sexta-feira, 28 de novembro de 2025

MARCEL PROUST, POR CÉLESTE ALBARET


Neste trabalho, são apresentados trechos mais expressivos de um depoimento concedido à jornalista Sonia Nolasco-Ferreira por Céleste Albaret, secretária, governanta, enfermeira e "segunda mãe" de Marcel Proust, cobrindo os nove últimos anos da vida dele (1914-1922). Tais trechos são transcritos, com a devida vênia da L&PM Editora, do volume 1228 da COLEÇÃO 96 PÁGINAS, pp. 57-95, da referida entrevista publicada originalmente na Revista 80, no inverno de 1983.
Introdução, notas e bibliografia por Francisco José dos Santos Braga.

 

Céleste Albaret na época quando servia a Proust (✰ Lozère-França, 17/05/1891 ✞ Montfort-l'Amaury-França, 25/04/1984)
 

 I. INTRODUÇÃO

 

Céleste Albaret foi a governanta de Marcel Proust durante os últimos nove anos de sua vida, período em que ele concluiu sua obra-prima, Em Busca do Tempo Perdido. Dia e noite, ela cuidava dele. Mas, mais do que uma governanta, ela também era sua confidente e aquela que o apoiava na escrita de sua obra. 
Após a morte de Proust em 1922, Céleste Albaret recusou-se por muito tempo a compartilhar suas memórias.  
Então, aos 82 anos, ela decidiu prestar uma homenagem final ao homem que lhe dissera: "São suas lindas mãozinhas que fecharão meus olhos". Para isso, deu um depoimento a Georges Belmont que, após ouvir o depoimento de Céleste, organizou-o em temas e capítulos, publicando a obra em 1973 com o título Senhor Proust: Céleste Albaret, Lembranças Recolhidas por Georges Belmont.
Aqui não será tratado o conteúdo desse livro, mas o depoimento de Céleste Albaret à jornalista Sonia Nolasco-Ferreira publicado 10 anos depois, os quais em linhas gerais são bastante coincidentes.
Finalmente, permiti-me inventar os títulos dos temas do depoimento à jornalista e ainda colocar em forma de bloco cada um deles, independente da ordem que apareceram na entrevista, antes observando a sua sequência lógica.

II. TEXTO


Apresentação da moradia da entrevistada e de seus traços fisionômicos

P. 57: Uma casa branca, modesta. Jardim florido, árvores. Uma velha dama, 87 anos, alta, ainda elegante e ereta, sorriso doce, olhar inteligente e penetrante por trás dos óculos (...).

P. 94: Céleste não sai muito além do jardim florido. Recebe visitas da filha única, Odile. "Para ela, como M. Proust, eu buscaria a lua". Foi por causa de Odile que Céleste teve que vender cartas e documentos preciosos, lembranças de Proust: para pagar médicos e hospital, quando Odile teve um câncer e se recuperou. (...) 
Desamparada?
Parece incrível: Marcel Proust, tão rico, não deixou testamento, ele que sabia a data certa em que ia morrer, e a papelada final que ficou rolando pelo quarto, duas mesas, uma escrivaninha. O resto virou museu. Além das lembranças, que Céleste se faz gratuitamente, a servante au grand coeur ¹ (como Proust a chamava) vive de uma pensão de aposentadoria e, agora, dos direitos do livro ², que Georges Belmont faz questão de dar a ela, mas que vendeu pouco na França e menos ainda em traduções.
Céleste não reclama, acha tudo natural, como achava natural cuidar de Proust durante a noite e de madrugada. Acha que sua recompensa já foi dada, naqueles nove anos passados com Proust.
P. 57-8: Ela, Céleste Albaret, camponesa sem cultura, ocupada demais com o trabalho doméstico, nunca teve tempo para escrever o que o patrão escrevia noites adentro, naquele quarto sombrio de janelas fechadas. Ele era Marcel Proust. (...) Quando o jovem casal (Odilon e Céleste)  foi se instalar em Paris e Odilon contou a Proust que a esposa se aborrecia sozinha o dia inteiro, o patrão sugeriu que viesse trabalhar para ele, levando cartas e trazendo respostas (costume da época) e entregando em mãos exemplares autografados de seu livro recém-lançado Du côté de chez Swann ³
Em seguida veio a guerra (...). Os salões de Paris se esvaziaram, as ruas ficaram desertas. O cavalheiro extravagante quase não saía mais de casa, tinha crises de asma, escrevia sem parar a noite inteira. (...)

P. 59: "Céleste, ninguém me conhece como você", dizia Proust. "A você eu confesso, você sabe tudo de mim. São suas belas mãos que vão fechar os meus olhos."

P. 60-1: A mocinha tímida recém-chegada a Paris entra na casa do grand seigneur  misterioso. Mas não foi com sua camélia branca na lapela do terno de veludo que ele a recebeu: "Veio à cozinha me ver", conta Céleste. "Parecia bem mais jovem do que era. Bonito, sim. Magro, de porte elegante. Pele branca, transparente, e dentes extremamente brancos. Cabelos pretos, nem um fio branco até a morte. A mecha que se fazia sempre sozinha, caindo na testa. Maneiras finas, nobres, e, coisa curiosa, uma espécie de calma contida que notei outras vezes nos asmáticos, como se fosse uma forma de economizar o fôlego.  Minha impressão primeira foi de medo. Vi logo que era superior aos outros." (...)

P. 71: "O que eu conhecia da vida?", pergunta Céleste. "Depois que tinha saído da minha cidadezinha, mal houve tempo de conhecer outro mundo, a não ser a casa de M. Proust. Minha exisstência se confinou entre as paredes daquela casa. Era o início e o fim da minha experiência de vida. M. Proust me formou, como se faz com uma criança pequena a quem se ensina a andar, falar, ter boas maneiras, bons hábitos, escolher, aceitar, recusar, etc. Evidentemente o meu aprendizado foi de acordo com os moldes dele. Nunca me passou pela cabeça recusar levar cartas à noite pela cidade escura e deserta, ou telegramas ao único correio aberto à noite, lá perto da Bolsa de Valores. Fazia parte do meu trabalho."

P. 73-4: Durante a guerra, Paris às escuras, Céleste saía à noite para comprar livros a dois passos de casa ou levar cartas ao outro lado da cidade. Proust parecia não se lembrar que ela era mulher, nem de perguntar se teria medo. Céleste nunca pensou que seu patrão fosse extremamente egoísta. Ela nem ousava dizer que tinha medo, sim. Acabou se habituando, atravessava as ruas escuras, pegava táxis sob olhares suspeitos dos motoristas diante de uma mulher jovem sozinha; dava conta do recado. Era inestimável.
Às vezes o grand seigneur se humanizava e pedia a Céleste que fugisse para o abrigo antiaéreo assim que escutasse as sirenes de alarme. Ela se recusava (...).
Céleste conta que nunca pensava seriamente nos bombardeios.
 
P. 75: Então Proust era um tirano? Inconscientemente tirano? 
Céleste abana a cabeça, impaciente, acha que não foi entendida.

O ambiente doméstico

P. 61-2: O quarto estava envolto numa fumaça tão espessa que se poderia cortar à faca. (...) Ao acordar, M. Proust queimava um pó de fumigação, porque sofria terrivelmente de asma. O quarto era imenso, no entanto não havia um espaço vazio de fumaça. A lâmpada de cabeceira dava uma luz verde. Vi então uma grande cama de cobre, a barra de um lençol branco, cheio de luz verde. De monsieur Proust não se distinguia nada a não ser a camisa branca sob casacos de tricô de lã e o alto do corpo apoiado sobre os travesseiros. O resto estava perdido na neblina da fumigação e na sombra. De vivo, só os olhos dele, fixos em mim; eu os sentia mais do que via.

P. 63: Até que veio a famosa última viagem a Cabourg , onde Proust costumava passar o verão. Céleste se lembra dela com carinho. (...) 

P. 64: "Foi nessa viagem que começamos a conversar mais. Às vezes passeando no terraço, outras almoçando no quarto. Ele aboliu então o respeitoso madame e passou a me chamar de "Céleste". Começou a me falar do passado, da infância, dos verões em que vinha a Cabourg com a avó ou os pais para tratar da asma e, mais tarde, porque ali vinham grandes amigos de Paris (...) Quando conversávamos, ele me contava casos, imitava pessoas, me fazia imitar. Notei que a espontaneidade da minha natureza o divertia muito. Eu sabia responder em cima de cada observação, ele não ria do meu jeito de falar provinciano, me instigava a novas respostas picantes, frases da gente da Lozère, bem primitivas. Acho que meus 23 anos pesavam nisso também. E eu demonstrava claramente o quanto gostava da companhia dele."

P. 65: "Pior ainda foi o retorno a Paris, com o hotel requisitado pelos aliados. Foi dramático. Uma crise de asma pior que todas as outras justamente quando o equipamento farmacêutico estava no compartimento das bagagens. Céleste teve que chamar correndo o fiscal do trem para pedir a mala e fazer a fumigação dentro da cabine. Chegando a Paris, a situação ficou pior." (...) 
Me lembro dele sempre transpirando, sufocado, dobrado sobre a cama, a fumaça enchendo o quarto. Fiquei horrorizada, não sabia o que fazer, e ele me pedindo que fosse embora e voltasse apenas se a campainha chamasse. À noite, ele tocou. Estava deitado, a crise mais calma. Me pediu que ficasse morando na casa definitivamente. Já sabia que podia contar comigo, eu tinha passado pela prova. Concordei, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Acho que desde o início houve entre nós um grande entendimento. Estava determinado que eu ficaria. M. Proust me confessou uma coisa que também deveria estar amadurecendo há muito tempo: "Minha querida Céleste, nunca mais vou a Cabourg. Ou a qualquer outro lugar. Não viajo mais. Os soldados fazem seu dever. Como não posso lutar ao lado deles, o meu dever é escrever um livro, fazer a minha obra. O tempo passa. Não posso perdê-lo."

