sexta-feira, 15 de maio de 2009

Valença, São João del-Rei e o Visconde do Rio Preto

Por José Antônio de Ávila Sacramento *

Em 27 de agosto de 2006, por iniciativa das presidências da Academia Valenciana de Letras (AVL) e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto (ICVRP), reiniciou-se um formidável e permanente intercâmbio histórico-cultural entre as cidades de Valença - RJ e São João del-Rei - MG.

Liderados pela dra. Elizabeth Santos Cupello e pelo dr. Mario Pellegrini Cupello, um grupo de intelectuais integrantes das entidades estiveram em São João del-Rei, visitando a Academia de Letras local. A finalidade maior da visita foi a reativação dos laços históricos e culturais que uniram, unem e unirão para sempre as duas cidades.

Valença, hoje próspera cidade fluminense, então Aldeia de Nossa Senhora da Glória de Valença, surgiu no final dos anos setecentos e início dos oitocentos; a Freguesia de Valença foi criada em 1813 e a partir de 1817 começaram a ser repartidas as sesmarias naquela região. A Aldeia de Valença foi elevada à condição de Vila em 1823, e alcançou a categoria de cidade em 29 de setembro de 1857.

A Academia Valenciana de Letras, atualmente muito bem presidida pela doutora Elizabeth Santos Cupello, foi criada em 1949. O Instituto Cultural Visconde do Rio Preto, magistralmente presidido pelo doutor Mário Pellegrini Cupello, foi fundado em 1990. O casal de presidentes é uma referência na área cultural valenciana. As ações e as pesquisas por eles empreendidas muito enriquecem as tradições daquela região fluminense. Ambos dirigentes mantêm laços históricos, familiares, afetivos e intelectuais com o Estado de Minas Gerais, mais particularmente com as cidades de Mariana, Ouro Preto e São João del-Rei. Devo afirmar que tanto a Academia Valenciana de Letras como o Instituto Cultural Visconde do Rio Preto exercem importantes papéis na cultura daquela região fluminense e cultuam, de modo exemplar, a memória do são-joanense Domingos Custódio Guimarães, o Visconde do Rio Preto, cuja vida e obra chega a ser praticamente desconhecidas dos habitantes desta terra "onde os sinos falam".

Domingos Custódio Guimarães, um descendente da ilhôa Júlia Maria da Caridade (como nós, destas "muitas Minas" Gerais!), nasceu em 23 de agosto de 1802, na localidade conhecida como Fazenda da Rocinha (atual município de Carrancas-MG, região que àquela época pertencia a São João del-Rei). Foi batizado aos 07 de setembro de 1802. Com 21 anos ele foi para o Rio de Janeiro e constituiu a empresa "Mesquita & Guimarães" que visava o fornecimento de carnes, em sociedade com João Francisco Mesquita (futuro Marquês de Bonfim). Valendo-se de boa administração e aproveitando a escassez de gêneros alimentícios no Rio de Janeiro, a empresa prosperou e gerou grande fortuna aos empresários. Anos depois, devido à forte concorrência no negócio de carnes, a sociedade foi desfeita. Financeiramente realizado, Domingos investiu a sua fortuna adquirindo fazendas no município de Valença, dedicando-as ao plantio do café, à criação de gado e ao plantio de hortifrutigranjeiros. Expandiu os seus negócios, adquiriu mais fazendas e tornou-se um dos maiores produtores de café do Brasil.

Casou-se com a senhora Maria das Dores de Carvalho e tiveram dois filhos: Maria Amélia Guimarães e Domingos Custódio Guimarães Filho (mais tarde 2º Barão do Rio Preto).

Juntamente com as atividades agropecuárias, o Visconde participou ativamente da vida político-administrativa e cultural de Valença. Foi um homem generoso. Socorria as famílias carentes e ajudava financeiramente várias entidades. Foi grande mantenedor da Santa Casa da Misericórdia de Valença. Construiu vários prédios e entregou-os à Administração Pública. Abriu estradas de rodagem, a exemplo da que ligava Valença à cidade de Taboas. Idealizou a construção de uma ferrovia entre Valença e o distrito de Juparanã. Instalou a rede de abastecimento de água potável em Valença. Foi um dos pioneiros da adoção da iluminação a gás, quando até mesmo o Império ainda desconhecia tal sistema.

