sábado, 2 de fevereiro de 2013

A PONTE DO TERCEIRO ENCONTRO


Por João Bosco da Silva *


 

PSEUDÔNIMO DO AUTOR: ODISSEU ¹

Há vezes em que penso que a vida é um desencadear de circunstâncias sobre as quais não temos nenhum controle. Outras vezes penso que é exatamente o contrário; que somos nós que criamos as circunstâncias do nosso existir. E, por fim, há momentos, também, em que penso (se é que penso) que nada sabemos a respeito de nada...
Seja como for, não sei em qual dessas três possibilidades se enquadraria o meu caso, isto é, o caso do meu encontro não desejado e nem esperado com aquele sinistro cavaleiro das trevas...
Tudo começou muito antes, quando Eliana morreu. Estávamos apaixonados e íamos nos casar. Mas, veio aquele terrível acidente de automóvel...  E eu a perdi de vez.
E foi depois de sua morte que comecei a frequentar a ponte. Aquela ponte antiga e pouco utilizada, construída em forma de arco sobre o rio de águas cristalinas que passa perto da cidade.
Eu não costumava ir até lá para pensar apenas na ponte, mas às vezes fico pensando que ela deve ter sido muito movimentada, muito utilizada em épocas antigas, quando foi construída. Afinal, era por ela que chegavam as mercadorias que vinham de longe para abastecer os colonizadores. Mas como a cidade, por alguma razão, cresceu apenas para um dos lados do rio, a ponte parecia estar ali apenas para ligar a cidade de um lado e a não cidade do outro lado, onde apenas uma coisa parecia existir: o Campo dos Mortos, o cemitério onde Eliana estava enterrada. Enfim, parecia que o rio sobre o qual ela fora construída existia apenas para separar aqueles que eu julgava vivos, na cidade, daqueles que eu julgava mortos, lá no cemitério...
A verdade era que, a partir de algum momento, a velha ponte havia passado a ser muito pouco utilizada. Também era verdade que alguns agricultores a utilizavam - assim como os mercadores do passado haviam feito uso dela - para trazerem à cidade suas produções agropecuárias. Como tais agricultores, para chegarem até ela, tinham, necessariamente, que passar pela Estrada Abandonada, esta deixava de ser totalmente abandonada, apesar daquele seu singelo nome ou apelido.  
Além disso, ela era utilizada, esporadicamente, por aqueles que se supunham vivos lá na cidade, quando necessitavam enterrar seus mortos. Foi o que aconteceu quanto tivemos que enterrar Eliana. Aquele dia, o dia do enterro, além de ter sido um dos dias mais tristes da minha vida, foi também o dia em que, verdadeiramente, descobri a ponte, tendo passado a frequentá-la com certa assiduidade.
Acho que posso dizer, também, que depois da morte de Eliana passei a ficar mais introspectivo e a meditar mais sobre as coisas da vida. E, para isto, não havia lugar melhor do que aquela ponte antiga e arciforme que levava, de forma inevitável, à Estrada Abandonada e ao Campo dos Mortos. 
Assim, nas minhas horas de folga (que estranhamente passaram a ser muitas depois daquele acidente trágico), de lazer ou de simples tédio, eu gostava de estar sobre ela, sobre a parte mais alta do arco por ela formado. Afinal, daquela parte mais alta, dando as costas para o movimento e o frenesi da cidade, eu podia ver, lá embaixo, a paisagem calma e bucólica que rodeava o cemitério mais antigo da redondeza, que, significativamente, havia sido batizado de Campo dos Mortos. 
No começo, nas minhas idas até a ponte, eu não conseguia despregar os olhos da sepultura de Eliana, a qual conseguia distinguir facilmente das outras lá no meio do cemitério. Havia muito sentimento naquela época e perder Eliana tinha sido, mais ou menos, como perder um braço ou uma perna. Era uma perda insuportável e confesso que, naqueles dias, derramei muitas lágrimas de cima da ponte. Até porque ali era um lugar onde eu podia chorar sozinho, sem ninguém para me incomodar, para inquirir a respeito de minhas próprias angústias. Com o passar do tempo, entretanto, parece que as lágrimas foram secando e os sentimentos também, chegando um momento em que o sentimento de perda já não parecia tão insuportável e o túmulo de Eliana passava quase que a ser apenas mais um entre os demais lá embaixo.
Entretanto, não sei se por hábito ou não, a ponte, a paisagem ao seu redor e tudo o mais que ela representava continuaram a exercer sobre mim uma atração praticamente irresistível. Posso mesmo dizer que desde o falecimento de Eliana até meu último encontro com aquele cavaleiro sinistro, não passei um dia sequer sem ir até lá. Era ali que eu pensava na vida e no existir humano. E acho que filosofava um pouco sobre a morte.
Mas houve uma vez, uma fatídica vez, em que não me limitei a permanecer sobre a ponte, tendo atravessado-a e adentrado a Estrada Abandonada. Naquele dia, depois de uma irresistível, porém ligeira parada ante o portão do Campo dos Mortos, continuei a caminhar por ela, adentrando-a cada vez mais, andando meio sem rumo, embora seguisse na direção contrária à direção da cidade.
E, naquela caminhada, naquela partida sem rumo definido, acabei não percebendo a chegada da noite. Quando me dei por mim, estava no meio da mais completa escuridão; não me sendo possível sequer ver as últimas luzes da cidade que, com certeza, terminariam um pouco antes da velha ponte lá atrás, a qual acabara por cruzar sem saber as medonhas consequências que isto me traria.

Entretanto, apesar da escuridão que passara a me rodear, provavelmente eu teria caminhado muito mais se, em determinado momento, não tivesse sido meio que despertado de mim mesmo por um som que me soou estranho, além de inesperado. Primeiro começou com pequenos barulhos, repetidos e não muito fortes. Depois, o som foi aumentando e percebi que aqueles barulhos eram, na verdade, o tropel de um cavalo a galope. E que vinha em minha direção.

Temendo ser abalroado, procurei afastar-me do meio da estrada, permanecendo em um canto, rente à vegetação espessa que a tangenciava. E ali, de pé no meio da escuridão, ouvindo aquele tropel que se aproximava, pude perceber claramente que não estava sentindo apenas o medo de ser abalroado ou atropelado. Um outro tipo de medo, o medo do desconhecido, também começava a me dominar e aumentava na mesma proporção em que o tropel parecia se aproximar. Embora desde a morte de Eliana eu tivesse me tornado uma criatura bastante solitária, sem que a solidão chegasse a me incomodar, naquele momento, acho que pela primeira vez me senti totalmente abandonado em minha solidão.

Pior ainda: imobilizado e impotente ante o medo e a perplexidade que se apossavam de mim, percebi que estava ficando paralisado, com meus sentidos e movimentos enfraquecidos, somente conseguindo enxergar a escuridão e ouvir aquele tropel avassalador que se aproximava mais e mais.

Passados talvez alguns segundos, pude ver alguma coisa. Mas era algo que preferiria não ter visto, preferindo mil vezes a escuridão pura e simples. Eram faíscas que pareciam enormes; fagulhas infernais arrancadas pelo encontro das potentes patas de um cavalo que eu ainda não podia enxergar, batendo de encontro ao cascalho da estrada. O medo deu lugar ao terror. Meus cabelos se arrepiaram e meu pensamento paralisou de vez. Aliás, tudo parecia paralisado, exceto as faíscas e aquele tropel estrondoso que estavam cada vez mais próximos.

Algum tempo depois, não sei dentro de que fração de segundos, foi-me possível ver o conjunto, ou seja, cavalo e cavaleiro, que provocavam tudo aquilo. E acho que a própria visão do inferno não me teria aterrorizado tanto.

