quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Análise literária de “A PALMEIRA DE LUZIÂNIA”


A PALMEIRA DE LUZIÂNIA *
Por GILBERTO MENDONÇA TELES

Venha palmeira, solitária, erguida 
como uma exclamação vazando arcanos 
no alto de tua copa embevecida 
guardas a história de remotos anos. 
 
Na ânsia de continuar a tua vida 
arrebataste ao tempo os véus ufanos 
assistindo, impassível, à corrida 
das tradições, do amor, dos desenganos. 
 
Quando o vento te beija as folhas verdes, 
velha palmeira, penso que te perdes 
entre saudade, e escombros, e poeira. 
 
No teu sussurro angustiado e brando 
eu sinto que a teu lado, farfalhando, 
vês a imagem da antiga companheira. **
 
Campinas, 20/03/1954 
 
* Poema extraído do livro APRENDIZAGEM de um romântico inveterado: Goiânia: Kelps, 2011, p. 62. 
** Havia outra palmeira, destruída por um raio. 
 
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ANÁLISE DO SONETO “A PALMEIRA DE LUZIÂNIA”

Por LUCILENE MACIEL DE OLIVEIRA VIDAL ***

 
1) BREVE HISTÓRIA DA CIDADE DE LUZIÂNIA 
 
Antes de iniciar uma análise do soneto é interessante conhecer um pouco da história dessa cidade. 
Luziânia é um município brasileiro do estado de Goiás. O nome da cidade é uma homenagem à santa padroeira do munícipio, Luzia, a quem foi erguida um cruzeiro em 1746. 
É a quinta maior cidade do estado com 165.492 habitantes é, no entanto, mais conhecida por ser integrante da região do entorno de Brasília, devido a sua proximidade com a Capital Federal (58 km).
O bandeirante Antônio Bueno de Azevedo partiu de Paracatu a procura de novas minas de ouro. Em 13 de Dezembro de 1746, enquanto descansava sentado às margens de um córrego, notou que ali havia pepitas de ouro. No dia seguinte ergueu festivamente um cruzeiro e dedicou as minas e o futuro povoado à Santa Luzia. A notícia se espalhou e as minas atraíram tanta gente que em menos de um ano o arraial contava com mais de 10.000 pessoas. 
A primeira missa foi celebrada em 1746, pelo padre Luiz da Gama Mendonça e assistida por mais de 6.000 garimpeiros. Elevada à categoria de Comarca Eclesiástica em 6 de Dezembro de 1758, seu primeiro vigário foi o padre Domingos Ramos. 
Em Abril de 1758 iniciou-se a construção de um rego, denominado Saia Velha, para facilitar a garimpagem. O rego tinha 42 quilômetros de extensão e foi feito em dois anos, por milhares de escravos negros. 
O primeiro núcleo de povoamento já era chamado de Arraial de Santa Luzia em fins de século XVIII. 
O arraial foi elevado à categoria de vila em 1º de Abril de 1833 e à de cidade em 5 de Outubro de 1867. Em 31 de Dezembro de 1943 passou a se chamar Luziânia. 
Em Luziânia foi executado o último homem livre do Brasil antes da abolição da pena de morte. José Pereira da Silva foi enforcado na chácara São Caetano na forca da mangueira, então vila de Santa Luzia em 30 de Outubro de 1861.

2) ANÁLISE LITERÁRIA DO SONETO

Gilberto Mendonça Teles, trabalhou no Instituto Brasileiro Geográfico Estatístico (IBGE) e por esse motivo esteve em Luziânia por duas noites, e nesta visita lhe foi contada a história de duas palmeiras que, depois de uma tempestade, uma ainda permaneceu de pé, imponente, mas solitária, pois sua companheira foi tocada por um raio. E em 20.03.1954, na cidade de Campinas, o poeta escreve um soneto, composição poética de quatorze versos, dispostos em dois quartetos e dois tercetos, contendo versos estruturados em decassílabos. Usa emoção e sentimento para escrever esta pequena canção, pois as imaginou como amantes, mostrando que a palmeira que ficou de pé lembrava-se da que se foi. O riquíssimo vocabulário usado pelo poeta é algo que também chama a atenção. 
“A Palmeira de Luziânia” tem suas rimas ricas, tonicidade grave com combinações alternadas (ABAB) nos quartetos e emparelhadas nos tercetos (AA) e os dois últimos versos da terceira e quarta estrofe rimam entre si: poeira/companheira, conservando o modelo italiano e algumas características do parnasianismo, sonoridade perfeita, o que dá uma musicalidade ao poema. 
O eu-lírico de Gilberto Mendonça Teles se dispôs a aplicar métrica, rimas e ritmo, ou seja, utilizou a forma clássica, tradicional do soneto. O assunto do soneto percorre todas as estrofes; sua chave de abertura foi a velha palmeira, e o desfecho, sua companheira; isto é feito com muita emoção e sentimento. 
Ao escrever o soneto, o eu-lírico do poeta usa como tema uma palmeira que é uma espécie abundante no cerrado. Como o cerrado é rico em água, lá estão palmeiras emoldurando as veredas, riachos e cachoeiras. E de uma forma bela, o poeta utiliza-se dessa simbologia. 
Para o homem, a palmeira, palavra esta que vem do latim, é muito generosa, seu fruto é fonte de alimento, fornece cálcio, ferro e proteínas. São aproveitadas as folhas, o óleo, os talos das folhas. Além dessas utilidades é fonte de inspiração para a literatura, a poesia, a música e as artes visuais. 
Um poema muito conhecido que fala da palmeira é “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias, escrito em julho de 1843. 
Minha terra tem palmeiras, 
Onde canta o Sabiá; 
As aves que aqui gorjeiam, 
Não gorjeiam como lá. 
 
Existem muitos outros exemplos, mas não é aqui o objetivo falar das palmeiras, mas sim do soneto de Gilberto Mendonça Teles chamado “A Palmeira de Luziânia”.
 
O primeiro quarteto fez o poeta lembrar-se do trecho inicial do conto de Afonso Arinos Buriti Perdido, texto que se encontra no livro Pelo Sertão; e que Gilberto Mendonça Teles chamou de primeiro.
Velha palmeira solitária, testemunha sobrevivente do drama da conquista, que de majestade e de tristura não exprimes, venerável epônimo dos campos!”                                             (ARINOS, Afonso. PELO SERTÃO. Buriti Perdido)
Nos primeiros versos do soneto é abordado um sentimento: solidão.   
A palmeira está de pé apesar de solitária. Aqui o eu-lírico não descreve o motivo dessa solidão, no entanto, usa uma metáfora para mostrar que está ali extasiada com os segredos que guarda do início da história da cidade. 
É a imagem de uma pessoa talvez uma mulher, pois palmeira é um substantivo feminino, solitária, mas que está arrebatada de êxtase e envolvida em seus mistérios. 
O soneto inicia-se com um verbo no imperativo afirmativo “Venha”: o eu-lírico do poeta dá uma ordem à palmeira, enquanto o trecho de Afonso Arinos traz um adjetivo explicativo “Velha”, pois está exprimindo a situação da palmeira. Em ambos aparece a palavra “solitária”, um adjetivo que traduz sentimento. 
Outra semelhança entre os textos: “vazando arcanos” e “que de majestade e de tristura não exprimes”, os autores, cada um a sua maneira, mostram que a palmeira erguida e no alto de sua idade guarda segredos de uma longa data, cada qual em seu local: o poeta na cidade de Luziânia, e o contista no sertão. 
 
No segundo quarteto deste soneto italiano, temos: ânsia aqui sugere a representação da angústia ou o desejo de continuar a vida conquistando os véus da vaidade, demonstrando indiferença, não demonstrando sua dor, desgosto ou alegria, em relação à tradição, ao amor e ao desengano que a vida pode proporcionar. 
 
