sábado, 26 de abril de 2025

PREITO DE GRATIDÃO A DR. MILTON DE RESENDE VIEGAS (1918-2009)

Por Ary Rodrigues *
Matéria publicada originalmente na Apresentação da Revista da Academia de Letras de São João del-Rei, Ano I - nº 1 - 2005, pp. 7-8.
Academia de Letras de São João del-Rei ocupa todo o 2º andar do prédio - Crédito pela foto: BCA/Divulgação

Professor Ary Rodrigues, presidente da Academia de Letras de São João del-Rei no biênio 2003-2004

Nos idos de 1971, o então dinâmico Prefeito desta vetusta e histórica cidade, Dr. Milton de Resende Viegas, numa feliz e inspirada ideia, através de um Decreto criava a "Academia Sanjoanense de Letras", hoje denominada Academia de Letras de São João del-Rei. No afã de proporcionar a esta cidade, cultora há séculos das letras e das artes, berço de escritores, poetas e artistas dos mais renomados, entregou a novel instituição a uma plêiade de intelectuais escolhidos pelo termômetro do amor à querida terra e pelo tempo de estudo, leitura e dedicação aos mais variados assuntos culturais, colocando sempre o desejo e a intenção de fazer para São João del-Rei aquilo que melhor fosse, no sentido do seu desenvolvimento cultural, no respeito à sua história, às suas tradições e sobretudo à sua vocação de berço da Liberdade, celeiro de homens que deram à Pátria as mais significativas demonstrações de amor e dedicação à causa das nobres tradições herdadas dos nossos antepassados. 
 
Os senhores membros fundadores desta egrégia Academia, ébrios de entusiasmo, souberam, com denodo, honrar e dignificar a missão para a qual foram escolhidos e nos legaram uma instituição e uma casa que, a despeito de escusos interesses, representa com altivez e elegância a cultura tantas vezes imposta a esta comunidade que, entre as Mineiras, surge como das mais belas e históricas, cujo patrimônio cultural, intelectual, moral e arquitetônico sobressai como que um presente a todos nós que tivemos a felicidade de aqui nascer e poder conviver com este ar de respeito, tradição, música e cultura. 
 
Trinta e quatro anos de lutas são passados, e hoje, para felicidade nossa, temos a honra de apresentar aos leitores a primeira Revista da Academia de Letras de São João del-Rei; despretensiosa no seu conteúdo, no entanto traz em seu bojo os mais profundos e interessantes assuntos, eivados de amor, simplicidade e desejo de agradar a todos. Para chegarmos até aqui, passaram-se anos de lutas, desde os nossos fundadores, que já se foram, até os presentes confrades e confreiras que carregam com dinamismo esta bandeira cuja finalidade é a pesquisa, salvaguarda dos mais preciosos estudos e escritos de que é dotado o nosso patrimônio cultural, através de livros e estudos, muitas vezes desconhecidos, e talvez perdidos na ignorância do tempo e do desinteresse maléfico que nos ronda. 
 
Aí está, prezados amigos, o fruto de um trabalho, incipiente ainda, mas prenhe de amor, de horas de estudo e de dedicação, no intuito de que fique para a posteridade, como fruto de lutas e de puros ideais. Que seja esta Revista, sem luxo, sem pretensão alguma a não ser a de levar o deleite a todos e demonstrar profundo respeito para com as tradições culturais desta terra, que seja a primeira de uma série de outras revistas, respeitadas e dignas da leitura dos nossos são-joanenses. 
 
Nosso muito obrigado a todos os senhores colaboradores desta primeira edição e principalmente à comissão da Revista que, com denodo e entusiasmo, levou ao final e viu nascer o fruto dos nossos mais lídimos anseios. 
 
 
 
* Professor, ex-presidente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Sociedade de Concertos Sinfônicos (carinhosamente conhecida pelos são-joanenses como "Sinfônica"), sendo o inspirador da criação da Biblioteca Professor Ary Rodrigues.

II. AGRADECIMENTO

 
O gerente do Blog agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga pela formatação do registro fotográfico utilizado neste trabalho. 

domingo, 20 de abril de 2025

Stefan Zweig e o país que não chegou ao futuro


Por Paulo Roberto de Almeida *
Antes que, por livre vontade e na plena possessão de meus sentidos, eu abandone a vida, me sinto obrigado a cumprir um último dever: agradecer, desde o meu mais íntimo, a este maravilhoso país, Brasil, que nos ofereceu a mim e a minha obra um lugar tão magnífico e acolhedor. Cada dia passado aqui contribuiu a querer ainda mais a este país, em nenhum outro lugar teria desejado reconstruir a vida novamente, depois que o mundo de meu próprio idioma se derrubou e que o meu lar espiritual, a Europa, se autodestruiu. Mas, depois de cumprir sessenta anos, fazem falta forças para começar totalmente de novo. E as minhas estão esgotadas, depois de tantos anos a errar sem pátria. Por isso considero melhor cerrar em seu devido tempo e com uma alta atitude uma vida que o trabalho intelectual e a liberdade pessoal me deram as maiores alegrias e me parecem o mais elevado bem desta terra. Saúdo a todos os meus amigos. Oxalá cheguem a ver a aurora depois desta larga noite. Eu, excessivamente impaciente, me adianto a todos eles. “Declaração”, STEFAN ZWEIG (Petrópolis, 22/02/1942)
 
 
O autor é um dos colaboradores deste livro sob a coordenação da Casa Stefan Zweig e do Laboratório de Estudos Judaicos da Universidade Federal de Uberlândia, Rio de Janeiro: Passaredo Edições, 2024,  294 p.

 
Nas memórias que começou a conceber desde sua saída apressada da Áustria, depois que Hitler alcançou o poder na Alemanha, mas que só foram terminadas por ocasião de sua vinda definitiva para o Brasil, Stefan Zweig descreve seus sentimentos ao atravessar o Atlântico em 1936, a partir da Inglaterra, onde se encontrava exilado desde 1934:
Era apenas com o meu corpo, e não com toda a minha alma, que eu vivia na Inglaterra naqueles anos. E foi justamente a preocupação que me causava a Europa, essa angústia que pesava dolorosamente sobre os nervos, que me fez viajar bastante, e mesmo atravessar duas vezes o oceano, durante os anos que se estendem da tomada do poder por Hitler e o começo da Segunda Guerra Mundial. Eu estava impulsionado talvez pelo pressentimento de que era necessário me abastecer de impressões e de experiências, tantas quanto o coração poderia conter, enquanto o mundo permanecia aberto e que ainda era permitido aos barcos navegar tranquilamente pelos mares, talvez mesmo pela suspeita ainda muito vaga de que o nosso futuro, o meu em especial, estava além dos limites da Europa. Uma sequência de conferências nos Estados Unidos me ofereceu a oportunidade desejada de ver, de leste a oeste, de norte a sul, esse grande país em toda a sua diversidade, combinada, entretanto, a uma profunda unidade. Mas, talvez ainda mais forte foi a impressão que me deu a América do Sul, na qual aceitei de boa vontade participar de um congresso convidado pelo P.E.N.-Club Internacional: nunca antes me pareceu tão importante quanto esse momento de fortificar o sentimento da solidariedade espiritual acima das fronteiras dos países e das línguas (1993, p. 461).”
Sua primeira estada na América do Sul, com uma curta passagem pelo Rio de Janeiro, entre o final de agosto e o início de setembro, foi relatada numa coleção de impressões de viagem que o próprio Zweig publicou separadamente ao retornar à Inglaterra no outono de 1936. Zweig concebeu escrever um livro sobre o Brasil logo depois dessa primeira passagem pelo país, a caminho de Buenos Aires. Elas foram reunidas em 1937 e publicadas numa editora vienense com vários outros textos do autor: Begegnungen mit Menschen, Büchern, Städten (Encontros com homens, livros, cidades). Em 1981, foram novamente reunidas na coletânea Länder, Städte, Landschaften (Países, cidades, paisagens). 
Zweig já estava, então, planejando escrever um livro mais alentado sobre o Brasil e por isso recusou, no final de 1937, uma proposta de seu editor brasileiro, Abraão Koogan, para publicar uma edição traduzida, o que não se realizou de imediato. Ainda assim, Koogan juntou os relatos a outros textos do livro Begegnungen e publicou-a em 1938, numa edição uniforme de sua obra, sob um título similar: Encontros com homens, livros e países. Apenas oitenta anos depois de sua primeira viagem ao Brasil, os textos foram novamente publicados sob o título de Kleine Reise nach Brasilien, traduzido e publicado como Pequena viagem ao Brasil (2016). Vários trechos da Pequena viagem foram de fato incorporados ao País do futuro, que se beneficiou, assim, daquele projeto inicial necessariamente sintético, dada a brevidade de sua passagem em 1936, numa travessia atlântica durante a qual também começou a escrever a biografia de Fernão de Magalhães, na epopeia da primeira volta ao mundo (obra terminada e publicada em 1937). 
A primeira estada de Zweig no Brasil se dá, portanto, sob o governo constitucional de Getúlio Vargas – eleito em 1934 pela Assembleia Constituinte –, mas já depois da Intentona Comunista de novembro de 1935, sob a vigência da Lei de Segurança Nacional, e dois anos antes das eleições previstas para 1938, quando deveria ser eleito, por voto direto e secreto (pela primeira vez), o próximo presidente. Zweig certamente tomou conhecimento do golpe do Estado Novo, em novembro de 1937, por acaso o mesmo nome já adotado pela ditadura portuguesa quase dez anos antes, na esteira de diversos outros regimes autoritários, geralmente de direita, que estavam se multiplicando na Europa e na América Latina. Já estabelecido na Inglaterra desde 1934, quando fugiu apressadamente de Salzburg, Zweig teve o “privilégio” de ter os seus livros queimados pelos nazifascistas duas vezes: em 1933, em Berlim, e novamente na Áustria em 1938, depois do Anschluss, a anexação ao Terceiro Reich. 
Terrivelmente angustiado desde a traição de Munique, em setembro daquele ano, quando Chamberlain “entrega” a Boêmia tchecoslovaca à Alemanha, Zweig providencia sua naturalização britânica e se casa com sua secretária Charlotte, para dar a ela, igualmente, a proteção da nova cidadania. Com o início da guerra, ele é assimilado a um alien enemy na Inglaterra, e obrigado a apresentar-se regularmente à polícia. Com a invasão da Bélgica e da França, em 1940, o casal decide rapidamente mudar-se para o Brasil, depois de uma curta passagem pelos Estados Unidos, onde Zweig se encontra com sua primeira mulher, Friderike, e termina sua prometida obra sobre o Brasil, lançada em diversas línguas em 1941. Os manuscritos de uma biografia não terminada de Balzac, em alemão, ainda ficam retidos na alfândega britânica, para possível inspeção de segurança (ele só os receberia bem mais tarde). A estada na pequena casa alugada em Petrópolis foi extremamente breve, de setembro de 1941 a fevereiro de 1942, quando ele decide dar cabo da vida, no que é seguido por Lotte, ambos por meio de barbitúricos. 
 