Porém, para minha surpresa, tão rápido como surgiu, aquele cavaleiro das trevas desapareceu no meio da escuridão da estrada, seguindo no sentido do Campo dos Mortos, da ponte em forma de arco que eu agora me arrependia amargamente de ter cruzado e, naturalmente, da cidade. E, para minha sorte e minha ainda maior estranheza, nem cavalo nem cavaleiro pareciam ter dado conta de minha presença. Ou, se me haviam percebido, me haviam ignorado completamente.

Fosse como fosse, depois que desapareceram, aos poucos fui recobrando meu pensamento e minhas percepções. Percebi que minhas pernas estavam bambas. Meus joelhos tremiam tanto que chegavam a chocar-se um contra o outro. Meus cabelos insistiam em permanecer arrepiados. Hirtos e apontados insistentemente para cima. E, como que para compensar o tempo em que havia ficado paralisado, meu cérebro, de repente, começou a funcionar com um frenesi incontrolável.

Na verdade, era mesmo preciso pensar. Pensar em fugir, em sair dali o mais rápido possível. Mas fugir para onde? O cavaleiro da escuridão havia seguido rumo à cidade e à ponte. Se a coisa que eu menos queria era encontrar-me novamente com ele,  talvez o melhor a fazer fosse correr na direção oposta. Mas isto significava penetrar ainda mais na Estrada Abandonada e na escuridão que a envolvia, coisa que não tinha a mínima vontade de fazer. Além disso, nada me garantia que o cavaleiro, em algum momento, não resolvesse voltar. Se fizesse isto, com a velocidade de que aquele seu cavalo sinistro era portador, me apanharia num piscar de olhos, tornando vão qualquer esforço de minha parte no sentido de afastar-me dele.

Uma outra hipótese que se me aventou foi a de abandonar a estrada. Mas como caminhar no meio daquela vegetação espessa, principalmente numa noite escura como aquela? Era bem verdade que caso o cavaleiro resolvesse voltar, ele voltaria pela estrada e não pela vegetação. Mas, e se não fosse assim? E se, por alguma razão, aquele ser estranho e sinistro resolvesse voltar justamente pelo meio do matagal, coisa que, pelo visto, não lhe era impossível?

E, como um pensamento parece puxar outro pensamento similar, eis que me acordei para uma possibilidade ainda mais aterradora. E se existissem outros cavaleiros iguais àquele? E se estivessem vindo na minha direção, como fizera o primeiro, embora eu não estivesse – ainda – ouvindo ou vendo o faiscar de novos tropéis no meio daquelas trevas que pareciam cada vez mais espessas?

Ante todas aquelas interrogações, pude perceber que meu cérebro, em seu frenesi, ao invés de encontrar uma solução, estava levantando mais e mais questões cada vez mais complexas, as quais eu simplesmente não podia resolver.

Mas era preciso fazer alguma coisa. Era preciso pensar em algo mais. Quem sabe, pensar de forma diferente, mudar de pensamento?

E foi então que comecei a pensar em Eliana, coisa que havia deixado de fazer havia algum tempo. Lembrei-me do amor que sentíamos um pelo outro. De nossas promessas mútuas. De nossas esperanças compartilhadas. Lembrei-me até do acidente brusco que havia levado sua vida, coisa em que vinha evitando pensar ultimamente. E - pensamento puxando pensamento, sentimento puxando sentimento - lembrei-me das minhas primeiras idas à ponte. Das lágrimas que havia derramado sobre as águas, olhando para sepultura lá embaixo.

E foi aí que tomei uma decisão. Acontecesse o que acontecesse, eu queria ver novamente o Campo dos Mortos, a sepultura de Eliana, ainda que para isto eu tivesse que correr o risco de topar novamente com aqueles seres, cavalo e cavaleiro, de aspecto sinistro e amedrontador.

Tomada a decisão, recomecei a caminhada, agora em direção oposta, ou seja, voltando rumo à ponte e à cidade. E parece que eu havia permanecido realmente muito tempo na estrada. Afinal, mal dava os primeiros passos e percebi que a aurora começava a querer despontar no horizonte. Isto significava que eu havia passado toda a noite na Estrada Abandonada.

É estranho como pequenas coisas às quais damos, geralmente, pouco valor, adquirem valores e significados novos quando estamos em situações extremas. Eu, com minha alma algo taciturna e mesmo sombria, até então, pouco havia valorizado o raiar do sol, o raiar da aurora. No entanto, a alegria com que recebia os primeiros arremedos de raios solares naqueles angustiosos momentos era quase indescritível.

Quando passei pelo portão do Campo dos Mortos, o sol já estava a certa altura do horizonte. E, naquele momento, mesmo cansado acabei fazendo mais uma parada algo irresistível junto àquele portão. Desnecessário dizer que quando ali cheguei o susto, o grande susto, já havia passado e o profundo medo que havia sentido ante o cavaleiro e a escuridão parecia algo dissipado pela claridade do dia. Em razão disso, parece que pude usufruir ali, em frente àquele portão, um pouco daquela paz tão comum aos cemitérios.

E parece que aquela calma possibilitou-me permanecer um pouco mais no local, dedicando algum tempo a olhar o túmulo de Eliana, como tantas vezes fizera antes e que havia deixado de fazer desde algum tempo atrás.

Entretanto, mesmo me sentindo melhor, mesmo podendo usufruir daquele momento de relativa paz, pude também perceber que estava cansado. Muito cansado. Tanto que minhas pernas, que haviam estado trêmulas quando daquele encontro sinistro, agora estavam doloridas e desanimadas. Assim, devido ao extremo cansaço, com as pernas doloridas ou não, eu não podia continuar parado ali. Tinha que voltar para casa e tentar descansar um pouco. E foi o que fiz, não me dando, desta vez, ao luxo de parar em cima da ponte, apesar do fascínio que continuava a sentir por ela. Era mesmo preciso voltar para casa e descansar; tentar fazer com que meu corpo recobrasse um pouco de sua energia.

Chegando à minha casa, embora muito cansado e combalido, percebi que, por alguma razão, não sentia fome nem sede, como era de se esperar numa situação como aquela. Por isto, fui direto para o meu quarto e para minha cama. E, se há uma coisa de que estou seguro é de que não sei quanto tempo dormi. É bem possível que tenha dormido todo o restante do dia e também toda a noite, pois, quando acordei, o dia, o outro dia, estava claro e viçoso, e o sol da manhã batia diretamente sobre minha janela, banhando-me com seus raios dourados e alegres.