O primeiro terceto dessa canção inicia–se com um ato de carinho do vento com as folhas verdes da velha palmeira: um beijo. 
O beijo, segundo o Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier (1989, p. 127), é um símbolo de união e de adesão mútuas que assumiu, desde a Antiguidade, uma significação espiritual. 
A esse respeito, Georges Vadja (1925-2014) cita um texto do Zohar relativo ao beijo divino:  
Que ele me beije com beijos de sua boca – 
Por que empregará o texto essa expressão? Na verdade, ela significa adesão de espírito a espírito. É por isso que o órgão corporal do beijo é a boca, ponto de saída e fonte de sopro. Do mesmo modo, é pela boca que são dados os beijos de amor, unindo (assim) inseparavelmente espírito a espírito. É por esta razão que aquele cuja alma sai no beijar, adere a um outro espírito, a um espírito do qual ele não se separa mais; esta união chama-se beijo. 
O beijo tanto pode ser um ato de amor, mostrado em tantas histórias, em situações de carinho entre amigos, de luxúria, mas também pode ser um ato de traição como está escrito na Bíblia Sagrada, ao contar a maneira em que Judas um dos doze discípulos apontou Jesus aqueles que o foram prender.
E, estando ele ainda a falar, eis que chegou Judas, um dos doze, e com ele, grande multidão com espadas e porretes, vinda da parte dos príncipes dos sacerdotes e dos anciãos do povo. E o traidor tinha-lhes dado um sinal, dizendo: O que eu beijar é esse; prendei-o. E logo, aproximando-se de Jesus, disse: Eu te saúdo, Rabi. E beijou-o.

A Bíblia de Estudo explica que a palavra grega para “beijou-o” indica mais do que um cumprimento casual. Judas cumprimentou Jesus com o carinho e fervor de amigos íntimos para que assim os soldados que ali estavam o reconhecessem e o prendessem. 
No soneto o sentido do beijo sugere um carinho que tenta apaziguar a saudade que a velha palmeira sente da outra que foi tocada pelo raio e se desfez em escombros e poeira. 
O soneto também nos sugere refletir sobre a morte, pois quando a palmeira é tocada pelo raio e se desfaz em escombros e poeiras, isto sugere a representação da morte, e como não é fácil lidar com esse sentimento, que traz saudade, angústia e o guardar de uma história. 
Mas, para mostrar à amada o quão duro é viver amando sem ser correspondido, o poeta utiliza-se de imagens cronosóticas a fim de materializar o imaginário através das transformações por que passa o corpo. Entre as imagens típicas da decadência somática, situa-se o olhar, de que deseja que não perca o lume, porquanto ter sua luminosidade perdida, implica enxergar a amada de forma reversa: aquela próxima da morte, quando a vivacidade do olhar desaparece. Além disso, as transformações impostas aos cabelos e, sobretudo, ao rosto, convertem à passagem do tempo dedicado ao amor na verdadeira dimensão do sofrimento. O resultado é o rogo a uma compaixão tardia, tardi sospiri, que, na verdade, é inútil, tal como suplicar piedade à morte. 
Olha ao redor e apenas vê a imagem da companheira que não mais está ali, é amar e não ser correspondido, pois quando a morte chega ninguém tem sua piedade: ela vem e faz seu papel. 
O poeta deixa a sensação de saber lidar com esse sentimento de perda, valorizando tudo que viveu enquanto “a outra palmeira” estava ao seu lado. Aqui essa outra palmeira pode ser alguém ou algo de que ele tenha saudades. 
O Dicionário de Símbolos também nos ajuda a entender o significado de vento. 
Devido à agitação que o caracteriza, é um símbolo de vaidade, de instabilidade, de inconstância. È uma força elementar que pertence aos Titãs, o que indica suficientemente a sua violência e sua cegueira. Por outro, lado, o vento é sinônimo do sopro e, por conseguinte, do Espírito, do influxo espiritual de origem celeste. 
O próprio saudosismo por algo ou alguém que o eu-lírico traz ao relatar a palmeira solitária e sua companheira que não se encontra mais ao seu lado, nos provoca e faz pensar que o poeta talvez estivesse sentindo saudade de alguém ou de alguma coisa e este alguém ou alguma coisa não estava ou não está mais ao seu lado. A história que lhe foi contada provavelmente provocou essa inquietude no autor. Percebemos isso quando o vento age sobre a palmeira usando-o como um simbolismo de ternura. 
O vento também é um instrumento de força que deseja comunicar as suas emoções desde a ternura até a fúria. O poeta usa o vento num simbolismo de ternura para trazer o beijo para acalmar a palmeira solitária de Luziânia. 
Neste trecho o eu-lírico do poeta mostra a amante (palmeira) que ficou lembrando-se daquela que se foi sentindo o sussurrar das folhas agitada pelo vento e assim percebendo mesmo que não estando mais ali à presença de sua companheira. 
 
Conclusão 
 
O poeta Gilberto Mendonça Teles utilizou um tema que para muitos era algo sem importância alguma e transformou em um soneto que perpetuou o nome de Luziânia e perpetuará seu próprio nome na sua história e da cidade. 
O seu eu-lírico neste soneto nos leva a imaginar como alguém que convive com outra pessoa e fica sem ela de repente e, mesmo assim, consegue ficar de pé como uma exclamação (!), guardando todas as recordações que ficaram e se envaidecendo de tudo que viveu, mesmo diante da saudade e tendo a imagem de sua companheira como única recordação. 
A vida nestes versos foi contada e cantada em toda sua glória, onde sobressaiu o segredo, a tradição, o amor, o desengano, a saudade e a angústia. A imaginação do poeta foi além: relatou, dentro do soneto “A Palmeira de Luziânia”, uma realidade vivida por muitos.
 
 
*** Professora na Faculdade Central Cristalinense e da Rede Municipal de Cristalina-GO, com mestrado em Letras na PUC-GO, entre outras especializações.

 
BIBLIOGRAFIA 
 
 
Sociedade Bíblica do Brasil: Bíblia de Estudo Plenitude. Barueri(2001) – SP, 988 p. 
 
J. CHEVALIER & A. CHEERBRANT: Dicionário de Símbolos, Trad. Vera Costa e Silva et al., Rio de Janeiro; José Olympio, 1989. 
 
TELES, Gilberto Mendonça. (2011) Aprendizagem de um romântico inveterado / Gilberto Mendonça Teles. Goiânia : Kelps, 356 p. 
 
Consultas à enciclopédia online e blogs:

