sexta-feira, 4 de julho de 2025

SER NOBRE É TER IDENTIDADE: patrimônio sociocultural de São João del-Rei

Por ALZIRA AGOSTINI HADDAD *

Este livro integra o "Projeto Ser nobre é ter identidade: patrimônio sociocultural de São João del-Rei", aprovado pela Lei Rouanet de incentivo à Cultura e conta com o patrocínio da Cemig. Tem por objetivo identificar, valorizar, divulgar e registrar pesquisas e registros do patrimônio da Estrada Real através de ações socioculturais, publicações de educação patrimonial diversas, exposições presenciais e virtuais e portal/Banco de Dados e Imagens.
A Estrada Real foi instituída como rota oficial da Coroa Portuguesa no século XVII e é considerado o mais importante circuito histórico-turístico-cultural no Brasil. O Circuito Estrada Real é um projeto que nasceu em São João del-Rei/MG, idealizado por Átila C. Godoy e Oyama Ramalho.
Criação, projeto gráfico, editoração digital, tratamento das imagens, pesquisa, textos, capa e coordenação: Alzira Agostini Haddad/Atitude Cultural São João del-Rei.

 


Apresentação
 
Este livro apresenta a história real de um projeto de vida que envolve e interliga inúmeros projetos de vida, registrados neste inventário interativo e também digital, sobre os potenciais e as vulnerabilidades das cidades via Banco de Dados/Rede Colaborativa pró-Agenda 2030/Cidades Transparentes, projeto-piloto focado nas práticas, na identidade e na memória social. Exemplos, fatos, citações históricas, pesquisas, realizações, manifestações diversas fortalecem nossa capacidade de superar inevitáveis riscos e perdas a que a condição humana nos submete, assim como incontáveis ganhos, sementes, reinvenções, reivindicações, transformações e possibilidades que todas as experiências compartilhadas trazem em seu âmago. 
 
Por conta das dinâmicas sociais vulneráveis, dos desafios climáticos, desastres naturais e dos desmontes das conquistas sociais, ter um Banco de Dados Colaborativo é fundamental. Empodera os esforços e projetos dos protagonistas e das lideranças da comunidade, alinha-se com as principais referências e ODS-Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que recomendam preservar a qualidade de vida, a paisagem urbana e o meio ambiente. O desenvolvimento local mais consciente e sustentável envolve caminhar em sincronia com esses princípios rumo a uma direção mais lúcida e promissora. Organizar dados à deriva com uma curadoria inteligente de conteúdos gera esperança de poder favorecer um alinhamento e a planificação de conceitos, avanços, estratégias, técnicas e metodologias, pró-produção e aplicação mais correta do conhecimento. Beneficia o potencial que só uma rede colaborativa permanentemente interconectada torna possível, possibilitando parcerias, representatividade e cooperação local e internacional. 
 
O Brasil está bastante avançado na área de governo digital/e-Gov. Muitos são os desafios e as oportunidades para se construir uma confiável rede de apoio e de transformação que possa favorecer a Inteligência Artificial (IA) entre outros, e tem-se feito isso com muita determinação, sistematizando e catalogando, dentro do possível, toda construção humana acessível. Que esses esforços possam estruturar e inspirar melhores práticas, melhoria no sistema como um todo, nos empreendimentos e serviços, encontrar soluções economicamente mais sustentáveis e sobretudo favorecer a geração de trabalho e renda através dos legados e produtos locais. Portais de transparência e redes de referência somam esforços na esperança de se romper com o que as nações vêm vivenciando com relação às violações dos direitos humanos e princípios fundamentais da Humanidade. 
 
O processo de construção deste livro integra e representa parte do acervo digital de conteúdos e de fotografia documental do Portal SJDRT/Atitude Cultural e conta com a contribuição de diversos profissionais e fotógrafos. Buscamos uma representatividade entre as mais de 45 mil imagens pesquisadas e selecionadas para esta publicação, dos temas aqui apresentados da personalidade do nosso universo cultural. Um mosaico de dados, de fotos e manifestações, projetos e iniciativas que conta a trajetória de mestres, artistas, grupos, entidades, instituições, projetos e iniciativas de São João del-Rei, relacionando e envolvendo fios do tempo e de histórias, agora interligando Tiradentes e Ouro Preto
 
Ser nobre é ter identidade, projeto aprovado pelo Ministério da Cultura

 
Apresentamos também o inventário dos projetos da Atitude Cultural de pesquisa-ação, metodologia que possibilita a observação, a análise, as propostas e a detalhada divulgação dos registros coletados, envolvendo interação, moderação e decisão conjunta e participativa das ações e dos projetos, associando todas as conexões possíveis, o que se tem realizado sob diversos formatos: exposições, publicações, documentários, ações de educação patrimonial, produtos culturais e o Bando de Dados e Imagens. Esse nosso recorte remonta linearmente uma soma de esforços coletivos que relatam parte do nosso patrimônio cultural e memória afetiva; um livro impresso e digital sobre diversos temas e projetos, com o link da versão e-book gratuitamente disponibilizado e Áudio livro, que apresenta em detalhes a alma das cidades via Banco de dados e imagens, com milhares de QR Codes que se desdobram em milhares de hiperlinks. Projetos, manifestações, portal e livro dinâmicos, que se atualizam e se transformam diariamente fazendo pontes e vínculos infinitos, uma co-construção que, por sua característica, felizmente, nunca haverá de terminar. 
 
Acreditamos que toda cultura gerada com recursos públicos precisa ser inventariada, ser registrada e disponibilizada em Bancos de Dados local/global, para que possam identificar, divulgar e testemunhar o trabalho e a dedicação de todos para esta e as próximas gerações e é o que temos feito. A todos os protagonistas e guardiões do nosso bem mais precioso e da nossa herança cultural todo o nosso respeito e nossa gratidão. 
 
A identidade sociocultural com que sonhamos é a identidade sociocultural que podemos construir. 
 
Para acessar o e-book do livro Ser Nobre é ter Identidade, queira clicar no Linkhttps://saojoaodelreitransparente.com.br/files/ebooksernobre.pdf
 
 
* Nascida em São João del-Rei, é cidadã ítalo-brasileira, graduou-se em Psicologia pela
 UFSJ-Universidade Federal de São João del-Rei, é pós-graduada em "Revitalização Urbana e Arquitetônica" pela UFMG, em "Conservação, Gestão e Valorização de Bens Culturais" pelo IILA-Instituto Ítalo Latinoamericano, em "Desenvolvimento Local" pela OIT-Organização Internacional do Trabalho, em Gestão Cultural com ênfase em Cooperação Internacional/Instituto Hominus/PA e Duo Informação e Cultura; possui Curso de Gestão Colaborativa e Curso Hackeando a Burocracia da Colab University. É fundadora e curadora da Atitude Cultural e do Banco de Dados e Imagens/Portal São João del-Rei, Tiradentes e Ouro Preto Transparentes e já representou São João del-Rei e o Brasil em eventos nacionais e internacionais. É gestora sociocultural, fotógrafa, designer, pesquisadora, escritora. Publicou agendas, fotolivros e livros de educação patrimonial diversos. Desenvolve projetos e ações ligadas ao resgate das principais manifestações culturais e tradições populares e eruditas, com temas relacionados à identidade cultural e à sua preservação.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

150 anos do falecimento do Venerável Dom Viçoso

Por Instituto Roque Camêllo *

Daniel Viçoso Ferreira Rolim (Viçoso, acrescentado a seu nome por ter sido miraculado pela intercessão do Venerável Dom Viçoso), assinando o livro de presença na Cartuxa.

No próximo 07 de julho de 2025, por ocasião dos 150 anos do falecimento de Dom Viçoso, haverá a peregrinação para Cartuxa, local onde ele faleceu, com saída às 07h30min da Catedral, e às 10h, na Cartuxa, a Celebração Eucarística, com participação de Pedro Antônio e Vítor Leonardo, conhecidos como “Meninos de Mafra”, quando irão interpretar o Hino a Dom Viçoso. 
 
Estudar música disciplina a criança e a enriquece espiritualmente.” Frase repetida pelo professor Roque Camêllo, homem que via na educação séria e comprometida a força motora de libertação de um povo. Por isso, seu encantamento e sua devoção a Dom Viçoso, 7º bispo de Mariana e de todo o território mineiro àquela época. 
 
Dom Viçoso era o “Santo Particular” da família do poeta Carlos Drummond de Andrade, que lhe dedicou uma poesia com esse título. Ele nasceu em Portugal e veio para o Brasil a convite de Dom João VI, com o objetivo de ajudar na evangelização do povo. Aqui chegando, fundou colégios, pregou missões, restaurou o prédio e a pedagogia do Seminário de Mariana, além de promover a reforma do clero em Minas Gerais, posteriormente adotada por outras dioceses. 
 
Para Roque Camêllo e seu irmão, o Professor Maurílio Camêllo – este o responsável pela Positio super virtutibus et fama sanctitatis (Exposição sobre as virtudes e fama de santidade), que integra o processo de beatificação de Dom Viçoso –, o “Santo Particular” foi um homem de fé, sabedoria, realizador, culto e avançado para o seu tempo. 
 
Ao perceber que a escravidão e o analfabetismo persistiam, Dom Viçoso mandou buscar, em Paris, as Filhas da Caridade, conhecidas como Irmãs Vicentinas, para fundarem orfanatos, acolherem meninas que perambulavam pelas ruas e criarem um colégio destinado à educação das jovens. A finalidade era também sustentar os orfanatos. Para Roque Camêllo, era lapidar a justificativa de Dom Viçoso ao convocar as religiosas: “Somente proporcionando às jovens uma educação cristã e cultural, teremos uma sociedade mais civilizada e preparada, para dar à Pátria cidadãos completos. Não vos esqueçais de que a mulher, sobretudo a mãe, sempre será a primeira mestra”. 
 
O Conde da Conceição (título que Dom Viçoso recebeu do Imperador Dom Pedro II) foi o maior benfeitor de Mariana e do nosso Estado, tendo mudado a história do Estado. Faleceu pobre, em 07 de julho de 1875, na Chácara da Cartuxa, já com fama de santidade e amplamente reconhecido como o “Santo de Minas”. 
 
Seu processo de beatificação, iniciado por seu biógrafo, o primeiro arcebispo mineiro Dom Silvério Gomes Pimenta, ficou estagnado por mais de sessenta anos, até ser retomado por Dom Oscar de Oliveira. Posteriormente, foi Dom Francisco Barroso Filho, então bispo nomeado de Oliveira-MG, quem levou a documentação ao Vaticano, em 1984. 
 