A emergência do livro sobre o “país do futuro” 
 
Entre 1936, quando decidiu escrever um livro sobre o Brasil – talvez já imaginando um futuro segundo exílio, dadas as ameaças crescentes de guerra na Europa –, Zweig teve tempo de ler bastante sobre o país de seu derradeiro refúgio. Tomou o seu tempo para se informar um pouco mais sobre a terra que ele imaginava livre das “deformações” das velhas civilizações europeias, contaminadas cada vez mais pelo bacilo da intolerância e do autoritarismo, duas novas pestes negras que ele temia ainda mais do que a terrível experiência da Grande Guerra, quando a maior parte dos contendores entraram quase “alegremente” num conflito que imaginavam de curta duração, todos eles empurrados por um outro bacilo que ele julgava detestável, o do nacionalismo extremado. Aliás, foi na sua nova curta estada, definitiva, no Brasil, que ele terminou suas memórias, voltadas em grande parte para o ambiente da Europa pré-Grande Guerra, que ele intitulou O Mundo de ontem (Die Welt von Gestern, 1944). 
O Estado Novo varguista já tinha revelado todo o seu furor anticomunista, aliás com fortes tinturas fascistas, quando ele se instalou não no Rio de Janeiro, mas na pacata Petrópolis, provavelmente para se evadir do assédio da imprensa e poder se dedicar às suas biografias, Balzac e Montaigne. Zweig preferiu não adentrar na política doméstica, o que seria, de toda forma, um percurso na corda bamba, tantas eram as informações contraditórias que ele recebia de seus editores e amigos brasileiros sobre a “direitização” que se operava no cenário político doméstico, com candidatos nas eleições anuladas de 1938 forçados a um exílio indesejado e uma censura cada vez mais onipresente, sob a tutela do poderoso DIP varguista, o Departamento de Imprensa e Propaganda (não exatamente uma reprodução da máquina de Goebbels, mas vinculado ao mesmo espírito repressivo). Daí que Brasilien, ein Land der Zukunft fosse uma obra desigual e diferente de toda a sua produção anterior: nem um livro de viagem, como as crônicas de 1936 – embora essa parte “turística” também figurasse na nova obra –, nem uma obra de ficção, no estilo das muitas novelas e biografias romanceadas que ele havia elaborado abundantemente ao longo dos anos 1920 e 1930, nem uma obra analítica ou de história dessa nação relativamente jovem, comparada às velhas civilizações europeias, várias delas decadentes, ou já entradas no retrocesso forçado dos autoritarismos do entreguerras. O Brasil do Estado Novo lhe parecia uma versão mais benevolente, colorida e tolerante, do que os sombrios regimes que proliferavam na Europa central, especialmente na sua pátria e na Alemanha nazista. 
Alberto Dines, biógrafo insuperável, autor da biografia Morte no paraíso (1981), considerou essa obra a “biografia de uma nação”, como ele escreveu no seu ensaio analítico, que introduziu o seminário realizado pelo Fórum Nacional, comemorativo dos 65 anos de sua primeira publicação, coordenado por João Paulo dos Reis Velloso e Roberto Cavalcanti de Albuquerque: Brasil, um país do futuro? (2006, p. 13). Esse ensaio de Dines é muito rico em arguições e argumentos sobre esse livro “diferente” do escritor austríaco, mais citado do que lido pelos brasileiros e pelos estrangeiros que conhecem sua obra literária e biográfica. 
Aliás, o seu livro de memórias, que ele febrilmente terminou de escrever no Brasil, já previsivelmente programando sua despedida do “mundo de ontem” e antecipando um outra despedida, a do terrível mundo do futuro que se anunciava sombrio – quando Hitler parecia vencer a União Soviética, depois de ter completamente humilhado a França, constitui uma grande obra-testemunho de uma época de preeminência burguesa que ele imaginava já total e definitivamente enterrada sob as botas nazistas, sob o fragor dos tanques, o furor dos canhões e o terror dos bombardeios. Deprimido pelo horror do antissemitismo de Estado, pelo segundo suicídio de sua Europa da belle époque, ele termina de escrever uma “Declaração” final na manhã de Carnaval em que decidiu encerrar sua derradeira estada no “paraíso”. 
Ainda assim, é surpreendente que ele tenha conseguido fazer um livro tão otimista sobre o país que o acolheu generosamente, com todas as homenagens a que tinha direito – mas das quais procurava fugir o máximo possível, ao mesmo tempo em que preenchia as páginas manuscritas de suas recordações sobre a Viena de antes de 1914, seguidas dos registros sobre a ascensão de um nacionalismo ainda mais agressivo da Deutschland über alles dos tempos de Bismarck e de Wagner. Como ele escreveu num dos capítulos de O Mundo de Ontem, os três anos que sucederam ao desaparecimento do Império austríaco, de 1919 a 1921, ele viveu “enterrado em Salzburg, renunciando já, para dizer a verdade, à esperança de jamais rever o mundo” (1993, p. 358). 
Os últimos parágrafos de suas memórias se referem à declaração de guerra da Grã-Bretanha à Alemanha, poucos dias depois da invasão da Polônia, quando ele pressentiu que deveria de novo partir em exílio: “Eu fui ao meu quarto e enfiei minhas coisas numa pequena mala. Se as previsões de um dos meus amigos, que ocupava uma posição elevada, se confirmassem, os austríacos na Inglaterra seriam assimilados aos alemães e deveriam esperar as mesmas restrições de sua liberdade” (p. 504). Tudo pelo que ele tinha lutado estava novamente destruído: “Minha tarefa a mais íntima, à qual eu tinha consagrado durante quarenta anos toda a força de minha convicção, a federação pacífica da Europa, estava liquidada” (p. 505). Terminando suas memórias no Brasil, ele descreve no parágrafo final, seu último passeio na Inglaterra, antes de partir para os Estados Unidos:
O sol brilhava, vivo e inteiro. Ao me retornar, observei repentinamente uma sombra diante de mim, como eu havia visto a sombra de uma outra guerra atrás da guerra atual. Ela não me abandonou desde então, essa sombra da guerra, ela cobriu de luto cada um de meus pensamentos, de dia e de noite; talvez a sua silhueta sombria também apareça nas páginas deste livro. Mas, toda sombra, em última instância, é também filha da luz, e somente aquele que conheceu a claridade e a escuridão, a guerra e a paz, a grandeza e a decadência, viveu verdadeiramente (p. 506)
Naquele mês de setembro de 1939, ele deveria ter ido a Estocolmo, para novo encontro do P.E.N. Club, para o qual tinha recebido um convite, como membro honorário – uma vez que ele já não tinha mais pátria –, e havia inclusive comprado passagem de navio. O roteiro, no entanto, foi bem diferente, do outro lado do Atlântico, primeiro na América do Norte, depois em direção ao Brasil. Ele sabia o que era a guerra, e esperava dela escapar, ao menos fisicamente, viajando para aquela terra que ele imaginava acolhedora e totalmente alheia aos problemas da velha Europa. Terminou de escrever o seu livro sobre o país do futuro em Nova York e o expediu aos seus diversos editores em vários países. Foi assim que surgiu, planejado longamente, mas finalmente improvisado entre duas etapas de viagem, o seu livro “otimista”, que marcou ambiguamente a imagem do Brasil no mundo. O título, a despeito do condicional ein Land, “um” país, e não “o país”, acabou se convertendo numa cruel ironia com a nação que se esforçou, continuamente, por desmentir seu autor, tanto quanto os próprios brasileiros. 
 