P. 66: "A partir dessa noite de setembro de 1914", conta Céleste, "Proust se retirou do mundo para o que seria nos próximos oito anos (e últimos de sua vida) o único motivo de viver: escrever sua obra." E Céleste também aceitou como se fosse natural. (...) O tempo ao inverso, nos menores detalhes: para limpar e arejar o quarto, só quando Proust saía, por volta das dez da noite. Céleste nunca fez uma faxina de dia, as janelas dele nunca se abriam para o sol. (...) O que não o impedia de chamá-la para o que quer que fosse, mesmo conversar. Ela vinha, os cabelos soltos em robe de chambre, e ele se encantava. "Parece a Gioconda". Na cozinha Céleste podia saber se era dia ou noite, mas o resto do apartamento imenso ficava fechado hermeticamente o dia todo. O quarto de Proust, todo forrado de placas de cortiça para abafar os barulhos da rua e a poeira, as várias cortinas fechadas, uma janela dupla através da qual não se escutava nem os bondes correndo.

P. 67: "Ou se vivia na eletricidade ou na escuridão completa", lembra Céleste. "Hoje entendo a busca de M. Proust, todo o sacrifício da sua obra: foi o de se retirar do tempo para poder reencontrá-lo. Quando não se dá conta do tempo, é o silêncio. Ele precisava desse silêncio para escutar as vozes que queria escutar novamente, as que colocou nos livros. Na época eu não sabia, mas agora, quando estou sozinha à noite e não consigo dormir, parece que o vejo aqui, do mesmo jeito que ficava no quarto dele há mais de sessenta anos, trabalhando nos cadernos pretos, sem se dar conta das horas, sozinho, dentro de sua própria noite, quando lá fora a madrugada já se fazia em dia." (...)

Contestando a incredulidade dos biógrafos de Marcel Proust quanto à sua asma

P. 61: "E foram depois escrever que ele se maquiava, que absurdo! Eu teria sabido, teria visto as coisas no quarto dele, teria sido obrigada a comprar os produtos. Eu administrava tudo naquela casa."
 
P. 67: "Que Proust era louco, que exagerava a doença, que afinal essa asma era coisa cultivada para fazer gênero... Escreveram tudo que Céleste desmente como "calúnias". Chegaram a contar que Proust inventara uma natureza frágil para chamar a atenção da mãe adorada, que teria se ocupado menos após o nascimento do segundo filho, Robert. Inventada a asma com a malícia das crianças, para monopolizar as atenções da mãe, ele continuou a farsa para se fazer de interessante, excentricidades."
"Não há provas", diz Céleste indignada. "Os biógrafos tiraram de onde, tantas análises? Tudo isso é  ridículo, para não dizer que são mentiras. Quem viu monsieur Proust como eu vi, no meio das fumigações, especialmente naquela volta terrível de Cabourg, pálido como um morto, procurando respirar com esforço, sufocado? Nada mais que isso seria suficiente para se convencer que ele não estava brincando. Como é que alguém finge que está doente por dez anos?" 
 
P. 68: Há outras 'infâmias' na lista de Céleste, sempre defensiva. Especialmente sobre o tratamento com morfina, os vícios e as drogas, a mania de suicídio. Não é que ela queira veementemente desmentir os biógrafos. Tem sua versão. Foi testemunha ocular.
 
Hábitos de Marcel Proust alterados a partir da instalação da asma
 
P. 68: E não suportava cheiros de espécie alguma, nem flores nem perfumes, tudo poderia provocar-lhe uma crise trabalhosa. A poeira, os micróbios, o ar poluído das ruas, era preciso evitar qualquer elemento que lhe atiçasse a asma. Então ele saía à noite, "quando as ruas são menos sujas", dizia. Não deixava ligar o aquecimento no inverno por causa do ressecamento que lhe provocava na garganta. Preferia permanecer no quarto gelado, cobrindo-se com camadas de casacos de lã e cobertores. No final da vida, até as cartas que recebia eram desinfetadas com formol por Céleste. (...). 
 
P. 71: "Costumo me lembrar dele estendido na cama, imóvel, olhos fechados, me fazendo sinal para não falar. E duas ou três horas depois, bem-vestido, saía para uma festa. Era capaz de ficar seis ou sete horas de pé, rir, conversar, depois voltar para casa às quatro ou cinco da manhã, e ainda me manter mais duas horas conversando, descrevendo a noitada, como se fosse um jovem de vinte anos. Eu perguntava como ele podia suportar aquela vida social, se privar do silêncio, do repouso que tanto gostava, de seu trabalho solitário à luz do abajurzinho verde, para passar tanto tempo no meio do barulho, numa atmosfera cheia de micróbios, arriscando crises de asma. Ele respondia simplesmente: "É preciso, minha cara Céleste". Eu entendia que era por causa do livro: ele precisava ver as pessoas, observar o que faziam e diziam, para as descrever. (...) 
 
Empatia emocional
 
P. 77: Nessa época ele começou a me fazer falar da minha infância, da família, de meus pais. Especialmente da infância porque, ele me disse, é na infância que tudo começa, o paraíso ou o inferno’. Ele me fazia contar como eu subia em árvores, como passava as noites de inverno no campo, meus irmãos, minha mãe. Queria saber tudo sobre minha mãe e como tinham sido nossas relações afetivas. Quando veio aquele telegrama fatal me informando a morte dela, foi M. Proust quem me abraçou chorando para contar e nós dois choramos juntos. Ele queria que eu fosse logo para casa. Disse ele: Minha querida Céleste, eu compreendo sua dor, já passei por isso. Mesmo morta, é preciso que você reveja sua mãe. Quando voltei de casa, M. Proust me fez contar tudo como se passara e chorou comigo, emocionado. Ele se lembrava do passado. (...). 
 
P. 79: Hoje, quando minha memória cansada tenta lembrar todas essas noites mágicas, chego a ver M. Proust sentado na cama, eu de pé, como ficava, nunca me passava pela cabeça que poderia sentar no sofá. Lembro a luzinha do abajur verde, o sorriso de M. Proust, os olhos de uma tristeza inexplicável (...). Ele falava, e o tempo parava naquele quarto (...). 
 
Estímulo intelectual
 
P. 79-80: Ele me perguntava o que estava esperando para escrever um diário. Da primeira vez, eu estava naquela casa há quatro anos, teria o que contar. Pensei que M. Proust estivesse debochando de mim. Mas ele dizia, Não, Céleste, minha querida, falo sério. Ninguém me conhece verdadeiramente como você. Ninguém sabe como você o que faço, o que penso dos outros, o que digo na intimidade. Depois da minha morte,  seu diário será tão vendido quanto meus livros. Comece a escrever que eu corrijo. Nessa época, ele já falava em morrer, como se soubesse.
 
O amor correspondido
 
P. 82-3: Nas gavetas da cômoda do quarto de Proust havia fotos do passado, de mocinhas ingênuas como Antoinette Faure , filha do presidente da França, de Marie de Benardaky  (teria sido o primeiro amor de Proust, segundo biógrafos), Louisa de Mornand , mulheres de salonnières  como a condessa de Chevigné ¹, madame Strauss ¹¹ (grande amiga), Laure Hayman ¹², e muitas outras. (...)
No livro de Céleste ¹³ há um capítulo curioso que se chama "Os Outros Amores". Depois de tudo o que se escreveu sobre a juventude de Proust, que ele teria conhecido apenas decepções amorosas, e que isso o teria feito se voltar para o amor masculino, Céleste insiste em que contou a Gerges Belmont apenas o que sabia da vida do seu patrão, ‘O que vi ou o que compreendi. Não conto o que ouvi dizer’. O que teria ela a dizer sobre o outro lado da vida de Marcel Proust, o lado negro de casas de prostituição masculina? Quase nada, apenas desmentidos. Mas até que ponto Céleste poderia afirmar que é mentira? Proust era muito reservado e pudico para fazer confidências a uma empregada, ainda mais uma camponesa jovem, cheia de princípios religiosos, recatos, e sem cultura, apesar de inteligente. O que saberia ela sobre homossexualismo?