Domingos Custódio Guimarães foi feito tenente-coronel da Guarda Nacional, por D. Pedro I; em 1829 foi agraciado pelo Imperador com o grau de "Comendador da Ordem da Rosa" e depois com o grau de "Gran Cruz da Ordem de São Bento de Avis". O Imperador Pedro II o condecorou com a "Gran Cruz da Ordem da Torre e Espada". Através de Decreto Imperial de 18 de dezembro de 1847 ele foi elevado a Comendador da "Ordem de Cristo"; em 06 de dezembro de 1854, D. Pedro II elevou-o à nobreza, entregando-lhe o título de Barão do Rio Preto. Em 1867 recebeu nova homenagem do imperador, desta feita com o título de Visconde do Rio Preto.

É importante ressaltar que "Domingos Custódio Guimarães jamais lançou mão de dinheiro público ou envolveu-se em negociatas que malversassem o bem da nação. Muito pelo contrário, deu o melhor de si em benefício do povo, tirando do próprio bolso para melhorar as condições de vida da cidade e dos habitantes de Valença. Mais do que sua riqueza, construída com labuta, Domingos Custódio notabilizou-se por sua firmeza de caráter, sua probidade, seriedade...".

O Visconde do Rio Preto veio a falecer no dia 7 de setembro de 1868, na sua Fazenda Flores do Paraíso, no exercício dos cargos de Presidente da Câmara Municipal e Provedor da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Valença. Naquela ocasião a sua morte foi copiosamente chorada pelos valencianos, principalmente. O corpo dele foi sepultado no Cemitério Riachuelo, em mausoléu artisticamente concebido.

Vale dizer que em memória do dito Visconde, por sugestão da presidência do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto, a Câmara Municipal de Valença criou a medalha que leva seu nome, a maior honraria que aquele Município concede a personalidades que se destacam e fazem jus ao agraciamento. Recentemente, através da ação da presidência do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, especialmente do confrade Adenor Luiz Simões Coelho, um modesto preito de reconhecimento foi prestado por São João del-Rei à vida e obra de Domingos Custódio Guimarães: uma via urbana foi denominada oficialmente com o nome de Avenida Visconde do Rio Preto.

Assim está delineada, ainda que muito brevemente, a grande contribuição do são-joanense Domingos Custódio Guimarães ao desenvolvimento da cidade de Valença e região fluminense. Para quem se interessar em conhecer mais profundamente a vida e obra dele, recomendo a leitura do livro "Visconde do Rio Preto – Sua vida, sua obra. O esplendor de Valença", publicado pelo professor, historiador, escritor e pesquisador Rogério da Silva Tjader (Valença:Gráfica PC Duboc Ltda., 2004, 248 p.), onde me nutri da maioria das informações para escrever este modesto artigo. Também me utilizei dos preciosos registros contidos no relatório "Principais Atividades do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto – Idealismo, Pioneirismo e Ação em defesa da Cultura e da Preservação da Memória – Vol. 1, 1990-2007", peça muito bem elaborada pelos doutos dirigentes do ICVRP.

As relações de amizade dos valencianos com São João del-Rei foram outrora iniciadas através de contatos com o notável genealogista Sebastião de Oliveira Cintra e ora vêm sendo mantidas com intensos vigor e reciprocidade. Eu e a minha esposa (Vânia Roseli Vilela de Ávila) nos orgulhamos de ser sócios efetivos do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto e membros correspondentes da Academia Valenciana de Letras. O casal drs. Mario e Elizabeth honra com seus nomes os quadros sociais da Academia de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, na qualidade de correspondentes, sempre participam de eventos da nossa vida cultural e mantém permanente contato com a terra são-joanense. Outras personalidades são-joanenses também fazem parte da AVL e do ICVRP.

Estes intercâmbios poderiam propiciar o início de um processo oficial de geminação entre os dois municípios (este é um ato de irmanação muito comum nas comunidades européias); o ato possibilitaria que os municípios envolvidos reforçassem as suas identidades históricas, culturais e até mesmo econômicas. Com a ratificação da sonhada geminação, os poderes executivo e legislativo, em nome do povo de ambas as cidades, dariam início à detecção de identidades comuns entre os municípios e estabeleceriam acordos de parcerias em diversas áreas.