O contexto da escrita e da publicação do país do futuro 
 
Brasil, um país do futuro é um livro singular no conjunto da obra de Zweig. Pretendeu ser uma apresentação didática sobre o Brasil e ao mesmo tempo uma homenagem sincera ao país que o acolheu tão generosamente, em meio a uma guerra ainda mais catastrófica do que o conflito global precedente, que ele havia presenciado na Europa, mas que ele não quis tratar em profundidade em seu livro de memórias, O mundo de Ontem, que se refere, na verdade aos anos que precederam à Grande Guerra. Zweig, um pacifista visceral e radical, acreditava ter encontrado no Brasil um país profundamente devotado à paz. 
À diferença de suas outras obras, não tanto as novelas, que são textos de pura literatura, mas sobretudo as biografias de personagens famosos, ou angustiados, como ele, o livro que ele dedicou ao Brasil é um trabalho de circunstância, meio relato de viajante, meio interpretação pessoal de uma terra em tudo diferente do que ele havia vivido até então, na “sua” Europa da cultura clássica, dos grandes pensadores, da arte nas suas mais diversas expressões, mas também um continente dividido pelas paixões guerreiras, que tinha se dilacerado a si mesmo em incontáveis batalhas feudais, em conflitos entre as grandes potências da era moderna e contemporânea, em guerras civis e de religião de todas as épocas. 
Zweig realmente gostava do Brasil, e não apenas por ser sua terra de exílio, mas por ser uma realidade que não existia em nenhuma outra parte do mundo, a mistura de cores, de etnias, de religiões, o sincretismo natural de seus habitantes, e aquela flexibilidade de costumes e de modos de vida que ele nunca tinha encontrado na rigidez social da Europa central e nas nítidas sobrevivências das estruturas estamentais do Antigo Regime, ainda bem visíveis na maior parte do velho continente. Por isso, ele lança um olhar simpático aos cenários, paisagens naturais e humanas, aos comportamentos que ele observava no Rio de Janeiro, em São Paulo, nas costas do Nordeste, em todos os lugares por onde andou, não apenas nas casas e prédios elegantes das capitais, mas também nas favelas, nos subúrbios, na pobreza do interior entre uma fazenda e outra de grandes proprietários. Assistiu a muitas festas e folguedos populares, e talvez tenha sido simbólica sua despedida do mundo em pleno Carnaval do Rio de Janeiro, mas em Petrópolis, seu último refúgio de uma vida bem vivida, entre os sucessos da produção literária e as homenagens que recebia, onde quer que ele fosse. 
O livro não se pretendia apenas um retrato do presente, aquele que ele via, e um retorno ao passado, do que ele pôde ler sobre nossa história e desenvolvimento, mas era também uma aposta sobre o futuro, daí o seu título ao mesmo tempo otimista e afirmativo. As traduções do título – Brasilien, ein Land der Zukunft – em português hesitaram durante muito tempo entre o “país de futuro” ou o “país do futuro”, a primeira opção sendo uma promessa, a segunda quase uma certeza. Sim, ele previa um futuro otimista para o Brasil, o fim das favelas, a mescla de raças produzindo uma nação quase sem conflitos sociais, uma quase beleza na pobreza e até na miséria, a alegria dos carnavais escondendo as durezas da vida no resto do ano. Inevitável, ainda que não buscada diretamente, a comparação com os padrões civilizatórios europeus, e até com uma geografia menos castigada, no velho mundo das vastas planícies, na confrontação com a vastidão de ermos desconhecidos no Brasil não atlântico. 
Não é um guia de viagem, embora seja basicamente um livro de um viajante, mas uma obra interpretativa da alma do Brasil, ou pelo menos aquele espírito que ele buscou ver, e acreditou ter encontrado, em todas as pessoas com as quais conversava, burgueses e fidalgos da terra, e até em homens e mulheres do povo, que ele buscou entender a partir de uma postura preventivamente simpática ao povo que o acolheu, no país que foi sua última morada, a fase mais angustiada de sua vida, esperança perdida de ver sua terra natal retornar aos tempos anteriores à Grande Guerra. Oitenta anos depois de ter sido escrito e publicado rapidamente, vale retornar ao Zweig do “país de/do futuro”, para ver que tipo de país emergiu de sua visão generosa para com nossas qualidades e defeitos. 
Ao apresentar o livro ao público brasileiro, seis meses antes do suicídio de Zweig e de sua segunda mulher, Lotte, o prefaciador Afrânio Peixoto, membro da Academia Brasileira de Letras desde 1910, reitor da Universidade do Distrito Federal desde 1935, descreveu o escritor austríaco como um “namorado de nossa terra e de nossa gente” (1941, p. 9). Deteve-se no que era bem conhecido: livros editados em seis e mais línguas, alguns em dezoito idiomas: “É o escritor mais impresso, mais adquirido e mais lido do mundo: ensaios, biografias romanceadas, ficção pura.” Enalteceu seu espírito ameno e cativante: “O autor é um encanto de convivência, de conversação, de simplicidade: ternura e poesia.” (p. 9) 
Refere-se, sem mencionar o ano (1936), à sua passagem pelo Rio de Janeiro, a caminho da Argentina, para um congresso internacional do P.E.N. Club:
... aqui esteve, sem ruído, no Brasil. Aqui não foi ao Catete, nem ao Itamaraty [Afrânio se engana; ele foi, sim, ao Itamaraty, convidado pelo chanceler Macedo Soares], nem às embaixadas, nem à Academia, nem ao DIP [Departamento de Imprensa e Propaganda do governo Vargas], nem aos jornais, nem aos rádios, nem aos Hotéis-palaces... Andou, virou, passeou, viajou, viveu. Não quis nada, nem condecorações, nem festas, nem recepções, nem discursos... Não quis nada. A Bahia desejou ser vista por ele e convidou-o. Ficou comovido, mas pôs condição: nem ajuda de custo, nem hospedagem oferecidas, nem recepção, conferência, nada. Gostava do Brasil, gostaria da Bahia, não queria mais. Queria ver, sentir, pensar, escrever, livremente... (p. 10)
Afrânio Peixoto interpreta que foi dessa primeira viagem que saiu o seu único livro dedicado a um país, publicado quando para cá se mudou definitivamente:
De tudo, este livro, este grande livro, livro de amor presente e esperança futura que sai em imensas edições, na América [do Norte], na Inglaterra, na Suécia, na Argentina, em francês e em alemão também – seis de uma vez, a menor, a brasileira... (p. 10)
O acadêmico sintetiza, então, o espírito da obra:
É o mais ‘favorecido’ dos retratos do Brasil. Nunca a propaganda interesseira, nacional ou estrangeira, disse tanto bem do nosso país, e o autor, por ele, não deseja nem um aperto de mão, nem um agradecimento... Amor sem retribuição. Amor de caboclo supercivilizado: a namorada vai saber agora e ficará confusa de tanto bem querer. Ele, porém, já partiu... Deixou apenas esta declaração. Declaração de envaidecer à formosura mais presumida. Os ‘pátria amada’, os ‘ufanistas’ ficarão de cara à banda, pois ninguém até hoje escreveu livro igual sobre o Brasil... O amor faz desses milagres. Se ele fosse político, ou diplomata, ou economista, ficar-se-ia perplexo; a explicação é só esta, Stefan Zweig é poeta: é hoje o maior poeta do mundo, poeta com ou sem versos, mas com poesia, sentida, vivida, escrita pelo mais suave prosador do mundo... (p. 10-11)
Ao encerrar seu prefácio, em julho de 1941, Afrânio Peixoto provavelmente esperava levar Zweig para uma conversa com seus pares escritores na Academia Brasileira de Letras, ele que já tinha sido presidente da Casa de Machado de Assis, em 1923. Não o conseguiu: Zweig refugiou-se em Petrópolis, na casa que é hoje o seu museu, uma casa de cultura, uma homenagem construída por um de seus biógrafos mais brilhantes, Alberto Dines, que dedicou uma obra excepcional ao grande escritor: Morte no Paraíso: a tragédia de Stefan Zweig (1981; 2004). Dines era um garoto de oito anos em meio a dezenas de outros, numa foto feita na escola progressista Sholem Aleichem, da comunidade judaica do Rio de Janeiro, quando da visita de Zweig, no momento em que o escritor pensava justamente em ultimar seu livro dedicado ao Brasil. Seu suicídio deve tê-lo abalado antes da adolescência, a ponto de ter motivado Alberto Dines a escrever, mais tarde, uma das suas melhores biografias. 
 
Brasil, um país que faltou ao futuro? 
 
