terça-feira, 2 de setembro de 2025

FOTOJORNALISMO

Por OLAVO BILAC

Crônica originalmente publicada na Gazeta de Notícias, edição de 13 de janeiro de 1901 e aqui transcrita de BILAC, O JORNALISTA-Crônicas volume 1, pp. 395-7. Organização: Antonio Dimas. São Paulo: Edusp/Ed. Unicamp/Imprensa Oficial de SP, 2006.

 

Vem perto o dia em que soará para os escritores a hora do irreparável desastre e da derradeira desgraça. Nós, os rabiscadores de artigos e notícias, já sentimos que nos falta o solo debaixo dos pés... Um exército rival vem solapando os alicerces em que até agora assentava a nossa supremacia: é o exército dos desenhistas, dos caricaturistas e dos ilustradores. O lápis destronará a pena: ceci tuera cela ¹
 
O público tem pressa. A vida de hoje, vertiginosa e febril, não admite leituras demoradas, nem reflexões profundas. A onda humana galopa, numa espumarada bravia, sem descanso. Quem não se apressar com ela será arrebatado, esmagado, exterminado. O século não tem tempo a perder. A eletricidade já suprimiu as distâncias: daqui a pouco, quando um europeu espirrar, ouvirá incontinenti ² o “Deus te ajude” de um americano. E ainda a ciência humana há de achar o meio de simplificar e apressar a vida por forma tal que os homens já nascerão com dezoito anos, aptos e armados para todas as batalhas da existência. 
 
Já ninguém mais lê artigos. Todos os jornais abrem espaço às ilustrações copiosas, que entram pelos olhos da gente com uma insistência assombrosa. As legendas são curtas e incisivas: toda a explicação vem da gravura, que conta conflitos e mortes, casos alegres e casos tristes. 
 
É provável que o jornal-modelo do Século Vinte seja um imenso animatógrafo ³, por cuja tela vasta passem reproduzidos, instantaneamente, todos os incidentes da vida quotidiana. Direis que as ilustrações, sem palavras que as expliquem, não poderão doutrinar as massas nem fazer uma propaganda eficaz desta ou daquela ideia política. Puro engano. Haverá ilustradores para a sátira, ilustradores para a piedade. 
 
Quando o diretor do jornal quiser dizer que o povo morre de fome, confiará as suas ideias a um pintor de alma fúnebre, que mostrará na tela os cadáveres empilhados pelas ruas, sob uma revoada de corvos sinistros; quando quiser dizer que político X é um cretino que não vê dois palmos adiante do nariz, apelará para o talento de um caricaturista, que, pintando a vítima com um respeitável par de imensas orelhas, claramente exprimirá o pensamento da folha. Demais, nada impede que seja anexado ao animatógrafo um gramofone de voz tonitruosa , encarregado de berrar ao céu e à terra o comentário, grave ou picante, das fotografias. 
 
E convenhamos que, no dia em que nós, cronistas e noticiaristas, houvermos desaparecido da cena – nem por isso se subverterá a ordem social. As palavras são traidoras, e a fotografia é fiel. A pena nem sempre é ajudada pela inteligência; ao passo que a máquina fotográfica funciona sempre sob a égide  da soberana Verdade, a coberto das inumeráveis ciladas da Mentira, do Equívoco e da Miopia intelectual. Vereis que não hão de ser tão frequentes as controvérsias... 
 
Quando é assassinado um homem, este jornal vem dizer que lhe coseram o copo a facadas, aquele que o asfixiaram, aquele outro que lhe estouraram o crânio a tiros de revólver. Ora, o público tem pressa: como há de perder tempo em procurar a verdade dentro deste acervo de contradições e de divergências?... 
 
Há dias, foi preso um sujeito por espancar uma mulher. E os repórteres puseram em campo toda a sua fantasia, com tal gana que o pobre homem veio ontem a público elucidar o caso, conforme se vê nesta sua declaração, textualmente transcrita dos "a pedido"do Jornal do Comércio: "Os jornais deram desencontradas notícias acerca de um crime hediondo que uns vizinhos me imputaram. As versões são diferentes: o Jornal do Brasil anteontem afirmou que eu espanquei minha própria mãe; O País de ontem contou que eu bati em minha tia; O Dia relatou que eu ofendi a minha irmã..." 
 
Concebe-se maior atrapalhação? A verdade é que a mulher espancada não era mãe, nem tia, nem irmã, nem mesmo avó do desgraçado! E é assim que se escreve a História... 
 
Imagine-se agora a série formidável  de complicações que podem trazer esses exageros de fantasia, quando empregados em caso sério, de alta monta para a vida moral da nação. 
 
Uma folha virá dizer amanhã que o Senhor Presidente da República foi a tal ou qual festa, trajando um terno de casimira marrom; outra diria que S. Ex. vestia um dólmã  branco... E a gente, diante de tantas opiniões diferentes, ficará com o juízo a arder, não podendo adquirir uma ideia assentada e perfeita sobre esse ponto, que tão grave influência pode exercer sobre a integridade da pátria e a solidez das instituições republicanas. 
 
Outro caso interessante: o do amigo Galvez, que, depois de ter transposto a porta da eternidade, aparece agora espairecendo pela Puerta del Sol em Madri. É ele? não é ele? quem sabe? fotografem-no, e veremos...
 
Não insistamos sobre os benefícios da grande revolução que a fotogravura vem fazer no jornalismo. Frisemos apenas este ponto: o jornal animatógrafo terá a utilidade de evitar que nossas opiniões fiquem, como atualmente ficam, fixadas e conservadas eternamente, para gáudio dos inimigo... Qual de vós, irmãos, não escreve todos os dias quatro ou cinco tolices que desejariam ver apagadas ou extintas? Mas, ai! de todos nós! Não há morte para as nossas tolices! Nas bibliotecas e nos escritórios dos jornais, elas ficam  as pérfidas!  catalogadas; e lá vem um dia em que um perverso qualquer, abrindo um daqueles abomináveis cartapácios , exuma as malditas e arroja-as à face apalermada de quem as escreveu... Daqui em diante, não haverá esse perigo: ninguém se arrependerá do que tiver escrito, pela razão única e simples de que nada mais se escreverá... 
 
No jornalismo do Rio de Janeiro, já se iniciou a revolução, que vai ser a nossa morte e a opulência dos que sabem desenhar. Preparemo-nos para morrer, irmãos, sem lamentações ridículas, aceitando resignadamente a fatalidade das coisas, e consolando-nos uns aos outros com a cortesia de que, ao menos, não mais seremos obrigados a escrever barbaridades... 
 
Saudemos a nova era da imprensa! A revolução tira-nos o pão da boca, mas deixa-nos aliviada a consciência.
 
GLOSSÁRIO
 
¹ ceci tuera cela - isto vai matar aquilo
²  incontinenti - sem demora
³ animatógrafo - o mesmo que cinematógrafo, aparelho que registra as imagens em uma série de instantâneos, criando a ilusão de movimento ao projetar os fotogramas sucessivamente em uma tela
tonitruosa - com o volume alto
égide - proteção
formidável - terrível, aterrador (uso antigo)
dólmã branco - espécie de túnica militar; modernamente usado por chefs de cozinha
cartapácios - cadernos de apontamentos; maços de papéis manuscritos

II. COMENTÁRIOS
sobre a crônica

Na prova de português/literatura do vestibular para a UERJ-2014/1º exame de qualificação foi apresentada essa crônica de Olavo Bilac, para a qual foram propostas cinco questões com respostas de múltipla escolha em que apenas um dos quesitos estava correto. 
Aproveito a ciência do formulador das questões sobre a crônica para apresentá-las no formato em que foram propostas aos candidatos.
 
1ª Questão
Já em 1901, o escritor Olavo Bilac temia que a imagem substituísse a escrita. No entanto, ele reconhecia aspectos positivos dessa possível substituição.
Um desses aspectos é observado no seguinte trecho:
(A) O século não tem tempo a perder.
(B) Já ninguém mais lê artigos.
(C) aceitando resignadamente a fatalidade das coisas,
(D) não mais seremos obrigados a escrever barbaridades...