P. 83-6: Segundo André Gide, que escutou confissões de Proust, ele tinha vergonha de ser homossexual, mas sabia e admitia que era. 
Céleste nega a paixão de Proust pelo motorista Alfred Agostinelli, que teria sido modelo para "Albertine" *, ainda que o escritor tenha falado longamente da angústia que sentiu com a morte do jovem, num desastre de avião em 1914, e da vontade que ele próprio teve de morrer. Para o bom entendedor, isso foi suficiente. Mas Céleste insiste na sensibilidade exagerada de seu patrão, no horror que tinha de ver alguém muito querido morrer. 
E que história é essa de jovens frequentando nossa casa?, pergunta Céleste. Eu teria sabido, eu os teria visto. Só eu tinha a chave da porta. Se entrassem com M. Proust, eu os teria escutado, tenho orelhas finas. (...) 
Falou-se muito nos secretários de M. Proust, sempre jovens secretários. Não sei explicar essa parte. Acho que era porque tinha respeito pelas mulheres. Seu pudor de doente, sempre na cama. Os secretários vinham datilografar os textos dos livros e faziam este trabalho, é tudo que sei. Eu os escutava, vinha ao quarto servir chá. (...)
Falou-se mais de rapazes do que de mulheres na vida íntima de Proust, Agostinelli, motorista de táxi da mesma companhia de Odilon, passou a secretário de Proust, depois partiu para a Côte d'Azur a pedido de sua mulher, Anna; um ano após desapareceu no mar o avião que pilotava. É tudo o que Céleste sabe. O que foi explorado em torno deste assunto ela considera "literatura barata, sensacionalista", assim como a história da amizade de Proust com Albert Le Cuziat, que mantinha a famosa casa plaisirs pour hommes. (...)
E por que ia frequentemente a uma casa que o enojava?
Ele não ia sempre, foi lá algumas vezes. Precisava ir, ele me disse, para descrever personalidades e momentos em seus livros. M. Proust me dava todos os nomes de pessoas ilustres que frequentavam essa casa, os gostos extravagantes que tinham, gente de política, da mais importante do país, ministros, etc. Le Cuziat fornecia a M. Proust todos os detalhes dos vícios de cada um; eu ficava sabendo quando ele chegava em casa, com um olhar de tristeza, que ele havia estado naquele lugar. Posso assegurar que M. Proust não frequentava a tal casa. Eu teria sabido, ou Odilon, que o acompanhava, teria me contado. O que me revolta são os fatos escabrosos que contaram sobre M. Proust em vários livros, tendo como quadro a casa da rue de l'Arcade. Histórias de ratos transpassados com alfinetes, cenas de flagelaçao, orgias sádicas, e que M. Proust teria mostrado as fotos da mãe dele para fazer rir os piores frequentadores desse horror. É uma mostruosidade, diz Céleste.
As fotos da família eram guardadas com o maior carinho nas gavetas do quarto de M. Proust e nunca saíam de lá. (...) Uma vez me recusei a acreditar que coisas tão repugnantes pudessem acontecer na casa de Le Cuziat. Perguntei se M. Proust não estaria inventando para ver minha reação, para saber o que as pessoas pensariam. Ele jurou que tudo era verdade. Mas como o senhor pode assistir a coisas assim?’, indagou Céleste.
Céleste garante que Proust só ia à casa de Le Cuziat ao reinado dos garçons bouchers porque precisava das cenas para seus livros. Era o que ele contava a ela quando chegava. (...)
É preciso ter vivido ao lado de monsieur Proust todos esses anos para medir a paixão dele pelos personagens que criava, por sua obra, tudo o que habitava dentro dele, e que finalmente o consumiu, disse Céleste, sem se deixar abater com a importância dos nomes ilustres que a desmentiam. No correr dos anos aprendi que esses personagens não o largavam, estavam sempre ao lado dele, que a única meta da vida de M. Proust, o livro *, estava constantemente presente em tudo que ele fazia. Quando digo livro, no singular, é porque ele, mesmo que estivesse em tal capítulo, tal parte, particularmente, guardava presente a totalidade da obra. M. Proust me disse isso várias vezes. Só  entendi quando li, muitos anos depois. Tudo se liga em sua obra, é um todo, e a vida de M. Proust se fundia no todo, os personagens viviam sem sua cabeça, era por causa deles que M. Proust saía de casa, para descrever aquele mundo que ia se acabando. Vivi ao lado dele no período mais produtivo de sua vida, sem dúvida’, concluiu Céleste.
 
P. 95: Impossível fazer Céleste acreditar que esteve apaixonada por Marcel Proust, esta é a verdade. Ela conta que certa vez perguntou a Proust porque ele não se casara. A resposta foi um divertido, mas em tom sério: "Porque não encontrei uma esposa como você, minha Céleste." De outra vez, Proust disse que para ele Céleste ocupava o lugar de mãe. Ela também acha que o considerava e o tratava como um filho favorito. No entanto aceitava dele a liderança de marido, como se usava na época, o senhor absoluto da casa, a força e a sabedoria. Mas Céleste não admitirá nunca que Marcel Proust foi um grande amor platônico. Diante das especulações, ela abana a cabeça, severa, acrescentando: "Ah, os jornalistas. Só Deus sabe o que vocês escrevem com o que a gente diz. M. Proust não gostava de jornalistas. E tinha toda a razão."

A morte como ideia fixa
 
P. 89-90: Proust já pensava na morte nesses últimos anos. Céleste acha que isso começou quando teve que deixar a casa dos pais, depois da morte da mãe, e piorou com a saída do velho apartamento no Boulevard Haussmann. Foi uma espécie de déracinement que o machucou profundamente. Proust passou por dois outros apartamentos, até achar o da rue Hamelin, onde terminou seus dias. Mudar de casa, arrancsar as coisas pela raiz, perder pessoas que amava, perder aquele mundo antes da guerra, a época dourada da camélia na lapela. Essas pequenas perdas eram como pedaços dele que iam embora, devagar. Proust sabia que estava indo também, pela raiz, aos poucos. (...)
Ao mesmo tempo, Proust falava do fim da vida, é o que Céleste se lembrava, palavra por palavra:
"A morte me persegue, Céleste, está aqui, nos meus calcanhares."
Foi um dia de festa quando Proust chamou Céleste para mostrar-lhe que tinha escrito a palavra fim no manuscrito. Dezenas de pedacinhos de papel enchiam as cobertas.
Ele parecia uma criança feliz. Me disse: Veja, tenho uma grande notícia para você: esta noite escrevi a palavra fim. Agora já posso morrer.
"Ele não estava triste. Nem alegre. Nos olhos, uma espécie de felicidade misteriosa, um jeito de quem sabe das coisas e não pode contar."

P. 90-1: Sobre os três meses que precederam a morte de M. Proust, inventaram todos os romances possíveis. (...) Eu estaava ao lado dele e posso jurar que foi assim: Porque o aquecimento e a lareira não podiam ser ligados para não expelirem poeira, o quarto de Proust ficava sempre gelado. Foi por causa desse frio no qual ele trabalhava horas e horas, imóvel na cama, cheio de cobertores e casaquinhos de tricô, bolsas de água quente, que, no outono de 1922, apanhou a gripe fatal.  As crises de asma redobraram, ele respirava mal e não se deixava cuidar. Teve pneumonia e abscesso no pulmão. Mas continuou a trabalhar, se recusando a comer. Só tomava café com leite, às vezes.

P. 91-2: Nessa noite de 17 para 18 de novembro monsieur Proust me chamou e pediu que me sentasse a seu lado para ajudá-lo. Não conseguia escrever mais, ia me ditar alguns trechos. E escreveu até as três e meia, lembro muito bem os ponteiros do relógio enquanto M. Proust enchia os cadernos com sua letrinha fina, já tremida e desigual. (...) Me fez prometer várias vezes que eu colaria as tiras de papel extra das correções nos lugares certos, que não deixaria ninguém lhe dar injeções quando ele não tivesse mais forças para se defender. (...)
De manhã cedo, eram 8 horas quando voltei ao quarto e M. Proust me disse fracamente: Céleste, estou vendo uma mulher enorme, gorda, imensa, toda de preto, horrível. Aqui dentro do quarto. Deixe a lâmpada de cabeceira acesa, quero vê-la melhor." (...) Cada vez que M. Proust me falava da morte dizia que não tinha medo. Aliás, o mais terrível dessa agonia é que até o último momento ele guardou os sentidos, a lucidez. Não só ele se via morrer, mas se olhava morrer. E ainda assim encontrava forças para sorrir e falar, como se nada fosse.
Às quatro e meia da tarde a agonia acabou. (...) Eu tombava de cansaço e de dor, mas não podia acreditar. Ele se deixava morrer tão nobremente, sem tremer, sem gritar, sem que a luz da vida tivesse deixado seus olhos, que nos fixaram até o fim e ficaram abertos. Ele nunca disse "mamãe" antes de morrer, como inventaram nas biografias, sem dúvida pelo prazer de fazerem literatura. Apagou-se docemente, nos olhando. Foi o irmão quem fechou-lhe os olhos. Eu estava paralisada de dor.

P. 93: Depois do enterro, Céleste e Marie Albaret continuaram no apartamento durante mais seis meses. Céleste confessa que várias vezes desejou morrer, sumir dali.
Até que um dia aconteceu uma coisa extraordinária. Eu tinha descido para terminar os arranjos de nossa partida daquela casa tão triste quando vi a vitrine da livraria próxima, onde eu tanto ia fazer compras. Ela brilhava de luz. E entre os livros vi expostas as obras de M. Proust, três a três. Era como naquela página do livro quando ele descreve a morte do romancista Bergotte ¹. Veja o trecho:
‘Enterraram-no. Mas à noite do funeral, nas vitrines iluminadas, os livros dispostos, três a três, velavam como anjos de asas sorridentes, e pareciam, para aquele que não estava mais aqui, um símbolo de ressurreição.
Para mim M. Proust revivia também.
Na pequena casa branca as duas courrières ¹ vivem dessas lembranças. Nunca mais nada de tão extraordinário lhes aconteceu.
‘Fui me retirando aos poucos para dentro da memória’, diz Céleste. ‘É lá que eu vivo.
 