Em 2006, por ocasião do 125º aniversário do nascimento de Zweig e dos 65 anos da publicação do seu livro, em 1941, Alberto Dines organizou um debate em torno dessa obra, objeto, logo em seguida, da publicação já referida: Brasil, um país do futuro? Zweig teria gostado de assistir ao seminário e talvez concordasse com o artigo indefinido e talvez até com o ponto de interrogação. A primeira edição brasileira tinha modificado o título original – Brasilien, ein Land der Zukunft, não das Land – e o colóquio de 2006 agregou a condicionalidade, refletindo o ceticismo dos examinadores quanto à utopia não realizada. 
No essencial, Zweig provavelmente se alinharia aos argumentos dos seus revisores brasileiros. 
Alberto Dines considerou no debate que Zweig, depois de assinar mais de quarenta biografias de personalidades mundiais, fez a biografia de uma nação, no “inferno do Estado Novo”. Como ele diz, essa obra “tornou-se a crônica mais conhecida e a menos discutida, a mais celebrada e mais negligenciada” do Brasil. Ela foi um dos primeiros lançamentos simultâneos da história editorial mundial: oito edições em seis línguas. 
Bolívar Lamounier e Regis Bonelli examinaram, respectivamente, os avanços políticos e econômicos obtidos pelo Brasil desde que Zweig traçou seu diagnóstico sobre o Brasil do início dos anos 1940. Para Lamounier, o Brasil é um país de “muitos futuros”, mas ele critica as utopias institucionais que frequentemente pretendem revolucionar a participação e as formas de se fazer política no país: a romântico-participativa da democracia direta, a do parlamentarismo clássico que ressurge sempre em momentos de crise e a utopia barroca do presidencialismo plebiscitário. Já Bonelli opera uma “volta para o futuro” ao examinar os elementos de continuidade e de mudança na esfera econômica: o Brasil certamente mudou muito, nesse terreno, mas a propensão a esperar tudo do Estado permanece, assim como uma certa desconfiança dos mercados externos. Algumas mudanças foram na direção errada, como o aumento na tributação, outras permanências são irritantes, como a péssima distribuição de renda e as incertezas jurídicas. 
Boris e Sérgio Fausto acrescentaram um ponto de interrogação ao título de Zweig, temperando o otimismo do autor com certa dose de pessimismo. Não se tratava do niilismo da esquerda, que vê na “dominação imperialista” a razão do nosso atraso. O duplo nó górdio da carga tributária e do gasto público limita as possibilidades de crescimento.
João Luís Fragoso analisa a “equação” de Zweig para o Brasil: concentração de poder + tolerância. Três comentários finais trataram das promessas não cumpridas de um olhar estrangeiro, do futuro que já chegou sob a forma da votação eletrônica e das dificuldades para a retomada de taxas razoáveis e sustentáveis de crescimento. 
Dez anos depois, já ocupando o cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Itamaraty, tomei a iniciativa de organizar um evento em sua homenagem, aos 80 anos de sua primeira visita ao Brasil, justamente quando foi publicado no Brasil seu breve relato de viagem: Pequena Viagem ao Brasil. Contatei a Casa Stefan Zweig, de Petrópolis, e sua diretora, a tradutora Kristina Michahelles, ofereceu-me um programa ainda melhor: o lançamento da primeira edição internacional – em diversas línguas – da conferência que Zweig havia feito no Rio de Janeiro em 1936, numa bela edição preparada por Israel Beloch e prefaciada por Celso Lafer: A unidade espiritual do mundo, novamente traduzida a partir do manuscrito sobre a “unidade espiritual da Europa”, que Zweig tinha deixado com o chanceler Macedo Soares, na própria Escola Nacional de Música, onde havia sido feita sua memorável palestra (depois expandida em Buenos Aires em 1940). 
O texto, resgatado de um injusto esquecimento foi publicado em 2017 pela Casa Stefan Zweig e pela editora Memória Brasil, em cinco línguas (alemão, francês, espanhol, inglês e português), com colaborações de Alberto Dines, Klemens Renoldner e Jacques le Rider, e uma belíssima iconografia. Celso Lafer fez uma palestra baseada em grande medida em seu texto constante do livro e a diretora Kristina Michahelles exibiu um excelente documentário sobre o personagem e sua casa brasileira, transformada em museu graças ao grande jornalista que foi Alberto Dines. 
Mas, o que poderia ser dito do destino do “fatídico” livro sobre o “país do futuro”? Pouco apreciado pelos intelectuais engajados na “interpretação científica” do Brasil, caracterizada por rigorosas metodologias de pesquisa empírica, o livrinho de ocasião permaneceu numa espécie de limbo durante largos anos, jamais revisitado, a não ser por referências puramente anedóticas, ou até irônicas. Mais de 80 anos desde sua publicação original e da infausta morte do grande escritor, talvez seja chegada a hora de oferecer novas análises sobre essa obra muito falada, mas hoje praticamente desconhecida. 
Não se trata de render-lhe uma tardia homenagem, mas de avaliar o esforço analítico de alguém que buscou, sinceramente, traçar um panorama simpático do país que lhe aparecia como uma espécie de síntese viva da diversidade racial, da mistura étnica, da conjunção de culturas, da tolerância religiosa e do pacifismo bem resolvido, características que ele não mais encontrava no seu continente de origem, certamente não naquele momento de desespero em face da destruição, das mortes e da aniquilação do seu próprio povo sob as botas, fuzis, metralhadoras e gases dos totalitários doentios. Instalado precariamente neste canto do planeta, ainda em paz naqueles meses, ele certamente esperava muito mais do Brasil em seu futuro imaginado, em termos de realizações sociais e culturais, sobretudo na eliminação da pobreza, na diminuição das desigualdades sociais e regionais, no virtual desaparecimento das favelas, permitindo uma prosperidade ampliada no país que o acolheu definitivamente. 
Talvez seja o caso de nos desculparmos, postumamente, por não termos conseguido materializar, nas décadas posteriores à sua morte, as esperanças do escritor no tocante ao futuro de sua pátria de adoção, ainda que por brevíssimo tempo. Ficou, de toda forma, esse registro de um pensador humanista como possível sugestão ao desenho de um projeto de construção de uma nação integrada, um país mais justo e, sobretudo, mais conforme ao seu ideal racional, expressa na primeira vez em que aqui esteve, com respeito à unidade espiritual do mundo. Valeu Stefan, muito grato a você, por ter dedicado seu empenho intelectual numa interpretação simpática do seu derradeiro país de eleição. 
 
* Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas (1984), Mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia (1977), e diplomata de carreira desde 1977. Foi professor no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília, diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), de 2016 a 2019. De 2004 a 2021 foi professor de Economia Políticaa nos programas de pós-graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É diretor de Relações Internacionais do Instituto Histórico e Geográfico do Districo Federal. Publicou diversas obras de relações econômicas internacionais, de política externa do Brasil e de história diplomática.
 
 
REFERÊNCIAS 
 
 
Beloch, Israel (org.) (2017). A Unidade Espiritual do Mundo; Petrópolis-Rio de Janeiro: Casa Stefan Zweig; Memória Brasil; prefácio de Celso Lafer. 
 
Dines, Alberto (1981). Morte no Paraíso: a tragédia de Stefan Zweig; Rio de Janeiro: Rocco; 3ª ed.: 2004. 
______ (2006). “A invenção do paraíso no inferno do Estado Novo”, in: Reis Velloso, João Paulo dos; Albuquerque, Roberto Cavalcanti de (2006). Brasil, um país do futuro? Rio de Janeiro: José Olympio, p. 11-25. 
 
Peixoto, Afrânio (1941). Prefácio a Brasil, país do futuro. Rio de Janeiro: Guanabara; tradução Odilon Galloti; edição eletrônica: Ridendo Castigat Mores, 2001. 
 
Reis Velloso, João Paulo dos; Albuquerque, Roberto Cavalcanti de (orgs.) (2006). Brasil, um país do futuro? Rio de Janeiro: José Olympio. 
 
Zweig, Stefan (1941). Brasil, país do futuro. Rio de Janeiro: Guanabara; edição eletrônica: Ridendo Castigat Mores, 2001. 
______ (1981). Brasil, país do futuro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; prefácio de Alberto Dines; tradução de Kristina Michahelles. 
 ______ (1993). Le Monde d’hier: Souvenirs d’un Européen; Paris: Belfond; nova edição francesa por Serge Niémetz, a partir de: Die Welt von Gestern, Estocolmo: Bermann-Fischer, 1944. 
 ______ (2016), Pequena Viagem ao Brasil. Rio de Janeiro: Versal; tradução de Petê Rissatti; organização do projeto: Heike Muranyi.

sábado, 19 de abril de 2025

RICARDO REIS E ALBERTO CAEIRO: A revelação pública há 100 anos


Por ANTÓNIO VALDEMAR *
Transcrevemos, com a devida vênia da revista do EXPRESSO, artigo publicado na edição de 18/04/2025, pp. 26-31.

Ricardo Reis


E aí está o mapa astral de Ricardo Reis, outro ilustre heterônimo de Pessoa. Sol em Virgem, Lua em Libra, Ascendente em Aquário. 19/09/1887, às 16:05, Lisboa/Portugal.


Alberto Caeiro

Aí está: também na caligrafia de Pessoa. Alberto Caieiro, 16 de abril de 1889, 13:45, Lisboa/Portugal. Um ariano, com VÊNUS em TOURO e Marte, regente de Áries, em TOURO. Note anotação do Pessoa: ‘Regulus a 28 e 38 de Leão’. / Crédito pela foto: https://cova-do-urso.blogspot.com/2008/04/mapas-de-fernando-pessoa-e-seus.html
 
 
Fernando Pessoa (✰ Lisboa, 13/06/1888 - ✞ Lisboa, 30/11/1935)

 
A revelação pública da poesia de Ricardo Reis e de Alberto Caeiro constitui um dos centenários mais significativos da vida e da obra de Fernando Pessoa. Verificou-se através dos cinco números da revista "Athena", editada desde outubro de 1924 até junho de 1925, data exata da publicação, embora o último número inscrevesse o mês de fevereiro de 1925. 
 
A poesia de Alberto Caeiro e a de Ricardo Reis, qualquer delas bem diferente uma da outra, representa uma das etapas fundamentais do modernismo em Portugal, apesar de não terem, na altura, a repercussão alcançada por Álvaro de Campos, cuja expressão contundente e provocatória se manifestou quer no “Orpheu”, em 1915, quer no “Portugal Futurista”, em 1917, quer, ainda, em cartas para os jornais a rebaixar, por exemplo, Afonso Costa, uma das personalidades políticas mais relevantes da República. 
 