Alternativa correta: D

Comentário da questão: A possível substituição da imagem pela escrita, prevista pelo escritor Olavo Bilac em 1901, teria como óbvia consequência a diminuição radical dos textos escritos. Como para Bilac muitos desses textos contêm bobagens e barbaridades, a notícia positiva é que essas bobagens e barbaridades não precisariam mais ser proferidas.

2ª Questão
A profecia para os escritores, anunciada na primeira frase do texto de forma extremamente negativa, se opõe ao tom e à conclusão do texto.
Considerando esse contraste, o texto de Bilac pode ser qualificado basicamente como:
(A) irônico
(B) incoerente
(C) contraditório
(D) ultrapassado
 
Alternativa correta: (A)

Comentário da questão: O texto de Bilac é eminentemente irônico: ele anuncia desastres e desgraças para os escritores, de maneira exagerada, para terminar saudando as mudanças que provocarão essas “desgraças” e esses “desastres”. Logo, seu ponto de vista a respeito das mudanças é na verdade positivo. Os alvos da sua ironia são aqueles que resistem às mudanças e veem tragédia em tudo. As demais opções de resposta são na verdade críticas negativas ao estilo de Olavo Bilac que texto e contexto não autorizam.

3ª Questão
O texto, apesar de escrito no início do século XX, demonstra surpreendente atualidade, conferida sobretudo por uma semelhança entre a vida moderna da época e a experiência contemporânea.
Essa semelhança está exemplificada na passagem apresentada em:
(A) O público tem pressa.
(B) As palavras são traidoras, e a fotografia é fiel. 
(C) Não há morte para as nossas tolices! 
(D) Nas bibliotecas e nos escritórios dos jornais, elas ficam (...) catalogadas.

Alternativa correta: (A)

Comentário da questão: O elemento comum à época em que Bilac escreveu o texto e à nossa experiência contemporânea é a sensação de pressa, de urgência, por parte do público dos jornais. Esse público é formado basicamente pelos moradores das cidades, e a vida nas cidades estimula a pressa das pessoas.

4ª Questão
O cinema se popularizou no Brasil depois de esta crônica ter sido escrita. Nela, porém, o autor já antecipa o advento do novo meio de comunicação.
Um trecho que comprova tal afirmativa é:
(A) E ainda a ciência humana há de achar o meio de simplificar e apressar a vida 
(B) toda a explicação vem da gravura, que conta conflitos e mortes, 
(C) nada impede que seja anexado ao animatógrafo um gramofone de voz tonitruosa, 
(D) a máquina fotográfica funciona sempre sob a égide da soberana Verdade, 
 
Alternativa correta: (C)

Comentário da questão: O cinema pode ser definido como fotografia em movimento, já que se compõe de uma sucessão de imagens estáticas. O escritor imagina um aparelho que projete as imagens e assim as anime, chamando-o justamente de animatógrafo. Ao combinar esse animatógrafo com um gramofone, isto é, com um aparelho para emitir sons gravados, ele antecipa, em 1901, o cinema falado.

5ª Questão
Vereis que não hão de ser tão frequentes as controvérsias… 
A previsão de Bilac sobre a diminuição das controvérsias ou polêmicas, por causa da vitória da imagem sobre a palavra, baseia-se em uma pressuposição acerca da maneira de representar a realidade.
Essa pressuposição está enunciada em:
(A) o desenho critica o real e as palavras expressam consciência
(B) a fotografia reproduz o real e as palavras provocam distorções
(C) a imagem interpreta o real e as palavras precisam de inteligência
(D) a fotogravura subverte o real e as palavras tendem ao conservadorismo

Alternativa correta: (B)

Comentário da questão: Olavo Bilac entendia que as palavras são traidoras, ou seja, podem ser interpretadas de modos diversos por diferentes pessoas, o que provoca conflito e distorções. No entanto, ele supunha que a imagem fotográfica, em particular, reproduzia o real como ele é, não gerando portanto dúvida ou contestação alguma. É com base nessa compreensão prévia que o autor afirma que haverá menos controvérsia.

 

III. BIBLIOGRAFIA

BILAC, Olavo: BILAC, O JORNALISTA - Crônicas volume 1. Organização: Antonio Dimas. São Paulo: Edusp/Ed. Unicamp/Imprensa Oficial de SP, 2006, 899 p.

____________: Fotojornalismo. In DIMAS, Antonio (org.). Vossa Insolência,. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, 415 p.

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

QUANDO OLAVO BILAC FEZ RIR

Por FELIPE FORTUNA *

Originalmente publicado com o título “O humorismo, uma das facetas de Bilac” em O Estado de S. Paulo, edição de 17/12/1988, Suplemento Cultura, pp. 67-69.

 

Um ano antes de morrer de uma infecção pulmo­nar, Olavo Bilac (1865-1918) assinou uma página de publicidade na qual enaltecia as qualidades de um xarope que o teria curado de uma “bronquite perti­naz”. A presença do poeta na vida literária do Brasil, entretanto, se fez notar por muitos outros episódios bem menos irônicos: o escritor de Sagres (1898) não foi apenas o mais fulgurante e popular dos poetas parna­sianos brasileiros, defensor e esteta da es­cultura do verso, mas também folhetinista, conferencista, cronista, publicitário, e so­bretudo humorista — poeta satírico que, sempre sob pseudônimo, ridicularizava ce­nas da vida doméstica ou achincalhava pa­dres e beatas. Identificou-se, por isso, com a literatura oficial que se escrevia na Capi­tal Federal (o Rio de Janeiro) e com a vida mundana dos literatos que frequentavam as confeitarias, os salões de chá e circulavam pela Rua do Ouvidor ou pela Avenida Cen­tral com ânsia de imitar modismos pari­sienses. Sua geração de boêmios, alguns dispersando perversamente seus talentos, como Emílio de Meneses e Paula Nei, con­seguiu, no entanto, fazer do artista literário um escritor profissional: cada um deles vi­via oscilando entre a euforia do pagamento por um soneto publicado na imprensa e a depressão por não conseguir penetrar em certos círculos que poderiam abrigar tanto a Academia Brasileira de Letras quanto jornais de prestígio, a exemplo da Gazeta de Notícias. O escritor da belle-époque não era jamais avesso ao trabalho: em troca de algum dinheiro, escrevia romances, trovas, reclames, anedotas e tudo mais que o interessado quisesse. Isso explica, por exemplo a imensa bibliografia de Coelho Neto, e também a menor de Olavo Bilac — que exercitou seus méritos de versejador na tradução de “Juca e Chico”, do alemão Wilhelm Busch, para crianças, além de par­ticipar ativamente da imprensa sob a guarda de cerca de 60 pseudônimos, o mais conhe­cido sendo Fantásio, com o qual assinava suas crônicas. ¹
 
O mundanismo, a boêmia dourada e as diversas atividades dos escritores não signi­ficavam, obviamente, um desregramento visceral que os incompatibilizaria com sua sociedade: pelo contrário, era notável o esforço em fundar grêmios e associações, de congregar a elite econômica em torno das numerosas conferências literárias e de importar, sempre que possível, algum voca­bulário francês e atitudes caricatas que pas­savam por refinamento europeu da educação. Ainda que Olavo Bilac tivesse sofrido alguns meses na prisão e se visse forçado a um exílio doméstico por causa do confron­to menos com a ideologia dos governantes do que com os interesses pessoais ou de grupo, a imagem perene do poeta é a de um patriota, de um homem cívico que fomen­tou um verdadeiro culto à Pátria e o levou em peregrinação às escolas e aos banquetes nos quais se irmanava às autoridades, so­bretudo as militares. Ao morrer, portanto, Olavo Bilac estava consagradíssimo: seus sonetos há muito vinham merecendo belas molduras nas revistas lidas pelas senhoras; seu nome estava retumbantemente ligado a um projeto nacionalista de que foram exemplos seu longo poema “O Caçador de Esmeraldas” e seus sone­tos sobre lendas brasileiras. Não se pode ocultar, por isso, o poeta que muito contribuiu para a profissionali­zação do escritor no Brasil — filiando-o também ao Estado. O escritor Olavo Bilac, que prestigiosamente anunciou o xarope, dedicando-lhe um soneto que co­meça com esses dois versos:
 
Defende, Amigo o teu país. Defende-o
Como defende a sua furna o leão. 
 
era o mesmo que talvez tivesse percebido um país incurável por causa da trivialidade e do provincianismo que ele retratou nos poemas satíricos. Mas o poeta se encontrava, já próximo da morte, “radicalmente cura­do” — como confessava no anúncio. 
 