A vontade que se expressa é a de que nós e também as gerações vindouras saibamos bem interpretar e reconhecer o simbolismo destes preciosos atos bilaterais que já vêm acontecendo e que cuidemos com o maior carinho destas formidáveis relações intermunicipais e interestaduais.

A intenção principal deste articulista é a de que, através da publicação deste modesto artigo no BLOG DE SÃO JOÃO DEL-REI, fosse iniciado o fomento de uma geminação protocolar entre os poderes constituídos da cidade mineira e fluminense (e vice-versa). Assim, através deste ato, buscaríamos uma ainda maior e melhor reaproximação e um contínuo estreitamento de laços históricos, culturais, sociais, educacionais, esportivos e turísticos, fato que ora já acontece de maneira espetacular e sob a forma de uma recíproca irmandade entre pessoas e entidades do Município de Valença e de São João del-Rei.

Que assim seja!


Fotos:

1. Dr. Mario Pellegrini Cupello, presidente do ICVRP, faz a entrega de quadro com a efígie do dr. Domingos Custódio Guimarães - Visconde do Rio Preto, para o acervo do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei - MG (ano de 2006); na parede aparece o retrato do saudoso historiador Sebastião de Oliveira Cintra, um dos primeiros incentivadores da relação cultural do Município de São João del-Rei e Valença.

2. Em 2007, o casal Mario Pellegrini Cupello e Elizabeth Santos Cupello, tendo ao centro o ex-prefeito de São João del-Rei Sidney Antônio de Souza, em evento militar no 11º BI Mth (Regimento Tiradentes) de São João del-Rei.

3. Na sede do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, numa de suas costumeiras visitas, o dr. Mario Pellegrini Cupello (presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto) e a dra Elizabeth Santos Cupello (presidente da Academia Valenciana de Letras). O casal está acompanhado do autor deste artigo, à época (2007) presidente do IHG.

(Fotos: arquivo José Antônio de Ávila Sacramento)


* José Antônio de Ávila Sacramento nasceu em São João del-Rei/MG (distrito de São Miguel do Cajuru). É sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, membro efetivo da Academia de Letras de São João del-Rei, conselheiro titular do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural. Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (Belo Horizonte/MG). Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (João Pessoa/PB). Sócio Correspondente da Academia Bauruense de Letras (Bauru/SP). Sócio Correspondente da Academia Mageense de Letras (Magé/RJ). Mais...

segunda-feira, 11 de maio de 2009

São João del-Rei, por que desprezada?