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

BURITI PERDIDO


Por AFONSO ARINOS * 
Comentários por Francisco José dos Santos Braga

Praça do Buriti em Brasília - Crédito pela foto: Flickr/Francisco Aragao

 
Velha palmeira solitária, testemunha sobrevivente do drama da conquista, que de majestade e de tristura não exprimes, venerável epônimo ¹ dos campos! 
No meio da campina verde, de um verde esmaiado e merencório, onde tremeluzem às vezes as florinhas douradas do alecrim do campo, tu te ergues altaneira, levantando ao céu as palmas tesas — velho guerreiro petrificado em meio da peleja! 
Tu me apareces como o poema vivo de uma raça quase extinta, como a canção dolorosa do sofrimento das tribos, como o hino glorioso de seus feitos, a narração comovida das pugnas contra os homens de além! 
Por que ficaste de pé, quando teus coevos já tombaram? 
Nem os rapsodistas antigos, nem a lenda cheia de poesia do cantor cego da Ilíada comovem mais do que tu, vegetal ancião, cantor mudo da vida primitiva dos sertões! 
Atalaia grandioso dos campos e das matas  junto de ti pasce tranquilo o touro selvagem e as potrancas ligeiras, que não conhecem o jugo do homem. 
São teus companheiros, de quando em quando, os patos pretos que arribam ariscos das lagoas longínquas em demanda de outras mais quietas e solitárias, e que dominas, velha palmeira, com tua figura erecta, queda e majestosa como a de um velho guerreiro petrificado. 
As varas de queixadas bravias atravessam o campo e, ao passarem junto de ti, talvez por causa do ladrido do vento em tuas palmas, redemoinham e rangem os dentes furiosamente, como o rufar de tambores de guerra. 
O corcel lobuno, pastor da tropilha, à sombra de tua fronde, sacode vaidosamente a cabeça para arrojar fora da testa a crina basta do topete que lhe encobre a vista; relincha depois, nitre com força apelidando a favorita da tropilha, que morde o capim-mimoso da borda da lagoa ²
Junto de ti, à noite, há dois séculos, as primeiras bandeiras invasoras; o guerreiro tupi, escravo de Piratininga, parou então extático diante da velha palmeira e relembrou os tempos de sua independência, quando as tribos nômades vagavam livres por esta terra. 
Poeta dos desertos, cantor mudo da natureza virgem dos sertões, evoé! 
Gerações e gerações passarão ainda, antes que seque esse tronco pardo e escamoso. 
A terra que te circunda e os campos adjacentes tomaram teu nome, ó epônimo, e o conservarão! 
Se algum dia a civilização ganhar essa paragem longínqua, talvez uma grande cidade se levante na campina extensa que te serve de soco, velho Buriti Perdido. ³ Então, como os hoplitas atenienses cativos em Siracusa, que conquistaram a liberdade enternecendo os duros senhores à narração das próprias desgraças nos versos sublimes de Eurípedes, tu impedirás, poeta dos desertos, a própria destruição, comprando um direito à vida com a poesia selvagem e dolorida que tu sabes tão bem comunicar. 
Então, talvez, uma alma amante das lendas primevas, uma alma que tenhas movido ao amor e à poesia, não permitindo a tua destruição, fará com que figures em larga praça como um monumento às gerações extintas, uma página sempre aberta de um poema que não foi escrito, mas que referve na mente de cada um dos filhos desta terra. 

Afonso Arinos, “Um Buriti perdido”. Pelo sertão.
 

 
* Escritor, contista, romancista, jornalista e jurista. Considerado “Pai do Regionalismo Brasileiro”, influenciou escritores como Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos.

 
 
NOTAS EXPLICATIVAS por Francisco José dos Santos Braga
 
¹ Palavra de origem grega; designa uma personalidade histórica ou lendária que dá ou empresta seu nome a qualquer coisa, lugar, época, etc.

² O buriti, cientificamente denominado Mauritia flexuosa, é uma espécie que ocorre geralmente no coletivo, a que se dá o nome de buritizal. Habita terrenos alagáveis e brejos de várias formações, sendo encontrado com muita freqüência nas "veredas", importante fitofisionomia do cerrado. Tais veredas são descritas como áreas indicadoras de água, de lençol freático superficial, onde há nascentes e cursos d'água, além de uma fauna exuberante que vive a partir desse recurso.

³ Danilo Gomes, em adorável crônica, intitulada "Afonso Arinos e o Buriti Perdido" escreveu: 
(...) A página mais famosa de Afonso Arinos intitula-se “Buriti perdido”, que releio com frequência. É um antológico conto, com cara de crônica. O buriti perdido, aquela velha palmeira solitária; uns dizem que situada em Paracatu; outros, como Bernardo Élis, que situada em Corumbá de Goiás. 
Afonso Arinos escreveu que esse buriti perdido, “cantor mudo da natureza virgem dos sertões”, estaria, um dia, numa “larga praça”. Palavras proféticas, premonitórias, de um brasileiro que viveria apenas 48 anos. Com efeito, hoje temos na nossa querida Brasília, fundada pelo diamantinense Juscelino Kubitschek de Oliveira, uma Praça do Buriti, onde se situa o Palácio do Buriti, sede do Governo do Distrito Federal. (...)
 
Confirmando a visão premonitória de Afonso Arinos, durante a construção de Brasília, a palmeira do buriti foi escolhida como símbolo da nova capital. Em 1959, inspirado no poema “Buriti perdido”, de Afonso Arinos, o Senador Afonso Arinos de Melo Franco Sobrinho sugeriu ao engenheiro e presidente da Novacap, Israel Pinheiro, e este determinou que fosse plantada uma muda da árvore na frente da futura sede do Governo do Distrito Federal. A muda morreu, mas, em 1969, houve uma segunda tentativa e, desta vez, a palmeira conseguiu se desenvolver. No local, foi inaugurada a Praça do Buriti no ano seguinte. E, em 1985, aquela árvore foi tombada pelo Patrimônio Público e Cultural, pelo Decreto nº 8.623 de 30/05/1985.
 
A página que extraímos do livro Pelo Sertão (1898) de Afonso Arinos é um exemplo de poema em prosa ou, dito de outra forma, prosa poética, que, na pena do escritor paracatuense, adquire contornos de grande poder pictórico, frutos da observação visual ou auditiva do autor.
 
 

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

MAPA COR DE SANGUE: Invasões Francesas


Por MÁRIO BEJA SANTOS *
Transcrevemos, com a devida vênia do gerente do Blog Mais Ribatejo, resenha crítica publicada no post de 20/08/2024. 

 

Mapa Cor de Sangue, as lutas, as revoltas e as tragédias em Portugal do tempo das Invasões Francesas, por Rui Cardoso, Oficina do Livro, 2024.


Há contracapas de livros que prendem imediatamente a atenção do leitor pela sua capacidade de incisão e pelo acicate para a leitura. É o caso daquela que acompanha Mapa Cor de Sangue, as lutas, as revoltas e as tragédias em Portugal do tempo das Invasões Francesas, por Rui Cardoso, Oficina do Livro, 2024: 
“Portugal, 1808. Uma revolução social que acompanha os levantamentos patrióticos. O povo insurge-se contra a velha ordem de fidalgos e eclesiásticos e, ao mesmo tempo, contra o jugo do invasor francês. 
 
Em Melgaço e Beja, populares lincham os magistrados, em Foz Côa, casas de famílias abastadas são saqueadas. Por outro lado, quem ousa rebelar-se contra os franceses é punido. Os habitantes de Vila Viçosa, Rio Maior, Alpedrinha e Régua são brutalmente castigados pelos soldados de Napoleão, mas nada se compara aos massacres em Leiria e Beja. 
 
Os ingleses desembarcam e os franceses negoceiam a saída. Mas regressam menos de um ano depois. A guerrilha é espontânea, heroica e impiedosa. O general Bernardim Freire de Andrade é linchado pelo povo. E a entrada das tropas napoleónicas no Porto fica marcada pelas lutas casa a casa e pelo desastre da Ponte das Barcas, no qual milhares de pessoas perdem a vida. Fuzila-se e incendeia-se como método de contrainsurreição. Em São João da Madeira, a retaliação pela morte de um oficial francês leva à execução de 1 em cada 5 homens e rapazes da Arrifana. A resistência em Amarante exaspera franceses, que incendeiam a cidade.
 
Em agosto de 1810, o rio Côa tinge-se de sangue do prelúdio do cerco de Almeida, onde morrem meio milhar de defensores. Serão depois as vertentes do Buçaco a fincar juncadas de corpos dos combatentes.
 
Portugal entra no século XIX de forma violenta e traumática. Às invasões seguir-se-á a luta entre liberais e absolutistas, e mesmo depois da vitória dos primeiros haverá quase vinte anos de instabilidade, golpes militares e revoluções…” 
 
É uma obra divulgativa de alto nível, faz-nos compreender como todo este período das invasões napoleónicas é o precedente sangrento do primeiro meio século do século XIX habitado pela violência político-social, as sublevações populares, as pilhagens à solta, toda esta turbulência só se acalmará com a Regeneração. Portugal irá sendo arrastado para o conflito que estalou entre a França e a Grã-Bretanha. 
 
A Corte partirá para o Brasil, fazendo-se acompanhar da Biblioteca Real da Ajuda, que não mais regressou. Os invasores saquearam e destruíram. A Bíblia dos Jerónimos será levada para França, tal como as coleções do Museu de História Natural de Lisboa; num ato de puro vandalismo, o famoso cadeiral que Olivier de Gand construiu no Capítulo da Igreja do Convento de Cristo será reduzido a lenha. 
 