O selo parnasiano que Olavo Bilac imprimiu em seus versos divide as opiniões sobre o valor de seu talento e a perfeição de sua técnica. Esconjurado pelo Modernismo, sobretudo o da primeira fase, e reclamado pela Gera­ção de 45 como amável mestre, o poeta ainda sofre os golpes daqueles que revelam bem mais certa atitude mental diante da literatura do que uma convicção crítica so­bre seus poemas. Os mais adoradores e irracionais chegam mesmo a afirmar que o seu nome completo — Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac —, um alexandrino perfeitíssimo, é sintoma de uma predisposi­ção inata para a arte de versejar... Outros, um pouco mais ignorantes, reduzem sua obra a um só poema, “Profissão de Fé”, verdadeira ars poetica do Parnasianismo, transformando-o num estigma de sua arte, e deplorando sua preferência por mármo­res, metais e formas frias. A serena medita­ção de Mário de Andrade, num momento especialmente polêmico, vale ainda como um antídoto contra todas essas expressões da paixão exacerbada ou do ódio ditado pela incompreensão. Num artigo da série “Mestres do Passado” (1921), nomeando o poeta de “deputado da Beleza na terra do Brasil
²”, Mário de Andrade exalta a sua poesia amorosa e erótica, que conseguiu de todo modo “humanizar” o cultor da descri­ção e do detalhe que, em “A Sesta de Nero", por exemplo, teve a proeza de atenuar a importância do imperador em detrimento do cenário em que ele se encontrava: 
 
Nero no toro ebúrneo estende-se indolente... 
Gemas em profusão do estábulo custoso 
De ouro bordado vêem-se. O olhar deslumbra, ardente, 
Da púrpura da Trácia o brilho esplendoroso. 
 
Mas havia, realmente, um poeta de for­te personalidade que admirava publicamente o pré-romântico Bocage num de seus livros iniciais, e já muito famoso lhe dedica­ria uma conferência em que enalteceria o mestre que prezava tanto a sua língua por­tuguesa, o amor e o sofrimento. Talvez seja exagero considerar Olavo Bilac, como fez Ivan Junqueira em sua competente defesa publicada em O Encantador de Serpentes (1987), um versemaker, segundo a celebra­da hierarquia poundiana ³. Versemakers eram, a rigor, todos os poetas parnasianos, e a honra decerto não caberia apenas ao poeta do póstumo Tarde (1919); mas é verdade que um poeta como Théophile Gautier se tornou muito considerado pelo mesmo Ezra Pound que tanto fascinou o polemista Mário Faustino, levando este úl­timo a escrever um elogio do autor de Emaux et Camées (1852), tido por “um perfeito versejador, o que se afirma sem sombra de pejorativo. É bem verdade que Faustino foi impiedoso com o parnasianismo praticado no Brasil, ponderando que muitos dos poetas “não conseguiram passar de românticos bem comportados ”, como se lê em Poesia - Experiência (1977). 
 
O erotismo de Olavo Bilac, no entanto, era quase sempre delirante. Se é verdade que pouco acrescentava à fúria amorosa dos românticos, superava-a justamente por lhe trazer mais experiência, conferindo-lhe maior carnalidade. Mesmo em poemas relativos a um passa­do remoto, como “A Tentação de Xenócrates” ou “Satânia”, impera uma dimensão menos idealizada, que impressiona pouco pelo artifício retórico, como revelam alguns versos do último poema citado, que reproduz o monólogo da boca de uma cortesã:
 
Ardo e suspiro! Como o dia tarda 
Em que meus lábios possam ser beijados, 
Mais que beijados: possam ser mordidos. 
 
A cortesã, a mulher lúbrica e sexual, era uma imagem obsessiva em sua poesia; significativamente, o amor de Olavo Bilac pela Pátria brasileira ganhava por vezes acentos emocionais que se distinguiam precisa­mente pela presença de uma eroticidade toda exacerba­da. A transformação da terra nova e descoberta em corpo feminino talvez seja um topos típico de alguns escritores que vivenciaram as audácias dos seus nave­gantes colonizadores. Em língua portuguesa, Manuel Botelho de Oliveira compôs uma silva “À Ilha da Maré”, erotizando a terra fertilíssima de que tanto se ufanou; em língua inglesa, John Donne saudava a new-found-land como a uma mulher completamente nua, confundindo terra nova e mulher virgem. Para Olavo Bilac, o Bandeirante representava o semeador, o des­bravador, o lutador da terra. Seu personagem encontra-se presente não apenas no tom altissonante de “O Caçador de Esmeraldas”, mas também no soneto IX da série “As Viagens”, intitulado “O Brasil”. Cabe notar que a terra brasileira (palavra de gênero feminino e semanticamente identificada à mulher) só se transfor­ma em Brasil (ou seja, em homem, e, por extensão, em potência), após a passagem do Bandeirante, que vem disseminar a sua força: 
 
Beija-a! é a mais bela flor da Natureza inteira! 
E farta-te de amor nessa carne cheirosa, 
Ó desvirginador da Terra Brasileira! 
 
Não há dúvida, no entanto, de que essa concepção histórica refletia um anacronismo saudoso de um poeta que se comprazia em pertencer a uma aristocracia do espírito, pouco afeito (mas bastante impressionado) ao advento da modernidade que transformava a arquite­tura das cidades e chegava mesmo a transformar o verso, tornando-o mais musical e mais vago, como fizeram os simbolistas. Ele foi um dos maiores oposito­res do Simbolismo, e escreveu mais de uma sátira sobre os poemas novos e cheios de nebulosidades e crepúscu­los. Talvez Olavo Bilac não considerasse a literatura como uma forma de ascese, no sentido percebido por Jean Paul Sartre acerca da poesia de Mallarmé , ou não tivesse condições de restaurar intelectualmente uma aristocracia — aquela que existiu nas grandes civiliza­ções; porém, diante da gigantesca Nova Iorque, em viagem, lamentava não encontrar a mesma solenidade, o mesmo apuro bizantino a que tanto se afeiçoara: a megalópole apagava a “aura” e ascendia um cenário que não lhe fazia sentido, que a um só tempo flagrava sua predileção estética e sua despedida do mundo moderno. Em “New York”, pois, escreveu: 
 
Falta-te o Tempo — o vago, o religioso aroma 
Que se respira no ar de Lutécia e de Roma, 
Sempre moço perfume ancião de idades mortas... 
 
O poeta que tanto cultivava o passado escrevia, ao mesmo tempo, versos satíricos sobre os acontecimentos mais recentes — sobre as epidemias que atingiam o Rio de Janeiro, sobre as mudanças de ministros, sobre as enchentes. Seus sonetos, poemas e quadras espalha­vam-se por praticamente todas as publicações da épo­ca, como o jornal Novidades, ou então A Rua, Vida Semanária, Gazeta de Notícias e, mais tarde, a revista A Bruxa — de que foi fundador e diretor. A intensa colaboração de Olavo Bilac na imprensa surpreende pela quantidade — quantidade que ultrapassa a dos poemas publicados em livro. A vida acadêmica do Brasil ainda não foi capaz de gerar uma só edição crítica dos livros de Olavo Bilac, o que é mais grave não só porque se trata de um escritor exponencial de certa época literária como também por ter sido ele um poeta que corrigia frequentemente os seus versos. Não era ainda, quando criticava os costumes ou gozava a sôfre­ga sonolência do presidente Artur Bernardes, o “segun­do Olavo Bilac” que se revelaria ordeiro patriota, conforme estudo de João do Rio por ocasião da morte do parnasiano . Por algum tempo, no entanto, especial­mente entre 1895 e 1898, enchia quase diariamente as páginas da Gazeta de Notícias com poemas que glosa­vam desde uma simples sedução, seguida de estupro, até piadas sobre a velhice, a impotência e o homosse­xualismo, sem esquecer os epitáfios que dedicava aos políticos, permeados de ironia necrófila. Em 1897, quando Alberto de Oliveira perdeu seu cargo de diretor da Instrução Pública, por causa da ascensão de Alberto Torres à Presidência do Rio de Janeiro, Olavo Bilac juntou-se a Guimarães Passos e os três escreveram poemas satíricos que seriam mais tarde reunidos num volume intitulado Lira Acaciana (1900); o sucesso do gênero era grande, e, antes deste livro, fora editado em 1897, assinado por Puff & Puck, o livro Pimentões. O primeiro de seus autores era, na verdade, Guimarães Passos, companheiro satírico de jornal. Um outro satí­rico, Pedro Rabelo, editaria As Filhotadas — Casos d’0 Filhote, a seção que surgiu a 2 de agosto de 1896 para coroar o sucesso dos versos humorísticos que se espalhavam pelo jornal, a partir de então reunidos com destaque na primeira página. O editorial de apresenta­ção não fazia por menos: 
 