 
III. NOTAS EXPLICATIVAS
 
 
¹ Citação do título de um dos famosos poemas de As Flores do Mal por Charles Baudelaire. Uma tradução plausível é "ama bondosa".
 
² Trata-se do livro Monsieur Proust: Céleste Albaret, souvenirs recueillis par Georges Belmont (1973) ou, em português, Senhor Proust: Céleste Albaret, Lembranças Recolhidas por Georges Belmont (2008), Osasco: Ed. Novo Mundo, tradução de Cordélia Magalhães, 446 p.
Pouco antes, o Ministro Jean-Philippe Lecat a havia condecorado com a Ordem das Artes e das Letras, no grau de comendadora. Isso porque essa mulher discreta havia se tornado repentinamente famosa desde que, em 1973, concordou em se abrir com Georges Belmont e lhe contar, em detalhes, os nove anos em que, como governanta, esteve dia e noite, até a morte dele, a serviço do autor de "Em Busca do Tempo Perdido".

³ No Caminho de Swann (1913) é o primeiro dos sete romances de que se compõe Em Busca do Tempo Perdido, o monumento literário proustiano de cunho autobiográfico. No Caminho de Swann relata a infância do narrador (Marcel) e mostra a forte relação afetiva que ele mantém com sua mãe. A casa da família possui duas saídas, uma para o caminho de Swann, outra para o caminho de Guermantes. O narrador fala do amor possessivo de seu vizinho burguês Charles Swann por Odette de Crécy. E também revela a fascinação que sente pela filha desse casal, a jovem Gilberte, com quem brinca nos Champs-Elysées.
 
Homem de elevada posição social. 

A elegante Cabourg inspirou a Balbec proustiana de Em Busca do Tempo Perdido, um símbolo inequívoco da Belle Époque. A Balbec proustiana, que na verdade se situa na Normandia, é uma cidade fictícia, cujo paralelo no mundo real é Cabourg, essa jóia da Belle Époque.

Quando adolescente, Marcel Proust preencheu um questionário que lhe foi dado por sua amiga Antoinette Faure, filha de Félix Faure, futuro presidente da França, e que entrou para a história como o "questionário de Proust". O manuscrito foi encontrado em 1924 e, desde então, popularizou-se como uma forma de entrevista-padrão sobre auto-conhecimento, já que as perguntas formam um espectro completo da personalidade, aspirações pessoais e sensibilidade.
 
Marie de Benadarky (1874-1949) se tornou célebre por ter sido um amor de infância de Marcel Proust e o provável modelo  da personagem Gilberte, filha de Charles Swann e Odette de Crécy de No Caminho de Swann, 1º livro da obra Em Busca do Tempo Perdido.

Louisa de Mornand (1884-1963) foi uma atriz de teatro e do cinema francês da primeira metade do século XX. Era amiga de Marcel Proust, ao ponto de inspirar-lhe a personagem de Rachel in Em Busca do Tempo Perdido.

Salonnières eram mulheres que organizavam os salões, reuniões culturais e intelectuais. Eram as anfitriãs influentes que definiam o tom, escolhi am os temas, eram facilitadoras do diálogo e selecionavam os convidados para discussões sobre filosofia, literatura e arte, dentre outros assuntos.

¹ Laure Marie Charlotte de Sade, por seu matrimônio condessa de Chevigné (1859-1936), é considerada o principal molde na construção da personagem Oriane, a espirituosa Duquesa de Guermantes de Em Busca do Tempo Perdido, um dos monumentos do romance ocidental. De fins do século XIX até 1914, abriu inúmeros salões que eram frequentados por inúmeras personalidades do momento.
 
¹¹ Madame Strauss (1849-1926), filha do compositor francês Halevy, foi esposa do compositor Georges Bizet e mãe de um dos colegas de Proust quando de sua passagem pelo Liceu Condorcet. Em 1908, ela, já viúva, presenteou M. Proust com cinco cadernetas para anotações, adquiridas na chique loja inglesa Kirby, Beard & Cia. em Paris. Em quatro delas, Proust deixou os primeiros esboços de Em Busca do Tempo Perdido. As quatro, que estão em posse da Biblioteca Nacional da França, juntamente com os cadernos de rascunho e versão final, constituem o melhor testemunho dos primeiros passos hesitantes da obra, em seguida, de sua ampliação. Essas cadernetas acompanharam Proust na criação da sua obra prima. O livro "Carnets" (2002) publicado pela Gallimard reúne todas essas anotações feitas entre 1908 a 1917. Contém notas tanto preparatórias quanto complementares para o conjunto do romance em construção. Florence Callu e Antoine Compagnon dão uma transcrição integral e anotada delas, ao mesmo tempo fiel e legível, que permitirá ao amante da obra prima descobrir o ateliê do romancista.

¹² Laure Hayman (1851-1940) foi uma escultora francesa, salonnière e semimundana. No romance Em Busca do Tempo Perdido, a personagem Odette de Crécy teria sido inspirada em Hayman. Afirma-se também que ela inspirou Proust a escrever Mademoiselle Sacripant.

¹³ Céleste refere-se ao livro Senhor Proust: Céleste Albaret, Lembranças Recolhidas por Georges Belmont (1973), conforme tradução em português.

¹ Bergotte é um renomado escritor fictício que é admirado profundamente pelo narrador de Em Busca do Tempo Perdido, e sua morte é um momento icônico do romance, representando a ressurreição através de suas obras, que, mesmo após a morte de seu autor, continuam a existir e a inspirar o narrador, simbolizando que o artista e sua obra podem transcender a existência física. A cena da morte de Bergotte, enquanto ele viaja para ver o quadro "Vista de Delft" de Vermeer, é uma das passagens mais famosas da obra, explorando temas como a arte, a vida e a morte. 
É provável que os escritores Anatole France e Paul Bourget tenham inspirado o personagem.
 
¹Trad. estafetas ou carteiras, mulheres que entregam correspondências.


IV. BIBLIOGRAFIA


ARCHIVE.ORG: Monsieur Proust de Céleste Albarret
 
CARVALHO, Paulo César de:  Quarto por quarto, revista SIBILA de poesia e cultura, ano 24, 30/12/2020 
 
O EXPLORADORCeleste Albaret, secretária; ajudou Proust nos últimos anos

PROUST, Marcel: SOBRE A LEITURA, Porto Alegre: L&PM Editora, volume 1228 da COLEÇÃO 96 PÁGINAS, pp. 57-95

RADIOFRANCE: Céleste Albaret, indispensable gouvernante de Marcel Proust
 
WERNECK, Mariza: A governanta fiel
 
WIKIPEDIA: verbete Marcel Proust
 
 
___________: verbete Céleste Albaret 

–––––––––––: verbete Em Busca do Tempo Perdido

domingo, 23 de novembro de 2025

SOBRE A LEITURA

Por MARCEL PROUST *
Transcrevemos, com a devida vênia da L&PM Editora, trecho do volume 1228 da COLEÇÃO 96 PÁGINAS, intitulado SOBRE A LEITURA, traduzido por Júlia da Rosa Simões e publicado em 2016, pp. 05-22.
Introdução, notas e bibliografia por Francisco José dos Santos Braga.
Marcel Proust (✰ Auteuil, 1871 ✞ Paris, 1922)

I. INTRODUÇÃO
 
 
Marcel Proust (1871-1922) foi um escritor francês, considerado um dos maiores escritores do século XX. Sua obra mais famosa é "Em Busca do Tempo Perdido", uma série de sete romances que conta a história do narrador Marcel e sua busca pelo sentido da vida. Proust também escreveu ensaios, artigos e contos. 
SOBRE A LEITURA foi publicado originalmente como o Prefácio que Proust escreveu em 1905, para a sua tradução de Sésame et les Lys, de John Ruskin. A observação que um editor francês fez na ocasião em que publicou esse texto ainda é válida atualmente para a edição brasileira: “essas páginas ultrapassam tanto a obra que introduzem, propõem um elogio tão belo da leitura e preparam com tanta felicidade Em busca do tempo perdido, que quisemos, livrando-as da sua condição de Prefácio,  publicá-las na sua plenitude.
Em “Sobre a Leitura”, Marcel Proust nos convida a refletir sobre o ato de ler e sua importância em nossas vidas. O livro aborda temas como a escolha dos livros, a interpretação dos textos e o papel da leitura na formação do indivíduo. 
Aqui se apresenta a oportunidade de revelar um dos mais famosos conceitos proustianos: o da “memória involuntária”, ou seja, um resgate súbito e completo de uma sensação do passado, acionado por um estímulo sensorial presente. Sob esse conceito, emerge um fragmento intacto, vivo e completo do passado, acionado de forma acidental por uma sensação presente — um sabor, um cheiro, um som. 
O estilo proustiano se caracteriza por ser inconfundível: uma sintaxe da alma. A sua leitura é uma experiência sensorial e intelectual única, em grande parte devido a seu estilo muito próprio.  Sua linguagem é extremamente metafórica e poética, enquanto suas frases longas e sinuosas são sua marca registrada, ocupando às vezes uma página inteira, cheia de orações subordinadas, digressões, em movimentos não-lineares, mas associativos, saltando de uma ideia para outra, de uma lembrança para uma reflexão. Conforme Salomao, a frase proustiana é uma tentativa de capturar a totalidade de um instante de consciência.
Proust sustenta que a escolha dos livros que lemos é fundamental para o nosso desenvolvimento intelectual e emocional. Ele defende que devemos ler livros que nos desafiem e nos façam pensar, e não apenas aqueles que nos entretêm. Também é importante ler livros de diferentes gêneros e autores, para ampliar nossa visão de mundo. 
Proust também discute a importância da interpretação dos textos. Ele afirma que não existe uma única interpretação correta de um texto, e que cada leitor pode encontrar significados diferentes na mesma obra. O importante é ler com atenção e refletir sobre o que estamos lendo, para que possamos extrair o máximo de proveito da leitura. 
Proust acredita que a leitura é essencial para a formação do indivíduo. Afirma que os livros nos ajudam a desenvolver nossa inteligência, nossa imaginação e nossa sensibilidade. A leitura também nos ajuda a entender o mundo ao nosso redor e a nos tornar pessoas mais críticas e reflexivas. 
Finalmente, neste texto Proust nos oferece uma visão única e apaixonada do ato de ler, e nos mostra como a leitura pode enriquecer nossas vidas.