Tendo acordado com as energias renovadas, levantei-me e, não sei se por hábito ou por necessidade, a primeira coisa que fiz foi tomar um bom banho de chuveiro, o banho que certamente deveria ter tomado na véspera. Somente depois disto fui procurar algo para comer, embora, estranhamente, ainda não sentisse fome, mesmo depois de já ter passado provavelmente mais de vinte e quatro horas sem ingerir qualquer alimento; já que não comera nada desde que encetara minha fatídica caminhada por aquela estrada velha e realmente algo abandonada.
Quando abri a geladeira, entretanto, aquela quase-fome que estava sentindo deu lugar a uma grande surpresa. Que me lembrasse, desde a morte de Eliana, eu passara a descuidar da casa e - acho que poso dizer - até mesmo de mim. Por isto, havia muito tempo não fazia compras e não reabastecia minha geladeira. No entanto, agora me deparava com ela abarrotada de alimentos; parecendo estar recém-abastecida. E, o mais o mais surpreendente, estava abastecida de coisas das quais eu nem gostava muito, como peixes e legumes, por exemplo.
Fosse como fosse, diante daquela surpresa, acabei perdendo a fome de vez e nada comi. E parece que eu, há muito tempo não vinha prestando atenção em minha própria casa, em minha residência. Depois da surpresa com a geladeira, observando um pouco mais atentamente a cozinha, pude notar que ela parecia modificada. Ou em muito eu me enganava, ou sua mobília parecia mudada, parecia diferente.
Além disso, impressionado com o que via na cozinha, passei a investigar o resto da casa. E, para minha nova surpresa, tudo parecia realmente mudado ou modificado. Os móveis não só estavam em lugares diferentes dos habituais, como pareciam ter sido trocados ou substituídos. Diante daquilo, cheguei a pensar que a situação aterradora pela qual havia passado naquela estranha noite, aliada ao cansaço físico, podia ter perturbado minha mente a ponto de ter-me feito adentrar uma casa errada, uma casa que não era a minha. Tal hipótese ficou tão forte para mim que resolvi sair para o lado de fora e verificar o número e a fachada da casa. E, para minha momentânea felicidade, pude verificar que, se os móveis e as coisas no interior da casa pareciam mudados, o mesmo não acontecia com sua parte externa. Nos arredores, também nada parecia modificado. Aquele era, sem dúvida, o Bairro dos Redivivos, para onde havia me mudado fazia algum tempo. E aquela casa, sita no mesmo bairro, à Rua dos Finados, número 13, era realmente a minha.
Adentrando novamente a casa, no entanto, a certeza se esvaía, dando lugar a questões e perguntas que simplesmente não podia responder. Afinal, será que eu havia passado a ficar tão perturbado, a partir da trágica morte de Eliana, que trocara a mobília de minha casa sem me dar por isso, sem perceber o que estava fazendo? Ou teria, por ventura, trocado a mobília no intuito de me distrair um pouco da tragédia representada pela morte de minha amada, tendo, no entanto, me esquecido de que havia feito isto; esquecendo-me até da presença dos novos móveis, voltando a me lembrar somente depois de um novo choque, representado pelo fatídico encontro que havia tido na véspera?
Uma outra hipótese que parecia querer insistir em vir à minha mente, mas que descartei logo por julgá-la totalmente absurda, seria a possibilidade de que alguém tivesse entrado em minha casa e feito aquelas modificações em algum momento durante minhas ausências, sem que eu o tivesse percebido.
Fosse como fosse, diante de tudo aquilo, de tantas questões e acontecimentos inusitados, se não absurdos, minha mente foi ficando cada vez mais confusa. E, na ânsia de fugir dessas confusões, comecei a pensar novamente na ponte, na Estrada Abandonada e no Campo dos Mortos. A verdade é que eu não podia negar que, desde já algum tempo, eram aquelas paragens que me davam um pouco de vida. E, sem dúvida, apesar do susto da véspera, eu, inevitavelmente, voltaria lá.
E foi o que fiz. Fechei resolutamente a casa e saí para a rua, que pareceu abrir-se de maneira singular e receptiva aos meus passos um tanto ou quanto incertos. Afinal, apesar da certeza de que desejava ir para a ponte, existiam bons motivos para estar inseguro: havia, naquela hora do dia, muitas pessoas na rua e eu não desejava encontrá-las. Mesmo lá na ponte, apesar de toda a vida e toda a paz que ela e a paisagem me proporcionavam, eu sabia que teria que ser cauteloso. Não poderia cruzá-la e correr o risco de ingressar-me novamente na Estrada Abandonada; de distrair-me caminhando por ela e, dessa forma, correr o risco de ter novamente o mesmo encontro sinistro. 
Pensando em tudo isto, fui caminhando meio furtivamente em direção à rua que cruzava com a minha, a rua da esquina. Enquanto caminhava, procurando, talvez instintivamente, alguma coisa em que fixar minha mente, comecei a observar os números das casas. A minha era a de número treze. Depois vinha a de número doze, número onze... A da esquina, a de número um, era a última delas. Contornei-a de forma viva e resoluta. Em breve estaria saindo do Bairro dos Redivivos, estaria passando por outros bairros e ruas, chegando, finalmente, à minha ponte que levava ao Campo dos Mortos... 
Chegando lá, embora temendo um pouco olhar na direção da estrada, meu coração encheu-se de vivacidade. O sol brilhava e parecia mais radiante do que nunca. As águas que passavam por debaixo da ponte estavam cristalinas e transparentes, de uma forma que jamais pareciam ter estado antes. Também parecia estar mais radiante a vegetação, o canto dos pássaros; enfim, toda a natureza ao derredor. As flores, essas então pareciam muito mais belas do que jamais haviam sido. As que brotavam lá no cemitério, embora um pouco distantes, pareciam de uma vitalidade algo incomum. Enfim, tudo parecia bastante diferente agora.
Ocorreu-me, então, que talvez aquela diferença estivesse em mim mesmo e não nas coisas. Era bem possível que os transtornos pelos quais estava passando, provocados pelas situações perturbadoras representadas tanto pelo que ocorrera na noite fatídica quanto pelas mudanças inexplicáveis em minha casa, estivessem fazendo com que minha mente percebesse, de forma excepcional, o contraste entre tudo aquilo e as coisas ao redor da ponte.
De qualquer forma, o fato é que era muito bom estar ali, e senti vontade de mudar-me definitivamente para aquele local. O Bairro dos Redivivos era um bairro muito bom para se morar, muito próximo ao centro. Entretanto, nas atuais circunstâncias, não podia dizer o mesmo quanto à minha rua e minha casa. Desde o fatídico acidente, nenhum vizinho havia trocado sequer uma palavra comigo, a ponto de me parecer que me culpavam pela morte de minha noiva. Não me olhavam e não respondiam aos meus cumprimentos, por mais que eu tentasse ser gentil ao cruzar com eles. Quanto à minha casa, se desde a morte de Eliana ela havia se tornado, de certa forma, menos aprazível, agora, com aquela estranha mudança na mobília e no seu interior, parecia totalmente desconfortável, além de algo perturbadora. Ante tudo isto, talvez fosse mesmo hora de abandonar meu endereço à Rua dos Finados, onde vivera por um bom tempo. E mudar-me definitivamente para ali, para as proximidades do Campo dos Mortos.
Não obstante, apesar de estar gostando tanto de estar sobre a ponte naquele momento, podendo, mais que nunca, apreciar tudo o que a rodeava, pude perceber que, conforme de certa forma havia previsto ai sair de casa, também ali, alguma coisa me incomodava um pouco. Era a Estrada Abandonada. Mas ela me incomodava justamente por estar, agora, parecendo atrair-me mais do que me atraíra antes. Eu, apesar de provavelmente ser tido, especialmente por meus vizinhos, como uma pessoa esquisita e até meio louca, não era tolo. E sabia, por alguma razão, que aquela renovada atração por aquela estrada podia realmente significar um real estado de loucura. Afinal, somente um louco poderia sentir-se atraído por um lugar, uma estrada, onde havia passado por um dos mais pavorosos momentos de sua existência. Por outro lado, como igualmente imaginara ao sair de casa, havia também um outro temor em relação a ela. Afinal, nada me garantia que em algum momento, o cavaleiro infernal pudesse surgir dela e vir em direção à ponte, em minha direção. A verdade é que, com isto, ela, a Estrada Abandonada, acabava por me perturbar bastante, acabando por se tornar numa espécie de contradição dentro da calma daquelas paragens que eu elegera para meu paraíso particular.
Com isto, não pude deixar de pensar, como, aliás, vinha pensando muito ultimamente, nas contradições da vida. Ela, a vida, nunca era totalmente clara, totalmente límpida ou transparente. Por mais que as coisas estivessem bem, por mais que o sol brilhasse sobre mim ou sobre qualquer indivíduo, sempre parecia haver algum ponto negro, incômodo e escuro. E isto parecia acontecer, também, com os objetos que nos cercam. Nunca algo era totalmente branco ou totalmente negro. Sempre havia uma espécie de penumbra incômoda permeando tudo. Daí que, se os males da vida eram passageiros, a felicidade por sua vez também o era. Até parecia que a vida de cada indivíduo era uma constante contradição. Contradição dentro de si mesma; contradição nas coisas do mundo, nos objetos exteriores. Enfim, a vida parecia ser um constante branco-escuro cuja única certeza era seu desaguamento na morte...
Mas, e a escuridão que me cercava quando tivera aquele encontro infernal bem lá no meio daquela estrada? Ela não me parecera total e absoluta? Pensando bem, talvez não. Mesmo quando ela parecia pior, quando parecia mais densa e amedrontadora, teria havido alguma centelha de luz, representada, paradoxalmente, pelas fagulhas arrancadas no cascalho pelas patas daquele cavalo infernal.
Devido a todos esses pensamentos, pude notar que algo vinha mudando em mim mesmo, em minha mente, de forma bastante acentuada, fazia já bastante tempo; talvez desde o acidente fatal que culminara na morte de minha noiva. Se antes eu me preocupava apenas em viver e em sobreviver, buscando a felicidade quase que a todo custo, agora percebia que outras coisas me atraíam de forma estranha, causando perguntas nem sempre fáceis de ser respondidas. E, sob esse aspecto, a própria existência era uma questão a ser resolvida...
Quantos seres humanos, naqueles momentos em que eu passava ali na ponte, não estariam, como eu estivera outrora, lá na cidade, lutando pela vida e pela sobrevivência? Quantos não estariam, uns com pensamentos grandiosos, outros nem tanto, buscando levar adiante seus projetos de vida? Aliás, todos estavam, de alguma forma, tentando construir sua própria essência. E todos, sem exceção, um dia acabariam por sucumbir ante o peso da existência...
De certa forma, era isto o que havia acontecido comigo. Eu aprendera muito cedo a “lutar pela vida” de unhas e dentes, tentando construir tudo aquilo que julgasse que deveria ser construído, para mim ou para outrem. Havia vezes em que me desanimava e, ante o desânimo, chegava a parar e cochilar um pouco, meio que fazendo uma pausa na vida, ou nas lutas pela sobrevivência. Mas logo vinha - como dizia uma canção antiga - a banda da ilusão. E ela me acordava. Então, sem alternativa, apanhava um instrumento e a seguia. Era sempre preciso tocar pra não morrer. Entretanto, isso não havia impedido que um caminhão desgovernado abalroasse nosso carro, ceifando a vida de Eliana e mudando minha própria vida de forma intensa e irrevogável.
Sem dúvida, havia sido a morte de Eliana que me havia feito acordar para todas essas coisas, para todos esses pensamentos incômodos. Eles tinham a vantagem de fazer-me recusar, definitivamente, os instrumentos oferecidos pela banda da ilusão e a seguir tocando a vida da forma que sempre fizera antes. Entretanto, será que eu não havia deixado uma ilusão para cair em outra, talvez mais envolvente e, por isto mesmo, mais perigosa? Não seria, por exemplo, aquele paraíso singular que eu havia forjado sobre a ponte e seus arredores também ele ilusório? A Estrada Abandonada lá embaixo parecia me dizer isto. Parecia ser ela, ou o incidente que me ocorrera enquanto estivera nela, que me tornava esses pensamentos ainda mais agudos e mais atrozes.
E eles foram como que adquirindo um crescendo insuportável. Tão insuportável que era urgentemente necessário que me livrasse deles. Mas como proceder para que isto acontecesse?
Ao fazer-me esta pergunta, olhei, mais uma vez, para aquela estrada, para o início dela, perto do Campo dos Mortos, onde todos, sem exceção, encontravam seu fim. Por alguma razão, parecia ser ali que estavam as respostas para todas as minhas questões. E se eu quisesse obtê-las, teria que sair de minha posição algo confortável ali no alto, em cima da ponte, e ir lá para baixo, por mais que isto me parecesse incômodo e amedrontador.
Em razão disso, enchi-me de toda a coragem que pude e desci. Passei novamente pelo portão do cemitério, como fizera da vez anterior. E, enquanto o observava por alguns momentos senti alguma paz. E tive vontade permanecer ali. Entretanto, sabia que aquele instante de quietude não perduraria e eu teria mesmo que seguir adiante, pela Estrada Abandonada, buscando encontrar o que talvez fosse meu verdadeiro destino.