Contudo, a revelação de Alberto Caeiro e de Ricardo Reis ficara limitada a círculos literários muito reduzidos. A opinião pública debatia-se com sucessivas crises políticas, sociais e militares que afetavam a ordem pública e provocavam uma contínua instabilidade: consecutivas quedas de governos (que chegaram a durar 24 horas), a explosão de bombas, atentados pessoais, até durante um funeral no Cemitério dos Prazeres... Tudo isto acontecia em Lisboa e repercutia-se através das outras cidades do país. 
 
Durante os seus trajetos em Lisboa, Fernando Pessoa anulava-se entre os transeuntes das ruas e os passageiros dos transportes públicos. Num dos testemunhos que chegaram ao nosso conhecimento, Ofélia Queiroz (1900–1991), a sua única e episódica namorada, traçou-lhe um retrato sumário: “Um senhor todo vestido de preto [...] com um chapéu de aba revirada e debruada, óculos e laço ao pescoço [...] ao andar, parecia não pisar o chão.” 
 
O poeta caminhando pelas ruas da cidade
 
Era um desconhecido. Privava apenas com os proprietários e funcionários dos escritórios onde traduzia para inglês e para francês correspondência comercial. Mantinha um convívio restrito com poucos amigos, em pequenas tertúlias instaladas em cafés e em restaurantes da Baixa, do Chiado ou do Terreiro do Paço. A vida privada de Pessoa — objeto de várias suposições, tais como homossexual, bissexual, misógino, onanista, abúlico — só chegou ao nosso conhecimento através de manuscritos dispersos no espólio e posteriormente reunidos, em 1966, num volume com o título genérico “Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação”
 
Foi neste livro que Fernando Pessoa afirmou categoricamente: “Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher. As minhas faculdades de relação — a inteligência, e a vontade, que é a inteligência do impulso — são de homem.” 
 
Esclareceu depois Fernando Pessoa: “Reconheço sem ilusão a natureza do fenómeno. É uma inversão sexual fruste. Pára no espírito. Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou; não tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento não pudesse um dia descer-me ao corpo. Não digo que praticasse então a sexualidade correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me humilhar.” 
 
FERNANDO PESSOA EM "PÁGINAS ÍNTIMAS E DE AUTO-INTERPRETAÇÃO" 
 
Alberto Caeiro e Ricardo Reis completam, agora, 100 anos com os poemas incluídos na revista "Athena" e, posteriormente, na revista "Presença". Mais tarde, as edições da Ática, em volumes próprios, consagrados a Alberto Caeiro e Ricardo Reis, ambos em 1946, demonstraram a excecional dimensão de Fernando Pessoa.
 
"ATHENA": AS TRÊS POLÉMICAS

Os cinco números da revista "Athena" podem explicar aspetos fundamentais do universo heteronímico de Fernando Pessoa, o aparecimento de "O Guardador de Rebanhos", de Alberto Caeiro, e das "Odes", de Ricardo Reis. A revista é dirigida por Fernando Pessoa e por Rey Vaz (1891-1955), arquiteto, caricaturista e pintor, que esteve à frente da Escola Afonso Domingues, em Lisboa. (...) 
Por outro lado, a "Athena" não se limitou à publicação de Alberto Caeiro e Ricardo Reis. Incluiu, no contexto das revistas do modernismo, a primeira colaboração efetiva de uma mulher portuguesa, Mily Possoz (1888-1968). (...) 
Pintora, aquarelista e gravadora, Mily Possoz destacou-se entre os Cinco Independentes - que afinal eram sete - ao expor na Sociedade Nacional de Belas Artes. Trata-se da primeira grande exposição que veio consolidar as novas formas de expressão na pintura. 
Mas há ainda mais duas singularidades da "Athena": a colaboração de Mário Saa (1893-1971), como poeta que, no mesmo ano, se notabilizara com a edição do livro "A Invasão dos Judeus" (1925), na sequência de outro livro seu, "Portugal Cristão-Novo ou os Judeus na República" (1921). Ambos desencadearam, na primeira metade do século XX, a polêmica do antissemitismo. 
Finalmente, a colaboração de António Botto (1897-1959) na "Athena" deu lugar a outra polémica, em torno da afirmação, sem equívocos, da homossexualidade na literatura portuguesa. (...) 
Foram queimados os livros de António Boto, Raul Leal e Judith Teixeira no pátio do Governo Civil de Lisboa. As campanhas promovidas pela Liga de Ação dos Estudantes de Lisboa, empenhada na defesa da moral e dos bons costumes, contribuíram para intensificar a indignação pública. Elas eram encabeçadas por Pedro Teotónio Pereira e Marcello Caetano, ambos apoiantes em 1926 da instauração da ditadura militar e ambos, posteriormente, ministros de Salazar. 
 
A GÉNESE DOS HETERÓNIMOS 
 
O acolhimento dispensado a Fernando Pessoa para colaborar na revista “Presença” (1927–1940) foi, sem dúvida, da maior importância para a divulgação da sua obra ortónima e heterónima. As numerosas cartas que Pessoa dirigiu a José Régio, a João Gaspar Simões e a Adolfo Casais Monteiro documentam a origem dos heterónimos, fundamentalmente Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Sem, todavia, remontar aos primórdios, aos 6 anos, na altura em que morava em Lisboa, na Rua de São Marçal, e inventou o Chevalier de Pas, que alguns biógrafos e críticos admitem ser um duplo da figura do pai, Joaquim Seabra Pessoa, falecido a 12 de junho de 1893. 
 
Em 1899, Fernando Pessoa concebeu o segundo heterónimo. Vivia na África do Sul com a mãe e o padrasto e frequentava a Durban High School. Deu-lhe o nome de Alexander Search, personagem inspirado em leituras de escritores de língua inglesa, entre os quais Edgar Allan Poe, um dos autores que o acompanharam a vida inteira. Estes dois heterónimos assinalam o início do debate íntimo e profundo para romper a solidão em que mergulhara. Era a busca obsessiva de uma companhia para dialogar com os seus próprios labirintos. 
 
Mas é na carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro — alguns meses antes de falecer — que Fernando Pessoa descreveu em pormenor a génese dos principais heterónimos que lhe deram renome universal: “A 8 de março de 1914 acerquei-me de uma cómoda alta e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, ‘O Guardador de Rebanhos’. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre.” 
 
Pessoa acrescenta: “Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. 
 
Múltiplo e vário, homem da cidade por excelência, Álvaro de Campos quer “sentir tudo de todas as maneiras”. Adotou uma escrita torrencial para comunicar as transformações operadas pela civilização industrial e mecânica que caracterizam o século XX. A “Ode Triunfal” e a “Ode Marítima”, ambas publicadas em 1915 no “Orpheu”, traduzem a impetuosidade do futurismo, na sua fase mais imperativa, frenética e audaciosa. 
 
Já a “Tabacaria”, publicada em 1927 e com o maior destaque na revista “Presença”, tem outra respiração. A sequência narrativa leva-nos a questionar a luta contra o esquecimento, o apagar da memória, a aguda perceção da vulnerabilidade da condição humana: “Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” Fernando Pessoa, logo no princípio, é direto. Explora a vulgaridade do quotidiano. As palavras encontram-se carregadas de uma ansiedade latente, de um desencanto visceral, de um tédio exorbitante e desmedido. O dia seguinte é (e será sempre) mais do mesmo, a sucessão da fatalidade, da angústia, do vazio e do desespero. 
 
Existiam alguns textos dispersos de Bernardo Soares. Só em 1929, passados mais cinco anos, ele fará a sua estreia pública. Contudo, o “Livro do Desassossego” só virá a ser publicado em 1982. Ou seja, 47 anos depois da morte de Pessoa. Qualquer Prémio Nobel da Literatura desejaria ser o autor desta obra de génio. 
 
O DIA TRIUNFAL NUNCA EXISTIU 
 
Uma investigação liderada por Ivo de Castro, numa equipa que, entre outros, integrou Luís Fagundes Duarte e João Dionísio, procedeu ao estudo dos manuscritos, à análise meticulosa de cada poema, de cada verso, da obra ortónima e heterónima, e de outros documentos do espólio de Pessoa. 
 
Ficou demonstrado que o dia triunfal, o histórico dia 8 de março de 1914, nunca existiu, tal como Pessoa o descrevera. Era uma ficção engenhosa para a posteridade. As contradições são evidentes. A versão de Pessoa, na carta a Casais Monteiro, não corresponde àquela versão: assim chegou a esta conclusão o grupo de trabalho que procedeu, durante anos, à leitura sistemática da correspondência para diversos destinatários e de numerosos outros manuscritos depositados na Biblioteca Nacional. 
 
Seja como for, os poemas de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos concorreram para a universalidade de Fernando Pessoa, a partir das décadas de 50 e 60 do século XX, ao verificar-se a projeção nacional e internacional da sua obra ortónima e heterónima. 
 
CAEIRO, O ENCONTRO COM A LEZÍRIA 
 
A presença humana e geográfica de Alberto Caeiro tem “a nitidez de uma fotografia”. Deixou de ser uma contemplação errante e misteriosa, coberta de névoas e de brumas. Escreveu Caeiro: “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos.../ Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é./ Mas porque a amo, e amo-a por isso,/ Porque quem ama nunca sabe o que ama/ Nem por que ama, nem o que é amar...” 
 
Alberto Caeiro interroga-nos olhos nos olhos. O seu mundo exterior não mergulha no vago e no indeciso. Identificou-se com todo o vigor e autenticidade ao abrir a série de poemas “O Guardador de Rebanhos”: “Minha alma é como um pastor,/ conhece o vento e o sol/ e anda pela mão das estações/ a seguir e a olhar./ Toda a paz da Natureza sem gente/ vem sentar-se a meu lado.” Ou então nos “Poemas Inconjuntos”, que completam a conceção do mundo de Alberto Caeiro: “Com filosofia não há árvores: há ideias apenas./ Há só cada um de nós, como uma cave./ Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;/ — E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,/ que nunca é o que se vê quando se abre a janela.” 
 