O Filhote, órgão que não tem partido, vem preen­cher uma lacuna que há muito se fazia sentir nesta terra em que os partidos não têm órgão. 
“A empresa que criou este Filhote andou a ver se devia dá-lo em grande formato; resolveu fazê-lo peque­no, para torcê-lo à feição das circunstâncias; e, fazen­do-o pequeno, teve medo de o deixar andar sozinho pelas ruas, e então resolveu que ele andaria, por ora, no colo da mãe. A gente da Gazeta, que é toda cheia de partes, queria que O Filhote saísse na última página, como matéria paga; mas O Filhote alegou que não era filho de preta Mina e não queria ter de virar de bordo quando chorasse para mamar. Ficou, pois, assentado que O Filhote sairia na primeira página, ao alto, encai­xado na Gazeta, como um caso de superfelação. (Nota para o sr. Malvino, do Liberdade macho: Superfelação não é nome feio.) 
“E como O Filhote ainda não teve tempo de reler os livros de Mme. Staffe, é provável que faça caretas a alguém, coisa desculpável em crianças, e deixe a língua de fora, mesmo aos poderes constituídos. 
“Com os quais tenho a honra de ser — De VV. EEx. atento venerador e criado. 
O PAI DA CRIANÇA

É compreensível que se encontrem dentre os poe­mas estampados em jornais e revistas alguns marcados pelo humor senil e até ingênuo. As anedotas muitas vezes eram previsíveis, e a obrigação de escrever assi­duamente contribuía ainda mais para a má qualidade de muitas delas. Durante a passagem do século, porém, aquelas sátiras tratavam de temas inusitados e, até certo ponto, reservados; exalavam um anticlericalismo discreto, mas constante; traziam para o público chaco­tas sobre os recessos da vida conjugal e do conflito entre os sexos. A Gazeta de Notícias divulgava, orgu­lhosamente, a quantidade de exemplares diariamente vendidos: 40.000. A população do Rio de Janeiro se nutria de jornal, ainda mais que este agregara há algumas poucas décadas um público feminino que lia com avidez os folhetins. No jornal, as carreiras literá­rias nasciam ou se enterravam; a vida jornalística, feita de muita intriga e alguns ódios, levou Olavo Bilac e Raul Pompéia à beira de um duelo, que não se consu­mou apenas em virtude da intervenção de amigos comuns. Não era mesmo possível que o poeta de Poesias (1902) se mantivesse à parte do único meio de divulgação da atividade literária. Seu estro de verseja­dor e seu atilado talento de cronista fundiram-se enfim no poeta satírico. Em 23 de outubro de 1896, por exemplo, publicava-se este “Velho Conto”: 
 
No Apolo, canta-se uma ópera, 
Em que há um drama de amor. 
A prima-dona está pálida... 
Canta aos seus pés o tenor. 
 
Num camarote, o Hermogênio 
Diz à mulher: “Que sandeu! 
“Perdes tanto tempo em cânticos... 
“Ai! que tolo! se fosse eu! 
 
“Se fôssemos nós, se fôssemos 
“Eu e tu, meu coração. 
“Certo outra coisa faríamos, 
“Que não cantigas, pois não?” 
 
Porém, com um sorriso irônico, 
Ela, abanando-se, diz: 
“Sim, pode ser!... mas se o público, 
“Marido, pedisse bis?” 
 
Uma nota predominante das composições satíricas de Olavo Bilac alude aos incidentes da vida sexual dos recém-casados, aos casos de adultério, à moral suspeita dos padres, ao homossexualismo masculino e aos tro­cadilhos inspirados nas partes corporais. Por isso mes­mo é que no prefácio a Pimentões seus autores adverti­ram: “Isto não é leitura para meninas ingênuas que não sabem o que é a vida, nem para meninos sem buço que ainda se dedicam ao saute-mouton e à peteca”. Da parte de Olavo Bilac, pelo menos, o gosto pelo erotis­mo desenfreado era evidente já nos livros publicados com seu nome; e foi Mário de Andrade, numa observa­ção espetacular sobre a sensualidade do poeta, naquele mesmo artigo, quem escreveu: “Olavo Bilac foi exímio na pintura da pornocinematografia. Felizmente poucas páginas lhe dedicou” . O crítico refere-se, é claro, ao poeta de “Primavera” — mas de certo modo explica muito sobre o poeta satírico que, com suas ambiguida­des, antes enfatizava do que atenuava o sexo, explici­tando-o e tornando-o cômico. E o que ocorre, por exemplo, nesse trecho do poema “Castigo”, em que duas mulheres comentam entre si o casamento de uma amiga com um certo Gregório, e duvidam do seu sucesso:
 
“Realmente, que destino, 
Com franqueza não atino, 
Este mundo tem enganos! 
Que o Gregório, além de feio, 
É um sujeito entrado em anos”
 
O eleito Príncipe dos Poetas Brasileiros, não reconheceria, com o título outorgado em 1913 pela revista Fon-Fon!, os versos sem qualquer nobreza ou requinte parnasiano que tratavam tão cruamente da circunstân­cia e do mundanismo. Também não reconheceria o poeta que adaptava a fábula de La Fontaine sobre a galinha dos ovos de ouro ao desastre econômico do Encilhamento; que escrevia uma “Ode ao Ba­cilo Vírgula” com a qual registrava a presença nociva da bactéria entre os cariocas; que apontava contra os inimigos políticos as agudas lanças já treinadas pelo antiflorianismo; que saudava a tromba-d’água que la­vava as ruas com mais eficiência do que a limpeza pública; que satirizava a mitologia greco-latina e os personagens históricos ou bíblicos, enxertando-os na personalidade de algum ministro ou presidente; que aproveitava as melodias populares da época para escre­ver novas letras, mais ao gosto da atualidade sócio-política; que se deslumbrava com o vazio na Câmara dos Deputados e com o bolso cheio de muitos deles; que, enfim, ao perceber alguma autoridade acordando de um sono cheio de ócio, se surpreendia: 
 
Aquela pasta (suspeito) 
Não era pasta, era leito... 
Acordou! que comoção! 
Mas não tenha medo, ó gente! 
Porque ele acordou somente 
Para pedir demissão!
 