E foi o que fiz, não sem certo arrepio a percorrer todo o meu corpo, tão logo a adentrei de verdade, deixando para trás o cemitério e a ponte. Enquanto caminhava, por alguma razão deixei meus pensamentos de lado e passei a observar as coisas. Muito diferente do que acontecera à noite, o céu estava límpido e o sol brilhava muito. Havia muita vida nas margens daquela estrada. Pássaros faziam algazarras. Havia abelhas, flores. Naquelas novas circunstâncias, chamar aquela estrada de “abandonada”, sem dúvida, pareceria no mínimo algo inadequado.

E foi apreciando aquele enxame de vida e de claridade que continuei a caminhar mais e mais, estranhamente não sentindo fome, sede ou cansaço, apesar de nada ter comido ou bebido fazia um bom tempo.
Enquanto caminhava, porém, a noite, como era de se esperar, foi chegando aos poucos. Lenta e quase imperceptivelmente.
Quando me dei por mim, tudo era novamente escuridão. E aí as coisas, literalmente mudaram de figura. Contrastando com toda aquela luminosidade e vida que eu presenciara e de que até mesmo chegara a participar de alguma forma, agora a escuridão densa e pesada começava a me envolver.
Noite escura; pensamentos escuros... Comecei a lembrar-me do cavaleiro das sombras e seu cavalo aterrador. Na outra noite, ambos pareciam ter saído das profundezas infernais com o único intuito de assombrar-me. Nesta noite, talvez não fosse diferente...
Ao pensar nisso, toda a coragem de que podia armar-me não foi suficiente. Parei com a caminhada, ou melhor, estaquei-me totalmente paralisado, temendo ouvir, a qualquer momento, o fantasmagórico tropel. Enquanto fazia isto, tentava a todo custo fazer com que pelo menos meu cérebro não parasse de funcionar, pois, como percebi, estava muito próximo de ter uma vertigem ou coisa parecida.
Nessa luta interior contra meu próprio desfalecimento, tentei, com todas as forças, convencer-me de que o cavaleiro poderia não aparecer desta vez, que ele poderia até ter sido mera criação de minha mente. Além disso, como certamente sabem os filósofos, o fato de um evento ou uma ocorrência ter-se dado em algum momento não implica, necessariamente, que venha a se repetir no futuro. Além disso, não havia nada que pudesse me dizer que a escuridão teria sido a causa do cavaleiro, a causa para que ele tivesse aparecido. Portanto, se eu não temera seu surgimento durante o dia, enquanto seguia pela estrada, por que temer que isto acontecesse durante a noite?
Por alguns instantes, esse pensamento chegou a tranquilizar-me um pouco. Entretanto, meus cabelos insistiam em permanecer arrepiados e minhas pernas simplesmente não conseguiam mover-se. A escuridão, porém, não me impediu de ver algo. Parecia bem distante. Eram pequenas luzes que pareciam sair do chão. Eram faíscas. Em seguida, ouvi o tropel. Inevitavelmente, esqueci minhas pernas bambas e meus cabelos arrepiados e comecei a prestar atenção nele. Longínquo e fraco no início, foi aumentando e se aproximando...
Tentei não acreditar naquilo. Tentei convencer-me de que tudo não passava de algum engano, de alguma peça pregada a mim mesmo por minha imaginação. No entanto, quanto mais eu tentava pensar dessa forma, mais ele se aproximava e se tornava nítido. Não havia como duvidar. Aquele era mesmo um tropel de cavalo e vinha em minha direção. E as faíscas no chão me diziam que se tratava do mesmo cavalo... E do mesmo cavaleiro. Pensei em fechar os olhos para não ver, como havia visto antes, aquelas formas aterradoras. Mas fechar os olhos tornava as coisas ainda mais aterradoras. Era como se eu estivesse criando mais escuridão dentro da escuridão que me rodeava.
Abri novamente os olhos e lá estavam elas, as fagulhas, aumentando de intensidade na mesma proporção em que aumentava o som provocado pelas patas de encontro ao chão da estrada. Devido à escuridão, de início não pude ver o cavalo e o cavaleiro. Numa fração ínfima de segundos, entretanto, eles apareceram. E, assim como na noite anterior, pareciam terríveis. E não sei como, não sei com que arremedo de coragem, consegui observar, fixar-me um pouco naquela visão avassaladora.
Se na outra noite o cavaleiro parecera não ter notado minha presença, desta vez algo bem diferente acontecia. Ele não apenas notou-me como me olhou fixamente com dois olhos que pareciam brasas incandescentes. E não se limitou a isto. Atirou alguns objetos que, parecendo dotados de vida, vieram quicando em minha direção, parando rente aos meus pés. E aquilo como que redobrando meu susto e medo, fez-se simplesmente insuportável. E acabei desmaiando, perdendo de vez os sentidos.
Quando voltei do desmaio, embora permanecesse ainda numa espécie de torpor, percebi que estava deitado de costas. Com algum esforço consegui sentar-me. Depois disso, a primeira coisa de que me lembrei, além do cavaleiro infernal que felizmente já não estava mais ali, foram os objetos que ele me havia atirado. Eles deveriam estar em algum lugar por ali. Movido entre o medo e a curiosidade, passei a procurá-los. E os localizei sem dificuldade, pois continuavam onde haviam parado; bem próximos dos meus pés.