Seu legado ultrapassa as fronteiras eclesiásticas: é reconhecido por estudiosos da história, da filologia, da literatura e da educação; foi tema de obras literárias e estudos acadêmicos; e sua importância é reconhecida pelo Vaticano, estando atualmente em curso seu processo de beatificação, já tendo recebido o título de Venerável de Deus. Aguarda-se a comprovação científica de mais milagres por intercessão do Venerável Dom Viçoso para dar o próximo passo no processo de canonização, que é a beatificação. 
 
Há muitos anos, Dona Efigênia Sacramento lidera um grupo de fiéis em peregrinação, da porta da Catedral até a Cartuxa, em oração, para participarem da Santa Missa. A caminhada ocorre todo dia 13 de cada mês, data de nascimento de Dom Viçoso, em Peniche, no dia 13 de maio de 1787. Este ano, a peregrinação será no dia 07. 
 
Pedro Antônio e Vítor Leonardo, conhecidos como “Meninos de Mafra”, estarão na Cartuxa, às 10h, para cantar na Celebração Eucarística e interpretar o Hino a Dom Viçoso. A mãe deles, Juliana Kuss, entoará o Salmo. Os irmãos Pedro Antônio e Vítor Leonardo farão refletir a riqueza da música nascida da fé e da tradição, em um percurso que remete às histórias de Roque Camêllo e Dom Viçoso. 
 
Meninos de Mafra
 
Assim como Roque, que acreditava no poder transformador das artes e defendia a música como expressão de valores e identidade, os “Meninos de Mafra” encantam por unir talento e espiritualidade, revelando que o canto que nasce do interior pode alcançar corações por todo o país, com a mesma simplicidade e força que marcaram o legado de Dom Viçoso, cuja fé também se manifestava em gestos culturais e educativos. 
 
* Fundado em 18 de março de 2018 em Mariana-MG.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

SEBASTIÃO DE OLIVEIRA CINTRA

Por ANTÔNIO GAIO SOBRINHO *

Discurso de abertura às homenagens ao Patrono do ano de 2021, SEBASTIÃO DE OLIVEIRA CINTRA, cadeira 37, na Sede do IHG em 11.04.2021.
Essa peça de oratória foi publicada originalmente no livro "Sebastião de Oliveira Cintra" (org. Ana Maria de Oliveira Cintra) (2023), da Coleção Personalidades do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei.

Historiador, poeta e orador Sebastião de Oliveira Cintra - Crédito pela foto disponível na contracapa do livro organizado por sua filha, Ana Maria de Oliveira Cintra

 

Sebastião de Oliveira Cintra nasceu em São João del-Rei no dia 15 de outubro de 1918. E morreu, nessa mesma cidade, em 19 de agosto de 2003. Sua mãe: Joana Cândida de Oliveira; seu pai: Francisco Augusto de Ulhoa Cintra. Entre seus antepassados mais remotos estão as famosas Três Ilhoas (Antônia, Júlia e Helena), bem como a primeira professora pública em São João del-Rei e pioneira da educação feminina em Minas Gerais: Policena Tertuliana de Oliveira Machado (de filiação desconhecida, faleceu em 01.08.1871). 
Sebastião Cintra, casado com Dona Léa de Oliveira Cintra, foi pai de 1 filho e 5 filhas, entre as quais a nossa confreira Ana, segundo a qual a marca registrada de seu ilustre pai, e nós que com ele convivemos o confirmamos, foi que:
sempre teve na ponta da língua um elogio, uma massagem no Ego de quem quer que fosse, pobre ou rico, branco ou preto, sujo ou limpo, bonito ou feio.
Desde cedo, ainda como aluno ginasiano, Sebastião começou a desenvolver sua vocação literária, que viria a exercer por toda a sua vida, como orador espontâneo de muitas ocasiões, apreciado conferencista, acurado genealogista, paciente e meticuloso pesquisador do passado são-joanense, e generoso conselheiro de todos, não só dos novatos, senão também dos velhos curiosos e interessados da nossa história local. Foi assíduo colunista em quase todos os jornais são-joanenses, publicou artigos em revistas, sobretudo na deste glorioso Instituto Histórico, do qual foi sócio fundador, e efetivo dos mais atuantes, assim como também o foi do Centro Artístico e Cultural e da Academia de Letras. Sobretudo publicou duas obras indispensáveis em todas as nossas bibliotecas: Efemérides de São João del-Rei e Galeria das Personalidades Notáveis de S. João del-Rei
Da primeira delas, cuja segunda edição prefaciou, assim escreveu José Campomizzi Filho:
Sebastião de Oliveira Cintra quis ir às fontes e conhecer de perto o passado de sua cidade. Ao longo de anos seguidos, curvou-se diante dos alfarrábios. Revolveu arquivos e ouviu pessoas. Confrontou dados. Descobriu velhas coleções de jornais. Empreendeu viagens. Manteve farta correspondência com especialistas.

 E alhures Campomizzi repete ainda, usando o presente histórico:

Examina os livros das igrejas. Entra pelos arquivos da municipalidade. Compulsa os documentos das Ordens Terceiras. Traz notícia circunstanciada de famílias inteiras, em minucioso levantamento genealógico. Oferece subsídios para o estudo e para interpretação do nosso passado, nas mais afirmativas de nossas manifestações.

 E, por fim, completa:

Grande historiador, admirável figura humana, excelente cidadão e silhueta que inspira simpatia e de que emana pureza. Dá ele muito de si mesmo nessa obra. Toma o calendário e se desdobra marcando a dia os acontecimentos. Estuda genealogia. Fixa fatos. Entra pela alma das coisas, no complexo de causa e efeito. Não se deixa levar pela primeira impressão. Busca as razões. E sabe que a História é ciência que exige, principalmente, essa dedicação integral que lhe dá.
Da segunda obra – Galeria das Personalidades Notáveis – desejo antes de tudo citar uma frase que, em meus tempos de ginásio, como aluno salesiano, interno no Colégio São João desta cidade, lá pelos anos iniciais da década de 1950, me lembra ter lido num de nossos livros escolares. Dizia, não sei se literalmente, mas aproximadamente, assim: Falarei tudo de bom que souber de um homem. A frase era citada como do escritor norte-americano Émerson. Agora, porém, buscando-a na internet, ó surpresa, o Google a atribui a Benjamim Franklin. Será mesmo? Eis, porém, que, para minha consolação, lendo o texto do Professor Oyama de Alencar Ramalho, com o qual ele arremata com chave de ouro, como é de seu feitio, a nossa Revista nº XIV, a respeito de Basílio de Magalhães, lá encontrei a seguinte referência à mesma Galeria, que me trouxe de volta a Émerson, lembrando que Oyama também foi aluno salesiano. Escreveu ele:
Dada a característica emersoniana da Galeria, parece-nos que todas as personalidades, sumariamente biografadas, fazem parte de uma mesma angelical confraria.
Ou seja, o professor Oyama encontra ali, na Galeria das Personalidades Notáveis, a mesma qualidade, referida por Ana Cintra como a marca registrada de seu pai: a sua capacidade de, generosamente, elogiar e falar bem de todo mundo, inclusive de quem talvez não merecesse tanto. 
Mas essa característica de Sebastião Cintra, todos nós, que com ele convivemos e fomos dela, também sem méritos, igualmente agraciados e estimulados, havemos de respeitar e agradecer, como prova de seu bom e magnânimo coração, piedoso discípulo que sempre foi do mestre galileu: Jesus de Nazaré. Eu que o diga, pois que de mim também, ele teve a ousadia de escrever a meu respeito coisas como:
abalizado historiador; uma das mais robustas inteligências da cultura sanjoanense; festejado polígrafo.
Fosse eu acreditar nessas deliciosas mentiras... Que Deus te perdoe, meu caro e saudoso Professor Cintra. Do Senhor sim, se daí onde hoje mora nos pudera ouvir, eu lhe digo, valendo-me de palavras de outro grande professor, Abgar Tirado:
Sebastião de Oliveira Cintra é um nome que se impôs decididamente às letras sanjoanenses, mercê de seus elevados conhecimentos, do brilho de sua pena, de seus dotes oratórios e de sua profundidade de historiador.
E para terminar, marcando este ano que o nosso IHG lhe consagra, peço-lhe licença para repetir a seu respeito, uma qualquer daquelas variantes do refrão que encerrava quase todos os biografados da sua Galeria. Escolho esta:
Sebastião de Oliveira Cintra, mais que qualquer outro dentre tantos: ocupa com méritos posição privilegiada na galeria das personalidades notáveis de São João del-Rei.
Saudações a sua querida Léa, que nos recebia tão meigamente em sua casa, e um olhar carinhoso àquela sua anjinha, sempre, por anos a fio, a enrolar os seus papeizinhos: a Sônia Regina... E tenho dito! 
 
* O professor, escritor e historiador, Antônio Gaio Sobrinho, nasceu na cidade de Conceição da Barra de Minas, em 28 de novembro de 1936. Licenciado em filosofia pela FDB-Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras e membro do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, onde ocupa a cadeira 14 patroneada por Maria Teresa Baptista Machado; atuou como bancário na Caixa Econômica do Estado de Minas Gerais durante 20 anos, e lecionou História na Faculdade Dom Bosco, onde seguiu como professor até o ano de 1992 na FUNREI-Fundação Federal de Ensino Superior e onde se aposentou. Autor de duas dezenas de livros, dentre os quais se destacam os seguintes títulos: Memórias de Conceição da Barra de Minas (1990), Sanjoanidades: Um passeio histórico e turístico por São João del-Rei (1996) e História da Educação em São João del-Rei (2000).