O regente e futuro rei D. João VI viverá em permanente dilema, tentando negociar com ambas as partes; a Espanha, glutona, tenta juntar-se a Napoleão e ficar com uma parte de Portugal. Rui Cardoso dá conta dos efetivos portugueses, manifestamente impreparados, mas onde não faltaram comandantes com visão de futuro. A Grã-Bretanha domina os mares, a França possui um domínio terrestre. 
 
Para os britânicos, o teatro de operações ideal é Portugal. “O lado britânico vai praticar em Portugal (e acessoriamente em Espanha) um equivalente terrestre da guerra naval de corso. Ou seja, nunca procurará defender território fixo (exceção feita ao polígono Lisboa-Julião da Barra considerado vital para a retirada britânica em caso de malogro total), procedendo quase como uma força de guerrilha moderna (…) Já a doutrina napoleónica privilegiava a rapidez de movimentos, deslocando-se o exército com pouca bagagem e dispensando os lentos e vulneráveis comboios de abastecimento.” Por outras palavras, ambos os contendores esperam apossar-se dos recursos portugueses
 
De forma expedita, o autor vai elencando os acontecimentos avassaladores desde a Guerra das Laranjas (1801), em que Portugal estava teoricamente obrigado a fechar os portos aos britânicos, é um jogo dúplice até 1807, Junot atravessa o território português até Lisboa em condições penosas, vê de uma colina de Lisboa a partida da família real sob custódia da armada britânica; o jugo francês impõe-se, não faltará repressão, Napoleão impõe o pagamento de contribuição de guerra a Portugal, e no fim do ano Beresford ocupa a ilha da Madeira. Começa a resistência popular, não faltarão levantamentos, o execrado general Loison, conhecido por o Maneta, reprime com crueldade, será o caso de Évora, entre fuzilamentos e sacres há pelo menos 1500 mortos. E chegam os ingleses, o primeiro choque acontecerá a 17 de agosto de 1808, na Roliça, no Bombarral, segue-se o Vimeiro, Junot pede para negociar, sairá do país, de armas e bagagens e saque. 
 
Meses depois, dá-se a segunda invasão, no entretanto espalham-se os ideais liberais um pouco por todo o país. É nesta invasão que se dá o desastre da Ponte das Barcas, o general Soult cedo se apercebe que não tem espaço de manobra nem meios suficientes, anda pelo norte do país à deriva, entra a ferro e fogo no Porto. O general Wellesley, que ainda não é duque de Wellington, vem-lhe no encalço, abandona Portugal pela Galiza, Soult, o duque da Dalmácia, abandona Portugal pela Galiza, um dos heróis de Austerlitz foge do país às arrecuas. A terceira e última invasão ocorrerá no verão de 1810. “A política de terra queimada decretada pelo general Wellesley, agora duque de Wellington, e aplicada quando o seu exército retirar para as Linhas de Torres Vedras, não se limitará a dificultar o avanço das tropas francesas – significará a miséria, a fome, e a devastação dos campos nas Beiras, no Ribatejo e no Oeste.” 
 
Quem comanda a nova invasão é André Masséna, um veterano, tem palmarés, veio vitorioso da batalha de Essling e de Wagram, é valoroso, de uma bravura incontestável. A sua operação baseava-se na entrada em Portugal pela raia do Côa, seguida de um avanço sobre Lisboa utilizando os vales do Mondego e do Tejo. O invasor desconhecia totalmente as Linhas de Torres. Masséna perde tempo a cercar o resistente espanhol, cerca Almeida, segue para Pinhel, trava-se uma batalha sangrenta com o exército anglo-luso, inconclusiva. Por puro acidente, Almeida irá totalmente pelos ares, devido à explosão do arsenal, tenta acelerar a marcha ao longo do Mondego. O confronto decisivo irá ter lugar no Buçaco, os dois exércitos perseguem-se na direção de Lisboa, Masséna não sabe que o esperam as Linhas de Torres Vedras, não chega a haver nenhum ataque em forma às Linhas, Masséna vê-se obrigado a retirar em novembro. “As Linhas de Torres Vedras e a política de terra queimada tinham vencido os melhores soldados da época, mas à custa de um país devastado e dezenas de milhares de pessoas mortas de fome e de doença.” 
 
Napoleão perde condições para voltar a invadir Portugal, em 1812, o seu Grande Exército irá perder-se nas estepes geladas da Rússia, é o princípio do fim.
 
Rui Cardoso esboça um retrato sangrento das invasões napoleónicas, e deixa bem claro que isso dos brandos costumes é uma quase balela e que foram aqueles tempos que ajudaram a foguear os ideais liberais que se começarão a impor a partir de 1820. Excelente divulgação, não hesito em recomendar a sua leitura.
 
* Licenciado em História, foi alferes miliciano de infantaria na Guiné, de 1968 a 1970. Toda a sua vida profissional, entre 1974 e 2012, esteve orientada para a política dos consumidores, sendo autor de mais de três dezenas de títulos relacionados com esta temática.
 

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

BURLA EM PIRÂMIDE COM CRIPTOMOEDAS LESOU TRÊS MILHÕES, 156 EM PORTUGAL


Por SÓNIA TRIGUEIRÃO *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, na coluna DESTAQUE JUSTIÇA, artigo publicado na edição nº 12.521, Ano XXXV, de 13/08/2024, p. 2-3.
Figo, Ronaldinho e Casillas estão entre os ex-futebolistas que ajudaram a promover a OmegaPro. Estima-se que esquema terá lesado mais de três milhões de pessoas.

Mais de 20 estrelas do futebol, ex-jogadores como Luís Figo, Ronaldinho, Casillas, Materazzi, assim como vários actores de Hollywood e Bollywood, como Steven Seagal e Suniel Shetty, e gurus do marketing e coachs motivacionais, como Eric Worre e Les Brown, participaram em vários eventos organizados pela OmegaPro, uma empresa que acabou por se revelar um esquema em pirâmide mundial. Estima-se que este negócio, que prometia uma rentabilidade que podia ir aos 300% em 16 meses, terá lesado mais de três milhões de pessoas. Muitas perderam as poupanças de uma vida e até as casas. 

A OmegaPro apresentava-se como uma empresa de investimento e marketing baseada em produtos financeiros, com sede em Londres e no Dubai. Negociava em Foreign Exchange Market (Forex), isto é, um tipo de mercado de câmbio cujo objectivo é lucrar com as flutuações nos valores das moedas, apostando na valorização ou desvalorização de uma moeda em relação a outra. Os investidores tinham era de transferir o dinheiro para a OmegaPro em criptomoedas. 

Lars Olofsson, advogado sueco, que representa cerca 2500 lesados da Omegapro de 55 países diferentes, 156 são portugueses, considera que este “pode ser o maior esquema de fraude em pirâmide de sempre”. “Não digo isto pelo número de lesados, nem pelo valor que será de vários milhões de euros — a média de investimento dos meus clientes rondou os 120 mil euros — mas pela sosfisticação com que foi feito”, afirmou. 

Lars Olofsson explica “que os alegados fundadores da OmegaPro, pelo menos quem apareceu como tal foi Andreas Szakacs, Dilawar e Mike Sims, que agora se sabe que já tinham participado noutros negócios duvidosos, apostaram em captar como clientes pessoas que têm pouca literacia financeira, que não são muito ricas, criando todo um marketing à volta do negócio que envolveu a contratação como embaixadores da marca estrelas do futebol e do cinema, e fazer convenções com gurus de liderança e de gestão em hotéis de luxo”. 