Além disso, havia uma claridade estranha, provinda deles próprios. Tal claridade permitiu-me distingui-los e identificá-los perfeitamente. E, decididamente, aquela era mesmo uma noite infernal, a noite do terror dos meus dias. Os objetos, em número de três, eram nada mais nada menos que uma caveira e duas tíbias. Estavam dispostas à maneira daquelas figuras desenhadas nos mastros de navios piratas. Ou seja, as duas tíbias estavam cruzadas e a caveira estava sobre elas. Aquilo, para mim, era o símbolo da morte e, pela primeira vez, ocorreu-me pensar na possibilidade de que talvez já não me encontrasse entre aqueles que julgam estar vivos.
Fosse como fosse, movido não sei por que sentimento ou por que força, consegui erguer a caveira entre as mãos. Com isto pude perceber que a estranha claridade vinha de algumas letras que haviam estado sobre as duas tíbias, debaixo da própria caveira. Eram letras fosforescentes, gravadas em uma espécie de papiro bem pequeno, mas que talvez tivessem um significado muito grande, embora eu não pudesse, naquele momento, decifrar a estranha frase que formavam: PREPARA-TE PARA O TERCEIRO ENCONTRO.
 Não sei o que havia de tão aterrorizante naquela frase, mas ela me soou tão terrível que fez com que me erguesse sobre minhas pernas trêmulas. Em seguida, como que numa demonstração inconsciente e inútil de coragem, peguei aqueles três objetos, a caveira e as duas tíbias, e os atirei para fora da estrada com todas as minhas forças, se é que ainda restava alguma força. Feito isto, desta vez sem titubear, comecei a caminhar de volta para a cidade ou, mais precisamente, para a ponte lá no começo da estrada.
 E, enquanto caminhava, aquela frase imperativa, que mais me parecia uma maldição, não saía da minha cabeça. Estava claro que ela era uma mensagem para mim, dirigida à minha pessoa, mas o que significaria? Quem ou o que a teria enviado? Seria o cavaleiro apenas um mensageiro de algo ou de alguém? Ou aquilo partira dele próprio, com o intuito de assustar-me ainda mais e deixar-me mais confuso do que já estava?
 Além disso, supondo-se que eu quisesse atender aquela mensagem, como deveria preparar-me para o “terceiro encontro”? Interrogações mortais aquelas. Como as interrogações da própria vida.
 De qualquer forma, continuei a caminhar resoluto, meio que progredindo para trás em direção à cidade. Desta vez, não parei junto ao cemitério. Por alguma razão, não queria olhar para ele ou para o que ele, de certa forma, passava a representar depois daquele meu contato com as duas tíbias e a caveira...
 Passei por sobre a ponte. Ali, sim, fiz uma inevitável parada. Ainda estava escuro e consegui apenas ouvir o ruído das águas debaixo dela. Depois segui adiante, voltando resoluto para a cidade. Dentro de pouco tempo estaria novamente em minha casa.
Quando adentrei o Bairro dos Redivivos, o sol já havia nascido e o banho dourado de seus raios era pleno sobre a cidade. Pensando bem, nem a cidade nem aquele meu bairro eram assim tão desagradáveis a ponto de eu, por alguma razão, ter passado a fugir deles. Talvez tivesse estado tentando, muito mais, fugir da perda representada pela morte de Eliana. Ou talvez andasse tentando fugir de mim mesmo...
E foi assim pensando que ganhei forças, botei um pouco mais de velocidade em minhas pernas e, rapidamente, cheguei à minha casa. Antes de entrar, chequei com cuidado. Aquela era realmente a casa número treze da Rua dos Finados, ou seja, a minha casa, cuja porta abri rapidamente. Desta feita, não fui diretamente para o meu quarto. Vagarosamente, passei a observar tudo com o máximo de atenção.
E foi assim, observando com mais calma, que pude notar que tudo estava mesmo muito diferente ali no interior da casa. Parecia até que alguém havia se mudado para ela e modificado tudo. Nenhum móvel se parecia com a minha mobília. Mesas diferentes, camas diferentes, fogão diferente, geladeira diferente. Até a pintura da sala estava ou parecia estar mudada.
A maior surpresa, entretanto, ocorreu quando entrei no meu próprio quarto. Havia nele, agora, uma cama de casal. Eu havia alugado aquela casa quando estava preparando para casar-me com Eliana. E, quando me mudara para ela, havia levado comigo os móveis do meu apartamento. Era bem verdade que eu e Eliana havíamos combinado trocar os móveis tão logo pudéssemos. Nessa troca estava incluída, naturalmente a cama do quarto principal por uma cama de casal. Entretanto, o acidente que a matara havia interropido todos os nossos planos, inclusive o da troca dos móveis.
Portanto, eu tinha absoluta certeza de que nada disso havia ocorrido e de que não havíamos chegado a trocar móvel algum. Além disso, eu tinha plena certeza, também, de que havia dormido naquele quarto na noite anterior e não havia percebido a troca da cama... Mas, será que alguma certeza pode mesmo ser absoluta ou plena? Os gramatiqueiros dizem que sim, que toda certeza é, por definição, absoluta. Aliás, eu, naquele momento angustioso, até conseguia lembrar-me de uma mensagem de E-mail, que havia circulado na Internet, por meio da qual alguém dotado de muita gramatiquice e pouco saber fazia algumas afirmações nem todas muito sensatas. E uma dessas afirmações era no sentido de que adjetivar a palavra certeza como absoluta constituiria erro gramatical, um vício de linguagem. Naturalmente que a pessoa que escrevera tal baboseira não tinha mais o que fazer e por isto se apegava à absoluta certeza de que estava certa...
Eu, por minha vez, principalmente diante daquelas circunstâncias, já não podia me dar ao luxo de estar certo sobre o que quer que fosse. E a incerteza acabou por minar o pouco de confiança que eu, resolutamente, havia conseguido reaver.
Não havia dúvida de que algo muito estranho estava acontecendo comigo. Estaria ficando louco? Teria trocado os móveis antes de Eliana morrer, não me lembrando mais de ter feito isso? Ou, coisa pior, teria realmente existido uma Eliana? Existiria realmente uma sepultura sua lá no cemitério que ficava depois da ponte? Estaria eu sonhando? Nesse caso, como provar para mim mesmo que não estava sonhando, que nada daquilo estava acontecendo, que eu não havia visto um cavaleiro dos infernos lá na Estrada Abandonada, etc., etc., e etc.?
Quando entrara em casa, havia decidido, como da outra vez, a tomar uma boa ducha e depois descansar. Mas, agora, diante daquelas novas dúvidas, nem para isto eu tinha ânimo. Mina vontade era deitar e dormir. Isto é, no caso de não estar sonhando... Mas não senti, também, ânimo para deitar-me naquela cama que parecia não ser minha. Com isto, acabei deitando-me ali mesmo, na sala, naquele sofá que também não parecia ser meu.
Não sei se é possível sonhar que se está dormindo, mas a verdade é que, em sonho ou não, parece que dormi bastante. Tanto que acordei com um barulho o mais inesperado possível. Alguém, rindo, tentava abrir a porta da sala.