Por Abgar Campos Tirado *
Este artigo é um grito de protesto. Vejamos o motivo: São João del- Rei ocupa, sem dúvida, lugar de destaque no cenário mineiro e brasileiro. Importante Vila de 1713, já em 1714 era constituída sede da imensa Comarca do Rio das Mortes. Essa vasta região, centrada juridicamente em São João del-Rei, abrigaria hoje cidades tão distantes entre si, como Bambuí, Pouso alegre, Itajubá, Conselheiro Lafaiete e Juiz de Fora! Aqui nasceram homens ilustres como Tiradentes, Tancredo Neves, D. Lucas Moreira Neves e tantos outros que se destacaram no Império e na República, nos mais diversos campos. Sede de instituições mais que bicentenárias, como as Orquestras Lira Sanjoanense e Ribeiro Bastos, a Santa Casa da Misericórdia, as Ordens Religiosas, Confrarias e Irmandades, bem como a quase bicentenária Biblioteca Municipal Batista Caetano de Almeida e as já mais que centenárias instituições, que são a Estrada de Ferro Oeste de Minas e o Regimento Tiradentes, São João del-Rei impressiona vivamente por tão rico acervo. Nosso Teatro Municipal, de 1893, é mais antigo que o do Rio de Janeiro e o de São Paulo. Nossa Sociedade de Concertos Sinfônicos (1930) é mais antiga que a Orquestra Sinfônica Brasileira (1940). A única Unidade militar de Montanha, do Brasil, reside em nosso 11º Batalhão de Infantaria de Montanha. Também enriquecem esta urbe o Conservatório Estadual de Música "Padre José Maria Xavier", outras orquestras além das citadas e também excelentes bandas de música. Além de bons colégios, temos a Universidade Federal de São João del-Rei, a UFSJ , em franco progresso, abrigando inclusive curso superior de Música. Nossa Semana Santa tradicional é ímpar, mesmo em termos mundiais, e o nosso Carnaval, por muitos anos, gozou de imenso prestígio. Tudo isso sem falar de nossas formosas igrejas, pontes e casario colonial. Possuímos entidades respeitáveis, além das referidas, como a Academia de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico, o Centro de Referência Musicológica Dr. José Maria Neves, o CEREM, bem como preciosos museus, não nos esquecendo de nossos jornais, rádios e de nossa televisão, lembrando-nos também de nossa tradição literária e teatral, além da musical. Todos esse méritos nos fizeram, com muito orgulho, a Capital Brasileira da Cultura 2007. Temos ou não temos razão de nos orgulharmos desta velha urbe de D. João V? Pois bem, em geral, a grande mídia, em âmbito nacional, ignora o mais possível nossa São João del-Rei. Até mesmo quando seria impossível deixar de citar a cidade, mesmo assim, conseguem omitir, como, por exemplo, em uma grande reportagem de importante emissora de TV, sobre o Presidente Tancredo Neves, pouco depois de sua morte, na qual o nome de São João del-Rei só foi citado na referência sobre o trem entre esta cidade e Tiradentes. Nem mesmo como berço natal do falecido presidente São João del-Rei foi mencionada, o que gerou um protesto nosso à Emissora, juntamente com a Secretaria da Cultura e Turismo local. Não sei da resposta. Sinceramente, é de partir o coração são-joanense ver em importantes jornais e emissoras de TV amplas referências sobre o carnaval de outras tradicionais cidades mineiras e nada sobre o nosso. Mesmo na Semana Santa, pouca referência há sobre nossas cerimônias, preferindo-se privilegiar alegorias banais presentes em outras cidades, a focalizar, por exemplo, a imensa riqueza cultural e religiosa de nosso Ofício de Trevas, atualmente reconhecido como único no mundo, na autenticidade de suas características. Contemplando outra falta, examinemos a Lista Telefônica da Guiatel: embora São João del-Rei esteja citada no quadro de distâncias de Belo Horizonte a algumas cidades da Estrada Real, seu nome não faz parte do quadro da distância de Belo Horizonte às principais cidades de Minas Gerais, quando são apontadas 56 cidades, mesmo algumas já citadas no quadro da Estrada Real, sendo que muitas das outras mencionadas não se podem comparar, em expressão, a São João del-Rei. Para não me alongar, deixo de citar publicações diversas que, quando não omitem totalmente o nome de nossa cidade, colocam-na em posição injustamente subalterna. A que atribuir esse desprezo para com nossa São João del-Rei? Seria falta nossa essa pobreza de divulgação? Não sei responder; gostaria imensamente de que essa resposta me fosse dada. 
 
Artigo originalmente publicado no Jornal da ASAP, janeiro/fevereiro 2008  
 
 
 
 
 
 
 
* Abgar Antônio Campos Tirado é natural de São João del-Rei, MG. Com formação na área das Letras e da Música, é professor, palestrante, comentarista cultural, escritor, pianista e compositor, com obras já executadas no exterior. Foi diretor por vários anos do Conservatório Estadual de Música “Padre José Maria Xavier” de São João del-Rei, onde se aposentou. É sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei e membro efetivo da Academia de Letras da mesma cidade, bem como da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais. Mais...

quinta-feira, 7 de maio de 2009

São Miguel do Cajuru


Por José Antônio de Ávila Sacramento *


São Miguel do Cajuru é um dos cinco distritos de São João del-Rei (MG). A sede do sub-burgo fica encravada no leito de uma das variantes da antiga Estrada Real (limite sul da Trilha dos Inconfidentes). As origens do local remontam à segunda década do séc. XVIII, quando em 1719, lá na antiga Fazenda do Engenho de São Miguel, afazendou e aquartelou-se o rixento padre Manoel Cabral Camelo à espera de ações da Justiça Eclesiástica e/ou Civil, devido às suas graves censuras direcionadas ao então Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes.