Ilusão de credibilidade”  

“Criaram toda uma ilusão de credibilidade”, sublinha, acrescentando que, na sua opinião, todas essas pessoas que ajudaram a publicitar o negócio também devem ser responsabilizadas. “Quando se é uma pessoa famosa, um ex-jogador ou um actor, tem-se uma responsabilidade acrescida de saber o que se está a promover, porque também se sabe — ou é suposto saber — que se tem o poder de influenciar as pessoas”, afirma, acrescentando que já tem uma lista de mais de 20 nomes contra os quais tenciona avançar judicialmente. 

Desde que surgiu no mercado, em 2019, até ao seu desaparecimento em Julho 2023, a OmegaPro — com o lema “Ultrapassando barreiras através da Educação, formando os líderes de amanhã” — mantinha um registo nas redes sociais que revela muito investimento na sua promoção. 

Realizaram provas de rally em Itália e na Letónia, convenções em hotéis de luxo com jogadores e mentores motivacionais nas Maldivas, no Dubai, no Panamá e no México, e até promoveram jogos de futebol entre ex-estrelas, chamaram-lhe OmegaPro Legends Cup. Mas também criaram muitas notícias falsas, simularam capas de revistas com entrevistas exclusivas aos líderes, e inventaram parcerias com bancos. 

Para se ter uma ideia da extravagância que era exibida nos eventos da OmegaPro, durante uma das convenções, com o nome “Rise” (ascender), realizada em 23 e 24 de Janeiro de 2022, na Coca-Cola Arena, no Dubai, participaram 7500 pessoas, e no final foram distribuídos mais de 650 relógios Omega. Nesta convenção, os investidores da categoria Diamante (significa que investiram entre os 146 mil e os 220 mil euros) e superior tiveram direito a voos fretados e ficaram alojados em hotéis como o The Hilton e The V Hotel. 

Embora o investimento mínimo fosse de 100 euros, a empresa aliciava os investidores com um ranking de categorias que depois proporcionavam prémios (podiam ser monetários, electrodomésticos, computadores, telemóveis ou viagens) e acesso exclusivo aos eventos. 

Investidores eram premiados com viagens ao Dubai
 

Este ranking começava na categoria de “Associado”, em que o investimento inicial era entre 366 euros e os 550 euros, depois “Construtor”, em que tinha de se investir entre os 5500 e os 8300 euros, seguia-se “Prata”, e o investimento tinha de ser entre os 14.600 e 22 mil euros, no “Ouro” já tinha de ser entre os 27.500 e os 50 mil euros, na “Platina” era entre os 55 mil euros e os 83 mil. Depois passava-se para categorias mais elevadas: Diamante, Diamante Azul, Coroa de Diamante, Coroa de Diamante Real e Coroa de Diamante Presidencial. Para aceder a esta última categoria o investimento mínimo era de cerca de 17 milhões de euros. 

Na primeira edição da OmegaPro Legends Cup, que teve lugar a 12 de Maio de 2022, e que contou até com o apoio da Dubai Sports Council (equivalente ao Instituto do Desporto em Portugal), além de Luís Figo, jogaram os brasileiros Ronaldinho e Kaká, Materazzi (italiano), Youri Djorkaeff (francês) e Iker Casillas (Espanha), John Terry (inglês), Wesley Sneijder (neerlandês), entre outros. 

Na segunda edição da OmegaPro Legends Cup, que decorreu nas Maldivas, em Novembro de 2022, participaram Carles Puyol, Eric Abidal (francês), Faryd Mondragón (colombiano), Ricardo Osorio (mexicano), Esteban Cambiasso (argentino), Kevin Kurányi (alemão) e Patrick Kluivert (neerlandês), entre outros. 

A OmegaPro sempre associou o futebol e as suas estrelas aos eventos que fazia. Alegavam que “unir o desporto com negócios era parte integrante da sua visão de inspirar pessoas para se tornarem bons líderes”. Não faltam vídeos dos craques do futebol. 

De Luís Figo, por exemplo, há pelo menos dois. Num feito com várias imagens do jogador português com os equipamentos que vestiu pelas equipas por onde passou, e com as frases “Melhor Jogador do Mundo pela FIFA em 2001”, “Vencedor da Bola de Ouro em 2000”, Figo aparece e em castelhano diz: “Olá, sou Luís Figo, ex-jogador de Futebol e estou muito feliz de poder apoiar o evento Omegapro Global Convention nos dias 23 e 24 de Janeiro que se vai realizar na Coca-Cola Arena. Um abraço.” Noutro vídeo, Figo aparece a distribuir abraços por Andreas Szakacs e Dilawar Singh e a dar autógrafos em bolas e T-shirts. 

O PÚBLICO tentou contactar, através das agências que o representam, os vários jogadores, actores e gurus do marketing que promoveram a OmegaPro, mas não obteve resposta. Fonte próxima de Figo disse que o jogador não pretendia fazer comentários.

 

 

FRANÇA E CONGO JÁ AGIRAM

Investigações à OmegaPro encontraram teia de ligações a outros esquemas em pirâmide
A OmegaPro está, neste momento, a ser investigada em vários países. Em alguns, como França, foi preciso muita pressão por parte dos lesados para que as autoridades abrissem inquéritos. Muitas das vítimas deste negócio em pirâmide, cuja estimativa aponta para mais de três milhões de lesados, começaram por se unir e contratar advogados que avançaram com acções comuns em tribunal nos seus respectivos países. 
 
Ao que o PÚBLICO apurou, as várias investigações acabaram por revelar uma teia de ligações complexa a várias pessoas e a outros esquemas em pirâmide. Uma das revelações é que Andreas Szakacs, de nacionalidade sueca, e Dilawar Singh, alemão, começaram por fundar a OmegaPro, em finais de 2018, com outros dois homens Robert Velghe, austríaco, e Mike Kiefer, americano. 
 
Velghe e Singh já tinham estado envolvidos num outro esquema em pirâmide, “Omnia Tech”, Szakacs na “OneCoin/Onelife” e Kiefer no “USI-Tech”. Mike Sims, americano, apenas aparece em 2020, juntamente com o alemão Christian Michael Scheibener, mas este último morreu em Fevereiro de 2022, tendo sido substituído pelo neerlandês Nader Poordeljoo, que assume o cargo de presidente da OmegaPro.
 
Investigações à OmegaPro encontraram teia de ligações a outros esquemas em pirâmide
 
Aliás, no ano mais activo de publicidade da OmegaPro que foi 2022, Andreas Szakacs, Dilawar Sing e Nader Poordeljoo aparecem juntos em todos os eventos. Há suspeitas também de que a OmegaPro serviu para branquear o dinheiro da “OneCoin/Onelife” que estava escondido em criptomoedas desde 2017, ano em que se descobriu que era um esquema fraudulento e ficou na mira das autoridades. 
 
Sobre Mike Sims sabe-se que está a ser investigado nos Estados Unidos desde Janeiro de 2023 por suspeitas de evasão fiscal e de branqueamento de capitais. Segundo o processo que consta do Tribunal do Texas, está em causa outro esquema em pirâmide (que lesou mais de 200 pessoas em cerca de 30 milhões de euros) que não a OmegaPro, embora esta empresa também esteja sob investigação nos Estados Unidos, num inquérito aberto já este ano. 
 
Dos restantes responsáveis pela OmegaPro, apenas se sabe de Andreas Szakacs. As últimas informações dão conta de que foi detido, no início de Julho, na Turquia, por suspeitas de fraude. Segundo apurou o PÚBLICO junto de fonte das autoridades turcas, em causa estão queixas de 84 cidadãos turcos relacionadas com o esquema da OmegaPro. 
 
A OmegaPro terá desaparecido totalmente em Julho de 2023, altura em que o seu site deixou de funcionar. Mas ao longo dos anos em que esteve activa houve sinais de alerta. Em 2020, as autoridades francesas colocaram na lista negra dois sites associados à empresa, por considerarem que ofereciam serviços não licenciados. O mesmo aconteceu no Peru, Colômbia e Espanha. 
 