 
 
II. TEXTO introdutório de "Sobre a Leitura"
 
 
TALVEZ NÃO HAJA, EM NOSSA INFÂNCIA, dias que tenhamos vivido mais plenamente do que aqueles que acreditamos ter perdido sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido. Tudo aquilo que, parecia-nos, preenchia-os para os outros e que afastávamos como um obstáculo vulgar a um prazer divino  o jogo para o qual um amigo vinha nos buscar no trecho mais interessante, a abelha ou o raio de sol incômodos que nos forçavam a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar, o lanche que nos haviam feito levar e que deixávamos ao nosso lado no banco, intocado, enquanto acima de nossa cabeça o sol perdia a intensidade no céu azul, o jantar para o qual era preciso voltar e durante o qual só pensávamos em subir para terminar, assim que possível, o capítulo interrompido  tudo isso, que a leitura deveria ter-nos permitido perceber apenas como uma inconveniência, ela pelo contrário gravava em nós como uma lembrança tão doce (tão mais preciosa, segundo nosso julgamento atual, do que aquilo que líamos então com tanto amor) que, se ainda hoje nos acontece de folhear esses livros de antigamente, fazemo-lo como os únicos registros que guardamos dos dias passados e com a esperança de vermos refletidas em suas páginas as moradas e lagunas que não existem mais
 
Quem não se lembra, como eu, das leituras feitas na época das férias, sucessivamente tranquilas e invioláveis o suficiente para poder abrigá-las. De manhã, voltando do parque, quando todos tinham ido "dar um passeio", eu me insinuava na sala de jantar onde, até a ainda distante hora do almoço, ninguém entraria além da velha Félicie, relativamente silenciosa, e onde eu teria como únicos companheiros, muito respeitosos da leitura, os pratos pintados pregados na parede, o calendário com a folha da véspera recentemente arrancada, o pêndulo e o fogo, que falam sem exigir uma resposta e cujos suaves discursos vazios de sentido não vêm, como as palavras dos homens, substituir o dos vocábulos lidos. Instalava-me numa cadeira perto do pequeno fogo de lenha, sobre o qual, durante o almoço, o tio madrugador e jardineiro diria: "Não é prejudicial! Suporta-se muito bem um pouco de fogo; asseguro-lhes que às seis horas fazia bastante frio na horta. E dizer que em oito dias será Páscoa!". Antes do almoço que, hélas! ¹, colocaria um fim à leitura, ainda havia duas longas horas. De tempos em tempos, ouvia-se o barulho da bomba de onde a água correria, que fazia erguer os olhos para ela e contemplá-la através da janela fechada, ali, bem perto, na única aleia do jardim que delimitava com tijolos e faianças em meia-lua os canteiros de amores-perfeitos: amores-perfeitos que pareciam colhidos sob aqueles céus belíssimos, céus versicolores e como que refletindo os vitrais da igreja, às vezes vistos por entre os telhados da aldeia, céus tristes que surgiam antes das tempestades, ou depois, bem tarde, quando o dia chegava ao fim. Infelizmente, a cozinheira vinha com muita antecedência colocar a mesa; se ainda a arrumasse sem falar! Mas ela achava preciso dizer: "Você não está bem assim; e se eu aproximasse uma mesa?" E apenas para responder "Não, muito obrigado" era preciso interromper a leitura e trazer de longe a voz que, por dentro dos lábios, repetia sem som, correndo, todas as palavras que os olhos haviam lido; era preciso interrompê-la, fazê-la sair e, para dizer de maneira adequada um "Não, muito obrigado", dar-lhe uma aparência de vida comum, um tom de resposta, que haviam sido perdidos. A hora passava; com frequência, muito antes do almoço, começavam a chegar à sala de jantar aqueles que, cansados, haviam encurtado a caminhada, aqueles que haviam "passado por Méséglise ²", ou aqueles que não tinham saído naquela manhã, "tendo de escrever". Por mais que dissessem "Não quero incomodar", logo começavam a se aproximar do fogo, a consultar o relógio, a declarar que o almoço não seria mal recebido. Cercavam com particular deferência aquele ou aquela que havia "ficado para escrever" e diziam-lhe "Então manteve sua pequena correspondência em dia" com um sorriso em que havia respeito, mistério, malícia e precaução, como se essa "pequena correspondência" fosse ao mesmo tempo um segredo de estado, uma prerrogativa, uma sorte e uma indisposição. Alguns, sem mais delongas, sentavam-se logo à mesa em seus lugares. Aquilo era um aborrecimento, pois constituiria um mau exemplo para os recém-chegados, faria crer que já era meio-dia, e meus pais pronunciariam cedo demais a frase fatal: "Agora, feche seu livro, vamos almoçar". Tudo estava pronto, os talheres todos postos sobre a toalha, em que a única coisa que faltava era aquilo que só era trazido ao fim da refeição, o aparelho de vidro em que o tio horticultor e cozinheiro fazia pessoalmente o café à mesa, tubular e complicado como um instrumento de física que exalasse um cheiro bom e do qual era tão agradável ver subir na campânula de vidro a súbita ebulição que depois deixava nas paredes embaçadas uma borra perfumada e escura; e também o creme e os morangos que o mesmo tio misturava, em proporções sempre idênticas, parando exatamente no rosa esperado, com a experiência de um colorista e a intuição de um gourmand. Como o almoço me parecia longo! Minha tia-avó apenas experimentava os pratos, para dar seu parecer com uma tranquilidade que tolerava, mas não admitia, desacordo. Para um romance, para versos, coisas que conhecia muito bem, invariavelmente se remetia, com uma humildade de mulher, ao parecer dos mais competentes. Ela considerava aquele o domínio flutuante do capricho, em que o gosto de uma única pessoa não pode fixar a verdade. Mas em coisas cujas regras e princípios lhe haviam sido ensinados pela mãe, na maneira de fazer certos pratos, de tocar as sonatas de Beethoven e de receber com cortesia, ela tinha certeza de ter uma noção exata da perfeição e de discernir se os outros dela se aproximavam mais ou menos. Nas três coisas, aliás, a perfeição era quase a mesma: era uma espécie de simplicidade nos modos, de sobriedade e de charme. Ela desaprovava horrorizada que colocassem especiarias nos pratos que não exigiam nenhuma, que tocassem com afetação e excesso de pedais, que ao "receber" saíssem de uma naturalidade perfeita e falassem de si com exagero. Do primeiro bocado às primeiras notas, passando por um simples bilhete, ela tinha a pretensão de saber se estava lidando com uma boa cozinheira, com um verdadeiro músico, com uma mulher bem-educada. “Ela pode ter muito mais dedo do que eu, mas falta-lhe bom gosto quando toca com tanta ênfase esse andante tão simples.” “Pode ser uma mulher brilhante e cheia de qualidades, mas é uma falta de tato falar de si nessas circunstâncias.” “Pode ser uma cozinheira muito hábil, mas não sabe fazer o bife com batatas.” O bife com batatas! Peça eliminatória ideal, difícil por sua própria simplicidade, espécie de Sonata patética da cozinha, equivalente gastronômica daquilo que representa, na vida social, a visita da senhora que vem pedir informações sobre um criado e que, num ato tão simples, pode muito bem fazer prova, ou não, de tato e educação. Meu avô tinha tanto amor-próprio que preferia dizer que todos os pratos estavam bem-feitos e conhecia muito pouco de culinária para alguma vez saber quando estavam malfeitos. Ele admitia que este às vezes poderia ser o caso, muito raramente, aliás, mas apenas por pura obra do acaso. As críticas sempre justificadas de minha tia-avó, dando a entender, pelo contrário, que a cozinheira não soubera fazer tal prato, nunca deixavam de parecer particularmente intoleráveis a meu avô. Muitas vezes, para evitar discussões com ele, minha tia-avó, depois de provar algo com a ponta dos lábios, não dava seu parecer, o que, aliás, nos fazia saber imediatamente que este era desfavorável. Ela se calava, porém líamos em seus olhos doces uma inabalável e refletida desaprovação que tinha o dom de deixar meu avô furioso. Ele lhe rogava ironicamente que desse seu parecer, impacientava-se com o seu silêncio, pressionava-a com perguntas, exaltava-se, mas víamos que ela preferiria ser conduzida ao martírio a confessar a certeza de meu avô: que a sobremesa não estava doce demais. 
 