Ainda não se escreveu um estudo que resgate a psicologia do escritor que atravessou a conflitante pas­sagem do Império para a República brasileira. Sérgio Miceli escreveu uma interessante análise sobre os anatolianos — é bom lembrar que o jovem Drummond se considerava um deles — no opúsculo Poder, Sexo e Letras na República Velha (1977). A revisão histórica do período, no entanto, aparece em boas mãos — tendo sido iniciada com Brito Broca, em A Vida literá­ria no Brasil-1900 (1956), até Cinematógrafo de Letras (1987), de Flora Süssekind, sem esquecer a interpreta­ção de Nicolau Sevcenko em Literatura Como Missão (1983). O grupo desses estudos permite compreender, ao menos, as sutilezas da vida literária brasileira duran­te uma belle-époque tão diversificada que abarcou os últimos solfejos parnasianos, a angústia transcendente dos simbolistas, a prosa um tanto positivista de Eucides da Cunha e as críticas sociais de Lima Barreto. Na entrada do século XX, a situação de um escritor como Olavo Bilac parecerá irônica: o antigo escritor que esbravejara contra o Marechal de Ferro agora sorria para as forças militares, que imediatamente endossa­ram os seus projetos para a lei do serviço militar e aplaudiram a sua doutrina da defesa nacional. Surgira, enfim, um escritor pedagogo e moralista — que parece ter transferido o rigor da métrica para uma caligrafia da disciplina. Nunca é demais lembrar o que desse instante surgiu: 
 
Pátria! latejo em ti, no teu lenho, por onde 
Circulo! e sou perfume, e sombra, e sol, e orvalho! ¹
 
Talvez fosse interessante observar certas tendências nacionalistas e guerreiras, algumas reacionárias, outras fascistas, que assombraram poetas diferentes como Bilac, D'Annunzio, Appolinaire e Ezra Pound. E, ainda, descobrir os acidentados itinerários da vida literária que muitas vezes forjavam um duplo do artista literário. Duplo que parodiava seus contemporâneos, que conhecia as mazelas da política, como fez com o célebre soneto de Luís Guimarães Jr., “Visita a Casa Paterna”, transformado em “Visita ao Tesouro”: 
 
Como um’ave que volta ao ninho antigo, 
Depois de fazer muito desaforo, 
Eu quis também rever este Tesouro, 
O meu primeiro e virginal abrigo. 
 
Entrei. Um gênio pérfido e inimigo 
(Era o espectro do Déficit!) num choro, 
Por entre ratos e gambás em coro, 
Tomou-me as mãos, e caminhou comigo. 
 
Aqui, outrora... (Oh! se me lembro e quanto!) 
Houve muito dinheiro acumulado! 
E hoje, papai, nem um vintém... O pranto 
 
Jorrou-me em ondas... Meu Tesouro amado! 
Um compadre comia em cada canto, 
Comia em cada canto um encostado! ¹¹
 
O humor é uma das heranças irrecusáveis que o poeta parnasiano, o compositor de hinos e o nacionalista que foi Olavo Bilac nos deixa. Com esta faceta, oficialmente desconhecida, será possível compor o retrato mais aproximado de um escritor que permanece conhecido apenas pela suntuosidade do beletrismo; e, no entanto, o poeta foi um dos que mais engajaram a atividade do escritor nas formas que a imprensa e a publicidade consagravam a um novo público. 
 
* Mestre em Literatura pela PUC/RJ, é poeta, ensaísta e diplomata. Autor de Ou Vice-Versa (1986), Atrito (1992) e Estante (1997), poemas; A Escola da Sedução (1991) e A Próxima Leitura (2002), crítica literária; Curvas, Ladeiras - Bairro de Santa Teresa (1997) e Visibilidade (2000), ensaios. Traduziu a obra integral da poeta francesa Louise Labé no volume Amor e Loucura (1995).
 
 
 
II.  AGRADECIMENTO 

À minha amada esposa Rute Pardini Braga pela formatação dos registros fotográficos utilizados neste trabalho. 

 
III. NOTAS EXPLICATIVAS
 
 
¹ Cf. J. Galante de Sousa, “Olavo Bilac e seus Pseudônimos”, in Machado de Assis e outros estudos, pp. 41-75. Trata-se do trabalho mais exaustivo e guia perfeito para a identificação dos pseudônimos do poeta. No mesmo volume, também importante o estudo “Um Livro Chamado Pimentões”, pp. 201-210. 
 
² Apud Mário da Silva Brito, História do Modernismo brasileiro. 1. Antecedentes da Semana de Arte Brasileira (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, 5ª edição), p. 284.

³ “Bilac: Versemaker”, in O encantador de serpentes (Rio de Janeiro: Alhambra, 1987), pp. 61-74.
 
Poesia-experiência (São Paulo: Perspectiva, 1977),  p. 77.

Jean-Paul Sartre, Mallarmé – La Lucidité et sa Face d'Ombre (Paris: Gallimard, 1986),  p. 33 e pp. 151-168.

A ideia do “outro” Olavo Bilac é comentada por R. Magalhães Júnior, in Olavo Bilac e sua época (Rio de Janeiro: Americana, 1974), pp. 266-277.

Cf. nota 3, p. 286.

Gazeta de Notícias, 16 de março de 1897. Republicado em Pimentões (Rio de Janeiro: Laemmert & Cia., 1897), poema XXXI.
 
Acordou”, in Gazeta de Notícias, 20 de novembro de 1896. 

¹“Pátria”, in Poesias (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, 2ª edição), p. 267.

¹¹ Lyra acaciana (Rio de Janeiro, 1900), pp. 21-22
 

IV. MATÉRIAS REFERENTES A OLAVO BILAC NO BLOG DE SÃO JOÃO DEL-REI

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

O JULGAMENTO DE FRINÉIA


Por Olavo Bilac
Transcrevemos, com a devida vênia da Editora Martin Claret, o poema referenciado constante do livro Sarças de Fogo, elemento integrante de Antologia: Poesias, publicada em 2002, pp. 57-93.  
Frinéia diante do Areópago, óleo sobre tela por Jean-Léon Gérôme (1861)

 
Mnesarete, a divina, a pálida Frinéia, 
Comparece ante a austera e rígida assembléia 
Do Areópago supremo. A Grécia inteira admira 
Aquela formosura original, que inspira 
E dá vida ao genial cinzel de Praxíteles, 
De Hiperides à voz e à palheta de Apeles. 
 
Quando os vinhos, na orgia, os convivas exaltam 
E das roupas, enfim, livres os corpos saltam, 
Nenhuma hetera sabe a primorosa taça, 
Transbordante de Cós, erguer com maior graça, 
Nem mostrar, a sorrir, com mais gentil meneio, 
Mais formoso quadril, nem mais nevado seio. 
 
Estremecem no altar, ao contemplá-la, os deuses, 
Nua, entre aclamações, nos festivais de Elêusis... 
Basta um rápido olhar provocante e lascivo: 
Quem na fronte o sentiu curva a fronte, cativo... 
Nada iguala o poder de suas mãos pequenas: 
Basta um gesto,  e a seus pés roja-se humilde Atenas... 
Vai ser julgada. Um véu, tornando inda mais bela 
Sua oculta nudez, mal os encantos vela, 
Mal a nudez oculta e sensual disfarça. 
 
Cai-lhe, espáduas abaixo, a cabeleira esparsa... 
Queda-se a multidão. Ergue-se Eutias. Fala, 
E incita o tribunal severo a condená-la: 
 
“Elêusis profanou! É falsa e dissoluta, 
Leva ao lar a cizânia e as famílias enluta! 
Dos deuses zomba! É ímpia! é má!” (E o pranto ardente 
Corre nas faces dela, em fios, lentamente...) 
“Por onde os passos move a corrupção se espraia, 
E estende-se a discórdia! Heliastes! condenai-a!” 
 
Vacila o tribunal, ouvindo a voz que o doma... 
Mas, de pronto, entre a turba Hiperides assoma, 
Defende-lhe a inocência, exclama, exora, pede, 
Suplica, ordena, exige... O Areópago não cede. 
“Pois condenai-a agora!” E à ré, que treme, a branca 
Túnica despedaça, e o véu, que a encobre, arranca... 
 
Pasmam subitamente os juízes deslumbrados, 
Leões pelo calmo olhar de um domador curvados: 
Nua e branca, de pé, patente à luz do dia 
Todo o corpo ideal, Frinéia aparecia 
Diante da multidão atônita e surpresa, 
No triunfo imortal da Carne e da Beleza.
 
 
II. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 


BRAGA, Francisco J.S.: FRINÉ, A HETERA FAVORITA DE PRAXÍTELES, matéria publicada no Blog do Braga em 28/08/2025

sábado, 23 de agosto de 2025

NO CAMINHO, COM MAIAKÓVSKI


Por Eduardo Alves da Costa *
Transcrevemos, com a devida vênia da Geração Editorial, o poema referenciado constante do livro-título No caminho, com Maiakóvski: poesia reunida, publicado em 2003, pp. 47-49 (originalmente publicado no livro de poemas O Tocador de Atabaque pela Editora Paulista, em 1969).  