A origem do topônimo São Miguel do Cajuru está ligada à devoção migueliana dos proprietários da referida fazenda (já demolida, infelizmente) e ao vocabulário Tupi, onde Caá (mata) e yuru (boca) são indicatórios de que aquele local seria a boca ou entrada da mata, isto é, a altura em que, vindo das matas do sul, o Caminho Velho atingia os campos limpos, deixando para trás, fechada, portanto, a boca-do-mato, ou seja, o Cajuru.

O histórico distrito fica distante 36 km de São João del-Rei (26 km de asfalto e 10 km em estrada de terra) e abriga a Igreja de São Miguel Arcanjo, na qual as estão as abóbadas de uma capela original (de antes de 1745) com belíssimas pinturas ilusionistas sacras, todas de imenso valor artístico; aquele acervo, uma valiosa obra de arte praticamente desconhecida, tem suas principais características no modelo artístico trazido pelos portugueses: erguem-se num quadro ricamente emoldurado à guisa de teto e de um novo andar, com bela trama arquitetônica sustentante, simétrica, muro para-peito retilíneo e grupamento de pilastras e colunas formando arcadas. Nos cantos da abóbada da nave central estão os doutores da Igreja (Santo Ambrósio, São Gregório, Santo Agostinho e São Jerônimo), pintados em atitudes variadas e com os seus respectivos símbolos. Existem pinturas de flores, todas muito coloridas. No medalhão central, oval, existem muitas nuvens e querubins. No centro está o São Miguel, modesta e humildemente sem as armas, que são vistas lançadas ao piso, em respeito à Trindade Onipotente. No altar-mor está representado o Arcanjo Miguel em meio a concheados, com um pé apoiado à frente do outro, sugerindo estar caminhando entre as nuvens e proclamando o mistério da Santíssima Trindade, cujo símbolo está pintado no estandarte que ele carrega. Na abóbada do antigo coro, atualmente zona de transição entre a nave antiga e a parte mais recente da igreja, há uma caprichosa composição de instrumentos musicais pintados, com dois pendentes de flores e outros instrumentos pintados nos painéis laterais, certamente um indicativo do gosto musical da gente cajuruense. O estilo das pinturas é o mesmo do mestre Manoel da Costa Ataíde, se bem que poderia ser de um talentoso discípulo dele. Estudos mais recentes, no entanto, atribuem a obra ao pincel de Joaquim José da Natividade, pintor são-joanense nascido na segunda metade do séc. XVIII. É o que ora se acredita, embora estudos técnicos mais apurados se façam necessários para determinar definitivamente a autoria daquelas pinturas.

As pinturas das abóbadas da Igreja do distrito de São Miguel do Cajuru merecem estar incluídas no rol das mais importantes pinturas religiosas de Minas Gerais e do Brasil. Atualmente aquele acervo encontra-se protegido apenas em nível municipal (foi tombado através do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural de S. João del-Rei); o IPHAN, através dos técnicos da 13ª SR/MG, está descrevendo e inventariando o acervo, para fins de tombamento em nível federal, o que acreditamos ser uma necessidade e esperamos que aconteça em breve. Aquele acervo necessita ainda ser mais estudado e pesquisado, mais conhecido e admirado; é preciso saber explorar os detalhes daquelas pinturas, verificar o que elas ainda poderão nos "dizer".

Terminada a breve descrição das pinturas da igreja local, passo a relatar um acontecimento marcante que ocorreu na história do Distrito: a mudança do topônimo do distrito de Arcângelo, que voltou a ser oficialmente denominado São Miguel do Cajuru. No ano de 2000, sob a nossa provocação, foi aprovado pela Câmara Municipal, por unanimidade, o projeto de lei número 4505, posteriormente transformado na Lei Municipal nº. 3.536 de 27 de junho de 2000 que, em seu primeiro artigo, determinou que "passará a denominar-se distrito de São Miguel do Cajuru o atual distrito de Arcângelo".

O fato foi e ainda é muito comemorado. O nome recuperado era tradicional desde o início do século XVIII. São Miguel é uma denominação de grande valor religioso, haja vista ser ele o Grande Anjo, agraciado com o título de "Príncipe das Milícias Celestes" e, por isto mesmo, dito Arcanjo. Miguel é o santo padroeiro e a devoção maior do povo daquela localidade. O antigo nome, agora em vigor, é expressão de sentido cultural e religioso que foi criminosamente alterado em 1943, quando no Poder, algum materialista de plantão nos agrediu e humilhou com a troca do topônimo para Arcângelo. Há de se considerar que a adoção do topônimo Arcângelo em detrimento do de São Miguel do Cajuru foi um empobrecimento...