domingo, 22 de junho de 2025

BIBLIÓFILOS, BIBLIÔMANOS E BIBLIOPIRATAS

Por Eduardo Frieiro *

 
Quando se diz que alguém é amigo dos livros, faz-se em três palavras um elogio que classifica no escol intelectual a pessoa elogiada. 
É de tal modo considerada nobre e simpática a amizade aos livros, que mesmo quando esta se transforma em paixão, em mania ou latria, ou até em vício, ainda assim é julgada com benevolência pelos que são capazes de compreendê-la. 
Jules Janin, escritor e bibliófilo do século passado, conta em L'Amour des Livres, esta anedota:
Um dia, achando-se o Rei Luís XIII a palestrar no seu quarto com o chanceler Séguier, chefe supremo da justiça, o diálogo orientou-se para a venalidade dos juízes.
"Senhor chanceler", gracejou o rei, "por que preço venderíeis a justiça?"
"Oh! sire, por nenhum preço... Isto é, por um belo livro, não o garanto..."
É preciso acrescentar, diz Janin, que a biblioteca do chanceler de Luís XIII era uma das maravilhas que bastam para dar celebridade a um homem.
Há com efeito bibliotecas particulares que dão renome aos seus proprietários, homens que seriam perfeitamente desconhecidos sem os seus livros. Mas nem sempre estes possuidores de belas livrarias são letrados autênticos. Muito amiúde não passam de colecionadores mais ou menos maníacos. Há os autênticos bibliófilos, os que amam o livro em razão do seu valor intrínseco, medular. O bibliômano junta livros pelo prazer de juntar, preocupado unicamente com a qualidade ou a raridade dos exemplares que adquire. Há os que só colecionam clássicos, outros só obras antigas, outros só história, ou só memórias, diários e epistolários, ou só viagens e explorações, etc. Alguns, entre os portugueses e brasileiros, só querem Camões e Camilo. Aqui, são numerosas as coleções "Brasilianas", não sendo raras as de muito valor. A bibliomania na sua manifestação mais aguda é a que impele a colecionar unicamente livros raros, ou caros, singulares ou extravagantes, que dificilmente se encontram à venda. Pouco importam as grandes obras clássicas, as mais autênticas obras-primas, as boas obras de instrução ou distração. É uma mania, como a de colecionar selos ou autógrafos de celebridades do dia, se bem que mais amável e simpática. O prazer está em possuir aquelas obras cuja aquisição seja difícil ou demasiado custosa, ao alcance de poucos, sendo indiferente que se trate de um Manual de Cozinha ou da Arte de bem cavalgar, de um Tratado de Esgrima ou de Heráldica, de um Chave dos Sonhos ou de um Secretário dos Amantes. 
Para alguns outros o interesse consiste principalmente na pompa das encadernações. E quantos livros não são comprados unicamente pela invulgaridade do frontispício ou por causa duma vinheta! Compreende-se, por isto, que os possuidores de belos livros nem sempre sejam homens de letras ou de ciência. Às vezes, não passam de colecionadores que os conservam em ricas estantes, não para serem lidos, como distração, estímulo ou refrigério do espírito, mas para serem contemplados ciosamente no recesso dos bibliófilos, ou quando muito para serem apresentados com alarde à admiração invejosa dos amigos atacados da mesma mania. O móbil desta espécie de amigos do livro nem sempre é, bem se vê, a libido sciendi, o apetite de conhecimento, mas a libido possidendi, o apetite de possuir, de entesourar. Um maníaco desta espécie, português, o Cardeal da Cunha (conta Oliveira Martins, História de Portugal) tinha uma ostentosa livraria de 11.000 volumes, a que alguns chamavam "as onze mil virgens". 
Esta espécie livresca, o mesmo que as outras, é velha como o livro, e, desde a Antiguidade, os letrados pobres têm tratado com acrimônia os ricaços que por simples ostentação juntam livros raros ou suntuosos nas suas bibliotecas puramente decorativas. No tempo de Sêneca, que via na moda do livro pelo livro um sintoma de corrupção social, as bibliotecas particulares se multiplicavam, instaladas em salas de estilo asiático, com as estantes incrustadas de marfim e metais preciosos. Milhares de copistas  os "impressores" da época  tornavam os manuscritos acessíveis até às classes menos favorecidas. O bibliômano do tempo dos Césares costumava dissipar sua riqueza em livros. Vai daí, o literato impecunioso alvejava-o com chufas e zombarias. Entre outros, o céptico Luciano escarnecia assim dum bibliófilo de seu tempo:
"Tu tens um livro na mão e o lês continuamente, mas não compreendes patavina: pareces o burro que sacode as orelhas quando ouve a lira. Se a posse dos livros bastasse para fazer sábio àquele que os possui, ela seria inestimável; se o saber se vendesse no mercado, pertenceria exclusivamente a vós outros, ricos."
Indignado com o egoísmo do feliz possuidor de belas obras que, incapaz de apreciá-las proveitosamente, também não as facilitava a quem as poderia ler com fruto, censurava-o por esta forma:
"És como o cão que, deitado na estrebaria e não podendo comer a cevada, não permite que o cavalo a coma..."
La Bruyère, em Les Caractères, capítulo "De la mode", ironiza os maníacos colecionadores que enchem a casa de livros, bem encadernados em marroquim, dorés sur tranche, ornados de filets d'or, exibidos às visitas, com vaidade ostentatória. E para mostrar que têm a casa bem cheia, alguns desses maníacos, que nunca lêem, arranjam estantes de mentira com fileiras de livros pintadas, que enganam a vista. ¹ Logo à entrada o visitante sente-se desvanecer com o cheiro forte do couro das encadernações. Aquilo não é uma biblioteca, é um curtume. 
Na Idade Média, o cristianismo destruiu as bibliotecas pagãs. Os livros e com eles a cultura refugiaram-se nos mosteiros. A bibliofilia desapareceu por espaço de vários séculos, só reaparecendo, na Renascença, com a difusão do papel e a quase extinção dos livros em pergaminho. 
Isto para a Europa cristã. Há oitocentos anos, entretanto, o professor negro Ahmed Baba, da Universidade de Timboctu, achando-se à espera de sua execução, lamentava-se de que não vivera o bastante para juntar tantos livros quanto alguns de seus amigos possuíam. Sua biblioteca contava no entanto 1.600 volumes, o que indicava elevada atividade intelectual, notável na região negra em que tinha lugar, e sobretudo numa época em que muitos povos europeus se achavam ainda em grande atraso. 
Na Espanha muçulmana, o desenvolvimento da literatura e das ciências despertou grande afeição à leitura e aos livros. Leia-se a este propósito a Historia de la España musulmana de Ángel González Palencia. Na época de Abderrahmen III, chegavam a Córdova os mestres mais sábios, estudantes de todos os países, os copistas mais hábeis e os livreiros e mercadores mais ricos. A Biblioteca real dessa cidade chegou a possuir 400.000 volumes, com um bibliotecário-chefe encarregado da catalogação e tendo a seu serviço os melhores encadernadores, iluminadores e desenhistas. Havia outras bibliotecas célebres em Córdova, algumas particulares. Era muito generalizada a bibliofilia, desenvolvida também entre as mulheres. As mulheres de classe inferior copiavam o Alcorão e livros de orações. Os judeus, os moçárabes, os renegados  diz Palencia  todos seguiam a corrente, chegando os eunucos a adquirir vasta instrução e até a formar bibliotecas. E, como não era para menos, existiam bibliômanos, tolos, simuladores de cultura, ao lado dos bibliófilos de boa lei. 
No final da Idade Média, o nome do bispo inglês Ricard de Bury se torna célebre, ligado ao da obra que compusera sob o título de Philobiblion, na qual contou como colecionara os seus livros, dando destarte como que um bosquejo dos métodos da bibliofilia. 
É a época de Petrarca, chamado o "pai da bibliofilia moderna". Bibliófilo apaixonado na sua primeira mocidade, Petrarca comprava ou copiava tudo o que lhe caía ao alcance das mãos. Nas numerosas viagens que empreendeu, descobriu textos até então desconhecidos, de autores latinos. Seus amigos da Alemanha, França e Inglaterra remetiam-lhe quantos livros podiam. 
Com a invenção da Imprensa toma incremento a bibliofilia. Na época de Aldo Manúcio principia a voga das encadernações de luxo, que passaram a ser daí em diante a marca distintiva dos verdadeiros bibliófilos. Como colecionador de encadernações de luxo, Grolier de Servières torna-se famoso e é considerado por isso, cronologicamente, o primeiro bibliófilo, na acepção moderna do termo. 
A época de ouro da bibliofilia será porém o século XIX. Cresce na França, na Inglaterra, na Alemanha e em outros países a paixão colecionadora de volumes impressos no passado. O interesse despertado pela venda em leilão da coleção do duque de Roxburgh em 1812, disputada a peso de ouro pelos maiores bibliófilos ingleses do tempo, suscitou a fundação do "Roxburgh Club", o primeiro grêmio inglês de bibliófilos, que já então formam no mundo uma espécie de confraria de grã-finos, unidos pelo mesmo culto quase religioso dos livros antigos e raros. É a época das grandes vendas de coleções preciosas. Nas últimas décadas do século passado, Bernard Quaritch, alemão de nascimento, torna-se na Inglaterra e em todo o continente europeu o "Napoleão do comércio de livros antigos."
 
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O nome de Jean Grolier, príncipe dos bibliófilos de começos do século XVI, prende-se a um período particularmente brilhante da arte francesa da encadernação. Não era um encadernador, mas um homem rico que fazia trabalhar às suas ordens hábeis artistas encadernadores. Sobre as encadernações de Grolier aparecem pela primeira vez, gravadas em letras de ouro, o seu ex-libris: Jo. Grolieri et amicorum e a divisa: Portio mea domine sit in terra viventium ², conhecidos de todos os bibliófilos. 
Para mim e meus amigos é uma generosa divisa que alguns bibliófilos inscreveram nos seus ex-libris, à imitação de Grolier. Porém mais generosa ainda era a divisa de Schelder: Para todos e para mim
Nobres e simpáticas divisas, não há dúvida. Mas quem possua livros e queira conservá-los, avaliará facilmente os perigos que tais divisas cristãs encerram. 
Livro emprestado é livro perdido ou livro estragado. O amigo dos livros deve recear, sobretudo, aqueles que alimentam a mesma paixão livresca. O colecionador de livros raros, preciosos ou singulares, esse então costuma ser um bibliopirata, quando não é um biblioclepta, que satisfaz o seu vício onde pode e como pode. Famoso colecionador e não menos famoso pirata de livros foi o bibliógrafo espanhol Bartolomé José Gallardo, a quem um seu rival na mania colecionista, Estébanez Calderón, poeta de certa voga na época romântica, dirigiu um soneto que abre com uma mercurial de epítetos mordazes: 
Caco, cuco, faquín, bibliopirata, 
tenaza de los libros, cauzo, púa 
de papeles, aparte lo ganzúa, 
hurón, carcoma, polilleja rata... 
 
E o mais nesse estilo, concluindo por esta forma: 
 
y al fin te beberás, como una sopa 
llena de libros, África y Europa. 
 