Depois do almoço, minha leitura era retomada sem demora; especialmente quando o dia estava um pouco quente, todos subiam para "retirar-se para seus quartos", o que me permitia, pela escadinha de degraus baixos, chegar logo ao meu, no único andar tão baixo que, sentado à janela, bastaria dar um pulo de criança para encontrar-me na rua. Eu fechava minha janela sem conseguir esquivar-me da saudação do armeiro da casa da frente, que, sob o pretexto de baixar suas marquises, vinha todos os dias depois do almoço fumar seu cigarro na frente de sua porta e dar bom-dia aos passantes, que, às vezes, paravam para conversar. As teorias de William Morris, que foram aplicadas com tanta assiduidade por Maple e pelos decoradores ingleses, estabelecem que um quarto só é bonito quando contém exclusivamente coisas que nos sejam úteis e que toda coisa útil, mesmo um simples prego, não deve ser dissimulada, mas tornada aparente. Acima da cama com dossel de cobre e inteiramente descoberto, nas paredes nuas desses quartos higiênicos, algumas reproduções de obras-primas. A julgá-lo segundo os princípios dessa estética, meu quarto não era nada belo, pois estava cheio de coisas que não serviam para nada e que dissimulavam pudicamente, chegando a tornar seu uso extremamente difícil, as que serviam para alguma coisa. No entanto, era justamente dessas coisas que não estavam ali para o meu conforto, mas que pareciam ter sido trazidas por prazer, que a meu ver meu quarto tirava sua beleza. As altas cortinas brancas que resguardavam dos olhares a cama posicionada como ao fundo de um santuário; as camadas de acolchoados de marceline, mantas floridas, colchas bordadas, fronhas de cambraia, sob as quais a luz desaparecia, como um altar durante o mês de Maria sob as grinaldas e as flores e que, à noite, para poder me deitar, eu colocava por precaução numa poltrona na qual elas consentiam passar a noite; ao lado da cama, a trindade do copo com desenhos azuis, do açucareiro idêntico e da garrafa (sempre vazia a partir do dia seguinte ao de minha chegada, por ordens de minha tia, que temia que eu a "espalhasse"), espécies de instrumentos de culto  quase tão sagrados quanto o precioso licor de flor de laranjeira colocado perto deles numa ampola de vidro  que eu não teria acreditado mais permitido profanar, nem possível empregar para meu uso pessoal, do que cibórios consagrados, mas que eu considerava longamente antes de me despir, temendo derrubá-los com um movimento em falso; as pequenas estolas bordadas de crochê que cobriam o encosto das poltronas com um manto de rosas brancas que não deviam deixar de ter espinhos, pois, sempre que eu acabava de ler e queria me levantar, percebia que tinha ficado preso a elas; a campânula de vidro sob a qual, isolado dos contatos grosseiros, o pêndulo tiquetaqueava privadamente para conchas vindas de longe e para uma velha flor sentimental, mas tão pesada para levantar que, quando o pêndulo parava, ninguém, exceto o relojoeiro, cometeria a imprudência de tentar dar-lhe corda; a toalha branca de renda guipir que, colocada como uma capa de altar sobre a cômoda ornada de dois vasos, uma imagem do Salvador e um ramo bento, a fazia parecer com a Mesa Sagrada (que um genuflexório, guardado ali todos os dias, depois que se tinha "acabado o quarto", completava a evocação), mas cujos fiapos sempre presos nas frinchas das gavetas travavam tão completamente o movimento destas que eu nunca conseguia pegar um lenço sem derrubar de uma só vez a imagem do Salvador, os vasos sagrados e o ramo bento, e sem eu mesmo cambalear segurando-me ao genuflexório; por fim, a tripla superposição de pequenas cortinas de burel, grandes cortinas de musselina e enormes cortinas de fustão, sempre sorridentes em sua brancura de pilriteiro, geralmente ensolarada, mas no fundo bastante irritantes em seu desalinho e na teimosia de brincar em torno dos varões paralelos de madeira e a se enroscarem umas nas outras e todas na janela assim que eu queria abri-la ou fechá-la, uma estando sempre ponta, quando eu conseguia soltar a outra, a vir logo tomar seu lugar nas junções tão perfeitamente tapadas por elas quanto por uma moita de pilriteiro de verdade ou por ninhos de andorinha que teriam tido o capricho de instalar-se ali, de modo que essa operação, tão simples na aparência, de abrir ou fechar minha janela, nunca era vencida por mim sem o auxílio de alguém da casa; todas essas coisas, que, além de não poderem responder a nenhuma de minhas necessidades, criavam inclusive um entrave, aliás pequeno, à sua satisfação, que evidentemente nunca haviam sido colocadas ali para a serventia de alguém, povoavam meu quarto de pensamentos de certo modo pessoais, com o ar de predileção, de terem escolhido viver ali e de gostarem, que têm muitas vezes, numa clareira, as árvores, e na margem dos caminhos ou em velhos muros, as flores. Elas o enchiam de uma vida silenciosa e diversa, de um mistério no qual eu me via ao mesmo tempo perdido e enfeitiçado; elas faziam daquele quarto uma espécie de capela onde o sol  ao atravessar os pequenos vidros vermelhos que meu tio havia intercalado no alto das janelas  salpicava as paredes, depois de rosar o pilriteiro das cortinas, com cores tão estranhas como se a pequena capela tivesse sido encerrada dentro de uma grande catedral com vitrais; e onde o barulho dos sinos chegava tão retumbante, devido à proximidade de nossa casa com a igreja, à qual, além disso, nos grandes festejos, os grandes oratórios nos ligavam por um caminho de flores, que eu podia imaginar que eram soados em nosso telhado, logo acima da janela de onde muitas vezes eu saudava o pároco com seu breviário, minha tia voltando das vésperas ou o menino do coro que nos trazia pão consagrado. Quanto à fotografia de Brown da Primavera de Boticelli, ou ao molde da Mulher desconhecida do museu de Lille, que, nas paredes e sobre a lareira dos quartos de Maple, são a parte concedida por William Morris à beleza inútil, devo confessar que haviam sido substituídos, em meu quarto, por uma espécie de gravura representando o príncipe Eugène, terrível e belo em seu dólmã, e que certa noite fiquei bastante espantado em descobri-lo, em meio a um grande estrépito de locomotivas e granizo, sempre terrível e belo, na porta de um bar de estação, onde servia de reclame a uma especialidade de biscoitos. Suspeito, hoje, que meu avô o tenha ganhado em outros tempos, como brinde, da munificência de um fabricante, antes de instalá-lo para sempre em meu quarto. Porém, naquela época eu não desconfiava de sua origem, que nem parecia histórica e misteriosa, e eu não imaginava que pudesse haver vários exemplares daquele que eu considerava como uma pessoa, como um morador permanente do quarto que eu apenas compartilhava e onde o encontrava todos os anos, sempre igual a si mesmo. Faz agora muito tempo que não vejo, e suponho que nunca mais o verei. Contudo, se tal sorte me acontecesse, creio que ele teria muito mais coisas a me dizer do que A primavera de Boticelli. Deixo às pessoas de gosto ornarem suas casas com reproduções das obras-primas que admiram e dispensarem suas memórias do cuidado de conservar delas uma imagem preciosa confiando-as a uma moldura de madeira esculpida. Deixo às pessoas de gosto fazerem de seus quartos a própria imagem de seus gostos e enchê-los somente de coisas que estes possam aprovar. De minha parte, só me sinto viver e pensar dentro de um quarto onde tudo é criação e linguagem de vidas profundamente diferentes da minha, de um gosto oposto ao meu, onde não encontro nada de meu pensamento consciente, onde minha imaginação se exalta sentindo-se mergulhada no âmago do não-eu; só me sinto feliz colocando os pés  na avenida da estação, no porto, ou na praça da igreja  num desses palacetes de província de longos corredores frios onde o vento de fora luta com sucesso contra os esforços do aquecedor, onde o mapa geográfico detalhado do distrito ainda é o único ornamento das paredes, onde cada ruído serve apenas para fazer o silêncio aparecer ao ser perturbado, onde os quartos encerram um cheiro de guardado que o ar da rua vem purificar, mas não apaga, e que as narinas aspiram cem vezes para levá-lo à imaginação, que se encanta, que o faz posar como um modelo para tentar recriá-lo dentro de si com tudo o que ele contém de pensamentos e recordação; onde, ao anoitecer, quando abrimos a porta de nosso quarto, temos a sensação de violar toda a vida que lá ficou dispersa, de pegá-la ousadamente pela mão quando, fechada a porta, avançamos até a mesa ou até a janela; de sentarmos numa espécie de livre promiscuidade com ela no canapé confeccionado pelo tapeceiro do lugarejo no que ele pensava ser o gosto de Paris; de em tudo tocar a nudez daquela vida com o intuito de perturbar a si mesmo por sua própria familiaridade, colocando aqui e ali suas coisas, fazendo o papel de senhor naquele quarto cheio até o teto com a alma dos outros e que conserva até mesmo na forma dos morilhos e no desenho das cortinas a marca de seus sonhos, caminhando de pés nus sobre seu tapete desconhecido; então, temos a sensação de fechar essa vida secreta conosco quando vamos, trêmulos, puxar o ferrolho; de conduzi-la até a cama e de finalmente dormir com ela nos grandes lençóis brancos que cobrem o rosto, enquanto, bem perto, a igreja soa para toda a cidade as horas de insônia dos moribundos e dos apaixonados. 
 