A referida alteração foi conseguida com base no princípio constitucional de proteção aos bens de valor histórico-cultural e atendendo à grafia correta da linguagem, a que todos os bons cidadãos devem obedecer. Seguimos o exemplo de Conceição da Barra de Minas (ex-Cassiterita) e do distrito são-joanense de São Gonçalo do Amarante (ex-Caburu) que, na verdade, se tivesse sido respeitada a tradição, deveria ter o seu topônimo resgatado para "São Gonçalo do Brumado".

Recentemente conseguimos reaver para o Distrito do Rio das Mortes o seu nome original: Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno! Falta-nos ainda conseguir a volta do topônimo original do distrito de Emboabas para "São Francisco do Onça" e do vizinho município de Ritápolis para "Santa Rita do Rio Abaixo". Quanto a Ritápolis, alguma coisa já foi feita: o ex-prefeito Higino Zacarias de Souza denominou oficialmente uma obra sobre o Rio das Mortes de "Ponte Santa Rita do Rio Abaixo", demonstrando sensibilidade histórica; o ato poderá ser o primeiro passo para um plebiscito acerca do resgate do nome tradicional daquele Município.

Sabemos que a filosofia existencial de hoje é a Filosofia da Cultura, dos Valores, dos bens criados pela civilização e impregnados de sentido vital e racional. Essa racionalidade da cultura deve se constituir um caminho a seguir, um rumo para as gerações e os diversos povos. É necessário, então, que se conheça o acervo pictórico ilusionista sacro e se comemore a volta do topônimo original de São Miguel do Cajuru como fato histórico, o que nos dá sempre a sensação de que estamos procurando, ainda que timidamente, desfazer aquela impressão de que não temos o devido cuidado com a nossa história e de que ainda somos um povo sem memória.

Nesta região de São João del-Rei, Tiradentes, Prados, Resende Costa, Coronel Xavier Chaves, nas margens dos antigos caminhos da Estrada Real, ainda existe muita cultura a ser garimpada e resgatada. Tudo ainda está praticamente esquecido sob a poeira do tempo, depositado na memória dos nossos sub-burgos. Essa cultura quer se manifestar e não pode ser negligenciada. Na nossa vida, assim como na arte e cultura, deve existir sempre o tempo necessário para se revelar alguma coisa, mas nunca para se ficar em silêncio. Desta forma segue aqui, através deste modesto artigo para o BLOG de SÃO JOÃO DEL-REI, o meu retumbante brado em favor de riquezas praticamente esquecidas e inexploradas às margens destes nossos silicosos caminhos, e, como não poderia deixar de ser, especialmente em favor da história, arte e cultura que repousam no distrito são-joanense de São Miguel do Cajuru, terra abençoada que me viu nascer.

Notas:
1. As fotos das pinturas de Santo Agostinho, São Jerônimo, São Gregório e Santo Ambrósio (quatro doutores da Igreja) estão dispostas uma em cada canto da nave central.
2. A foto da pintura do medalhão central, no centro da nave principal, mostra São Miguel humildemente com as armas postas ao chão, em respeito à Santíssima Trindade.
3. Esta foto da pintura de São Miguel fica no teto do altar-mor.
4. As fotos dos quatro Doutores da Igreja foram feitas antes da restauração. Atualmente todo o acervo pictórico encontra-se restaurado!
5. Todas as fotos são de autoria do autor deste artigo, exceto as duas imagens externas da Igreja de São Miguel, ambas de autoria de Ana Maria de Ávila e Melo, registradas na década dos anos 1970.


* José Antônio de Ávila Sacramento nasceu em São João del-Rei/MG (distrito de São Miguel do Cajuru). É sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, membro efetivo da Academia de Letras de São João del-Rei, conselheiro titular do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural. Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (Belo Horizonte/MG). Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (João Pessoa/PB). Sócio Correspondente da Academia Bauruense de Letras (Bauru/SP). Sócio Correspondente da Academia Mageense de Letras (Magé/RJ). Mais...