D. Pedro II, o honrado imperador brasileiro, incorreu na pecha de bibliopirata, não sabemos se com razão. D. Pedro estimava os livros e deixou uma importante biblioteca. Não era o que se pode chamar um colecionador, um bibliófilo praticante, sem com isso dizer-se que não amava os livros raros. Conta-se que, quando visitou o Colégio do Caraça, pelo ano de 1881, examinou com grande curiosidade a rica biblioteca do estabelecimento, uma das melhores do Império. Viu ali uma peça que lhe teria parecido preciosa: a Crônica de Eusébio Panfílio, bispo de Cesareia, cognominado o Pai da História Eclesiástica. Tratava-se de uma obra aparecida em Veneza no ano de 1483, impressa por um alemão. Um incunábulo, portanto! 
A tentação era muito grande. D. Pedro desejou-o para si e, abusando das suas prerrogativas de soberano, teria carregado com ele. 
Li essa história em uma reportagem de Marcelo Coimbra Tavares sobre o Colégio do Caraça, publicada no Estado de Minas, edição de 11 de junho de 1950. Onde a ouviu o repórter? Provavelmente circula entre os padres daquele Colégio. Mas, como se poderia afirmar, com toda a certeza, que D. Pedro levou o precioso incunábulo? 
O Padre Francisco Silva, diretor que foi do Caraça, falecido posteriormente como bispo do Maranhão, escreveu sob o pseudônimo de Era Negra o trabalho intitulado Caraça: Apontamentos históricos e notas biográficas (Imprensa Oficial, Belo Horizonte, 1907), publicado anteriormente na Revista do Arquivo Público Mineiro. Referindo-se à visita de D. Pedro, aludiu à grande curiosidade com que o monarca manuseou algumas obras da biblioteca do velho Colégio dos padres lazarentas. E disse exatamente: "sobremaneira o encantou a Crônica de Eusébio, de um editor alemão, impressa em Veneza, no ano de 1483 ..." Só isso. Nenhuma referência ao seu desaparecimento. Excessiva discrição, ou timidez do historiador? 
Se o Imperador o surripiou, aonde teria ido parar o cimélio? Entre os 50.000 volumes deixados pelo monarca, os quais constituíram depois a Coleção D. Teresa Cristina, não havia incunábulos, consoante se lê no trabalho de Aurélio Lemos "D. Pedro II e os seus livros", inserto no Vol. 152 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
O fato porém não invalida por si só a versão do furto imperial. ³ Diante do livro raro, a bichar ingloriamente nas estantes de um colégio de província, o "neto de Marco Aurélio" teria dito com as suas barbas, como qualquer inescrupuloso colecionador de raridades: 
 
"Je prends mon bien partout où je le trouve." 
 
O incunábulo a que nos referimos está assim descrito em Le livre en Italie à traves les siècles, por Léo Olschki, Florence, Imprimerie Junitine, 1914, p. 18:
 
"Eusebius Pamphilius. Chronicon a S. Hieronymo lat. 
[versum 
et ab eo Mattheo Palmerio continuatum. Venetiis, 
[Erhardus 
Ratdolt, idibus September (13 Sept.) 1483, in-4. Avec des 
initiales orn. dessinées par Bernard Moler, gr. en bois." 
 
Não é uma preciosidade. 
Depois de descrever a edição original do Chronicon a S. Hieronymo, feita em Milão pelo ano de 1475, o bibliófilo J.-Ch. Brunet (Manuel du libraire...) ajunta que a edição de Veneza é de pouco valor: 
 
"L'édition de Vénise, par Erhard Ratdolt, 1483, in-4, 
de 180 ff., a peu de valeur."
 
************************ 
 
Em fins de 1943 ter-se-ia verificado na Biblioteca Pública de Pelotas o furto duma obra preciosa, realizado em circunstâncias fora do comum, segundo vimos na revista carioca Vamos ler, que se referiu ao fato por esta maneira: 
"RAPTO DE UM LIVRO - Visitou recentemente a Biblioteca Pública de Pelotas um cidadão de nome X. (a revista deu o nome inteiro), que pediu para consultar a preciosa obra O Brasil Pitoresco, de Ribeyrolles. Cinco minutos depois de estar ali o consulente desapareceu com o livro, que pesa vinte quilos e mede de comprimento um metro por noventa centímetros de largura. X viajou no mesmo dia, por via aérea, para Porto Alegre, de onde despachou o livro por via férrea, para São Paulo, onde diz residir. O autor do rapto foi preso. Levado à polícia, confessou calmamente o delito, justificando-se que assim fizera porque precisa colher dados, pois está escrevendo um livro sobre as Missões Jesuíticas, havendo já adquirido por seiscentos cruzeiros, numa livraria carioca, uma lei em latim. Positivamente, com tão merecido trabalho, tal ladrão deve ser recompensado com um cargo de bibliotecário..." 
Cuidado, muito cuidado com os bibliófilos, bibliômanos e colecionadores de livros em geral. Cuidado com os bibliopiratas em particular! E os colecionadores, esses principalmente, não são de confiança. Por isso dizem com razão os franceses: 
 
Tout collectionneur , tout voleur
 
Os próprios bibliotecários ou responsáveis por bibliotecas não são de toda confiança. O rapinante, às vezes, está dentro de casa. Recorde-se um caso famoso, l'affaire Libri. O matemático e professor francês, de origem italiana. Conde Libri-Carrucci della Sommaia, era então inspetor-geral das bibliotecas de França. A cada visita que Libri fazia às bibliotecas que lhe incumbia inspecionar, verificava-se a desaparição de livros e manuscritos raros. Investigado o caso, Libri fugiu para Londres, onde o receberam como um perseguido. Isso não impediu sua condenação a dez anos de prisão. Mérimée, seu amigo, não quis crer na acusação e atacou rudemente, na Revue des Deux Mondes, os juízes que haviam condenado Libri. Levado aos tribunais, Mérimée teve quinze dias de prisão e mil francos de multa. O caso provocou grande celeuma, e os inimigos de Mérimée e de Buloz, diretor da Revue, regozijaram-se com o acontecido.
 
Fonte: Os livros, nossos amigos, Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 2007, pp. 59-67. 
 
* De tipógrafo na Imprensa Oficial do Estado, valeu-se de seu grande esforço de autodidata para chegar a professor catedrático de Literatura Espanhola e Hispano-Americana da UFMG;  como Diretor da Biblioteca Pública de Minas Gerais, cuidou de sua organização, transformando-a numa das melhores do Pais; deixou inúmeras obras literárias, especialmente Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros e O Mameluco Boaventura. Neste último, embora não sendo um historiador "stricto sensu", aborda importantes figuras da história mineira, tais como Aleijadinho, Tiradentes e Conde de Assumar, revisitando-as numa reconstrução ou mostrando sua "outra" face, como propala a Nova História ("Nouvelle Histoire"),  a qual, além dos eventos históricos, enfoca um leque mais diverso de fontes.
 

II. NOTAS EXPLICATIVAS por Francisco José dos Santos Braga, gerente do Blog


¹ Em 1980, testemunhei um fato inaudito enquanto aluno da ESAF-Escola de Administração Fazendária, órgão do Ministério da Fazenda, em Brasília, nos idos de 1980. Precisando consultar um livro sobre administração tributária, dirigi-me à sua biblioteca em busca de um que tratasse desse assunto. Fui surpreendido pela notícia da recepcionista de que o livro que buscava não estava disponível no momento. Perguntei-lhe, portanto, qual seria um livro substituto. A resposta foi categórica: nenhum livro que versasse sobre a matéria estava disponível. Só então fui informado que o Ministro da Fazenda (cujo nome não declino por respeito à sua memória) necessitara de todos os volumes relativos àquele assunto e mandara buscá-los, pois daria uma entrevista naquela semana e precisaria exibir sua proficiência naquela área do conhecimento.
Voltei na semana seguinte, quando os livros já tinham sido repostos nas estantes da biblioteca. 
 
² Salmo 141 (142), v. 6.

³ O livro "CARAÇA E A FAMÍLIA IMPERIAL" (1976, 1979, 1991), no capítulo intitulado "Caraça e a Família Real", do Pe. José Tobias Zico, CM., membro do IHGMG-Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e da AML-Academia Mineira de Letras, repudiou essa ofensa injuriosa e contestou completa e definitivamente essa invectiva ultrajante contra o nosso maior governante de todos os tempos, no qual seu autor Pe. Zico se insurgiu contra o boato divulgado pela imprensa de que o Imperador Dom Pedro II teria surripiado precioso incunábulo da biblioteca do Caraça  "Chronicon" de Eusebius Pamphilius, bispo de Cesareia , por ocasião de sua visita ao educandário nos dias 11 e 12 de abril de 1881.
Em uma visita presencial à Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, o autor Pe. Zico localizou, na folha de rosto do livro “Chronicon” de Eusebius Pamphilius, bispo de Cesareia, a simples e delicada dedicatória, feita pelo Pe. Superior do Colégio Caraça. Não está assinada, mas pelo arquivo caracense facilmente se prova ser a letra do Pe. Júlio Clavelin, superior ou diretor de 1867 a 1885. A dedicatória, escrita em francês, é a seguinte: “À SA MAGESTÉ D. PEDRO II, EMPEREUR DU BRÉSIL, LE COLLÈGE DU CARAÇA RECONNAISSANT. 12 AVRIL 1881”, na folha de rosto do referido livro, doado a D. Pedro II.
E Pe. Zico informa :
"Hoje, no museu provisório do Caraça, o visitante poderá ver (...) um álbum com várias páginas fotocopiadas do famoso livro “Chronicon” de Eusébio, mostrando, além de sua classificação entre os incunábulos da Biblioteca Nacional (C.I.B.N.-Catálogo de Incunábulos da Biblioteca Nacional nº 58), a letra do Superior do Caraça, na folha de rosto, documentando a doação do livro a D. Pedro II, livro que “de bom grado lhe foi ofertado”, conforme registro em dois lugares: no próprio livro, deixado no Brasil (na Coleção D. Thereza Christina) e na Crônica do Colégio do Caraça.”
E o próprio Pe. Zico deixa evidente que segue à risca a lição de Louis Halphen: "Pas de documents, pas d'Histoire", ao exercer seus dotes de exímio historiador através de documento comprobatório, e não através de narrativas.
E crava terminativo: "Em assunto de doação, o registro, feito pelo doador, tem mais força do que se feito pelo beneficiado", absolvendo nosso segundo imperador por não ter anotado no seu "Diário" o mimo que recebeu do diretor do Caraça.
Principalmente o que importa é que D. Pedro II, diante de sua deposição, banimento e exílio, deixou para o seu amado Brasil a obra que injustamente lhe deu a inglória alcunha de bibliófilo leviano e inconsequente.

Para maiores informações, sugiro ao leitor  que consulte meu artigo intitulado "No Caraça... crime real?", publicado no Blog do Braga.


III. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BRAGA, F. J. S.: NO CARAÇA... CRIME REAL?, publicado no Blog do Braga em 24/12/2024
 
_______________: Ensaio sobre Eduardo Frieiro (I), publicado no Blog do Braga em 09/02/2009 
 
FRIEIRO, Eduardo: Os livros, nossos amigos, Edições do Senado Federal vol. 80, Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 198 p.
 