Felizmente, o sofá onde eu havia me deitado estava um pouco afastado da parede. Assustado, escondi-me rapidamente atrás dele e passei a aguardar os acontecimentos. Dentro de pouquíssimos instantes, uma nova surpresa. Sem sequer ter tido que arrombar a porta, um casal bastante jovem adentrou a casa. Por alguma razão, aqueles dois possuíam a chave da porta da frente.
Sem saber o que fazer, continuei escondido e fiquei observando o comportamento dos dois invasores. Ele foi até a cozinha e voltou com uma lata de cerveja, enquanto ela se dirigia ao “meu” quarto. Em outras épocas e em outras circunstâncias, ver uma bela mulher como aquela se dirigindo para o meu quarto me deixaria simplesmente maravilhado. E excitado... Naquele momento, porém, a estupefação era a única coisa que me dominava.
E a estupefação aumentou ainda mais quando ele, tomando a cerveja na própria lata, sentou-se no sofá atrás do qual eu estava escondido, ligando, em seguida, a televisão. Como se a casa fosse dele...
Diante daquilo, novas interrogações dominaram minha mente. Teria aquele desgraçado conseguido, de alguma forma, a chave de minha casa durante minha ausência? Estaria utilizando minha casa como motel ou coisa parecida? Diante de tal hipótese, cheio de raiva e indignação, cogitei agredi-lo. Afinal, ele estava distraído com a televisão, e eu, além de não ser uma pessoa fisicamente fraca, já não estava mais tão cansado, principalmente depois de haver dormido ali mesmo, no sofá. Poderia, portanto, pegá-lo de surpresa. Bastaria aplicar-lhe uma gravata e provavelmente conseguiria dominá-lo antes que pudesse esboçar qualquer reação. Em seguida, daria um jeito de dominar também a mulher. Depois, veria o que fazer com ambos. Se fosse o caso, chamaria a polícia.
Estava bastante determinado a fazer isto, quando a mulher veio até a sala reclamando:
- Era só o que faltava. Eu lá em nosso quarto, cheia de amor, à sua espera e você aqui! Tomando cerveja e assistindo TV! Nem parece que somos recém-casados!
Sem responder qualquer coisa, ele simplesmente desligou a televisão e abraçou-a. Em seguida, aos beijos, os dois se dirigiram para o meu quarto. Nesse momento, tive vontade de agredir os dois. Mas esse era o problema. Agora, os dois estavam juntos e eu certamente não teria como surpreendê-los e nem como dominá-los. A menos que estivesse armado. Mas eu não possuía armas. Pensei, então, em ligar para a polícia. Entretanto, onde estava o telefone? Até ele parecia ter sido mudado de lugar. E eu simplesmente não conseguia encontrá-lo. Lembrei-me de meu telefone celular. Comecei a remexer meus bolsos à procura dele. Mas também não o encontrei. Aliás, fazia muito tempo que não o utilizava e, na verdade, não fazia a mínima ideia de seu paradeiro.
Estava naquela situação bastante complicada, realmente sem saber o que fazer, de pé, meio que paralisado, bem no meio da sala, quando fui novamente surpreendido. A mulher saiu totalmente nua de dentro do quarto. Não tive tempo de esconder-me. Para minha sorte, ela pareceu agir exatamente como vinham agindo meus vizinhos. Estava certo de que ela, caminhando para a cozinha, havia olhado para a sala, para onde eu estava, mas se me vira, fingira o contrário, agindo como se eu não estivesse ali.
Antes que ela voltasse da cozinha, escondi-me novamente atrás do sofá. Logo que fiz isto, ouvi-a gritar:
- Querido, não podemos esquecer de pagar o aluguel. Ele está vencendo.
E a resposta dele, nitidamente em tom de brincadeira, deixou-me ainda mais estupefato:
- Mas, querida, você nem queria que alugássemos esta casa. Chegou até a dizer que ela é assombrada. E agora está tão ansiosa para pagar o aluguel!
- Eu ainda acho que esta casa é assombrada. Mas isto não quer dizer que não devamos pagar o aluguel.
- Não se preocupe. Amanhã mesmo vou dar um jeito nisso. Aliás, vou até passar na imobiliária e pedir-lhes um desconto. Por causa da assombração!
- Está bem, faça isto – ela limitou-se a responder, antes de voltar para o quarto, levando duas latas de cerveja.
 Então é isto – pensei. A maldita imobiliária alugou a casa para eles em algum momento enquanto eu estava ausente. Mas como poderia isto ter acontecido? Afinal, eu não rescindira meu contrato de aluguel da casa. A prova disso é que eu detinha as chaves comigo.
De qualquer forma, agora já não era o casal que me preocupava, mas a imobiliária. Afinal, ela era a culpada por aquele terrível erro e não os jovens recém-casados. Olhei para o relógio eletrônico que os dois haviam colocado bem ali na sala. Ainda não eram cinco da tarde. Resolvi, então, ir correndo até o escritório da imobiliária e tentar desfazer o mais rapidamente possível aquele terrível erro; embora sabendo que, apesar da pressa, teria que ir a pé ou talvez tomar um táxi ou um ônibus, pois, tendo perdido meu carro no próprio acidente em que Eliana morrera, não havia adquirido outro veículo.
 Apesar de tudo isso, enquanto seguia pela calçada para pegar a rua da esquina, novamente me distraí com seus números das casas: 12, 11, 10... E, por último, a de número 1. Aquilo realmente me chamava a atenção. Até parecia que, de alguma forma, eu estava sempre sendo obrigado a retornar ao início. A algum início...
 Devido à distração ou não, a verdade é que acabei não indo à imobiliária. Ao invés disso, vi-me, irremediavelmente, me dirigindo mais uma vez para a ponte.
 Ao chegar lá, o sol estava começando a encobrir-se. Não sei se devido a isto ou se por alguma outra razão, quando estava em cima da ponte, senti uma terrível sensação de angústia e de perda. Algo me dizia que aquela seria a última vez que parava sobre ela; a última vez que, de cima dela, observava as coisas ao seu redor. Por isto, parei e tentei apreciar tudo aquilo o máximo possível, como que me despedindo. Em seguida, não sei se resoluto ou se movido por alguma força estranha, prossegui rumo à estrada lá embaixo.
 Era a terceira vez que atravessava a ponte naquelas circunstâncias, ou seja, atraído pela Estrada Abandonada. Era mesmo muito forte a sensação de que talvez não retornasse mais.
 Assim, mais uma vez, passei em frente ao portão do Campo dos Mortos. Ali, fiquei na dúvida se parava ou não. Por estranho que pudesse parecer, se havia sentido que não mais poria meus pés sobre a ponte, o mesmo não aconteceu em relação ao cemitério. Algo me dizia que, de alguma forma eu o veria novamente. De qualquer forma, tomei a resolução de parar e olhar lá para dentro. Como já estava escurecendo, não pude diferenciar muito bem a sepultura de Eliana. Aquilo aumentou um pouco minha ansiedade e acabei me decidindo a prosseguir. Não, porém, sem dar uma última olhada lá para a ponte que me havia sido tão cara. Em seguida, parti rumo à escuridão. O “terceiro encontro” era mesmo inevitável.