Aliás, o drama “O Marinheiro”, cuja publicação fora recusada na revista “Águia” — onde Pessoa era colaborador — e virá a ser inserido no primeiro número do “Orpheu”, já demarcava um afastamento das conceções estéticas, da visão saudosista e das linhas doutrinárias da Renascença Portuguesa definidas por Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra e Jaime Cortesão. 
 
Portanto: Alberto Caeiro apresenta-se como um Teixeira de Pascoaes virado do avesso. Nem António Nobre, sempre a incutir lamentações nostálgicas. Caeiro é um discípulo de Cesário Verde, na frontalidade da abordagem e dissecação da realidade. 
 
REIS, O UNIVERSO INTEMPORAL 
 
O outro caso específico é Ricardo Reis. Constitui a oposição ao fascínio da lezíria ribatejana de Alberto Caeiro. Acentuou a supremacia da razão em face da emoção, sem o discurso exuberante de Alberto Caeiro e, sobretudo, a vibração da “Ode Triunfal”, da “Ode Marítima” e os meandros surpreendentes da “Tabacaria”. Ricardo Reis celebra a beleza intemporal de tudo quanto vê, de tudo quanto ouve, de tudo quanto sente. Assim o confirma em vários excertos que transcrevemos das suas odes: “Vê de longe a vida./ Nunca a interrogues. Ela nada pode/ dizer-te,/ a resposta está além dos deuses.” Há um gosto sóbrio de fruir e exaltar os prazeres de cada dia: “quão breve tempo é a mais longa vida”; “gozemos o momento”; “aguardando a morte como quem a conhece”; “quer gozemos, quer não gozemos, passamos o rio”; “sem ódios, nem paixões que levantam a voz/ nem invejas que dão movimento demais aos olhos,/ Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,/ e sempre iria ter ao mar”... 
 
Ricardo Reis assimilou a cultura clássica que tem como paradigma as “Odes” de Horácio. Possui o sentido da medida, o ritmo e a precisão de cada verso. A pluralidade dos silêncios alerta-nos para situações que transcendem a rotina, a construção geométrica não extingue o rasgo inconfundível da sua imaginação criadora. 
 
A INSCRIÇÃO NO TÚMULO 
 
Nos seus 47 anos de vida, a maior parte dos quais passados em Lisboa, Fernando Pessoa ia de rua em rua, como qualquer outro cidadão. O ambiente desgastante da cidade prolongava-se à mesa do café, nos escritórios onde trabalhava, na solidão dos quartos alugados. É melhor citar Bernardo Soares ao mencionar as rotinas que o sufocavam — “as secretárias velhas do escritório”, “a pobreza das ruas intermédias da Baixa usual” e “a náusea da quotidianidade enxovalhante da vida”... 
 
É certo que Fernando Pessoa manifestou a urgência da mudança. Desejava “criar um outro mundo, igual a este, mas com outra gente”. Contudo, eram tantas as impossibilidades que se limitava a exigir, numa das “Odes” de Ricardo Reis: “Para ser grande sê inteiro/ Sê todo em cada coisa./ Põe quanto és/ no mínimo que fazes.” 
 
Estes versos inscritos no túmulo de Fernando Pessoa, no claustro dos Jerónimos, constituem o legado do seu carácter, para honrar e cumprir o que há de mais nobre na condição humana. De resto, cada poema de Fernando Pessoa ou dos seus heterónimos consiste numa viagem à sua própria vida, às nossas vidas e a muitas outras vidas imaginadas. 

* Jornalista-carteira profissional número Um e investigador;  sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente português para a ABL-Academia Brasileira de Letras-cadeira nº 3.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

DOMINGOS HORTA

Por Abgar Antônio Campos Tirado *
Elogio a seu patrono Domingos Horta: discurso de posse na Academia de Letras de São João del-Rei, aqui transcrito da Revista da Academia de Letras de São João del-Rei, Ano I - nº 1 - 2005, pp. 127-136.

Domingos Horta (Itabira, 1904-São João del-Rei, 1967) - Crédito pela imagem: Colégio Nossa Senhora das Dores, quadro de formatura de normalistas em 1958