 

Assim como a criança   
humildemente afaga 
a imagem do herói, 
assim me aproximo de ti, Maiakóvski. 
Não importa o que me possa acontecer 
por andar ombro a ombro 
com um poeta soviético. 
Lendo teus versos, 
aprendi a ter coragem. 
 
Tu sabes, 
conheces melhor do que eu 
a velha história. 
Na primeira noite, eles se aproximam 
e roubam uma flor 
do nosso jardim. 
E não dizemos nada. 
Na segunda noite, 
já não se escondem: 
pisam as flores, 
matam nosso cão, 
e não dizemos nada. 
Até que um dia, 
o mais frágil deles 
entra sozinho em nossa casa, 
rouba-nos a luz, e, 
conhecendo nosso medo, 
arranca-nos a voz da garganta. 
E já não podemos dizer nada. 
 
Nos dias que correm 
a ninguém é dado 
repousar a cabeça 
alheia ao terror. 
Os humildes baixam a cerviz; 
e nós, que não temos pacto algum 
com os senhores do mundo, 
por temor nos calamos. 
No silêncio de meu quarto 
a ousadia me afogueia as faces 
e eu fantasio um levante; 
mas amanhã, 
diante do juiz, 
talvez meus lábios 
calem a verdade 
como um foco de germes 
capaz de me destruir. 
 
Olho ao redor 
e o que vejo 
e acabo por repetir 
são mentiras. 
Mal sabe a criança dizer mãe 
e a propaganda lhe destrói a consciência. 
A mim, quase me arrastam 
pela gola do paletó 
à porta do templo 
e me pedem que aguarde 
até que a Democracia 
se digne a aparecer no balcão. 
Mas eu sei, 
porque não estou amedrontado 
a ponto de cegar, que ela tem uma espada 
a lhe espetar as costelas 
e o riso que nos mostra 
é uma tênue cortina 
lançada sobre os arsenais. 
 
Vamos ao campo 
e não os vemos ao nosso lado, 
no plantio. 
Mas ao tempo da colheita 
lá estão 
e acabam por nos roubar 
até o último grão de trigo. 
Dizem-nos que de nós emana o poder 
mas sempre o temos contra nós. 
Dizem-nos que é preciso 
defender nossos lares 
mas se nos rebelamos contra a opressão 
é sobre nós que marcham os soldados. 
 
E por temor eu me calo, 
por temor aceito a condição 
de falso democrata 
e rotulo meus gestos 
com a palavra liberdade, 
procurando, num sorriso, 
esconder minha dor 
diante de meus superiores. 
Mas dentro de mim, 
com a potência de um milhão de vozes, 
o coração grita – MENTIRA!
 
*  Nascido em Niterói em 1936, é poeta, romancista, contista e artista plástico. Vive na praia de Picinguaba, em Ubatuba, litoral norte de São Paulo, com a mulher, a produtora Antonieta Felmanas.
 
 
II. HISTÓRIA DO POEMA pelo gerente do Blog de São João del-Rei
 
Eu tinha 27 anos, militava na esquerda e pensei em Maiakóvski quando escrevi o poema", rememora Costa. E continua: Estava sentado num banco da Praça da República, no centro de São Paulo, quando me veio a ideia. Imaginei uma conversa com o poeta que mais admirava. Fui para casa e passei o texto a limpo.
Nunca imaginou que os versos iriam se popularizar, até fora do Brasil. Foi este o maior sucesso do escritor, mesmo considerando que é um prosador hiperativo. Publicou quatro livros de poesia, três de contos, quatro romances e cinco peças de teatro.
Passados 60 anos, constata-se que No caminho, com Maiakóvski tornou-se um dos poemas brasileiros mais conhecidos no mundo. Em meados de 1964, depois da revolução de 31 de março, o poema passou a ser declamado em protestos nas ruas, assembleias estudantis, centros acadêmicos e sindicatos e passou a ser usado como libelo contra a ditadura. Os que o declamavam acreditavam tratar-se de uma tradução anônima do poeta soviético de vanguarda por parte de algum militante comunista. 
Diante da informação de que o seu verdadeiro autor era um brasileiro, muitos preferiram acreditar que Costa era apenas o tal tradutor comunista. A crença de que a autoria era do próprio Maiakóvski parecia-lhes mais bonita do que o fato real. Como é possível que um poema tão bem construído fosse de um brasileiro?, pensavam com seus botões. 
Pois era, e foi assim que Costa virou Maiakóvski. 
O poeta Eduardo Alves da Costa garantiu que Maiakóvski nada tinha a ver com o poema, em entrevista à Folha de São Paulo, edição de 20.9.2003.
 
Na Apresentação do livro de 2003 (pp. 9-10), o editor comenta:
“(...) O poeta, romancista, contista e artista plástico divertiu-se com a sina de ter escrito um dos poemas mais populares do Brasil e não ser considerado seu autor, até que Mino Carta, Henfil e Manoel Carlos, entre outros, há muitos anos, repararam esta injustiça, em seus textos e, no caso de Manoel Carlos, em novela na TV ¹. Hoje, apenas os desinformados continuam a insistir na autoria do poeta russo e outros. Na verdade, a obra fala por si.
Porém, ao contrário do que possa parecer, Eduardo Alves da Costa não é poeta de uma obra só.
A presente coletânea  toda poesia de Eduardo escrita até aqui  pretende fazer justiça a esse dono de um fazer poético vigoroso, impactante, de cunho social, que mistura erudição, criatividade no trato da língua e comunicação imediata com o leitor. O drama humano é o que o interessa; mesmo quando Eduardo Alves da Costa faz poemas autobiográficos, seus versos criticam todo um pensar consolidado/tipificado pela sociedade  que ele ataca com armas diversas: a amargura, a ironia, o humor. Para ele, não há concessões: a poesia, além de reflexiva, é um território e tanto para a crítica social.

Finalmente, cabe citar que o poema No caminho, com Maiakóvski foi publicado no livro Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, organizado por José Nêumanne Pinto, p. 218.

 

III. NOTA EXPLICATIVA

 

¹  De acordo com Soares Feitosa, in Jornal de Poesia, foi resolvida, graças à novela das oito, uma confusão de 30 anos. Escrito nos anos 60 pelo poeta fluminense Eduardo Alves da Costa, 67, o poema No Caminho, com Maiakóvski era (quase) sempre creditado ao russo Vladimir Maiakóvski (1893-1930). 
Em Mulheres Apaixonadas, Helena (Christiane Torloni) leu um trecho do poema, dando o crédito correto. Foi o suficiente para reavivar a polêmica  resolvida dois capítulos depois, em que a autoria de Costa foi reafirmada  e, de quebra, fazer surgir uma proposta de reeditar o poema, para aproveitar a exposição no horário nobre.
Livro combinado, a noite de autógrafos será na novela. Pedi que apresse e me mande até o dia 10. Quero lançar aqui, diz Manoel Carlos, autor de Mulheres.

 

IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

COSTAEduardo Alves: No caminho, com Maiakóvski: poesia reunida, São Paulo: Geração Editorial, 2003, 285 p.

Links consultados em 23/08/2025

https://www.portalraizes.com/no-caminho-com-maiakosvki-do-poeta-eduardo-alves-da-costa/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Eduardo_Alves_da_Costa 

https://zonacurva.com.br/maiakovski-na-primeira-noite/

https://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/07/o-homem-que-virou-bmaiakovskib.html 

 

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

SOBRAL PINTO, O ADVOGADO

Por Alberto Venâncio Filho *

Publicado originalmente in A Ordem, vol. 84, jan-dez 1993. 
 
Heráclito Fontoura Sobral Pinto (✰ Barbacena, 5/11/1893 ✞ Rio de Janeiro, 30/11/1991)

 

Na história da vida jurídica ocorre, singularmente, em certos momentos de crise, o surgimento de personalidades que conseguem se sobrepor aos acontecimentos, e tentam conduzi-los para os caminhos da justiça e do bem comum. 