Eu não estava há muito tempo lendo em meu quarto e já era preciso ir ao parque, a um quilômetro da aldeia. No entanto, depois do jogo obrigatório, eu abreviava o fim do lanche trazido em cestos e distribuído às crianças na beira do rio, sobre a grama na qual o livro havia sido colocado ainda com proibição de ser retomado. Um pouco mais adiante, em certos recantos bastante desertos e misteriosos do parque, o rio cessava de ser um curso retilíneo e artificial, coberto de cisnes e bordejado por aleias com estátuas sorridentes, e, por instantes, saltitante de carpas, precipitava-se, passava acelerado a cerca do parque, voltava a ser um rio no sentido geográfico do termo  um rio que devia ter um nome  e não tardava a se espelhar (de fato o mesmo que entre as estátuas e sob os cisnes?) por pastagens nas quais dormiam bois e cujos botões-de-ouro ele afogava, espécies de planícies tornadas bastante pantanosas por ele e que, de um lado acompanhava a aldeia ao longo das torres informes, restos, dizia-se, do medievo, alcançavam do outro, por caminhos ascendentes de roseiras-bravas e pilriteiros, a "natureza" que se estendia ao infinito, por aldeias que tinham outros nomes, o desconhecido. Eu deixava os outros acabarem de lançar na parte baixa do parque, perto dos cisnes, e subia correndo pelo labirinto, até certa alameda onde me sentava, invisível, recostado às aveleiras podadas, vendo a plantação de aspargos, as fileiras de morangueiros, a cisterna que, em certos dias, os cavalos pisoteavam fazendo a água subir, a porta branca no alto que era o "fim do parque", e, para além dela, os campos de centáureas e papoulas. Naquela alameda, o silêncio era profundo, o risco de ser descoberto, quase nulo, a segurança tornava-se mais doce com os gritos afastados que, de baixo, chamavam-me em vão, às vezes até se aproximavam, subiam as primeiras escarpas, procurando por toda parte, depois voltavam, sem me encontrarem; depois, mais nenhum ruído; de tempos em tempos, apenas o som de ouro dos sinos que ao longe, para além das planícies, parecia repicar atrás do céu azul, poderia me avisar da hora que passava; no entanto, surpreendido por sua brandura e perturbado pelo silêncio mais profundo que o seguia, esvaziado dos últimos sons, eu nunca tinha certeza do número de badaladas. Não eram os sinos ribombantes que ouvíamos ao voltar para a aldeia  quando nos aproximávamos da igreja que, de perto, havia recuperado sua estatura elevada e rígida, erguendo no azul da noite seu teto de ardósia pontilhado de corvos  e que faziam o som espocar na praça "para os bens da terra". Eles chegavam ao fim do parque fracos e suaves, e não se dirigiam a mim, mas a todo o campo, a todas as aldeias, aos camponeses isolados em suas terras, não me forçavam absolutamente a erguer a cabeça, passavam por mim levando a hora às regiões distantes, sem me verem, sem me conhecerem e sem me perturbarem. 
 
Algumas vezes, em casa, na cama, muito depois do jantar, as últimas horas da noite também abrigavam minha leitura, mas isso somente nos dias em que eu havia chegado aos últimos capítulos de um livro, em que não havia muito mais a ser lido para chegar ao fim. Então, arriscando-me a ser punido se fosse descoberto e à insônia que, acabado o livro, talvez se prolongasse a noite toda, assim que meus pais iam se deitar, eu voltava a acender a minha vela; enquanto isso, na rua bem próxima, entre a casa do armeiro e o correio, banhadas de silêncio, havia um monte de estrelas no céu escuro e todavia azul, e à esquerda, na ruela elevada onde começava sinuosa sua ascensão proeminente, sentíamos a vigília, monstruosa e negra, da abside da igreja cujas esculturas não dormiam à noite, da igreja aldeã, porém histórica, morada mágica do Bom Deus, do pão consagrado, dos santos multicores e das damas dos castelos vizinhos que, nos dias de festa, faziam, quando atravessavam o mercado, as galinhas cacarejarem e as comadres olharem, vinham à missa "em suas parelhas", não deixando de comprarem na volta, na confeitaria da praça, logo depois de terem deixado a sombra do pórtico onde os fiéis, empurrando a porta giratória, espalhavam os rubis flutuantes da nave, alguns desses bolos em forma de torres, protegidos do sol por um toldo  manqués, saint-honorés et génoises ³, cujo aroma ocioso e açucarado continuo associando aos sinos da grande missa e à alegria dos domingos. 
 
Depois de lida a última página, o livro estava terminado. Era preciso interromper a corrida desvairada dos olhos e da voz que acompanhava sem som, parando apenas para tomar fôlego, com um suspiro profundo. Então, a fim de dar outros movimentos dirigidos aos tumultos há muito desencadeados dentro de mim para poderem se acalmar, eu me levantava, começava a caminhar ao longo da cama, os olhos ainda fixos em algum ponto que em vão seria procurado dentro do quarto ou na rua, pois situado a apenas uma distância de alma, uma dessas distâncias que não se medem em metros e léguas, como as outras, e que, aliás, é impossível confundir com elas quando se vê os olhos "distantes" daqueles que pensam "em outra coisa". Mas como? O livro era só aquilo? Os seres aos quais havíamos concedido mais atenção e carinho do que às pessoas reais, nem sempre ousando confessar a que ponto os amávamos, e quando nossos pais nos encontravam lendo e pareciam sorrir de nossa emoção, fechando o livro com uma indiferença afetada ou um tédio fingido; essas pessoas por quem tínhamos arquejado e soluçado, não as veríamos nunca mais, nunca mais saberíamos algo a seu respeito. Já havia algumas páginas que o autor, no cruel “Epílogo”, tivera o cuidado de "espaçá-los", com uma indiferença incrível para quem sabia com que interesse eles tinham sido seguidos passo a passo até ali. A ocupação de cada hora de suas vidas nos havia sido narrada. Depois, subitamente: "Vinte anos após esses acontecimentos, era possível encontrar nas ruas de Fougères um ancião ainda ereto, etc.". E o casamento cuja deliciosa possibilidade tínhamos sido levados a vislumbrar ao longo de dois volumes, assustando-nos e a seguir regozijando-nos com cada obstáculo apresentado e depois removido, era por uma frase acidental de um personagem secundário que descobríamos que havia sido celebrado, não sabíamos ao certo quando, naquele espantoso epílogo escrito, parecia-nos, do alto do céu, por uma pessoa indiferente a nossas paixões do momento e que tomara o lugar do autor. Teríamos desejado tanto que o livro continuasse e, se isso fosse impossível, ter outras informações sobre todos aqueles personagens, descobrir algo de suas vidas, empregar a nossa em coisas que não fosse de todo estranhas ao amor que nos tinham inspirado e cujo objeto de repente nos fazia falta, não ter amado em vão, por uma hora, criaturas que amanhã seriam apenas um nome numa página esquecida, num livro sem relação com a vida e sobre o valor do qual estávamos bastante enganados, visto que seu quinhão neste mundo, compreendíamos agora e nossos pais nos informavam por meio de uma frase desdenhosa, não era absolutamente como havíamos acreditado, conter o universo e a vida, mas ocupar um lugar bastante estreito na biblioteca do notário, entre as pompas sem prestígio do Journal de Modes illustré e da Géographie d'Eure-et-Loir... [...]
 

II. NOTAS EXPLICATIVAS

 
¹ Interjeição francesa que significa "ai de mim! ou infelizmente".

² Na sua obra "Em busca do tempo perdido", no primeiro volume intitulado "No Caminho de Swann", Proust fala de dois caminhos que atravessavam sua propriedade de Tansonville: primeiro, o caminho de Méséglise ou de Swann,  caminho dos pilriteiros cor-de-rosa, do cheiro dos lilases e das macieiras; segundo, o caminho de Guermantes, o do curso do rio La Vonne (note-se que rivière é feminino em francês) que atravessa a comuna Vivonne,  o das plantas aquáticas, dos mistérios, dos pensamentos elevados e sofisticados. Enquanto o de Méséglise ou de Swann é o caminho do amor e do erotismo, o de Guermantes é o da descoberta da vocação. É neste último, que se dará a primeira experiência do narrador ao descrever as impressões e sensações despertadas pelas torres de Martinville.
Os dois caminhos, tão diferentes para o narrador, "se comunicam imediatamente com o coração".

³ Modalidades de bolos, normalmente de massa folhada, decorados com glacês caramelizados e recheados com chantilly.
 

III. BIBLIOGRAFIA


BOTTON, Alain de: Como Proust pode mudar a sua vida, Rio de Janeiro: Rocco, 1999, 193 p.
 
PROUST, Marcel: SOBRE A LEITURA, Porto Alegre: L&PM Editora, volume 1228 da COLEÇÃO 96 PÁGINAS, 96 p.
 
SALOMAO: Marcel Proust: Resumo, Aula e Exercícios, Blog Seu Saber, post de 27 de julho de 2025.