Retomando a caminhada, não pude deixar de notar que pela primeira vez adentrava aquela estrada já à noite. Das outras vezes, eu a adentrara de dia e a noite havia me apanhado, por assim dizer, no meio do caminho. Desta vez, no entanto, era diferente. Eu a havia tomado já dentro da escuridão da noite. Talvez estivesse mesmo resolvido a ir de encontro ao meu destino, fosse ele qual fosse.
Na medida em que avançava, porém, a ansiedade ia aumentando. Na verdade, foi aumentando a ponto de transformar-se em medo puro e simples. Se meu destino era inevitável, eu não tinha como saber qual seria ele e isto, com certeza, era aterrador, embora uma força estranha parecesse sair de dentro de mim mesmo, impelindo-me a caminhar.
E, enquanto prosseguia caminhando, também a noite avançava. Comecei, então, a me preparar para o pior. O cavaleiro me havia prevenido quanto ao “terceiro encontro”. Estava mais do que claro, agora, que se trataria de um encontro entre mim e ele. E eu não sabia o que esperar disso. Afinal, da primeira vez, ele e seu cavalo infernal me haviam ignorado. Na segunda vez ele me havia passado uma mensagem clara, relativa a um novo encontro; apesar de enigmática sob muitos outros aspectos. E agora, nesse “terceiro encontro”, o que aconteceria? Eu simplesmente não podia imaginar, embora soubesse que tal encontro seria inevitável; além de, talvez, fatal.
E, como era de se esperar, em dado momento, pareceu-me ouvir o tropel. Por uma ínfima fração de tempo, cheguei a ter esperança de que nada tivesse ouvido, de que tudo não passava de mera impressão por parte de minha mente transtornada. Em razão disto, cheguei a pensar em não olhar para a estrada à minha frente. Eu não queria ver novamente aquelas faíscas aterradoras levantadas do chão. Vã esperança, entretanto. Até podia não olhar para frente a fim de não ver as faíscas, mas não tinha como impedir-me de ouvir aqueles ruídos que se aproximavam. Por alguma razão, pareciam lentos, no início. Lentos como o tempo, que parecia não querer passar... Entretanto, se o tempo parecia lento, não havia dúvida de que o cavaleiro se aproximava rapidamente. Em breve eu estaria vendo, bem diante de mim, aqueles aterradores pares de olhos em brasa, do cavalo e do cavaleiro; coisa que realmente não demorou a suceder-se.
A visão era mesmo aterradora. Na verdade, parecia mais aterradora que das outras duas vezes. Talvez porque eu soubesse que agora seria diferente. Algo terrível estava mesmo para acontecer...
 E aconteceu. Ao invés de fechar os olhos, reuni todas as minhas forças e tentei observar o fantasma dos meus últimos dias, o cavaleiro que saíra dos infernos para atormentar minha vida. Foi então que percebi a coisa mais estranha que já pudera ver. Não havia realmente um cavaleiro. Havia um chapéu, uma capa esvoaçante, um par de olhos em brasa... E nada mais. Fiquei ainda mais aterrado ante esta nova percepção e estava para desmaiar, quando ouvi uma voz que vinha ou parecia vir do cavaleiro ou do que quer que fosse aquilo:
- Por que tem tanto medo se eu sou você?
Não posso estar ouvindo isto, pensei comigo mesmo.
No entanto, a voz se repetiu:
- Venha ocupar seu lugar. O cavalo não passará uma quarta vez.
 Decididamente, aquilo era demais. Eu devia mesmo ter ficado louco. Estaria padecendo de alguma forma de doença mental? Seria um esquizofrênico? Como podia um cavaleiro inexistente, estar dirigindo-me a palavra e, pior que isto, dizendo que ele era eu ou vice-versa. Aquelas dúvidas eram piores que o medo. Diante delas, senti minhas últimas forças se esvaírem. E acho que desmaiei.
 Quando me dei novamente por mim, lá estava eu, sobre o cavalo. Era eu quem usava aquele chapéu e aquela capa fantasmagórica e esvoaçante. Era eu quem tinha os olhos incandescentes. Era eu, enfim, quem montava aquele ginete infernal.
 Era eu que havia cavalgado debaixo das sombras noturnas, vagando mundo a fora, sem saber exatamente para onde ir. Havia sido eu quem havia assombrado a mim próprio nos dois encontros anteriores. Havia sido eu que, num ato decidido, um dos poucos deles desde a morte de Eliana, havia marcado o “terceiro encontro”, um encontro comigo mesmo.
De repente, aquele cavalo já não parecia tão infernal e tão bizarro. Ele também, de alguma forma, fazia parte da minha existência.
 Compreendendo isto, tomei as rédeas em minhas mãos, mas deixei-as soltas. Por alguma razão esperava que o cavalo me levasse até a ponte. A ponte que me havia tornado tão cara desde algum tempo atrás, desde que Eliana morrera. A ponte que eu havia cruzado por três vezes sem saber exatamente a razão de ter feito isto.
 E, realmente aquele possante animal me levou em sua direção. Mas não chegamos à ponte. Era como se o pressentimento que me ocorrera quando de sua última travessia estivesse se concretizando. Em razão disto, apenas pude vê-la de longe; e realmente pela última vez. O cavalo havia parado ante o portão do Campo dos Mortos. Atravessamo-lo facilmente, embora estivesse fechado. Paramos diante da sepultura de Eliana. Pela primeira vez, apesar da escuridão - ou talvez ajudado por ela - uma outra sepultura bem ao lado chamou-me a atenção.
 Apeei do cavalo e passei a observá-la detidamente. Para minha surpresa, em sua lápide se lia: Joaquim Boanerges. * 03-03-1971 + 03-03-2004.
 Como podia meu nome estar ali naquela lápide e, mais ainda, na lápide de uma pessoa que havia morrido no mesmo dia da morte de Eliana? Que eu lembrasse, não tinha havido outro enterro naquele dia. Ou teria...?
 De repente, as coisas começaram a se tornar mais claras. Eu e Eliana tínhamos saído para comemorar o meu próprio aniversário. E não havíamos regressado para casa, devido ao acidente... Aquela estranha indiferença por parte de meus vizinhos, que pareciam não perceber minha presença desde aquela noite fatídica... A “invasão” de minha casa por aquele jovem casal, cuja mulher julgava ser minha casa uma casa mal-assombrada... A ausência quase total de fome, de necessidade de alimentar-me; minhas folgas excessivas, nunca tendo que ir trabalhar para sobreviver, como sempre acontecera antes do acidente. Meu excessivo apego à ponte e ao cemitério, embora, a não ser nas últimas três vezes, nunca tivesse tido coragem de atravessá-la e chegar até este último... Não havia como duvidar. O caminhão desgovernado não matara apenas Eliana naquela noite, a partir da qual, eu também havia deixado de pertencer à categoria dos viventes lá da cidade...
 Sim, agora era possível compreender muita coisa. Compreender que era preciso deixar que os mortos enterrassem seus mortos. Compreender que eu, até então, de alguma forma não havia permitido isto. Não, pelo menos, com relação à minha pessoa, embora meu corpo estivesse ali, sepultado ao lado de Eliana...
Assim pensando, meio que instintivamente, procurei pelo meu cavalo. E lá estava ele. Branco como a neve, magnífico como um unicórnio. Montei-o sem hesitar. E partimos rumo aos campos sem fim... 