Os exemplos não são muitos em nosso país, mas pode-se apontar alguns casos. Assinale-se por ocasião do processo dos envolvidos na Conjuração Mineira, no final do século XVIII, o advogado da Santa Casa de Misericórdia, José de Oliveira Fagundes, indicado pela instituição, que, arrostando os maiores empecilhos e dificuldades, conseguiu fazer a defesa de seus clientes em condições extremamente difíceis, das quais basta apontar o prazo de meia hora para apresentação de embargos. 

No século XIX, no processo dos bispos de Olinda e do Pará, que se rebelaram contra a política imperial do regalismo, foram dois ilustres políticos e juristas, Candido Mendes e Zacarias de Góis, que se aprestaram na defesa de Dom Antônio de Macedo Costa e Dom Vital de Oliveira. 

Nas primeiras décadas do século XX, avulta a figura de Evaristo de Moraes como o grande advogado das causas criminais, dentro do espírito de apego à justiça e ao direito. Nenhum deles, entretanto, sobreleva à figura de Rui Barbosa, pela grandeza das atitudes, tornando-se o grande arauto dos princípios de federalismo adotados em 1891, e defensor dos direitos e das garantias individuais, nos excessos que o regime incipiente tentava adotar, numa pretensa defesa dos princípios republicanos. A atuação de Rui Barbosa realmente não encontra parelha pela combatividade, pela extensão dos conhecimentos jurídicos, através dos quais se tornou o verdadeiro professor do constitucionalismo, e pela coragem sem limites. 

No ano de 1993, quando se comemora o centenário de nascimento de Heráclito Fontoura Sobral Pinto, o exame de sua vida, na qual há tantas semelhanças com a do jurista baiano, permite, sem exagero, ser a ele comparado, por muitos dos aspectos que sejam objeto de análise. 

Heráclito Fontoura Sobral Pinto nasceu em Barbacena, em 5 de novembro de 1893 – mesma data de nascimento do seu êmulo –, filho de um funcionário ferroviário. Naquela época, embora com remuneração modesta, a figura do funcionário ferroviário era nas pequenas cidades do interior só comparável à do prefeito e à do juiz de direito. 

Nas caminhadas que o êxodo por vários lugares levou seu pai, Sobral Pinto teve em Porto Novo do Cunha o primeiro contato com a violência e o arbítrio, que iria marcar, de forma bastante acentuada, o seu espírito e o seu temperamento. Tinha pouca idade e estava certo dia na janela da casa, quanto viu alguns homens levando um indivíduo na base das maiores agressões físicas. Sobral Pinto não se conteve, saiu pela porta e começou a deblaterar junto aos algozes: “Seus covardes!” 

Realizou estudos secundários em Friburgo, no Colégio Anchieta, dos padres jesuítas, que terá contribuído para moldar a personalidade naqueles padrões de ferro de conduta e de temperamento. Em seguida, transfere-se para o Rio de Janeiro, onde faz os seus estudos de direito na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, que funcionou, inicialmente, no prédio do Colégio Pedro II e, em seguida, se transferiu para a Academia de Comércio, na Praça XV. Naquela época, existiam no Rio as duas faculdades, esta e a Faculdade Livre de Direito, ambas criadas em 1891, com as facilidades trazidas pela reforma Benjamin Constant. O padrão não discrepava do mediano e, muito embora alguns professores fossem advogados ilustres, o ensino era exclusivamente prático. 

Ressalte-se que nos vários depoimentos que Sobral Pinto deu durante toda a vida, não há nenhum registro expressivo do aprendizado haurido na faculdade, o que ocorre na maioria dos casos, comprovando a tese de que os advogados daquela época, como grande parte ainda hoje, eram autodidatas. Entre os professores, cabe apontar Carvalho Mourão, Alfredo Pinto, Manuel Cícero, e entre seus colegas de turma de 1917, Edmundo da Luz Pinto, Guilherme Gomes de Mattos e Paulo Bittencourt. 

Sobral Pinto inicia-se logo na advocacia, mas em pouco tempo seria chamado a desempenhar as funções de Procurador Criminal da República, em 1924. Era a época difícil da Presidência Arthur Bernardes, vivia-se sob o estado de sítio, e iniciavam-se os movimentos militares revolucionários. Na função que exercia, Sobral Pinto, nos ardores da mocidade, procurou ser implacável na condenação dos líderes do movimento. Consta que, em determinado caso, tendo a defesa arguído que alguns militares não teriam participado diretamente do movimento, por se encontrarem impedidos por motivos vários, assim mesmo Sobral Pinto pediu-lhes a condenação, alegando que não haviam participado do movimento por falta de oportunidade, sendo a traição aos superiores à legalidade a mesma para todos os revolucionários. Deixou a Procuradoria Criminal entre agosto e setembro de 1928 e ocupou logo em seguida o cargo de Procurador-Geral do Distrito Federal. 

Nesse mesmo ano de 1928, ingressa no Centro D. Vital, criado em maio de 1922, no Rio de Janeiro, por Jackson de Figueiredo, com apoio de Dom Sebastião Leme, e passa, em seguida, a ser responsável pela crônica política do jornal da instituição, A Ordem

Os anos que precederam a Revolução de 30 e os que se seguiram eram de grande ebulição ideológica, e os artigos de crítica ao Governo Provisório de Getúlio Vargas provocaram discussões e objeções. Em 1933, Sobral Pinto adere à Liga Eleitoral Católica (LEC), organização criada com o objetivo de orientar os meios católicos para a escolha dos representantes na Assembléia Nacional Constituinte. 

A partir de 1928, quando deixa a Procuradoria Geral do Distrito Federal, Sobral Pinto passou a ser única e exclusivamente advogado, rejeitando todo e qualquer convite para o exercício de cargos públicos. 

Mas o momento áureo surge em 1936, quando o presidente do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro, Targino Ribeiro, o designa para defender os dois principais líderes do movimento de 35, Luiz Carlos Prestes e Harry Berger. A designação de Sobral Pinto se deu – e não se pode omitir este registro – após a recusa de numerosos advogados, que, pretextando os motivos mais variados – excesso de trabalho, doença na família, viagens frequentes –, se escusaram do encargo. Respondendo ao ofício do Presidente da Ordem, diria Sobral Pinto:

O que me falta em capacidade, sobra-me, porém, em boa vontade para me submeter às imposições do Conselho da Ordem; e em compreensão humana para, fiel aos impulsos do meu coração cristão, situar no meio da anarquia contemporânea a atitude desses dois semelhantes, criados, como eu e todos nós, à imagem de Deus.
Quaisquer que sejam as minhas divergências do comunismo materialista – e elas são profundas – não me esquecerei, nesta delicada investidura de que o Conselho da Ordem impõe, que simbolizo, em face da coletividade brasileira exaltada e alarmada: A DEFESA.
Sobral Pinto relata o quanto, em muitos desses casos, colegas faziam “a mímica do dever”, comparecendo às audiências, sem conhecer o processo e pedindo sucessivos adiamentos.
“Fiquei sendo um advogado com a noção do que é advocacia, que não é a mímica do dever. Obtive êxito, muitas vezes obtive a solução, e mais, passei a funcionar desde o sumário.”
E, no caso, Sobral Pinto teve de vencer inicialmente a resistência dos próprios clientes que, incomunicáveis durante muito tempo, não podiam conceber que, subitamente, aparecesse advogado para defendê-los, resistência que foi sendo vencida com a sua atitude leal, serena e franca. 

A luta de Sobral Pinto foi hercúlea. Os dois presos se encontravam em situação extremamente precária, em condições de vida absolutamente miseráveis, sobretudo o segundo, que estava alojado num vão de escada, sem luz, sem ar e com os passos dos policiais que subiam e desciam as escadas. Em certo momento da sua luta, Sobral Pinto teve que apelar para a aplicação da lei de proteção aos animais em favor do seu constituinte. 

No livro Por que Defendo os Comunistas estão transcritas as numerosas petições, cartas e documentos em que o advogado, de forma desassombrada, postulava pelo direito de seus clientes, e essa situação só se modificou em parte quando, assumindo a pasta da Justiça, José Carlos de Macedo Soares arrostou as resistências policiais, e pôde dar aos presos tratamento mais humano. Durante oito anos de prisão, incomunicável, o único contato que Luiz Carlos Prestes tinha com o exterior era a visita semanal que religiosamente lhe fazia o seu advogado. 