Na Bélgica, a Autoridade dos Serviços Financeiros e Mercados (FSMA), em Maio de 2021, anunciou a actualização da lista de plataformas de negócios online fraudulentas e estava lá a OmegaPro. 
 
Durante uma conferência de imprensa, no dia 4 de Abril de 2022, em Brazzaville, capital da República do Congo, Jean-Pierre Nonault, director-geral das Instituições Financeiras Nacionais, na sequência de várias queixas, classificou a OmegaPro como “uma fraude do tipo pirâmide” ou “Ponzi” e anunciou a abertura de um inquérito. Terá sido no Congo que foram feitas as primeiras detenções. 
 
Em Novembro de 2022, os clientes da OmegaPro receberam a indicação de que a empresa tinha sido alvo de piratas informáticos, mas que os seus técnicos já estariam a resolver a situação. A partir desta data, na rede social X, são apenas feitas publicações do último evento nas Maldivas, de um encontro no Egipto, e ficou a promessa de realizar uma nova convenção. 
 
No México, em Março de 2023, foi anunciada a detenção de Juan Carlos Reynoso, gerente de OmegaPro para a América Latina. Pouco tempo depois, acabou libertado, alegadamente devido a um erro judicial para a obtenção de provas. 
 
Já em Novembro de 2023, foi lançado um abaixo-assinado na Nigéria para que o Governo ouvisse os cerca de 300 mil lesados e abrisse uma investigação à actividade da empresa, aos seus fundadores e colaboradores. No texto de explicação do abaixo-assinado que foi lançado pelo advogado Ope Banwo, é referido que os nigerianos terão sido lesados em mais de 115 milhões de euros. As autoridades abriram uma investigação este ano. 
 
Segundo o jornal francês Le Figaro, em França, depois de dois mil lesados se terem juntado numa acção comum em tribunal contra a OmegaPro e pressionado durante meses a Procuradoria-Geral de Paris, foi anunciado também já em Junho deste ano a abertura de um inquérito. 
 
Por sua vez, em Portugal, questionada pelo PÚBLICO, a Polícia Judiciária (PJ) disse não ter recebido qualquer queixa relacionada com a OmegaPro e a Procuradoria-Geral da República (PGR) respondeu que apenas com o nome da empresa “os dados eram demasiado vagos para solicitar informação”. No entanto, sabemos através do advogado Lars Olofsson que há pelo menos 156 portugueses lesados. O advogado confirmou que, de facto, nenhum destes seus clientes fez queixa na polícia. 
 

* Jornalista do PÚBLICO.

 

domingo, 18 de agosto de 2024

OLÁ AO BRASIL DO LADO DE CÁ


Por DAVID PONTES *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, na coluna ESPAÇO PÚBLICO, editorial publicado na edição nº 12.521, Ano XXXV, de 13/08/2024, p. 6.
 
Quase 400.000 brasileiros vivem legalmente em Portugal

O Brasil está-nos na pele. Podemos falar da língua, de como é atravessar um oceano, ouvir-nos com açúcar e entendermo-nos tão bem, mesmo quando há palavras diferentes para as mesmas coisas. Podemos falar da história, de como um rei um dia pensou que Portugal podia ter uma capital tropical ou de como veio de lá o rei que deixou o Brasil independente para ser soberano da terra dos seus avós. E não devemos esquecer a história triste de como os portugueses uniram três continentes com a ignomínia da escravatura e assim gerou um novo povo. 

Podemos também falar da cultura, de Vinícius a Amado, de Machado de Assis a Lispector, de Glauber Rocha a Fernando Meirelles, de Sónia Braga a Fernanda Montenegro, de Gilberto a Buarque, de Regina a Cazuza. Tantos, tantos nomes, tão imenso talento, que chamamos nossos, que zeram e continuam a fazer as nossas vidas mais ricas e a encher os nossos dias com livros, poemas, novelas, cinema e muita, muita música. 

O Brasil é esse “continente” maravilhoso que continua a transformar os nossos costumes, a alimentar os nossos sonhos e a fazer com que nos angustiemos e suspiremos em conjunto com a sua história recente. 

Ao longo dos seus 34 anos, o PÚBLICO tem dedicado milhares de páginas, milhões de caracteres a este país e ao seu povo e à relação intensa que com eles mantemos, o que torna redundante falar do impacto que têm para todos nós. Assim continuaremos, mas achámos que era chegado o momento de dar um novo passo, de começar a olhar com mais atenção para o Brasil que já mora do lado de cá

Nos últimos anos, a comunidade de brasileiros a residir em Portugal tem aumentado em número e importância. Segundo os dados ociais mais actualizados, os brasileiros são o mais importante contingente de imigrados, representando 35% do mais de um milhão de cidadãos estrangeiros com residência em Portugal, mas há quem considere que este valor até poderá estar muito abaixo da realidade

É a pensar neles e nos muitos que continuam do lado de lá a desejar encontrar uma nova vida do lado de cá que o PÚBLICO, numa parceria inédita com experientes jornalistas brasileiros, lança hoje o PÚBLICO Brasil. Um novo espaço editorial, que é uma aplicação no telemóvel (Android e IOS) e que pretende ser a voz e a resposta para muitos das preocupações e interesses deste Brasil que escolheu o nosso lado do Atlântico para viver e fazer parte de um renovado, plural e “imenso Portugal”, de que eles, inexoravelmente, são já uma parte importante.

* Diretor do PÚBLICO desde 1º de junho de 2023.

 

 

PÚBLICO Brasil nasce para falar com os brasileiros que vivem em Portugal


Por Pela Redação do PÚBLICO
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, na coluna SOCIEDADE, anúncio publicado na edição nº 12.521, Ano XXXV, de 13/08/2024, p. 15.
 

A comunidade brasileira, a maior entre os estrangeiros que vivem em Portugal, viu nascer ontem o PÚBLICO Brasil, um novo projecto editorial que se quer afirmar como uma referência no mundo da informação para os brasileiros que já vivem em Portugal e, também, para os que estão do outro lado do Atlântico e querem saber mais sobre o que se passa em Portugal e na Europa. O projecto, que tem a chancela do PÚBLICO, tem uma redacção própria e todos os conteúdos são escritos em português do Brasil. 

O PÚBLICO Brasil pode ser consultado através de uma app exclusiva e de um site, que funciona dentro do site do PÚBLICO. Os conteúdos são feitos por seis jornalistas brasileiros com longa carreira profissional que residem em Portugal, e que se associaram ao PÚBLICO: Vicente Nunes, Ana Cunha, Fernando Thompson, Felipe Eduardo Varela, Carlos Vasconcelos e Jair Rattner. 

Os dados oficiais indicam que mais de 400 mil brasileiros vivem legalmente em Portugal. Outros 170 mil estarão à espera da documentação. Estima-se ainda que haja pelo menos 200 mil luso-brasileiros espalhados pelo país. 

O PÚBLICO Brasil é um projecto de jornalismo que pretende ajudar no dia-a-dia a comunidade brasileira que escolheu Portugal para morar, trabalhar, estudar, abrir o próprio negócio ou frequentar o meio cultural. A percepção nesta comunidade é a de que faltava um meio de informação que pudesse tornar o processo de adaptação e de integração em Portugal mais fácil. 

Também entre os empresários, a procura por informação é grande. Há um interesse crescente entre investidores brasileiros com o objectivo de abrirem negócios em Portugal. Não por acaso, o PÚBLICO Brasil dará especial atenção aos temas económicos, com notícias na área de finanças e legislação para reduzir as dúvidas que resultam das diferenças entre os dois países. 

Daí, o PÚBLICO Brasil ter também criado uma secção chamada “Como fazer”, que pretende prestar informações seguras sobre como funcionam várias áreas em Portugal, desde a saúde à educação, passando pelos impostos. 

Além disso, serão tratados os temas da economia, imigração e lazer, no qual cabem os assuntos que vão desde a cultura à gastronomia, passando pelos roteiros que mais interesse têm despertado nesta comunidade. 

