumária da música colonial no Brasil; traça um panorama da história e da vida política, econômica e cultural da vila e da cidade de S. João del-Rei e de suas relações com os organismos de apoio e estímulo à produção cultural; focaliza a prática musical sanjoanenses dos séculos XVIII e XIX e momentos do século XX; e, finalmente, estuda com maior profundidade a Orquestra Ribeiro Bastos e suas características de corporação tradicional." Conforme as palavras do próprio José Maria na Introdução de sua tese, "a preservação da tradição musical local é fruto da dedicação de Mestres e de músicos que, ao longo do tempo, souberam atualizar esta tradição, adaptando-se e adaptando-a às novas exigências da vida social, e que a funcionalidade foi e é a razão primeira da vida da corporação, caracterizando-se como elemento de maior força de coesão e de dinamização que outros fatores aparentemente mais significativos, inclusive o profissionalismo e as possibilidades de lucro financeiro."

¹⁰  Segundo Gandelman, esta segunda fase de José Maria na França resultou na "tese, traduzida e adaptada à forma de livro, que foi editada pela Ricordi em 1981, com o título Música Contemporânea Brasileira. (...) Como o título informa, trata-se de um estudo da música brasileira de concerto do século XX, organizado em torno dos movimentos que marcaram essa produção musical no país, movimentos caracterizados por duas forças propulsoras, a tradição e a inovação. (...) Livro em que fica claramente perceptível a inclinação ao anti-conformismo, o engajamento do autor, e sua percepção da relação dialética entre processo criativo e sociedade como um todo dinâmico. (...)"

¹¹  Eis a versão de Gandelman sobre esse momento da vida de José Maria: "De volta ao Brasil em 1976, após a conclusão do doutorado, José Maria re-estabelece definitivamente sua ligação, até então intermitente, com a Orquestra Ribeiro Bastos. No ano seguinte assume a função de regente do conjunto e, com a ajuda da irmã Stella Maria, dirige quase que ininterruptamente, até 2002, as atividades locais e diversas tournées pelo país. À frente da corporação musical incentivou a entrada de jovens. (…) O passo seguinte, a redefinição do repertório, provocou uma forte reação contrária. Compositores estrangeiros, Rossini, Perosi, Soma, comumente executados, foram substituídos por brasileiros e, preferencialmente, mineiros. Ao lado das mudanças introduzidas no repertório, as tradições, nelas incluídas a religiosa, atendendo a novas exigências, foram adaptadas, atualizadas e mesmo reinventadas A restauração do repertório antigo se deu a partir do trabalho de catalogação dos arquivos musicais locais e de cidades vizinhas, em torno dos quais foi gerado um grande número de pesquisas musicológicas."

¹²  Eis a versão de Gandelman para os CLAMC-Cursos Latino-Americanos de Música Contemporânea que tiveram a participação direta de José Maria de certo ponto em diante (1978-1986): "Em 1977, ano em que José Maria assume a regência da Orquestra Ribeiro Bastos, ele se junta à equipe permanente organizadora dos Cursos Latino-Americanos de Música Contemporânea, dos quais se torna presidente entre 1978, por ocasião do 7º Curso, e 1989, quando se realiza o 15º e último, em Mendes, Estado do Rio. Os Cursos, iniciados em dezembro de 1971 em Cerro del Toro, Uruguai, por iniciativa de Coriún Aharonián, amigo de sempre de José Maria ainda dos tempos de estudos na capital francesa, com apoio de uma pequena equipe de compositores e professores, buscavam oferecer ao estudante de música latino-americano, em clima de intenso trabalho, questionamento e discussão, uma visão do panorama musical contemporâneo, não só da América Latina, como da Europa e Estados Unidos, do ponto de vista composicional, musicológico e interpretativo, ao mesmo tempo que promover o compartilhamento de experiências e conhecimentos e a “abertura de canais alternativos de informação”. Os Cursos realizavam-se em diferentes cidades do Brasil, e da América do Sul, contando com a colaboração generosa e gratuita de compositores e professores de diversos países latino-americanos, da Europa e até do Japão."

¹³  Embora ele próprio não fale explicitamente sobre o assunto do Catálogo de José Maria, Gandelman preenche perfeitamente a lacuna: "Em 1997, a Funarte publica um alentado estudo de José Maria, O Catálogo de Obras MÚSICA SACRA MINEIRA, fruto de revisão sistemática e acréscimo de informações a extensas e ricas pesquisas desenvolvidas e documentadas a partir dos anos 70. O trabalho, reproduzindo o texto de José Maria, “além da redação de novo texto de introdução, [consistiu] de total revisão da especificação de cada obra (respeitadas as informações técnicas da equipe de pesquisa que trabalhou diretamente sobre os manuscritos ou sobre microfilmes dos arquivos), do glossário (incluindo novos verbetes), das biografias, da bibliografia e da discografia (aumentada e atualizada) e do quadro que relaciona obras e cerimônias religiosas”. A revisão das 200 partituras reconstituídas nas pesquisas precedentes evidenciou que muitas delas, embora consideradas obras independentes, eram partes de obras mais extensas. Como decorrência, no Catálogo de José Maria foram incluídas 77 partituras de 22 compositores. Simultaneamente à sua publicação, foi lançada uma caixa contendo um estudo introdutório a respeito do projeto “música sacra mineira” e 12 das 77 partituras, as 12 apresentadas em outra edição. Trabalho precioso, o Catálogo é uma obra à qual recorrem, obrigatoriamente, todos os estudiosos da música sacra mineira do período colonial." 

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Para finalizar, embora José Maria silencie, Gandelman fala de outro prêmio significativo que recebeu em 1997 e 1999, a saber, a Menção Honrosa do Prêmio Robert Stevenson, que lhe foi concedido pela Funarte e pelo Centro Latino-Americano de Altos Estudos Musicais da Universidade Católica de Washington e Conselho Interamericano da OEA. Também em sua palestra, José Maria não mencionou seu ingresso, em 1999, no PEN Clube do Brasil, tendo igualmente Gandelman vindo em seu socorro.

 
AGRADECIMENTO 


Quero aqui deixar consignado meu agradecimento à minha amada esposa Rute Pardini por atender a meus constantes pedidos de tomada e formatação de fotos para esta e outras minhas publicações.