NOTAS DO AUTOR 

¹ Gostaria de relatar como se originou a ideia de escrever o conto “A Ponte do Terceiro Encontro”.
No dia 29 de julho de 2012, a Academia de Letras de São João del-Rei foi agraciada com uma palestra proferida pelo Acadêmico Francisco José dos Santos Braga, intitulada “O pensamento alemão, a "descoberta" da cultura germânica e novos apontamentos sobre o Lied ‘Rei dos Elfos’, de Franz Schubert, composto sobre poema de mesmo nome do poeta Johann Wolfgang von Goethe², a qual despertou o mais vivo interesse em todos os presentes. Da minha parte, fiquei o mais vivamente impressionado com a balada Erlkönig (Rei dos Elfos) de Goethe, bem como com o áudio da declamação do poema em alemão e com o auxílio do qual, além disso, o palestrante nos brindou com uma apresentação antológica de Erlkönig pelo barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau, acompanhado pelo pianista inglês Gerald Moore, tendo discorrido longamente sobre o cantor e sua morte ocorrida então recentemente. Mas, o que mais me impressionou, além do texto da balada traduzida pelo palestrante e do áudio, foi a imagem de um cavalo cavalgado por um cavaleiro (pai), que trazia nos braços seu filho moribundo.
Entre os inúmeros pontos abordados naquela ilustre palestra, lembro-me de que me marcou muito a exposição de Francisco Braga sobre a percepção para os românticos, tendo então explicado que “a percepção sempre desempenhou um papel importante nas obras da época romântica. Nessa escola, era comum o uso de realidades distorcidas, colocando em dúvida a ideia da existência de apenas uma realidade."
E Braga continuou a sua exposição descrevendo a situação desesperadora vivida pelo pai, com o filho desfalecido nos braços:
"Um ótimo exemplo disso vem de Goethe, cuja obra alavancou o movimento “Sturm und Drang” e, mais tarde, o Romantismo. Sua balada ‘Erlkönig’ apresenta um menino que acredita estar obsedado por um espírito da floresta, o Rei dos Elfos, enquanto ele e seu pai cavalgam pela floresta à noite. Seu pai, não vendo o Rei dos Elfos, recusa-se a ouvir os apelos da criança; pelo contrário, dá explicações lógicas para tudo o que o menino está a relatar. Ao final do poema, o menino está morto, mas fica a dúvida: O Rei dos Elfos lhe tirou a vida? Ou a criança estava simplesmente febril, sofrendo alucinação? O poema não dá resposta, mas, em vez disso, leva o leitor a indagar: Quem afinal deve ser levado a sério, o pai ou o filho? Ou ambos os pontos de vista são igualmente reais?", indagou Braga. E assim continuou sua exposição:
"Esse tipo de questionamento vai completamente contra o Iluminismo, no qual se buscava uma verdade única. Goethe, em vez disso, sugere, com a sua balada ‘Erlkönig’, que várias verdades podem existir, cada uma delas igualmente válida."
"Independente de o resultado ter sido obtido através do efeito de febre, drogas ou doença mental, o fato é que ficou muito claro para os românticos que havia mais modos de ver as coisas do que o habitual. Ao levarem em conta que podia haver mais de uma forma de perceber o mundo e as pessoas aí, essa descoberta lhes deu muito maior liberdade de pensamento do que se estivessem querendo mostrar apenas uma interpretação ‘verdadeira’."
"De fato, foi este questionamento sobre o papel da mente humana que pavimentou a estrada para a psicologia moderna e suas investigações da percepção humana”, conforme as palavras literais de Francisco Braga.

Assim, embora eu seja um admirador dos iluministas franceses, tendo, inclusive, chegado a publicar um artigo sobre a Encyclopédie, devo confessar que, quando escrevo textos puramente literários, minha propensão é muito mais para o "jeito romântico" de percepção da realidade, chegando mesmo a pender para o chamado realismo fantástico

Foi certamente em razão disto que, além da forte impressão causada a todos pela palestra de Braga, a mim, de forma especial, me impressionou o "cavaleiro da balada de Erlkönig" na forma por ele apresentada; a ponto de a figura daquele cavaleiro soturno, cavalgando numa noite brumosa, mágica e sombria, continuar a ferroar meu cérebro por um longo período. Tanto que, algum tempo depois, tendo ouvido uma canção popular cujo nome não recordo e que fazia referência, também ela, a uma espécie de "cavaleiro mágico", acabei indo procurar na Internet alguma coisa sobre "cavaleiros arquetípicos"; isto é, algo que, pelo menos segundo meu entendimento, mediasse entre a magia dos românticos e os arquétipos junguianos; o que realmente encontrei. Alguém, sob o pseudônimo de Anaxandron, havia tido a feliz ideia de postar uma figura de um cavaleiro algo "sinistro", juntamente com o poema "Meu Sonho", de Álvares de Azevedo... Pronto, estava ali o que me faltava para começar a escrever mais um conto, sob pena de não conseguir tirar o desassossego que ia pelo meu espírito.

E o que escrevi como que fazendo uma mescla de tudo o que havia sido despertado no íntimo do meu ser por esses "cavaleiros arquetípicos", especialmente o "cavaleiro da balada de Erlkönig", exposto na palestra de Braga, acima mencionada. E creio que nele acabei mesclando um pouco dos meus próprios arquétipos com um pouco da minha formação na área de letras e de filosofia, inclusive misturando uma pitada de romantismo com uma pitada de existencialismo heideggeriano...
Na verdade, nem sei se é possível juntar todas essas coisas, mas o fato é que esse conto acabou conquistando duas premiações no XIX PRÊMIO CIDADE DE CONSELHEIRO LAFAIETE/2012, a saber: "1º lugar - categoria conto" e "1º lugar - prêmio especial - conto". E é ele que segue abaixo sob o título de "A Ponte do Terceiro Encontro".

² O texto desta célebre palestra pode ser acessado através do seguinte endereço eletrônico: http://bragamusician.blogspot.com.br/2013/01/o-pensamento-alemao-descoberta-da.html


* João Bosco da Silva nasceu em São João del-Rei, MG, a 13 de julho de 1952, tendo passado boa parte de sua infância no campo. Ingressando na então denominada Escola Agrícola Padre Sacramento, escola pública rural localizada nas imediações de São João del-Rei, ali concluiu o chamado “Sexto Ano Profissionalizante – Arte em Madeira”. Naquela escola, aos treze anos de idade, recebeu seu primeiro prêmio “literário” ao escrever um texto intitulado Por Que Gosto de Minha Família, considerado “a melhor composição sobre a família” num concurso realizado entre alunos de escolas públicas de São João del-Rei e adjacências. Ao sair daquela escola, tendo que voltar à vida do campo, somente regressou definitivamente a São João del-Rei no ano de 1972, para prestar o serviço militar obrigatório, ingressando no Regimento Tiradentes, o que lhe possibilitou continuar seus estudos. No ano de 1980, concluiu o Curso de Ciências Físicas e Biológicas pela antiga Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, tendo, porém, seguido carreira no Exército Brasileiro. Mais...