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

EMÍLIO DE MENEZES

Por AMADEU AMARAL *

Artigo originalmente publicado em O Estado de São Paulo, edição de 22/06/1918, p. 10. ¹

Amadeu Amaral (✰ Capivari, 6/11/1875 ✞ São Paulo, 24/10/1929)

Amigos e admiradores de Emílio de Menezes, 
não podemos calar o nosso veemente protesto contra as palavras que foram proferidas pelo cidadão Joaquim Marra, em sessão da Câmara Municipal, a 15 do corrente, sobre o projeto que manda seja dado o nome daquele ilustre homem de letras a uma das ruas desta Capital. 
 
O referido cidadão permitiu-se externar conceitos e apreciações em torno desse justo projeto, com uma tal afetação de desprezo pela pessoa e pela obra do notável poeta brasileiro, e com tais assomos de zombaria cruel e de inexplicável rancor, que todos nós, e conosco todas as pessoas educadas e normais, nos sentimos, naturalmente, presas de sincero espanto. 
 
Tanto maior foi o nosso espanto, quanto o citado cidadão, para exibir o seu insultuoso desdém pelo morto, se estribou, declaradamente, na sua ignorância a respeito dos méritos de Emílio de Menezes. Só mesmo por ignorância se poderia negar ao nosso pranteado poeta o lugar de honra que ele conquistou entre os nomes mais brilhantes das últimas gerações literárias do país. 
 
Mas, se o cidadão vereador ignorava o valor de Emílio de Menezes,  o que bem se concebe, apesar de toda a imprensa nacional ter ensinado, nestes dias, quem era e o que era e o que valia o nosso poeta,  como então se atreveu a negar-lhe direito à pequenina homenagem proposta? Desde quando a ignorância adquiriu foros de fundamento válido aos nossos juízes e aos nossos atos? Desde quando ela passou a ser invocada, legitimamente, como razão de julgamento, como motivo de ação, como base de decisões, e sobretudo como estímulo à profanação de defuntos? 
 
Ignorando os merecimentos inegáveis e valiosíssimos de Emílio de Menezes, o sr. Marra não ignora, contudo, os defeitos e os deslizes atribuídos ao ilustre poeta. Nessa matéria, o vereador é sabido. A sua erudição, aí, parece que é completa. O edil conhece perfeitamente tudo quanto Emílio de Menezes "não" foi, tudo quanto ele "não" fez, tudo quanto ele "não" pretendeu. Tem arquivadas na memória todas as suas insuficiências. 
 
"Sabe" que ele nunca se bateu pelos oprimidos e pelos pequeninos,  como o sr. Marra se tem, apostolicamente, batido, através de lutas e sacrifícios tenazes... por si mesmo. "Sabe" que ele não era um homem virtuoso. "Sabe" que ele não era uma alma grande... O sr. Marra sabe tudo quanto é calúnia e infâmia atirada sobre o nome do ilustre compatriota morto há oito dias. 
 
Não temos a pretensão de elucidá-lo. À glória de Emílio de Menezes nada adianta que o sr. Marra modifique o seu juízo, como nada lhe adiantará que o seu nome fique ou não fique pregado a duas ou três esquinas de uma travessa. As injustiças que lhe forem feitas recairão inteiras, esmagadoramente, sobre aqueles que as praticarem. Há nomes que precisam de tabuletas para que se imortalizem  por alguns anos, assim como há celebridades que precisam de estátuas para que não morram segunda vez com pequeno intervalo. O nome de Emílio de Menezes, queiram ou não queiram, está inscrito na história da nossa literatura. 
 
A imagem moral do homem, essa também há de perdurar enquanto viver algum dos numerosos amigos que ele soube conquistar, da mesma forma que soube vergastar toda a imbecilidade e a malvadez em versos imperecíveis. 
 
Essas amizades, conquistou-as à força de qualidades poucos vulgares. Foi generoso e bom, simples e afetivo, e soube ser honesto, de tal maneira que, numa época em que é moda e recomendação refocilarem-se os homens na mais grosseira materialidade, tendo ele à sua disposição recursos inexauríveis para fazer dinheiro, preferiu desprezar altivamente a simpatia, o auxílio, as aclamações e a cumplicidade dos nulos e dos espertos, semeando despeitos e irritações que bem sabia quanto lhe custariam. 
 
O nosso único fim é lavrar um protesto contra as injúrias atiradas sobre o cadáver ainda quente do pobre poeta, numa iníqua, extemporânea e mesquinha manifestação de amor ao emplacamento da cidade, convertido à última hora  só para o homem de letras que nunca desfrutou poder ou riqueza,  numa espécie de canonização lenta, trabalhosa e difícil, em que a Câmara se converta em Santo Ofício e o sr. Marra em advogado do diabo. 
O nosso protesto aqui fica, e esperemos que fique por aqui. 
 
S. Paulo, 17 de junho de 1918. 
 
Amadeu Amaral 
Dr. Luiz Pereira Barreto 
Valente de Andrade 
Roberto Moreira 
Nestor Rangel Pestana 
Mario Guastini 
Adalgiso Pereira 
Oswald de Andrade 
Jairo de Góes 
J. M. de Toledo Malta 
Moacir de Toledo Piza 
Dagoberto Bittencourt 
Júlio de Mesquita Filho 
Antônio Mendonça 
Álvaro Ramos 
Francisco Mesquita 
Arnaldo Vieira de Carvalho Filho 
João Alberto Salles Filho 
A. Simões Pinto 
Venceslau Arco e Flexa 
Álvaro Freire 
A. M. Oliveira César 
A. Azevedo Ribeiro 
João Silveira 
Júlio Sales Júnior 
Cásper Líbero 
Aristeu Seixas 
Vicente Ráo 
Miguel Arco e Flexa 
Oduvaldo Viana 
Inácio da Costa Ferreira 
Edmundo Amaral 
Monteiro Lobato 
Gelásio Pimenta 
Lamartine F. Mendes 
Lourenço Filho 
Sud Menucci 
Jacomino Define 
Mário Pinto Serva 
Guilherme de Almeida 
Otávio de Lima Castro 
Vicente Ancona 
Jozino Viana 
Raul de Freitas 
José Maria Lisboa Júnior 
Oscar R. Tollens 
Rodrigo Soares Júnior 
J. M. Machado (Zema) 
Luís A. Fuzaro 
Heitor Gonçalves 
Nereu Rangel Pestana 
João Castaldi 
Ângelo de Sílvio 
Sebastião Soares de Faria 
Tito Lívio Brasil 
Ernani Braga
 
* Foi um poeta, folclorista, filólogo e ensaísta brasileiro. Autodidata, surpreendeu a todos por sua extraordinária erudição, num tempo em que não havia, em São Paulo, os estudos acadêmicos e os cursos especializados que se especializariam pouco depois. Dedicou-se paralelamente à poesia, aos estudos folclóricos e, sobretudo, à dialectologia. No Brasil, foi o primeiro a estudar cientificamente um dialeto regional. O Dialeto Caipira, publicado em 1920, escrito à luz da linguística, estuda o linguajar do caipira paulista da área do vale do rio Paraíba, analisando suas formas e esmiuçando-lhe sistematicamente o vocabulário. Esta obra é considerada como sua melhor contribuição às Letras. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras, tornando-se segundo ocupante da Cadeira 15, eleito em 7 de agosto de 1919, na sucessão de Olavo Bilac e recebido pelo Acadêmico Carlos Magalhães de Azeredo em 14 de novembro 1919.
 
 
II. NOTA EXPLICATIVA
 
¹ Este texto foi reproduzido por Raimundo de Menezes no seu livro Emílio de Menezes: O último boêmio (1ª edição, 1946), tendo sido antecedido pelo seguinte trecho:
“Em 22 de junho, "O Estado de S. Paulo", na seção "A Pedidos", estampava veemente protesto, assinado por figuras de destaque na sociedade paulistana, contra o discurso desrespeitoso de Joaquim Marra.
Ecoava de maneira desfavorável, no seio de todas as camadas sociais, a oração infeliz do vereador, que, não se contendo em seu despeito íntimo, viera a público insurgir-se contra uma homenagem que São Paulo queria prestar ao nome do glorioso poeta.
Eis o expressivo protesto em seu inteiro teor: [...]

E, após o protesto de Amadeu Amaral, apoiado por todos aqueles nomes declinados, Raimundo de Menezes, no seu citado livro, acresceu dois parágrafos de sua lavra:
“No mesmo dia, o vereador Joaquim Marra, valentemente escorraçado por este pugilo destemido de paulistas de escol, voltava à tribuna da Câmara para defender-se e justificar-se, em comprida lenga-lenga, da desastrada oração que pronunciara contra o poeta Emílio de Menezes.
No discurso de defesa entrou em longas explanações inúteis. Desfez-se em desculpas esfarrapadas e inócuas. Leiamos tal peça oratória digna de pitoresco exame: [...]
 
Por fugir ao escopo do presente trabalho, deixamos de apresentar a réplica do dito vereador, recomendando aos interessados no discurso do vereador Joaquim Marra, que leiam as páginas 228-231 da 2ª edição do citado livro de Raimundo de Menezes, referenciado na Bibliografia.

III. AGRADECIMENTO

 

O gerente do blog manifesta seu agradecimento ao Acervo do Estadão, graças ao qual foi possível a transcrição da presente relíquia literária.

 

IV. BIBLIOGRAFIA


MENEZES, Raimundo de: Emílio de Menezes: O último boêmio, São Paulo: Edição Saraiva, 2ª edição refundida, 1949, Coleção Saraiva nº 13, 244 p.

WIKIPÉDIA: verbete Amadeu Amaral