ZICO, Pe. José Tobias, CM.: Caraça e a Família Imperial, Belo Horizonte: Editora O Lutador, 1991, 104 p. Ilustr.

sábado, 21 de junho de 2025

PÚCHKIN E GONZAGA: da sanfoninha ao violão

Por BORIS SCHNAIDERMAN *

Transcrevemos com a devida vênia da revista USP, artigo publicado na edição de nº 45, p. 82-84, 2000.

 

O segundo centenário do nascimento de A.S. Púchkin, celebrado em 1999, foi acompanhado da publicação de muitos materiais importantes sobre o poeta russo ¹, mas não vi qualquer referência a um fato que nos interessa de perto: a tradução por ele de uma das liras de Gonzaga. Publiquei na década de 60 um artigo sobre esse tema ², e ele teve alguns desdobramentos, que vou recapitular aqui. 
Baseei-me então em materiais russos que me chegavam, com discussões sobre a relação entre os dois poetas, embora fosse então bem limitado o intercâmbio com instituições culturais soviéticas. A lira traduzida é a de número LXXI ³ e, segundo alguns estudos russos, ele se teria baseado na tradução, em prosa francesa, de E. de Monglave e P.Chalas . Pude convencer-me da exatidão desta referência, graças a um cotejo de textos, que efetivei a partir de uma indicação bibliográfica em Formação da Literatura Brasileira de Antonio Cândido. Este me informou então que havia um exemplar da tradução francesa na seção de livros raros da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Ela é precedida de um curioso prefácio, onde se lê:
Nous ne parlerons pas de notre traduction; le droit de la juger appartient tout entier au public. Fidèles au précepte d’Horace, nous ne nous sommes pas servilement astreints à rendre mot par mot, phrase par phrase. C’est le génie du poète le plus aimable de Portugal que nous avons essayé de faire passer dans notre langue, en regrettant que le peu de flexibilité de la prose française ne nous ait permis de donner à nos lecteurs qu’une bien faible idée de son harmonie imitative, de son rythme souple et varié, de son style tour à tour gracieux, profond et énergique.
Evidentemente, era muito vago, e Púchkin usou com muita liberdade o texto de Monglave e Chalas. Sem dúvida, este é fluente, harmonioso, muito legível até hoje, mas, além das diferenças devidas a uma tradução declaradamente livre, apresenta algumas incorreções. 
Eis ao que ficou reduzida (foi o erro mais grave na tradução desta lira) a estrofe “Na quente sesta,/dela defronte,/eu me entretinha/movendo o ferro/da sanfoninha”: “Dans les chaleurs de l’été, m’entretenant avec elle, je frappais négligemment les cordes de ma guitarre”. 
É claro que os tradutores franceses estranharam aquela “sanfoninha”, que lhes pareceu pouco ibérica ou sul-americana, embora ela seja bastante encontradiça nos versos de Gonzaga, marcando com sua presença aquele “ideal familiar e burguês”, que M. Rodrigues Lapa encontrou em suas liras. Aliás, ela surge logo na Parte I, Lira 1, onde o poeta afirma: “Com tal destreza toco a sanfoninha”, etc. Certamente, o ilustre magistrado se comprazia afirmando esta sua destreza. Mas, com toda a sensibilidade que tinha para tais pormenores, Púchkin só pôde colocar em suas mãos uma guitarra, devido à incorreção dos tradutores franceses. 
A ausência, também, de outros pormenores característicos de Gonzaga e do arcadismo brasileiro empobreceu inevitavelmente o poema, mas isto foi substituído por elementos típicos de Púchkin, que se guiou mais pela intuição poética do que pelo conhecimento do tema. Realmente, mesmo como homem de vastíssima cultura, a par de sua fama de boêmio incorrigível, ele só poderia saber muito pouco a respeito de Gonzaga, da escola mineira de poesia e das circunstâncias reais em que o poema se baseava. E assim mesmo, trabalhando com material tão precário, ele criou sem dúvida um dos poemas curtos mais belos da poesia russa. 
A par do impacto que lhe causou a leitura dos poetas ocidentais seus contemporâneos, Púchkin estava muito marcado pela poesia do século XVIII e percebe-se nele, pelo menos na primeira fase de sua obra, um gosto pelos elementos típicos do arcadismo, com uma freqüência grande de pastores e pastoras, geralmente com um toque erótico mais desbragado que o dos nossos árcades e um acentuado espírito brincalhão. Mas, tendo por baliza o texto francês, acabou expressando um lirismo bem mais comedido. 
Em meu artigo de 1962, escrevi: “É provável que apareça algum dia em russo uma tradução integral das liras de Gonzaga, pois a arte da tradução poética está particularmente desenvolvida na Rússia”. Realmente, não era necessário para afirmar isto nenhum dom divinatório, e já em 1964 a Editora Literatura, de Moscou, publicava a tradução de I. A. Tiniânova das liras e das Cartas Chilenas. E no prefácio ela expunha uma concepção diametralmente oposta à minha, depois de se referir às edições portuguesas de Gonzaga, aparecidas antes do poemeto puchkiniano: “Talvez algumas das pessoas chegadas a Púchkin, e que se interessavam pela literatura portuguesa, tenham tomado conhecimento de algumas dessas edições? Ademais, é difícil supor que uma tradução do francês, sem nenhuma consulta ao original, tenha sido designada por Púchkin não como uma imitação ou um poema a partir de Gonzaga, mas sim, com uma indicação precisa da língua da qual se fez a tradução: ‘Do português’, embora o poeta cuidasse com tanta meticulosidade de cada nuance no significado das palavras”. 
Realmente, Púchkin tinha diversos amigos que se interessavam pela poesia portuguesa e chegaram a aprender a nossa língua. E esse fato tem sido apontado por estudiosos russos. Um deles, N. O. Lerner, escreveu num artigo de 1916 (minha citação é indireta) que, sendo o texto posterior à estada de Púchkin em Odessa, ele poderia ter se encontrado ali com “portugueses ou levantinos que falavam português”. 
Todas essas lucubrações me parecem fantasiosas e pouco verossímeis. É verdade que Tiniânova está certa ao afirmar que Púchkin era muito rigoroso em matéria de tradução, asserção esta que se baseou tanto na atividade tradutória do poeta como em artigos seus sobre poesia traduzida. Mas, a par desta atitude severa, aparecia nele, às vezes, um gosto histriônico pela mistificação, pelo disfarce, pelo jogo livre com os textos, e que não se pode deixar de lado. Aliás, ambos estes aspectos aparecem claramente nos versos que traduzi com Nelson Ascher para uma coletânea de prosa e poesia de Púchkin . Se o poema “Antchar” traz referência exata ao texto de Coleridge que lhe serviu de ponto de partida, “Corvos” é na realidade paráfrase de uma balada escocesa, sem que isto seja referido no texto. 
Todavia, as suposições de Tiniânova tiveram bastante aceitação. As dificuldades de comunicação entre o Brasil e a Rússia, mesmo antes de 1964, impediram-me de tomar conhecimento, na época, de dois estudos sobre esse tema publicados pelo importante comparatista M. P. Aleksiéiev (recentemente falecido) nos anais da Academia de Ciências da URSS, um deles anterior ao meu texto e outro um pouco posterior. No entanto, ele os reelaborou e transformou num ensaio que aparece em seu livro Púchkin e a Literatura Mundial . Finalizando o ensaio, ele escreveu: “As observações feitas por I. A. Tiniânova a respeito do original português são interessantes, mas apesar disso não decidem definitivamente o problema do texto que Púchkin teve em mãos. Observemos, em relação a isto, que eslavistas brasileiros atuais continuam achando que a tradução de Púchkin tenha sido feita a partir da tradução francesa em prosa” . Segue-se uma citação de meu artigo de 1962. A meu ver, tanto no caso de Aleksiéiev como de Tiniânova, faltou um cotejo do poema de Púchkin com a tradução de Monglave e Chalas. No artigo em questão, eu me recusava categoricamente a expor em prosa algo que fora escrito em versos (e que versos!). Mas agora não posso deixar de recorrer à “desprezível prosa”, como dizia o próprio Púchkin, tão cônscio do limiar entre uma e outra 
Na passagem citada, temos: “Vindo de longe, a donzela aproximava-se de mim. Eu cantava ao encontro de minha bela, tangendo a guitarra”. (Aliás, Púchkin utiliza um termo russo bem onomatopaico para “tangendo”: “briatzaia”.) Nesta passagem, ele afasta-se tanto do original de Gonzaga como de sua tradução francesa. Mas o aparecimento daquela “guitarra”, em lugar da pitoresca “sanfoninha”, parece indicar maior proximidade com o texto de Monglave e Chalas. No caso, uma coincidência é bastante inverossímil. Em todo caso, isso nos confirma que ele chegava a tratar os textos estrangeiros com bastante liberdade. 
O seu gosto pronunciado pelo jogo e a mistificação deu origem a diversas situações bem curiosas. Foi o caso, por exemplo, dos seus Cantos dos Eslavos Ocidentais. Segundo nota a uma das edições das obras completas pela Academia de Ciências da URSS , eles consistem em três textos criados pelo próprio poeta, dois traduzidos de uma coletânea de canções sérvias e doze paráfrases de poemas que Prosper Mérimée publicou, sem assinatura, no livro La guzla, ou choix de poésies Illyriques, récueillies dans la Dalmatie, la Bosnie, la Croatie et l‘Hérzégovine. Depois de concluir a sua coletânea, Púchkin pediu a um amigo comum que se informasse com o escritor francês sobre o organizador e tradutor do livro. Esse amigo recebeu então uma carta muito espirituosa de Mérimée, onde este confessava ter forjado os textos e dizia: “Faites mes excuses à M. Pouchkine. Je suis fier et honteux à la fois de l’avoir attrapé”, etc. O poeta russo incluiu essa carta no prefácio à sua coletânea, dando conta assim daquela mistificação de Mérimée, mas sem dizer nada sobre os três poemas que ele mesmo havia forjado ¹
Também a paráfrase do poema de Gonzaga faz parte daquela busca da contribuição poética dos mais diversos povos, que Púchkin absorveu vorazmente e transmitiu a seu público. Assim, muitos momentos da poesia mundial são assimilados pelos russos como parte de seu próprio universo poético graças a este crivo puchkiniano tão pessoal e, ao mesmo tempo, tão ligado às culturas mais diversas.
 
Fonte: REVISTA USP, São Paulo, nº 45, pp. 82-84, março/maio 2000. 
 
* Traduziu Púchkin, Tolstói e Dostoiévski, entre outros. Trabalhou também em companhia dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e é um dos grandes nomes no que tange às reflexões sobre tradução no Brasil.
 
 
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS
 
 
¹ Alguns dados biográficos novos podem ser encontrados em A. S. Púchkin, A Dama de Espadas e Outros Contos (São Paulo, 34 Letras, 1999), com traduções minhas em prosa e alguns poemas traduzidos em colaboração com Nelson Ascher. 
 