 
Lembra-me bem aquela tarde de dezembro. Repousando em seu ataúde, cercado de flores, de velas e de amigos, lá estava o nosso Professor Domingos Horta, depositado em câmara ardente, próximo ao altar-mor da Capela de Nossa Senhora de Lourdes, do convento dos franciscanos. Dobram triste e pesadamente os sinos da igreja de São Francisco de Assis. Eis que se põe a caminho, em lenta e dolorosa marcha, o fúnebre cortejo. Formando fileiras, os padres franciscanos entoam solenemente o cantochão dos sagrados cânticos: 
Jusjurandum quod juravit ad Abraham, patrem nostrum, daturum se nobis. — 
E o préstito vagarosa e ininterruptamente se aproxima dos portões do grandioso templo franciscano, cujo campo santo seria o guardião perpétuo dos terrenos despojos daquele que atingira naquele dia o termo de sua vida neste mundo. Aquela vida iniciada em Itabira, no dia 04 de dezembro de 1904. 
Domingos Horta era o primogênito do casal Henok Pires Horta e Maria Rosa Horta de Oliveira, tendo como irmãos a Geralda, José Ricardo, Luiz e Délcio, sendo primo do genial Carlos Drummond de Andrade. 
Revelando invulgar inteligência e vivacidade, Domingos, ainda muito criança, mudou-se para Ferros, onde iniciou seus estudos regulares, cursando o Primário no Grupo Escolar Silveira Drummond e o Normal na Escola Normal Albertino Drummond. Sedento de saber, ansiando por desenvolver ao máximo suas potencialidades, o menino Domingos se aplicava aos estudos com entusiasmo e responsabilidade, ouvindo e perguntando, lendo e discutindo, pesquisando e aprendendo. E assim foi ele acumulando aquela formidável bagagem cultural que o distinguiria mais tarde nas lides do magistério, que tanto saberia honrar. 
Em 1922 foi nomeado para uma função na Secretaria de Estado das Finanças. Mas uma vocação profunda e irrefreável para o Magistério o impelia a abraçá-lo. E ele atendeu ao chamado dessa vocação, fazendo-o com indizível entusiasmo e, sobretudo, com inexcedível amor. Com seu ingresso em 1923, como professor no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, com apenas dezoito anos de idade, estava realizado o consórcio de Domingos Horta com a cátedra, consórcio esse verdadeiramente só desfeito pela morte. 
Até o ano de 1928 militou aquele Colégio, lecionando superiormente Português, História, Geografia e Francês. Naquela ocasião, teve a salutar e enriquecedora convivência com o prof. Cláudio Brandão, época em que lhe veio a feliz oportunidade de assistir a um exame de Português, ao qual se submeteu aquele ilustre professor, tendo como examinador ao imortal João Ribeiro. O brilhantismo com que se houve o prof. Cláudio Brandão calou profundamente no espírito do jovem prof. Domingos, incitando-o cada vez mais a se dedicar ao culto da “Última Flor do Lácio, inculta e bela”. 
Por essa ocasião, paralelamente ao amor nutrido pelos livros, crescia em seu coração jovem um outro amor, terno e humano, e de profundíssimas raízes: o amor por Maristela Machado, que se assenhorearia daquele coração para jamais deixá-lo. Uniram-se em matrimônio. Uma união feliz, duradoura, absolutamente fiel ao juramento proferido no ato sacramental. Domingos e a cátedra. Domingos e Maristela. Feliz e maravilhosamente lícita bigamia. A cidade de Ferros, que dera a Domingos as primeiras luzes do saber, dava-lhe agora a esposa querida. 
Desponta o ano de 1929. Um fato muito importante se faria presente ao casal Domingos-Maristela: São João del-Rei, com suas igrejas barrocas, sua música, suas pontes e sua bicentenária cultura, lançava-lhes um aceno amigo, convidando-os a se unirem a nossa gente. E eles vieram e se tornaram filhos de nossa cidade. 
Ah, sinos que agora dobram soluçantes para a passagem do funéreo cortejo. Acaso vos lembrais das horas felizes daquele casal, tantas vezes sublinhadas por vosso festivo repicar? Quantas vezes vistes o ditoso par introduzindo-se na majestade de vossa igreja, ou caminhando sob as palmeiras que diante de vós se postam, quando o conviver de ambos tinham sabor de eternidade? 
In sanctitate et justitia coram ipso, omnibus diebus nostris — Prossegue o cântico e a procissão; os sinos e a multidão. 
O mesmo ano de 1929 abre ao jovem professor as portas do então Ginásio Santo Antônio, que só lhe seriam fechadas pelas mãos geladas da Morte. Ali lecionou Português, História e Geografia, notabilizando-se nas duas primeiras disciplinas e de cujas aulas posso dar meu testemunho pessoal, quando fui seu aluno, na década de cinquenta. 
Não só o Colégio Santo Antônio teve a ventura de vê-lo honrar seu quadro de professores. Foi ele igualmente, até sua morte, devotadíssimo professor do tradicional Colégio Nossa Senhora das Dores, sendo ali altamente distinguido e respeitado, inclusive dirigindo, por muitos anos, as cerimônias das sessões solenes de formatura. Também foi um dos professores pioneiros da Escola Técnica de Comércio Tiradentes, que o teve, por alguns anos, como respeitabilíssimo docente, nas cadeiras de Português e de História. 
Sempre buscando ampliar seus conhecimentos, não com o fim de guardá-los egoisticamente para si, mas para dispensá-los generosamente aos que a ele acorriam em busca das luzes de seu saber, já em 1931 publicava, em colaboração com os professores Mário Mourão Filho e Augusto Rainha, o “Vocabulário Ortográfico”, impresso nesta cidade, na Tipografia da Casa Assis, livro esse de cento e cinco páginas, dedicado à Virgem do Carmo e ao Revmo. Sr. Padre Frei Estêvão Lucassen, então Diretor do Ginásio Santo Antônio. No prefácio, dizem os autores: “...resolvemos, para auxiliar os nossos alunos, publicar um vocabulário em que as palavras portuguesas se apresentassem escritas pelo novo sistema, trajadas à moderna.” 
Batalhador incansável, foi o prof. Domingos redator do jornal “O Porvir”, do Colégio Santo Antônio, que tanto serviço prestou a nossa mocidade. 
Jornalista de mérito, escreveu com freqüência para o jornal “O Correio”, desta cidade, primorosos e variados artigos. Durante toda a sua vida, manteve permanente correspondência com o seu parente e grande amigo Carlos Drummond de Andrade. 
Um outro aspecto da atividade humana que exercia fascínio sobre Domingos Horta era a política. Pertenceu ao PRP e mais tarde se identificou plenamente com o PSD, exercendo, por mais de uma vez, a vereança em nossa Câmara Municipal. 
A grande autoridade do prof. Domingos Horta em Língua Portuguesa era reconhecida por toda parte, inclusive na Capital do Estado, de onde, inúmeras vezes, foi chamado para constituir a banca examinadora de Português, nos vestibulares da Escola de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Era o reconhecimento da competência e do valor do Mestre. 
Nos últimos anos de sua vida, paralelamente a sua atividade docente, foi titular, por concurso, do Cartório de Registro de Títulos e Documentos, nesta cidade. 
Ó vós, que caminhais, levando para a sepulcral morada o corpo inerte do Mestre querido, por que não parais um momento? Detende-vos por alguns instantes. É necessário que o conduzais tão cedo para longe de nossos olhos? 
Ad dandam scientiam salutis plebi ejus: in remissionem peccatorum eorum — continua o Cântico de Zacarias. Mais pungente e nervosamente redobram os brônzeos arautos do franciscano templo. Cada vez mais pesada é a dor da separação, que todos penosamente arrastam consigo. 
Reside em minha memória a primeira aula que tive com o professor querido. Era uma aula de História Geral. Eu, menino de onze anos, aguardava um tanto ansioso a entrada do professor que eu não conhecia. E eis que ele entra muito sério, muito severo. Nós, meninos, mal respirávamos. Mas enchia-nos de confiança a simpatia de sua figura e o belo timbre de sua voz. Feitas diversas recomendações iniciais, temperadas com aparentemente mui severas advertências, dá início o Mestre à sua exposição sobre História Antiga. E desfilam os Ciros, os Darios e os Alexandres; os Sólons e os Péricles; os Xerxes e os Temístocles. À medida que os assuntos eram desenvolvidos, íamos como que ficando magnetizados por suas palavras. Um filme talvez não nos desse um quadro tão vívido e real da matéria exposta. Tanto na primeira quanto em todas as outras aulas, desejávamos que jamais fosse dado o sinal para seu término. Eram elas ocasiões de enriquecimento e encantamento. Como escrevi eu mesmo em um artigo sobre o Mestre, publicado no jornal “Ponte da Cadeia”, logo após sua morte, “em suas aulas, o sino, que marcava o final das mesmas, era nosso grande inimigo.” Embora austero, o Mestre possuía enorme magnetismo e simpatia pessoal, de que ficávamos decididamente cativos. 
Falando ainda sobre suas aulas, lembro-me que, geralmente, após fazer a chamada, em sua mesa, tirava os óculos e, com eles em uma das mãos, caminhava para o centro da sala, junto à primeira carteira da fila, e dava início à sua exposição. Tudo o mais era silêncio. Um aspecto pitoresco da forma de o mestre conduzir-se em classe, era quando, após realizadas as sabatinas, ansiávamos pelas notas. Prof. Domingos examinava a fisionomia de todos e, se julgava que a ansiedade era demasiada, dizia com severidade, mas certamente, rindo-se interiormente: 
— Não vou ler as notas: vocês estão muito curiosos. 
Pior ainda se algum aluno, irrefletidamente, pedia-lhe que as lesse. O professor imediatamente assumia uma feição severíssima e dizia: 
— Eu ia ler as notas, mas agora que você pediu, não as lerei. 
Assim mesclava ele a severidade com um delicioso humor. 
Já naquela ocasião, sabia-o, entretanto, doente, atacado por problemas renais. Percebíamos que sofria dores, as quais procurava disfarçar, jamais perdendo sua impecável linha, no máximo apoiando uma das mãos sobre a região dos rins. De fato, no ano seguinte ao de minha entrada no Ginásio, foi obrigado a hospitalizar-se em Belo Horizonte, para submeter-se a delicada intervenção cirúrgica, quando lhe extraíram um rim, chegando a ficar em estado muito grave, durante um ano inteiro. É fácil imaginar a desolação e a ansiedade que se apoderaram de todos nós, seus alunos, que ardentemente desejávamos sua recuperação e por ela pedíamos a Deus que, por Sua bondade, permitiu que ele ainda se refizesse e continuasse a viver no meio de nós. Bem gravada está em minha memória a primeira vez que o encontrei, após essa terrível fase. Foi no passeio fronteiro à sede social do Minas Futebol Clube. Deu-me longo e apertado abraço, dizendo-me ternamente: “Quanta saudade!” 
Muitos dias após, em um intervalo de aula, ele nos contava sobre sua experiência em sentir-se bem perto de seu fim, lembrando-me ter ele dito: “Engraçado, quando a gente vê mesmo a morte de perto, invade-nos uma grande tranquilidade. Não senti o menor receio.” Pouco depois, dizia ele em um discurso de homenagem ao prof. Mário Mourão: “Permita-me, meu Mário, que, nesta oportunidade, eu volva o meu pensamento e o meu coração agradecido, nesta hora de suprema alegria, a Deus Todo-Poderoso que na sua infinita bondade e na sua magnânima misericórdia, concedeu-me a graça de quase uma ressurreição e consentiu que eu voltasse a esta terra hospitaleira e tomasse parte nesta festa em que se presta homenagem a um amigo dileto”. 
O prof. Domingos era católico fervoroso e assíduo no cumprimento de seus deveres de cristão, frequentando sempre a igreja. No mês de maio assistia diariamente aos atos do Mês de Maria, o que, em diversas ocasiões, pude testemunhar. Deixou inúmeras vezes, em seus escritos, patenteada a sua fé. 