No período do Estado Novo, a luta de Sobral Pinto não se limitou a essas atividades forenses, mas a um trabalho permanente de luta pela redemocratização. Escrevendo a crônica forense do Jornal do Commercio, iniciou, provocado por Cassiano Ricardo, diretor do jornal governista A Manhã, um debate com aquele escritor sobra a democracia. No decorrer do debate, obteve Cassiano Ricardo que o Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP, proibisse as publicações dos artigos de Sobral Pinto, bem como suas crônicas forenses. Iniciou uma nova batalha pelo direito de responder à polêmica, espelhada no volume Do Primado do Espírito nas Polêmicas Doutrinárias (As iras do Sr. Cassiano ...). São cartas e mais cartas, telegramas e mais telegramas em que defende vigorosamente o direito de resposta. 

Por ocasião da polêmica, realiza-se em 1943, no Rio de Janeiro, o Congresso Jurídico destinado a comemorar o centenário do instituto da Ordem dos Advogados do Brasil. Havendo cerceamento dos debates, alguns dos congressistas deliberaram abandonar a assembleia, entre eles o advogado Pedro Aleixo, a quem foi oferecida uma homenagem, tendo-o saudado Sobral Pinto. 

No discurso, em delicado momento, diria:

A democracia que vos interessa, e pela qual não cessais, e não cessamos de batalhar com o vosso e o nosso exemplo de juristas abnegados, no seio da sociedade onde atuais e atuamos, é a que aspira, pelo contrário, a harmonizar, numa ordem jurídica estável, o exercício pleno da autoridade pública com o respeito intransigente ao direito individual de cada um dos cidadãos honestos, que trabalham, entre nós animados de nobres sentimentos de paz, de ordem e de justiça, para o progresso sempre crescente do bem comum da nação brasileira.
Em 1945, assinou o manifesto de lançamento da Resistência Democrática, movimento que postulava a convocação da Constituinte, o sufrágio universal, a iniciativa privada como base do liberalismo econômico, a criação de partidos e dos sindicatos apolíticos. 

Não tendo atuação partidária, Sobral Pinto voltou-se inteiramente ao exercício de sua atividade profissional, mas, em 1955, quando grupos políticos tentaram se aliar a setores militares para impedir a participação no pleito de Juscelino Kubitschek e João Goulart, voltou novamente à liça e criou a Liga de Defesa da Legalidade, com o objetivo de lutar pela realização das eleições e garantir a posse dos eleitos, quaisquer que fossem eles. Com a eleição para presidente de Juscelino Kubitschek, a primeira vaga ocorrida no Supremo Tribunal Federal foi a ele oferecida. Recusou a indicação, entre outros motivos, para não dar a impressão de que seria uma retribuição às atividades realizadas na Liga de Defesa da Legalidade. 

Em 1964, com a vitória do movimento militar, vem Sobral Pinto novamente ao confronto, e logo, em abril de 64, escreveria carta ao Marechal Castelo Branco, advertindo-o de que sua candidatura, na qualidade de chefe do Estado Maior do Exército, era ilegal, tanto no pleito direto, quanto indireto. 

O seu papel como advogado novamente se agiganta no período de repressão, violência e torturas, e entre os seus novos constituintes encontra-se a Missão Comercial Chinesa, dotada de passaporte diplomático, e que se encontrava no Brasil, tratando de intercâmbio comercial e que, entretanto, seus integrantes foram presos, torturados e sofreram os maiores vexames. Sobral Pinto os defendeu em toda linha e, após a condenação, foram eles deportados. 

O Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, provocou novas violências, e Sobral Pinto, que, na ocasião, se encontrava em Goiás, foi preso, ficando detido alguns dias. Em resposta ao argumento do oficial carcereiro, de que o AI-5 visava ao estabelecimento de uma democracia à brasileira, afirmou:

Coronel, há peru à brasileira, mas não há democracia à brasileira. A democracia é universal, sem adjetivos.
Além de prosseguir na defesa de presos políticos, Sobral Pinto voltou a se manifestar, por meio de cartas famosas, a respeito do movimento político. No final de 1976, a respeito da pressão que o presidente norte-americano Jimmy Carter estava exercendo sobre o Governo brasileiro em relação aos direitos humanos, declarava digna de estímulo aquela manifestação. 

Conselheiro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil por vários anos, e representando vários estados, manifestou-se contra o recesso do Congresso Nacional, feito pelo Presidente Ernesto Geisel, em abril de 1967, com a reforma do Poder Judiciário. Em maio de 68, defendendo o regime democrático, falou para os alunos da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nesse período exerceu a presidência do Centro D. Vital, em 1967, reconduzido em 1980. Exerceu ainda a cátedra de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, despertando o maior interesse entre seus alunos. 

A sua vida de advogado não lhe deu vagar para a realização de trabalhos doutrinários mais profundos, mas os que divulgou dão mostra da sua cultura e do seu saber jurídico. Na revista Cadernos Brasileiros, publicou, em 1980, um estudo bastante completo sobre a Justiça Militar e prefaciou o volume das Obras Completas de Epitácio Pessoa, Acórdãos e votos no Supremo Tribunal Federal, com estudo profundo sobre a atuação daquele jurista, e no qual revelava sólidos conhecimentos de direito público. Discutindo a atuação desse magistrado e de críticas que lhe eram feitas, diria Sobral Pinto:

O que cumpre examinar na trajetória de magistrados eminentes, do porte de Epitácio Pessoa, é a fidelidade à sua mentalidade jurídica. Ele, como juiz, encarava os fatos tão-só à luz das relações abstratas que as leis de seu tempo estabeleciam. Não lhe interessava indagar quais eram as partes em conflito. Tomava os fatos, tais como eles se lhe apresentavam dentro dos autos, para pô-los, logo depois, em equação com a lei a eles aplicável. Tudo o mais lhe era indiferente. Por isso, e tão-somente por isto, é que ele foi um grande juiz, como revelam os acórdãos e votos que proferiu.
É difícil em texto dar a exata medida do que foi a obra de advogado de Heráclito Fontoura Sobral Pinto. Dentre os aspectos que mais o salientam, há que mencionar o seu completo desprendimento das coisas materiais. Pôde assim dizer seu grande amigo e também grande advogado Dario de Almeida Magalhães que
para que esse destino privilegiado de homem livre se realizasse cabalmente, alcançou Sobral Pinto a libertação de um dos jugos mais perigosos e daninhos: a libertação do dinheiro.
E acrescentava:
A outra nota culminante do seu ideário é a paixão incandescente pela justiça. Não é o comum amor à justiça – um amor moderado, se bem que fiel, cauteloso, amor de técnico, cultivado por dever de ofício. Nada disso. É uma paixão devoradora, vulcânica, infatigável e obsessiva. Uma paixão que lhe incendeia a alma, movida pela fé, que não esmaece, e pela certeza de que o único destino nobre que o homem deve perseguir para mostrar que se anima de um sopro de vida, é de lutar hora a hora, minuto a minuto, contra as injustiças e pelo império da justiça.

E as palavras de seu outro grande amigo e também grande advogado, Victor Nunes Leal, resumem esta atuação admirável:

Sobral Pinto é o crítico vigilante da vida pública, o curador da vivência dos amigos, a consciência de cada um de nós naqueles frágeis momentos em que a nossa entra em colapso pela paixão, pelo medo, pela ira, pela insegurança, pela soberba, pela ambição, pela vaidade e até pelos desvios menores que por vezes descompassam as personalidades mais bem formadas.
Acima de tudo isso, é Sobral Pinto ‘o advogado’, o advogado em si, que combate do primeiro ao último instante pela causa que tem por justa, seja fraco ou forte aquele a quem defenda, especialmente se é vítima do poder, da prepotência, da maldade, da má-fé, da mistificação, da ignorância presunçosa.” 
  
* Membro da Academia Brasileira de Letras - ABL. Sexto ocupante da Cadeira nº 25, eleito em 25 de julho de 1991, na sucessão de Afonso Arinos de Melo Franco, e recebido em 14 de abril de 1992 pelo acadêmico Américo Jacobina Lacombe.