² Boris Schnaiderman, “Púchkin, Tradutor de Gonzaga”, in Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, 16/6/1962. O presente trabalho é um desenvolvimento desse artigo, que foi reproduzido com alguns acréscimos no nº 1 da revista Tradterm, desta Universidade (1994), e na publicação Fortaleza Voadora (Fortaleza, s.d.) 
 
³ P. 127, vol. I, da edição crítica de M. Rodrigues Lapa (Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1957). Em outras edições, a numeração é diferente. 
 
Marilie – chants élégiaques de Gonzaga, traduits du portugais par E. de Monglave et P. Chalas, Paris, C. L. I. Panckoucke, éditeurs, 1825. 
 
A. S. Púchkin, op. cit
 
M. P. Aleksiéiev, “Púchkin i Brasílskii Poét” (“Púchkin e Um Poeta Brasileiro”) in Púchkin i Mirovaia Litieratura (Púchkin e a Literatura Mundial), Leningrado, editora Naúka (Ciência), 1987. 
 
Op. cit., p. 559. 
 
No poema narrativo “O Conde Núlin” aparecem os versos “Nos últimos dias de setembro / (Falando em desprezível prosa)”. 
 
Obras Completas de A. S. Púchkin em 10 volumes, Moscou, edição da Academia de Ciências da URSS, 1956-58. 
 
¹Op. cit., vol. III, p. 286.
 
 
III. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
ALVES, Dário Moreira de Castro: EUGENIO ONEGIN: ROMANCE EM VERSOS, prefácio da autoria de Adelto Gonçalves e tradução do Embaixador Dário (1928-2010), Moscou: Azbooka Atticus, 2008 (edição russo-portuguesa)
 
GONÇALVES, Adelto: GONZAGA, UM POETA DO ILUMINISMO, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, 544 p.
 
PIMENTEL, A. Fonseca: GONZAGA E PUCHKIN > > > PARTE I, publicado no Blog de São João del-Rei em 24/09/2017
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2017/09/gonzaga-e-puchkin-parte-i.html

____________________: GONZAGA E PUCHKIN > > > PARTE II, publicado no Blog de São João del-Rei em 24/09/2017
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2017/09/gonzaga-e-puchkin-parte-ii.html

____________________: A PROPÓSITO DE UMA LIRA DE GONZAGA, publicado no Blog de São João del-Rei em 28/09/2017
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2017/09/a-proposito-de-uma-lira-de-gonzaga.html
 
 
SCHNAIDERMAN, Boris. PÚCHKIN E GONZAGA. DA SANFONINHA AO VIOLÃO. Revista USP, São Paulo, Brasil, n. 45, p. 82–84, 2000. DOI: 10.11606/issn.2316-9036.v0i45p82-84. Disponível em: https://revistas.usp.br/revusp/article/view/30116 (Acesso em: 19 jun. 2025).

quinta-feira, 19 de junho de 2025

COLINA HELVÉTICA EM SÃO JOÃO DEL-REI


I. Por Maria Auxiliadora Muffato (Gina) 
Os salesianos são uma das jóias da região que abrange os bairros Dom Bosco e Bela Vista. Instalaram-se na chamada “Colina Helvética” (cocuruto que se estende até a atual Rua Bárbara Heliodora), que era área de propriedade da Mitra Diocesana de Mariana cujo bispo era o salesiano Dom Helvécio Gomes de Oliveira. Foi ele quem estabeleceu os salesianos em São João del-Rei, tendo inclusive implantado o seminário ¹, conta o Pe. Fernando Anuth, SDB (✰ 21/01/1933 ✞ 17/09/2024).  

 

Santuário Dom Bosco. Ao fundo, atual Campus da UFSJ, no antigo prédio da Faculdade Dom Bosco e do Colégio Dom Bosco.
 
No solo da colina, um sonho e uma ideia foram plantados: a nova paróquia fora criada; um templo seria edificado, e um seminário se postaria ao lado dele. Por decreto do salesiano Dom Helvécio Gomes de Oliveira, arcebispo de Mariana, foi criada em 1936 a Paróquia de São João Bosco. Em seguida, iniciou-se a construção da igreja matriz, em terras de uma família de sobrenome Machado  assim dizem , adquiridas pela Mitra de Mariana. Deu-se ao local o nome de Colina Helvética. A nova paróquia nasceu para homenagear Dom Giovanni Melchior Bosco (1815/1888), do clero diocesano de Turim, canonizado em 1934. Foi ele o fundador da Congregação dos Salesianos, cujo patrono é Francisco de Sales (1567/1622), o “santo cavalheiro”, dotado de nobreza, paciência e gentileza, virtudes bem ao gosto de Dom Bosco. 
Foi assim que a história começou: no alto do morro já existia a capela do Albergue Santo Antônio *. Inaugurado em 1912, esse asilo foi criado pelos vicentinos do Pilar, com o incentivo de Frei Cândido Wroomans, um frade holandês, do Convento São Francisco. Ali eram abrigados e assistidos mendigos, idosos e doentes desamparados, e os sem teto que perambulavam na periferia da cidade, na área conhecida como “rua da fábrica”. Esse frade franciscano, dotado de bondade e compaixão, destacou-se por suas obras beneficentes em prol da comunidade e conduziu o albergue até 1927, quando, tendo sido transferido para o Rio de Janeiro, confiou-o à responsabilidade das Irmãs Carmelitas da Divina Providência. 
Por volta de 1929, recém-chegado da Itália, Pe Francisco Tortoriello requereu de Dom Helvécio o uso de ordens, e do pároco do Pilar a incumbência de prestar assistência religiosa à população da dita área das fábricas. Criada a paróquia, a mesma desmembrou-se da Paróquia do Pilar (a única existente até então), e passou a ter sua sede provisória na capela Santo Antônio até que se construísse a igreja matriz. Como sede de paróquia, batizados, casamentos e outros ofícios ali poderiam ser realizados. Pe. Tortoriello celebrava a missa das cinco da manhã para atender os operários; organizou o “pequeno clero” ou coroinhas, assistidos pelo Sr. João Ciríaco; ao Sr. Djalma Assis confiou a Congregação Mariana. Atuou por dez anos como primeiro pároco. Sob a orientação do inspetor Pe. Orlando Chaves, levou a obra de construção da igreja até o ponto do telhado. Em 1946, semi-pronta a igreja, a paróquia pôde, então, transmudar-se da capelinha do albergue para sua sede nova e definitiva. 
A partir de 1936, os salesianos foram chegando a São João del-Rei, graças ao incentivo do então prefeito, Sr. José Nascimento Teixeira. Vieram enviados pela Inspetoria N. Sra. Auxiliadora, sediada em São Paulo, a pedido de Dom Helvécio. Tinham como finalidade iniciar a obra salesiana na cidade. Instalaram-se num casarão de dois andares, onde tinha funcionado uma escola de artes e ofícios (1923/1939)  obra fundada por Frei Cândido e a União Popular (situada na Avenida Leite de Castro,  62). Tal prédio existiu onde hoje é a Cacel. Na época, o terreno pertencia à Arquidiocese de Mariana e tinha comunicação com o Albergue. A partir de 1939 acomodou-se ali o primeiro núcleo dos filhos de Dom Bosco: os padres Francisco Gonçalves ², Fernando Henning ³ e Sidrac Valarino  (secretário particular de Dom Helvécio) ; o clérigo Ralfy Mendes e o irmão leigo Aldo. Esses pioneiros iniciaram o trabalho com cerca de 30 internos “aspirantes” ou seminaristas. 
 
Os primeiros aspirantes do Colégio São João - Crédito: encarte entre as pp. 78 e 79  no livro do Pe. Ralfy Mendes
 
Aos domingos abriam o espaço para outros meninos  sistema Dom Bosco “ora et labora”: lazer, catecismo, oração e trabalho. Meus tios Zezé, Pedro (hoje Monsenhor Terra) e Paulo foram dos primeiros a frequentar o “Oratório”, pois moravam bem perto, do outro lado da avenida Leite de Castro. Esse seminário improvisado funcionou até 1943, ocasião em que, ainda inacabados os cômodos do prédio novo, o internato para ali se transferiu, e passou a ser chamado de Colégio São João; tempos depois foi inaugurado o externato. 
Mais dois oratórios foram criados nos moldes do Oratório Festivo São João: o de São Caetano, em terreno doado pela família Nascimento Teixeira; e o de Santa Terezinha, com o apoio da família do Sr. Severino Giarola
Oratório Festivo São Caetano - Crédito: encarte entre as pp. 168 e 169  no livro do Pe. Ralfy Mendes

Inauguração do Oratório Festivo Santa Terezinha - Crédito: encarte entre as pp. 184 e 185  no livro do Pe. Ralfy Mendes
 
Colégio São João (primitivo) e Oratório Festivo São João - Crédito: encarte entre as pp. 82 e 83 no livro do Pe. Ralfy Mendes

Também tivemos a Escola Agrícola Padre Sacramento, fundada em 1929, dirigida pelos salesianos de 1943 até 1973, ano este em que a Congregação se afastou da direção dessa escola, também conhecida como Patronato
Escola Agrícola Pe. Sacramento - Crédito: encarte entre as pp. 106 e 107 no livro do Pe. Ralfy Mendes
 
Em 1947 foi nomeado o primeiro pároco salesiano, Pe. Francisco Gonçalves, que também dirigiu o Aspirantado ou o Colégio São João desde o seu início. Faleceu naquele mesmo ano, aos 36 anos, tomado de uma moléstia rápida, não identificada. Sucedeu-lhe o Pe José Vasconcelos na continuação das obras da matriz. 
No período de 1946 a 1947, o pároco Pe. Duarte Costa tratou de dar acabamento e embelezamento à igreja moderna, de linhas elegantes. 
Santuário São João Bosco (esq.) e Colégio São João (dir.) - Crédito: encarte entre as pp. 90 e 91 no livro do Pe. Ralfy Mendes

Santuário São João Bosco em setembro de 1951 - Crédito: encarte entre as pp. 228 e 229 no livro do Pe. Ralfy Mendes

Colégio São João em 1950 - Crédito: encarte entre as pp. 220 e 221 no livro do Pe. Ralfy Mendes
 
A torre e o relógio foram inaugurados em 1952 para comemorar as bodas de ouro sacerdotais de Dom Helvécio e seu irmão Dom Emanuel Gomes de Oliveira. Duarte, esse entusiasmado sacerdote, incrementou as associações religiosas, prestou assistência às Obras do Tabernáculo, deu vigor ao catecismo paroquial, organizou o corinho infantil das “cantorinhas”; fotografou muito, registrando passagens do crescimento da matriz: procissões, catecismo, primeira comunhão, coroações, piqueniques, barraquinhas, cenas com os meninos do colégio... e muito mais. 
Assim, a Paróquia São João Bosco seguiu confiante na missão de evangelizar, difundir cultura e lazer, acolher os jovens, assistir comunidades carentes. Pelas décadas seguintes, gradativamente foi conquistando o carinho, a confiança e a admiração do povo são-joanense. 
Meus agradecimentos ao Monsenhor Pedro Terra e Pe. Fernandinho por seus depoimentos; ao historiador José Antônio de Ávila Sacramento pelas preciosas informações que obtive em sua publicação OS SALESIANOS EM SÃO JOÃO DEL-REI. 
 