O PÚBLICO Brasil pretende ter um papel estratégico no sentido de aprofundar a integração entre o Brasil e Portugal a um nível não apenas económico, mas também cultural. Na elaboração do projecto, que se desenvolveu conjuntamente entre a empresa constituída por este grupo de jornalistas, a Jornada das Palavras, e o PÚBLICO, o novo meio nasce num ambiente totalmente digital. Além da app e do site, o PÚBLICO Brasil oferecerá podcasts, vídeos, newsletters e presença nas redes sociais.

sábado, 17 de agosto de 2024

INFLUENCERS E YOUTUBERS PROMOVEM JOGO ILEGAL


Por HELENA BENTO *
Transcrevemos com a devida vênia da revista do EXPRESSO, na coluna APOSTAS ONLINE, artigo publicado na edição nº 2703, de 15/08/2024, p. 19.
Estudo revela que 40% dos jogadores usam sites ilegais. São atraídos por maiores ganhos.
São 17 as empresas de jogos e apostas online licenciadas em Portugal - Crédito: FOTO GETTY IMAGES

 

A proposta que vários operadores de jogo online ilegal têm dirigido a youtubers e influencers é simples e aliciante: promover a empresa nas plataformas onde estes criadores de conteúdos são seguidos por milhões de pessoas em troca de dinheiro. Só este ano, a Associação Portuguesa de Apostas e Jogos Online (APAJO) avançou com cinco queixas-crime contra influenciadores que promovem operadores sem licença para operar em Portugal. As próprias empresas, normalmente localizadas fora do território nacional, foram também denunciadas junto do Ministério Público. 

“Esta prática começou há alguns anos e é cíclica, com períodos de promoção mais ativa por parte de criadores de conteúdos. Quando surgem denúncias, o fenómeno perde força, mas, como as queixas não têm consequências significativas, acaba por ressurgir pouco tempo depois”, explica Ricardo Domingues, presidente da APAJO. “Choca-nos a impunidade destes influenciadores, que muitas vezes recorrem a práticas agressivas, com foco no ganho fácil e omissão das perdas de dinheiro, para publicitar operadores ilegais. Tem havido uma certa passividade da sociedade em erradicar este fenómeno.” 

O fenómeno torna-se especialmente preocupante quando analisado à luz das conclusões do mais recente estudo da APAJO sobre os hábitos de jogo online dos portugueses referente a 2024, a que o Expresso teve acesso. Mais de 40% dos jogadores utilizam operadores ilegais, uma percentagem que, apesar dos esforços para atrair jogadores para o mercado regulado, permanece inalterada nos últimos anos. Cerca de 60% recorrem exclusivamente a sites legais e quase 3% jogam apenas em plataformas ilegais. 

Os principais motivos para o fazerem são as “melhores odds” (probabilidades de ganhar), “maiores bónus” e “maior oferta de jogos”. “A oferta das casas de apostas é essencialmente a mesma desde que foi criada legislação em Portugal para este sector. A capacidade de absorção do mercado regulado atingiu o seu limite”, afirma Ricardo Domingues. 

Para atrair mais jogadores defende alterações legislativas no sentido de “garantir uma maior diversidade de apostas desportivas” e a introdução de modalidades de jogo atrativas que existem apenas no ambiente ilegal. Também é fundamental, sublinha, reforçar o combate ao jogo ilegal, eliminando meios de pagamento nacionais, como o MB Way e Multibanco, em sites de apostas ilegais e melhorando a eficácia no bloqueio desses operadores em motores de pesquisa na internet. A associação estima que o fenómeno do jogo ilegal represente mil milhões de euros a circular no mercado financeiro português. “O mercado ilegal utiliza, em muitos casos, práticas predatórias. A nossa principal preocupação é garantir que os jogadores dispõem de proteção, algo que não acontece no ambiente ilegal.” 

Maioria gasta até 50 euros por mês 

O estudo foi realizado pela Aximage para a APAJO e participaram mil jogadores entre os 18 e os 65 anos, cerca de 80% dos quais homens. A maioria dos inquiridos aposta até 50 euros por mês (cerca de 70%) e as apostas mais elevadas são feitas sobretudo em operadores ilegais. A maior percentagem de jogadores aposta uma vez por semana (44%), aproximadamente 40% jogam uma vez por mês ou “de vez em quando” e quase um quinto (cerca de 18%) aposta diariamente. A frequência de jogo é maior entre os que apostam em plataformas ilegais. O conhecimento sobre as ferramentas de jogo responsável é hoje em dia maior, mas cerca de 20% dos jogadores ainda as desconhecem. “Temos realizado campanhas para aumentar o conhecimento sobre o jogo ilegal e as ferramentas de jogo responsável”, garante Ricardo Domingues, adiantando que este ano será lançada uma nova campanha, “mais ambiciosa e alargada”, envolvendo várias entidades. “Fazendo uma analogia com a condução de veículos, queremos que as pessoas coloquem um ‘cinto de segurança’ antes de começarem a jogar, para que fiquem protegidas caso o ‘carro’ se descontrole. Nesse sentido, até somos dos poucos sectores que oferecem ferramentas aos consumidores para se autocontrolarem. Fazemo-lo mais do que os sectores do álcool e do tabaco.” 

Ainda segundo o estudo, quase metade dos jogadores já utilizou, ou utiliza atualmente, alguma das ferramentas de jogo responsável disponibilizadas pelos operadores. As mais usadas são os limites de aposta e de depósito. A autoexclusão, mecanismo que permite pedir para ser impedido de jogar para prevenir ou mitigar os efeitos do jogo excessivo ou patológico, foi utilizada por 10% dos jogadores que já recorreram a estas ferramentas.

* É jornalista do Expresso desde 2015, atualmente na secção de Sociedade, onde escreve regularmente sobre Saúde Mental desde 2018. É coautora do podcast semanal do EXPRESSO “Que Voz é Esta?”, sobre saúde mental, lançado em maio de 2023 e distinguido pela SPPSM nesse mesmo ano. Esse podcast pretende dar voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, e ouvir os mais reputados especialistas nesta área.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

ALJUBARROTA


Por ANTÓNIO SÉRGIO *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal DIÁRIO DE NOTÍCIAS, na coluna ACONTECEU EM, artigos publicados na edição de quarta-feira nº 56.727, Ano 160º, 14/08/2024, pp. 30-1.
Se, pois, a padeira de Aljubarrota é um "mito", uma invenção popular do século décimo quinto, nem por isso o desprezemos. Um povo que dava a uma mulher ódio bastante contra os opressores estranhos, para haver de assassinar a sangue frio sete desses inimigos; um povo, dizemos, que assim simbolizava o seu modo de sentir a tal respeito, devia saber sustentar a independência nacional
ALEXANDRE HERCULANO.
... gloria-se um homem de ser Português, quando, folheando as nossas velhas crónicas, se lhe depara, resplandecente como os nomes mais gloriosos de que se ufana Roma, de que se ufana a França, este nome que por si vale um poema - Aljubarrota!
PINHEIRO CHAGAS.

 

Batalha de Aljubarrota (14/08/1385)

O que se firma em Aljubarrota não é só a existência de Portugal como povo livre. Existir, com independência maior ou menor, é o menos. Só gozam o dom de vida plena os povos e os indivíduos que vivem historicamente; e viver historicamente é ter exercido a sua função,  causal, fecunda, criadora, determinante,  na evolução de um povo ou da humanidade. O que não teve consequências  deve esquecer-se. Um facto define-se pela sua função no fluxo de vida em que actuou, e a narrativa histórica só é História quando os sucessos são considerados em relação àquilo que veio depois, e ordenados por conseguinte numa série processual, como agentes de transformação e factores de desenvolvimento da consciência da nossa espécie. Só são "históricos", em suma, os factos que tiveram efeito no espírito humano sobrevindo, e a sua historicidade é proporcional à sua energia de progressão, à sua capacidade de servir de degrau à ascensão futura da humanidade; a historicidade de um homem, ou de um povo, é o volume dos resultados que teve no mundo a sua acção. 