Era também comum encontrarmos o prof. Domingos e D. Maristela a caminho do Hotel do Espanhol, onde tomavam as refeições. Embora não tivessem filhos, tinham sempre consigo a menina Maria Carmem, a Mita, afilhada do casal e filha de outro baluarte do Colégio Santo Antônio: o prof. Mário Mourão, a cujo nome me referi anteriormente. Mita era considerada verdadeira filha pelo casal, e posso afirmar que ainda o é por D. Maristela. 
Quando da formatura de ginásio de meu irmão Almeno, duas séries na minha frente, foi o prof. Domingos escolhido paraninfo. Recordo-me do discurso por ele proferido na ocasião: peça longa, profunda e primorosíssima. Inúmeras vezes escolhido paraninfo de seus alunos, tomemos alguns trechos esparsos de seus modelares discursos, que tão bem retratam o mestre insuperável. 
“A educação é obra da família e da escola, na formação do caráter e no desenvolvimento da inteligência. O caráter forja-se em princípio, no lar. Cada um de nós traz, na personalidade, a marca da família. Depois, é no pequeno mundo da escola, miniatura da sociedade, com seus vícios e virtudes, que a criança, embrião do homem, com o caráter já esboçado, mas latente, vai sentir os primeiros embates da luta pela vida, modelada agora nos espelhos do mestre.” 
E após tecer sapientíssimas, realíssimas e corajosíssimas considerações, assim termina esse discurso: 
“Meus caros afilhados: 
Não desanimeis. Não vos prego o pessimismo; isso seria indigno da minha missão. Sou porém realista. Estou fotografando uma situação a fim de entrardes na vida prevenidos, com pleno conhecimento do terreno que ides pisar. Neste Colégio, apesar das imperfeições humanas, apesar das dificuldades da hora presente, dificuldades materiais, morais e sociais, tudo fizemos, com carinho e amor, para aprimorar-vos a educação, para instruir-vos a inteligência.” E um pouco adiante: “Estais aptos para a luta. Podeis enfrentar a vida. Estais armados cavaleiros do ideal. 
Não vos deixeis levar, mocidade cheia de esperança, pelos maus exemplos. Reagi com a pureza de vossas intenções, para realizardes vosso nobre destino. 
Lembrai-vos do que vos disse no último dia de aula: só a bondade deve presidir às vossas deliberações. Ide, pois, meus queridos afilhados. Sede felizes e que Deus vos abençoe para que o vosso mundo seja a realização plena de vossos sonhos azuis.” 
Em outro discurso, disse o Mestre: 
“A educação que aqui recebestes é um patrimônio inestimável, cuja preservação é a maior das vossas responsabilidades e de cuja eficácia tereis de ser, pela palavra e pelo exemplo, no seio da sociedade que vos vai acolher, os mais pugnazes e autorizados arautos. 
Aqui aprendestes a Fé, o Patriotismo e o Trabalho. 
A Fé que afirma, porque é ideal e preceito. 
O Patriotismo que luta, porque é estímulo e força. 
O Trabalho que vence, porque é ação, perseverança e vontade. 
Revestidos desta tríplice armadura, que resguarda a inteligência, o coração e o braço, podeis entrar corajosos e impávidos, para o campo da liça, que além já vos espera e desafia, na certeza antecipada de que vos há de coroar a mais completa e rutilante das vitórias”. 
E com que poesia termina o Mestre essa mesma alocução. 
“Vós ficareis cantando na minha lembrança, como estrofes de um poema que ajudei a lapidar, ficareis dentro do meu afeto como uma flor que ajudei a crescer, que dia a dia vai despontar pequenina, formar-se em botão, desabrochar em corola perfeita. 
A vossa lembrança ficará como um perfume dentro de mim e a vossa saudade, como um espinho dolorido, me há de pungir o coração que sempre foi de todos vós. 
Adeus!” 
No ano de 1954, quando o Mestre completava vinte e cinco anos de magistério no Ginásio Santo Antônio, a Direção daquela renomada Casa de Ensino empenhou-se em comemorar condigna e brilhantemente o acontecimento. Atividades várias foram carinhosamente programadas, tendo o Diretor, frei Felicíssimo, de saudosíssima memória, escolhido para saudar o eminente Mestre, pelo corpo docente, o prof. dr. Elpídio Antônio Ramalho, hoje um de nossos confrades nesta Casa, e, em nome do corpo discente, a mim, inexperiente menino de ginásio. Senti-me profundamente honrado com a escolha e procurei esforçar-me ao máximo para bem desincumbir-me da missão, inclusive buscando conselho junto a meu tio Carlos, hoje igualmente Acadêmico neste Sodalício. Guardo ainda comigo a fotografia tomada no momento em que eu discursava. Falaram, também, além de Frei Felicíssimo e de Frei Beno, os ex-alunos: Dr. Milton Viegas, pelos médicos; dr. José Luiz Baccarini, pelos advogados; sr. Júlio Mourão pelos bancários; major Roberto Neves, pelos militares, e Revmo. Padre, depois Cônego Osvaldo Lustosa, pelos sacerdotes. O prof. José Américo da Costa leu um soneto de sua lavra, dedicado ao homenageado. 
Não focalizarei o que eu disse naquele momento, mas reproduzirei fragmentos do belíssimo discurso proferido pelo prof. dr. Elpídio e que me foi recentemente cedido: “... É que, Senhores, o Ginásio Santo Antônio, cenáculo admirável de ensino, abre, de par em par, as portas do seu templo, para com as honrarias que merecem os espíritos de escol, com as mais assinaladas provas de estima, com mavioso afeto, homenagear, premiar a útil existência inteiramente dada ao estudo sério e ao rigoroso labor do ensino, enobrecendo o trabalho diuturno, o esforço continuado e a dedicação nunca interrompida”: e mais adiante: “o manejo fácil e apurado da língua vernácula, o completo domínio do assunto, o hábito de escutar e sentir os alunos fazem-vos por todos querido e respeitado. Vosso temperamento uniforme, plano, sem arroubamentos, faz de vossa pessoa amável, risonha e acolhedora, o amigo, depois do mestre.” E para concluir: “Emérito Mestre: Estais agora como aqui certamente ingressastes – de fronte erguida e mente tranquila, na certeza de haver dignificado o Colégio Santo Antônio, honrado São João del-Rei e glorificado o magistério nacional ao serviço da Pátria.” 
Como eu disse, variada e vasta foi a programação dos festejos desse argênteo jubileu. Além de outras atividades, houve Missa Solene, no dia 29 de setembro, com a participação do coro de estudantes, de frei Geraldo, do qual eu fazia parte, tendo-se realizado na véspera, a 28, a sessão magna, no teatro do Ginásio, durante a qual constituímos um outro coro, que apresentou uma adaptação feita especialmente para o momento, com letra, creio, do pranteadíssimo frei Metelo, que dizia como estribilho: “Ao Domingos Horta agora/ cantemos todo louvor,/ pois há vinte e cinco anos/ ele é nosso professor!” 
Vós, que me ouvis, perdoai-me se me prendo a pormenores aparentemente insignificantes, mas na doce recordação dos tempos idos e vividos, principalmente em maravilhosas convivências, tudo é importante, tudo é precioso. 
Ó sinos, que envolvem em um manto de sonora dor esse préstito que atende ao vosso chamado, oxalá fôsseis substituídos por aquele vosso humilde irmão, que anunciava o término das aulas do ilustre morto, desde que ele estivesse vivo! 
Frequentei a classe de Português do Prof. Domingos Horta somente na quarta série de Ginásio, tendo antes apenas sido seu aluno de História. Passei a ser seu discípulo em nosso formoso idioma, tendo saído das mãos do prof. Elpídio, que me oferecera sólida base. Na quarta série era o Português minha matéria predileta, o que fazia com que mais se estreitassem os laços com o prof. Domingos. 
E os anos corriam. Já eu deixara São João para cursar o Científico e voltara a esta cidade para freqüentar nossa Faculdade Dom Bosco, quando fui convidado a lecionar Português e Inglês em nosso mui saudoso Colégio Santo Antônio. Vi-me, então, muito jovem ainda, colega de meus antigos e queridos Mestres! Vi-me honrosamente ao lado do prof. Domingos Horta, que continuava a distinguir-me ao máximo, sempre a mim se dirigindo, dizendo: “meu caro”,  ou “meu caríssimo”. 
Durante os recreios, na sala dos professores, muito pude conversar com o prof. Domingos, encantando-me sua jovialidade e sobretudo seu entusiasmo sempre renovado pelo magistério, incessantemente buscando aperfeiçoar-se e oferecer o melhor para o aluno. Era comum vê-lo caminhar, lendo atentamente algum livro, embora sem deixar de cumprimentar os que por ele passavam. Entretanto, sem que deixasse transparecer, sua saúde ia-se tornando cada vez mais precária, creio eu, também já acometido de algum problema cardíaco. Recordo-me de que, naquele mesmo ano, falecendo o Cônego Osvaldo Lustosa, subíamos o prof. Domingos e eu o Largo das Mercês, para velarmos o estimadíssimo sacerdote e acompanhar-lhe os funerais, quando me revelou o professor que não podia sofrer fortes emoções e que se, porventura, durante uma aula, inflamava-se mais, depositava sob a língua certa pílula, que sempre trazia consigo, por prescrição médica. 
Cerca de três anos depois, agravou-se muito seu estado de saúde, permanecendo algum tempo em Belo Horizonte, numa situação clínica tão inquietadora, que sua morte chegou a constar nesta cidade, o que trouxe um terrível abalo para todos nós. Felizmente verificou-se ser inverídica a notícia e mais uma vez quis Deus se recuperasse nosso estimadíssimo prof. Domingos. Dias depois, chegou a comentar comigo, rindo-se bastante, a respeito desse boato. 
Mas o tempo reservado para sua permanência neste mundo antitético e paradoxal aproximava-se de seu fim. Sua saúde, embora não o mostrasse o exterior, encontrava-se seriamente comprometida. Entretanto, o Mestre queria viver. Na batalha extenuante da vida, ele permanecia de pé, ereto e militante, firme e atuante; render-se não lhe ocupava o pensamento. 
Mas eis que chega o momento supremo, contra o qual nenhuma humana força consegue lutar e sair vitoriosa. 
Aproxima-se de seu término o ano de 1967. Ocasião das provas finais nas escolas. No Colégio Santo Antônio, o prof. Domingos já aplicara as provas em todas as suas turmas, com exceção de uma. Levanta-se, naquela manhã, para iniciar sua atividade docente do dia, quando um violento ataque cardíaco o faz tombar. Conduzido a seu leito, não admite guardá-lo. “Devo ir; tenho prova.” – diz o Mestre. Mas mesmo sua hercúlea força de vontade é impotente para reerguê-lo e é levado inconsciente para o Hospital de N. Sra. das Mercês. 
Sinos de São Francisco! Como vosso som se avoluma! Já vedes o féretro que passa sob vossos angustiados badalos? Deixai-o penetrar no sagrado recinto. É por demais precioso o que ele contém. 
Illuminare his, qui in tenebris et in umbra mortis sedent: ad dirigendos pedes nostros in viam pacis — vai morrendo o cântico dos frades. 
Gente rezando! Gente chorando! 
Cum Sanctis tuis in aeternum, quia pius es.
Despedia-se deste Mundo aquele que se tornara grande em buscando fazer-se pequeno; que era reverenciado, por ter sabido servir. 
In paradisum deducant te Angeli.
Repousando em seu ataúde, cercado de flores, de velas e de amigos, deixava-nos fisicamente o prof. Domingos Horta, naquele dois de dezembro de mil novecentos e sessenta e sete. Mas quão doce e suave deve ter sido seu despertar na Eternidade, ao sentir que distribuíra luzes de sabedoria e, principalmente, que deixara como legado o seu exemplo dignificante. Terminara a grande aula de sua vida. O Mestre soubera cumprir sua Missão.
 
* Membro da Academia de Letras de São João del-Rei, cadeira nº 16, patrono: Domingos Horta