Fonte: MUFFATO, Maria Auxiliadora: Colina Helvética-1936, Jornal da ASAP no bimestre jan/fev 2020, São João del-Rei-MG


II. Por José Venâncio de Resende 
 
Vista aérea do Santuário Dom Bosco. Ao fundo, atual Campus da UFSJ, no antigo prédio da Faculdade Dom Bosco e do Colégio Dom Bosco.

 
Os salesianos chegaram a São João del-Rei em 1936, de acordo com o professor aposentado da UFSJ João Bosco de Castro Teixeira. “Instalaram-se em precárias situações, no pequeno Colégio São João, onde hoje se encontra a Cacel (Concessionária Volkswagen).” 
A comunidade dos salesianos foi aberta pelo superior da Congregação Dom Orlando Chaves, acrescenta Padre Fernando Anuth. Na ocasião, o bispo de Mariana, Dom Helvécio, abriu mão do seu secretário, padre Sidrac Valarino, para garantir o número necessário à criação da comunidade. 
Anteriormente, no subsolo da casa do industrial e político José do Nascimento Teixeira, no centro histórico, funcionava um espaço onde se preparavam candidatos a seminaristas salesianos, assinala Padre Fernando. 
Em l943, os salesianos transferiram-se para o local onde hoje se encontra o Campus Dom Bosco, mantendo no primeiro local o Oratório Festivo São João (havia na cidade outros dois oratórios festivos: nos bairros de Santa Terezinha e São Caetano), relata João Bosco. 
Aspirantes salesianos em 1944 - Crédito: encarte entre as pp. 96 e 97 no livro do Pe. Ralfy Mendes 
 
“Quando eu cheguei em 1945, a construção do seminário estava pronta”, acrescenta Padre Fernando, ele mesmo seminarista na época. 
 “A igreja, que começou com o padre diocesano Francisco Tortoriello e depois passou para os salesianos, estava sem a torre”, prossegue Padre Fernando. Padre Tortoriello foi o primeiro pároco, tendo administrado a Paróquia São João Bosco no período de 1939 a 1947. A Paróquia foi instituída por decreto de Dom Helvécio e funcionou provisoriamente na capela do Albergue Santo Antônio até a conclusão da igreja em 1946. 
 “A Paróquia São João Bosco foi a primeira paróquia do mundo dedicada a Dom Bosco, que havia sido canonizado em l934, assinala João Bosco. “O Santuário Dom Bosco foi sendo construído aos poucos. Sua inauguração, com a alta torre completa, se deu l954. Entre as várias capelas da Paróquia, uma teve particular atenção por parte dos salesianos: a capela de São Geraldo.” 
A Paróquia que os salesianos receberam abrangia o Matosinhos, explica Padre Fernando.  “A área onde funcionava o Oratório Festivo (centro paroquial de educação, convívio e diversões voltado a crianças e jovens), na Vila Santa Terezinha, pertencia à Inspetoria Salesiana São João Bosco, lembra. Com a criação da Paróquia de Matosinhos, houve uma permuta de área com a Diocese e parte do terreno da Paróquia na Colina Helvética passou aos salesianos.
 
Faculdade 
 
A Faculdade Dom Bosco-FDB foi instalada em 1954, tendo como orador oficial Tancredo Neves (então ministro da Justiça de Getúlio Vargas), informa João Bosco. “A Faculdade inicialmente servia apenas aos seminaristas. Posteriormente, ainda na década de 1950, aos alunos e alunas externos. Em l957, a Faculdade instalou o primeiro laboratório de psicologia experimental da América Latina, importado diretamente da Itália. Parte notável dos trabalhos da Faculdade deu-se no Laboratório de Pedagogia e Psicologia.” 
As atividades da Faculdade Dom Bosco e do Colégio São João foram encerradas em l986. Os padres salesianos venderam o patrimônio físico do Colégio e da Faculdade ao Governo brasileiro, uma vez que o projeto de criação da instituição federal havia sido aprovado em dezembro de 1986. João Bosco Teixeira, que fora diretor da Faculdade entre 1973 e 1975, tornou-se o primeiro dirigente da Fundação Federal de Ensino Superior (FUNREI), oficialmente implantada em 21 de abril de l987, predecessora da UFSJ. 
 
Instituto Nossa Senhora Auxiliadora 
 
A família salesiana ampliou-se, em 1956, com a fundação do Instituto Auxiliadora pela Irmã Nair Gonçalves de Oliveira, irmã do padre Francisco Gonçalves, primeiro diretor do Colégio São João (1939-1947), informa a diretora pedagógica Magaly Aquino Gomes Rosa. (...) Durante cerca de cinco anos, o Instituto funcionou junto ao Colégio São João. Em 1961, tornou-se independente e deu início ao curso normal, de formação de professoras, que educou jovens durante três anos. Funcionavam juntos os cursos primário, ginasial e a faculdade.
“A escola foi fundada para dar apoio à Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, encarregando-se do setor feminino que, a partir daquele ano, estaria aberta aos jovens e às jovens de São João del-Rei e de toda a região”, diz um texto institucional. “Era também um tempo em que havia necessidade de se formar professores e a criação da escola beneficiava a todos.” 
Em 1974, foi reconhecido o ensino de 1º e 2º graus do Instituto Auxiliadora, que passou a ser misto. A partir daí, a escola ficou mais estável, passando a ser Escola de Aplicação da Faculdade Dom Bosco. Nesta época, padre Fernando assumiu a administração da Faculdade Dom Bosco, cargo que ocupou até 1985. 
A partir de 2001, o Instituto Auxiliadora passou a integrar a Rede Salesiana de Escolas, que reúne os salesianos e as Filhas de Maria Auxiliadora. 
 
Fonte: RESENDE, José Venâncio: Bairros são-joanenses: as jóias do Dom Bosco e da Bela Vista, Resende Costa: Jornal das Lajes, coluna Cidades, edição de 18/06/2019 
 
 
III. NOTAS EXPLICATIVAS por Francisco José dos Santos Braga, gerente do Blog
 
¹ Considero necessário esclarecer que a obra salesiana em São João del-Rei contou com o concurso de quatro agentes fundadores: por iniciativa do Pe. Inspetor da Inspetoria Maria Auxiliadora do Sul do Brasil, Pe. Orlando Chaves, com a bênção e o válido apoio de Dom Helvécio Gomes de Oliveira, salesiano conforme mencionado; com o trabalho dos cooperadores salesianos da cidade de São João del-Rei, destacando-se a figura do industrial e político José do Nascimento Teixeira, antigo cooperador das Obras de Dom Bosco, pai de dois filhos salesianos, segundo [MENDES, 1951, 79]; e, finalmente, com a escolha de Pe. Francisco Gonçalves de Oliveira, um padre trabalhador, disposto ao sacrifício e inflamado de zelo pelas vocações. 
 
²  Eis, de acordo com [MENDES, ibidem, 9-82], um breve resumo que fiz da biografia de Pe. Francisco Gonçalves até sua chegada a São João del-Rei em 19 de dezembro de 1939. 
Pe. Francisco Gonçalves - Crédito: foto no livro de Pe. Ralfy Mendes, p. 3
 