Portugal, no período gerador da primeira dinastia, é um organismo que se constitui. Existe, mas não tem ainda valor histórico. Não se sabe se será alguém na tragédia que representa o Homem. Para isso, é necessário que surja um facto que o faça destacar do côro de anônimos, dando-lhe um papel no evoluir do drama. 

Tal é, ao que me parece, o significado de Aljubarrota. 

O que vejo em Aljubarrota, portanto, não é uma luta de Portugueses e Castelhanos. O que aí importa para a História é menos a vitória de Portugal sobre o reino de Castela do que, dentro da sociedade portuguesa, a vitória da Burguesia sobre os aristocratas senhores rurais. 

A aristocracia, os senhores rurais (que, como se sabe, se puseram do lado do Castelhano) constituem sempre em todos os povos um elemento de estabilidade, a que eles devem a pujança, a saúde, a solidez do seu organismo. Não há sociedade bem firmada, solidamente constituída, sem uma elite provinciana, a qual forme ao longo dela uma série de gânglios coordenadores que lhe dão ordem e direção; mas não há também sociedade expansiva, das que têm na Acção um vasto papel, das que transformam a economia do mundo, sem o predomínio progressista, mas facilmente corruptor também, da burguesia do litoral. 

Em Aljubarrota os aristocratas, combatendo pelo Castelhano, (o rei legítimo à face da lei) defendiam, naturalmente, os princípios fundamentais do regime de que faziam parte, como seu elemento básico e genésico: estavam com a lei, portanto, de uma época que ia findar; estavam com o Feudalismo. Do lado do mestre de Avis vemos o burguês comerciante; e Nun'Álvares, adoptando este partido, saía do Feudalismo, e simbolizava assim essencialmente o caracter da Cavalaria, instituição em que cumpre ver, ao cabo de contas, não, como é uso, um órgão do Feudalismo, mas um seu elemento de dissolução, como factor que sempre foi  desde o início das Cruzadas  do movimento para o Oriente e da expansão comercial. 

O que se criou em Aljubarrota, em suma, foi o condicionamento social para a empresa dos Descobrimentos. A derrota definitiva do princípio do Feudalismo, a vitória do Comércio com seu aliado a Cavalaria, eis, ao que julgo, o significado profundo dessa batalha, e a razão da sua importância se a quisermos ver na história humana, e não só à luz do sentimento pátrio. A burguesia, enfim dominante, vai poder realizar a sua obra; de ali, alçando-se triunfadores sobre o corpo abatido da civilização rural, o Comércio e a Cavalaria, unidos, soltam o vôo que no fim de um século os há de levar a Calicut. 

O que hoje recordamos, portanto, é o acto preliminar da epopeia das Navegações. Assim, ao que me parece, cumpre considerar Aljubarrota, para que vejamos nesta batalha, mais que um brilhante episódio dum antagonismo de nações, um verdadeiro momento "histórico" na evolução da Humanidade.

* Pedagogo, jornalista, sociólogo, historiador e político português. 

 

A PADEIRA DE ALJUBARROTA


Por ALBINO FORJAZ DE SAMPAIO * 
ARQUIVO DN: CRISTINA CAVACO, LUÍS MATIAS E SARA GUERRA 
Andavam já virotões no ar, e o condestável a cavalo, na vanguarda, confortando a gente, trazia um escudo para se defender dos tiros. Recomendava muito a firmeza: quando os castelhanos arremetessem, adiantassem as lanças, apertando-as rijo contra o cotovelo. A grita era forte; alaridos e apupos. E para os lados do mar, o sol ia baixando rapidamente. A confusão crescia. D. João I lançava sobre o peito uma cruz vermelha; e ao lado do rei o arcebispo, com o seu roquete sobre a armadura e a Virgem por pluma no elmo, precedido da cruz alçada, ia de uns a outros, por toda a parte, confessando e absolvendo, em nome do papa Urbano; recomendando muito que dissessem repetidas vezes:
Et verbum caro factum est...
O que os rapazes traduziam, a rir:
Muito caro feito é este.
OLIVEIRA MARTINS.  

 

Distantes, os povos, enquanto se travava a batalha, espreitavam dos altos e recantos a qual dos contendores pertenceria a vitória para depois, ou fugir com os vencidos ou abater sobre eles. Aljubarrota não faltou à regra. Os habitantes da vizinhança ouviram pelo menos o estrondo do combate e a suas mãos ficaram muitos dos fugitivos. As mulheres são por contumácia não só as mais ruidosas como as mais encarniçadas. Foram-no em todos os tempos e em todas as épocas. Aljubarrota teve também uma mulher e essa mulher que teve na vida, se existiu, o nome de Brites de Almeida, e a alcunha de a "Pesqueira", teve na história o cognome glosioso de "A Padeira de Aljubarrota". Não é já uma mulher e um símbolo. Não é já um símbolo: é a realização de um ideal. Portugal queria ser livre. Pequeno sim mas livre. E livre foi. Para isso deu o concurso do seu povo  que foi o primeiro , deu o concurso do seu solo, deu o concurso das suas mulheres. E como as armou? De espada e cota? Não. A umas mostrando-se em mente aos namorados, a outras açulando os homens pelos caminhos. Brites de Almeida desceu também à chacina com a sua pá do forno, que muitos anos depois esteve emparedada para não constituir um troféu. Não sabemos o que fez. Sabemos apenas que, quando ela voltou, encontrou prostrados de medo e lazeira, dentro do seu forno, sete guerreiros. Então realizou a mesma façanha que as tropas abissínias haviam, em nossos tempos, de realizar com as italianas. Apanhá-las à saída de um desfiladeiro. Uma boca de forno está para um enfornado como um desfiladeiro. E cada um que saía era derrubado. Uma pancada certeira o prostrava. 

Mas quem era Brites de Almeida? Uma heroína, não resta dúvida. Dizem uns que era de Faro, outros de Aljubarrota. Atribuem-lhe coisas espantosas, como a de, sendo pedida por um soldado, só aceder ao casamento se fosse vencida em combate singular. Este realizou-se e o soldado morreu. Dizem que esteve presa dos mouros e foi mulher de uma cana mais rija que um varão de aço inquebrável. Que andou a monte disfarçada em almocreve, que roubou à dona a padaria onde fez a hecatombe. Contam dela façanhas incríveis. Terão sido verdadeiras? Serão falsas? Quem o sabe. Mas seja como for, a padeira de Aljubarrota é um nome, é uma lenda. Abençoada lenda que mostra que Portugal não morreu, que Portugal não morrerá. Não morre uma terra em que as mulheres disputam aos homens os sete palmos de morte que dão na História direito a duas linhas de prosa. Não morre um povo em que mães e esposas apontam aos homens o caminho a seguir. É verdade que a padeira tivesse existido? Bem. Houve mais uma grande mulher em Portugal. É lenda? Melhor ainda. Mostra que até quando elas faltam, o coração português as imagina. Houve fé. Bendito Deus. Deus nos dê fé. Dizem que ela remove montanhas. Não sei. Sei apenas que pelo menos ela matou sete castelhanos. Preguntem do norte ao sul de Portugal: sete. Nem um menos. Sete. Perigos de peste? Ah! meus amigos: um inimigo da pátria nunca cheira mal. Pensavam assim os higienistas e pensava assim Brites de Almeida, a que é eterna como os fornos de cozer pão, eterna como a recordação de Santa Maria da Vitória, entre as mulheres portuguesas.

*  Escritor e bibliógrafo português, autor de um dos livros mais vendidos em Portugal durante o século XX, Palavras Cínicas, onde explora sua crítica social, tentando subverter a moral vigente, emitindo juízos anticlericais, contra a crendice popular, e a "esperteza" saloia, e deixando clara a sua opinião de que a vida não vale a pena no mundo em que se vivia.