Francisco Gonçalves de Oliveira, apelidado Chichico, nasceu a 21/02/1911 no distrito de Prudente de Morais, município de Matosinhos-MG. Filho de Francisco Gonçalves Mascarenhas e D. Maria José de Oliveira, apelidada D. Mariquinhas. Aos 5 anos de idade, ficou órfão de pai. Quatro anos mais tarde, D. Mariquinhas conseguiu, por recomendação do Dr. Francisco de Sales, ex-presidente de Minas e Ministro da Fazenda, lugares gratuitos para dois filhos José e Antônio, nas Escolas Dom Bosco de Cachoeira do Campo. Em 1922, Chichico concluiu o curso primário no Grupo Escolar de Prudente de Morais, ocasião em que a mãe conseguiu um lugar para ele nas Escolas Dom Bosco com a vaga do irmão José, que desejoso de ser padre, partia para o Aspirantado salesiano de Lavrinhas-SP. Naquela ocasião, Lvrinhas era uma pequena vila, distante 7 km da cidade de Cruzeiro. Ingressando nas Escolas Dom Bosco, Tinha verdadeira veneração pelo seu diretor Pe. Carlos Peretto e mostrava-se sempre muito grato ao coadjutor Sr. Fontoura. O Pe. Alcides Lana, inspetor salesiano, naquela época conselheiro escolar em Cachoeira do Campos, teria se referido a Chichico como um outro Domingos Sávio, tendo para si que conservou sempre a inocência batismal, conservando-se uma criatura angelical. Lavrinhas o recebeu paternalmente Pe. André Dell'Oca, diretor do estabelecimento. Em 1929 ingressou no noviciado salesiano e em 8 de dezembro do mesmo ano pediu ao Pe. Diretor para ser aceito aos votos religiosos que veio a professar em janeiro próximo, válidos pelos próximos 3 anos. Em seguida, o novo clérigo cursou dois anos de Filosofia, habilitando-se a tornar-se assistente e professor. Em seu 2º ano de Filosofia foi escolhido para catequista do Oratório Festivo de Cruzeiro. No ano seguinte, 1932, os superiores acharam conveniente que ficasse mesmo em Lavrinhas como assistente e professor dos aspirantes. Certo de sua vocação religiosa, em vez de renovar os votos por mais 3 anos, apresentou-se ao inspetor Pe. André Dell'Oca e pediu-lhe fazê-los logo perpétuos, no que foi atendido. No ano de 1933, foi entregue ao clérigo Francisco a divisão de médios, a mais difícil, em vista da idade dos alunos (de 14 a 16 anos). No ano seguinte foi ele transferido para assistir a divisão dos menores. Da mesma época, foi a sua oferta para auxiliar, ou melhor, para fundar o Oratório Festivo na vila de Cachoeira do Campo. No fim de 1934 estava terminado para ele a prova do tirocínio prático em que triunfara habilmente. Ainda neste período, traduziu do italiano o livro O Jardim dos Eleitos, sobre a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, da autoria do Pe. João Bonetti. Em 1935, o clérigo Francisco ingressou no curso de Teologia no Instituto Teológico Pio XI que, então, se achava no bairro de Santana (São Paulo), onde hoje se encontra o Externato Santa Teresinha. Infelizmente, neste ano sofreu ele um abalo na saúde, sendo obrigado a interromper os estudos para passar algum tempo em Cachoeira do Campo. Com essa retirada estratégica, conseguiu fazer bem os exames finais e foi admitido ao subdiaconado, Ordem que recebeu em 18/12/1937. Finalmente, chegou o último ano de preparação ao sacerdócio. Em 12 de março de 1938 recebia o diaconado das mãos de Dom José Gaspar, bispo auxiliar de São Paulo e em 8 de dezembro do mesmo ano recebeu a ordenação sacerdotal das mãos de Dom José Gaspar de Affonseca e Silva, na Catedral provisória de Santa Ifigênia, em São Paulo. Durante a longa função, doente como estava desmaiou mais de uma vez, sendo preciso tomar injeção e quebrar o jejum. No princípio de 1939 Pe. Francisco aguardava a determinação dos superiores a respeito do lugar em que devia trabalhar. A casa privilegiada para recebê-lo foi a de Cachoeira do Campo. Recebeu o carogo de conselheiro escolar, o responsável pelo procedimento dos alunos e aplicação aos estudos. Em maio desse ano, o novo inspetor salesiano, Dom Orlando Chaves, visitando aquela casa, achou que havia nela grande disciplina, muita aplicação ao estudo e muita piedade, um ambiente parecido ao de um aspirantado. Nesse ano de 1939, toda a inspetoria, que abrangia todos os estados do Sul, desde Minas ao Rio Grande do Sul, não tinha mais do que 220 aspirantes. Multiplicavam pedidos de toda a parte, implorando que os salesianos abrissem novas casas ou que se dispusessem a cuidar de colégios já construídos e aptos a funcionar, mas os superiores viam-se obrigados a recusar a oferta por falta de salesianos. Eles se conscientizaram de que a solução de tão grave problema estava em aumentar as vocações, abrir novos aspirantados. Foi assim que Dom Orlando Chaves iniciou inteligentemente, como inspetor, essa cruzada admirável de ver aumentada a quantidade de aspirantes e clérigos da inspetoria do Sul, longo desdobrada em duas. Feita a propaganda para o aumento das vocações, era necessário construir novos aspirantados. Aconselhado por Dom Helvécio, salesiano e arcebispo de Mariana, escolheu o inspetor a cidade de São João del-Rei para lá colocar um novo aspirantado, tendo em vista que todos os anos se reuniam lá, na casa do saudoso cooperador Sr. José do Nascimento Teixeira, grupos de meninos que eram depois levados para Lavrinhas. Julgou-se de bom alvitre encurtar esse caminho. Como era preciso, quanto antes, escolher um padre trabalhador, disposto ao sacrifícios e inflamado de zelo pelas vocações, a escolha recaiu sobre Pe. Francisco. Foi assim que chegou a essa cidade, a 19 de dezembro de 1939, Pe. Francisco Gonçalves, trazendo consigo, para ajudá-lo, um moço aspirante, Aldo Maia. A casa destinada ao aspirantado era o velho edifício do Liceu de Artes e Ofícios, da Avenida Leite de Castro. Para funcionar provisoriamente o colégio, Dom Helvécio cedeu aos salesianos o uso desse prédio, pertencente à Mitra da Arquidiocese Marianense. Tendo ficado o casarão abandonado por algum tempo, precisava agora de sérias reformas e adaptações. Para a reforma do prédio, os cooperadores, os amigos da obra salesiana desta cidade e a prefeitura municipal se incumbiram generosamente da reforma e adaptação do prédio. Os trabalhos se iniciaram logo, contribuindo com o seu auxílio o padre diocesano, vigário da Paróquia de São João Bosco, Cônego Francisco Tortoriello, que se mostrou bom amigo de Pe. Francisco e dos salesianos. No início de fevereiro de 1940 * já o Pe. Francisco transferia para lá sua residência e alguns aspirantes começaram a chegar. Vieram também ajudá-lo nesta obra o clérigo Emílio Pedro e o irmão coadjutor Sr. Antônio Firmiano Santana: aquele assistiria e daria aula aos meninos, enquanto este tomaria conta da dispensa, cozinha e horta. Um grande reforço enviou também Dom Helvécio na pessoa do seu secretário, Pe. Sidrac Valarino, salesiano. 
Essas são ligeiras anotações ou breve resumo da biografia de Pe. Francisco Gonçalves até sua vinda para São João del-Rei. [MENDES, idem, 7] menciona que em sete anos que viveu em São João del-Rei, angariou tantas simpatias e amizades que, depois de morto, foram 18.000 os que lhe foram levar o último adeus no cemitério! Isso aconteceu no dia 23 de julho de 1947.
Uma das últimas fotografias de Pe. Francisco Gonçalves - Crédito: encarte entre as pp. 134 e 135 do livro de Pe. Ralfy Mendes

³  Pe. Fernando Henning foi um salesiano que dirigiu o antigo Patronato no Bengo. Este benfeitor das obras salesianas em São João del-Rei é lembrado com a denominação de um logradouro em São Gonçalo de Amarante, distrito da cidade.
 
Segundo [MENDES, idem, 80], Pe. Sidrac Valarino prestou um grande auxílio ao incipiente aspirantado, não só como confessor dos meninos, como também nos trabalhos que empreendeu para canalizar as águas do terreno e fazer os pátios para os alunos.

Pe. Ralfy Mendes, S.D.B., nasceu no dia 11 de julho de 1917 em Campo dos Goytacazes-RJ e faleceu na mesma cidade, sendo seu corpo sepultado em Comendador Venâncio-RJ em 04/03/2008
Segundo o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, Pe. Ralfy Mendes de Almeida, S.D.B., foi ordenado padre em dezembro de 1950. Foi atuar na cidade mineira de São João del-Rei, onde ajudou a criar a Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras. Em São Paulo, foi membro da Editora Salesiana, tendo fundado, em 1977, a “Revista de Catequese” que dirigiu por 12 anos. Formou-se em Pedagogia pela Universidade Pontifícia Salesiana, em Roma. Lecionou catequética no Instituto Teológico Pio XI. Foi assessor de catequese na CNBB, e também membro do Departamento de Catequese do CELAM e do Conselho Internacional de Catequese em Roma. Faleceu aos 90 anos de idade no Hospital Álvaro Alvim, em Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro.
Sua atuação na música popular se deu quando na década de 1960, foi um dos diretores do grupo vocal Os Pequenos Cantores da Guanabara para o qual compôs ainda inúmeras músicas. Em 1962, o LP “Vozes da Cidade Maravilhosa”, o primeiro lançado pelo grupo Os Pequenos Cantores da Guanabara incluiu as suas composições “Sonhei”, “Favela diferente” e “Ok”, todas composições solo, além de “Bem-te-vi”, com o Padre M. Albuquerque. No mesmo ano, visando as festas natalinas o grupo lançou o LP “Feliz Natal” com a Orquestra de Paulo Monteiro de Souza, interpretando 12 temas clássicos da festa da cristandade, incluindo duas composições suas: “Árvore de Natal” e  “Estrelinha cintilante”. Em 1963, teve duas marchas incluídas na coletânea “Chegou a folia! – Os sucessos do carnaval de 1963” da gravadora Philips com a interpretação do grupo Os Pequenos Cantores da Guanabara: “Bebê chorão” e “O trombone do Ferdinando”. Em 1964, o grupo lançou o LP “Lotação para a lua” com a interpretação da música-título de sua autoria, tendo composto também para este LP as músicas “Guanabara linda”, “Ave Maria dos estudantes”, “Chapeuzinho Vermelho”, “Pingente da Central”, “Andorinhas” e “Se eu fosse um peixinho”. Teve quinze músicas gravadas pelo grupo Os Pequenos Cantores da Guanabara, incluindo valsas, canções de Natal e até mesmo marchas carnavalescas.
 
De 19 de dezembro até 27 de janeiro, consta que eles ficaram 4 dias hospedados em casa de Cel. José do Nascimento Teixeira, e pouco mais de um mês no Albergue Santo Antônio, dirigido pelas beneméritas Irmãs Carmelitas Terceiras Regulares, situado nas vizinhanças do Colégio São João. Exatamente no dia 28 de janeiro de1940 começam a habitar no colégio o Pe. Francisco Gonçalves, o coadjutor Aldo Maia, o clérigo José Teixeira e os três primeiros alunos que se internaram: três irmãos João, Adolfo e Silvério Carvalho Ribeiro.
No dia 31 de janeiro de 1940, o colégio é inaugurado oficialmente, às 7h 30 min, com Missa festiva de São João Bosco na Matriz provisória de São João Bosco, celebrada pelo Exmo. e Revmo. Dom Serafim Jardim, arcebispo de Diamantina, convidado para os atos inaugurais. À Missa seguiu-se a bênção do edifício pelo mesmo arcebispo. Na entrada da capelinha cortou a fita inaugural o Exmo. Sr. Dr. Antônio das Chagas Viegas, Prefeito Municipal de São João del-Rei, proferindo uma alocução sobre a obra salesiana e as esperanças da nova fundação. Assistiram à Missa e ao ato da inauguração as autoridades locais, os cooperadores da cidade e grande número de amigos e convidados.” (Texto extraído de escritos particulares do saudoso Pe. Francisco Gonçalves)
 

IV. AGRADECIMENTO

 
O gerente do Blog agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga pela formatação do registro fotográfico utilizado neste trabalho. 
 
 
 
V. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRAGA, Francisco J.S.: FDB-FACULDADE DOM BOSCO DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS, publicado no Blog do Braga em 17/05/2022
 
_____________________:  FORMATURAS SOLENES, PARANINFOS E ORADORES NA FDB-FACULDADE DOM BOSCO DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS, publicado no Blog do Braga em 27/05/2025

_____________________: Meu mestre inesquecível Padre Luiz Zver, SDB      > > >  1ª  Parte, publicado no Blog do Braga em 12/03/2010

MENDES, Pe. Ralfy: AMOR... ALEGRIA... SACRIFÍCIO. UMA FLOR SALESIANA DO BRASIL: Vida do P. Francisco Gonçalves, Belo Horizonte: III Série: Leituras Edificantes, vol. 1, 1951, 259 p.
Link: https://dicionariompb.com.br/artista/padre-ralfy-mendes/

ZVER, Gabriela: LUIZ ZVER – Natural de Dokležovje, ligado espiritual, intelectual e profundamente ao Brasil, mas também a Lendava (1913–2005), publicado no Blog do Braga em 02/03/2021