sexta-feira, 19 de julho de 2024

HORROR VACUI


Por RUDESINDO SOUTELO *
Transcrevemos com a devida vênia de AS ARTES ENTRE AS LETRAS, uma publicação de interesse cultural e literário reconhecida pelo Governo Português, nº 366, de 17/07/2024, p. 22.

Púlpito da catedral de Siena realizado entre 1265 e 1268, por Nicola Pisano

 

Num artigo de 1948, Arnold Schoenberg fala do passeio num fiacre vienense e do muito devagar que transitava a carruagem. Admira-se da calma de espírito necessária para aguentar um passeio tão pausado. Vinte anos depois fez um percurso pelos vales suíços mas, desta vez, de carro e observa que pouca coisa conseguiu ver. Em vinte anos, as pessoas tinham perdido o interesse por contemplar aquelas belezas e desfrutá-las ¹

O violinista Yehudi Menuhin, quando era Presidente do Conselho Internacional da Música da Unesco, em 1975, propôs que o futuro Dia Mundial da Música fosse celebrado com um minuto de silêncio. O silêncio, para além de delimitar a presença do som, representa a quietude, a introspeção, o reencontro da própria existência. A proposta de Menuhin não foi levada a sério porque nesta sociedade, a quietude do silêncio tornou-se aterradora e a ‘cerimónia do silêncio’ ficou reservada à memória dos mortos. 

O horror vacui é o medo do espaço vazio ou a esse nada insuportável, que gera uma resposta ansiosa e compulsiva por sobrecarregar o espaço até à desordem e ao caos. A massa foge dos espaços silenciosos e tranquilos porque isso obriga-a a escutar-se. Corre a refugiar-se na multidão barulhenta, onde a linguagem e o raciocínio comunicacional podem ser reduzidos a uma espécie de sistema binário do sim e não, suficiente para a voluptuosidade e a satisfação de prazeres rudimentares. Mas isso impede a sublimação do espírito, pois este precisa de reflexão e calma. A música é sempre a arma preferida e poderosa para atingir essa confusão, utilizando musiquetas, melhor do que músicas, pois nesses casos não se trata de ouvir, mas de saturar o espaço para abafar a ansiedade. 

Kirpal Singh, místico indiano, fala de um silêncio construtivo porque quando não há som, a audição fica mais alerta, e quando há som, a natureza da audição é menos desenvolvida ². Murray Schafer conclui que “é preciso silenciar o barulho da mente” para melhorar o projeto acústico mundial ³. E, noutro momento, afirma que “toda a pesquisa sonora precisa concluir com o silêncio” . Ouvir, pois, o silêncio, tal como Pitágoras ouvia a música celestial da harmonia das esferas ou, na descrição de Boécio e segundo o texto original latino, a música ‘mundana’ , é uma capacidade auditiva que pode ser treinada para chegar ao estado de ‘clariaudiência’ que nos tornará conscientes do som ambiental da paisagem. Schafer propõe reconquistar a quietude, o silêncio, como um estado positivo na vida das pessoas . A importância do silêncio na música é abordada por John Paynter, quando afirma que os silêncios são imprescindíveis na composição musical  e, como as pausas ou silêncios intermédios, conformam ‘ideias de silêncio’ tal como os sons . Para Paynter, o silêncio é um elemento estrutural, mas também um elemento recessivo, que pode pôr em perigo o fluir da música . O silêncio é talvez o elemento mais subtil da música, porque nele há sempre um eco dos sons que o circundam. Toda a pedagogia da música devia fundamentar-se na pedagogia do silêncio, mas sabemos que isso nem sempre acontece. A consciência do silêncio é pois uma das marcas distintivas desta linha pedagógica. Assim como Schoenberg reclamava a calma de espírito de um passeio pausado para desfrutar das belezas da paisagem visual, sonora e intelectiva, Schafer e Paynter reclamam atenção para o silêncio positivo, procurando que os alunos se reencontrem a si mesmos. 

No século XX, o silêncio foi elevado à categoria de arte por um ativista musical, John Cage, que, em 1952, estreou uma obra considerada a pedra angular da filosofia da música experimental e que irritou profundamente o público assistente, pela ausência de som. Num escrito de 1957, o autor fala de uma nova atitude para ouvir a nova música e que consiste em prestar atenção à atividade dos sons (“Just an attention to the activity of sounds”) ¹

O termo ‘horror vacui’ é um conceito que a física peripatética utiliza para exprimir que a natureza abomina o vácuo e, portanto, a matéria circundante tenderia a preencher imediatamente o espaço vazio. Na história da arte também se utiliza o termo para descrever a tendência a preencher completamente todas as superfícies, o que acontece ao longo da história, nomeadamente no barroco. Na sociedade híper-estimulada atual, a sobrelotação visual e acústica que invade o nosso espaço vital vai muito além do horror vacui, atingindo proporções de contaminação grave e prejudicial para a saúde. 

Seria bom criar espaços de silêncio construtivo tanto nas escolas e parques públicos como nas empresas para, assim, reduzir as perturbações psicológicas da povoação obrigada a suportar excessos auditivos que encurtam a sua capacidade de raciocínio. 

* Também identificado como "O Bardo na Brêtema" (rubrica jornalística e alter ego do autor). É compositor e mestre em Educação Artística e Ensino de Música, além de membro da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) e presidente da Academia Galega da Língua Portuguesa. 

 

NOTAS EXPLICATIVAS 

 

¹  Schoenberg, A.: Le Style et l’idée. París: Buchet/Chastel, 2002, p.90. 

²  Singh, K.: Naam or Word – In the beginning was the Word. Califórnia: Ruhani Satsang, 1994, p. 59. 

³  Schafer, R. M.: A afinação do mundo. São Paulo: UNESP, 2011, p. 358. 

  Ibid.: p. 29. 

Boethius: De institutione arithmetica libri duo: De institutione musica libriquinque (G. Friedlein, Ed.) Leipzig: B.G. Teubneri, 1867, pp. 187[I, ii]. 

Schafer, R. M.: Op. cit., p. 358. 

Paynter, J.: Sonido y Estructura. Tres Cantos: Akal, 1999, p. 58.  

Ibid.: pp. 186-187. 

Ibid.: p. 190. 

¹ Cage, J.: Silence. London: Marion Boyars, 1978, p. 10.

4 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
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Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Para o professor português RUDESINDO SOUTELO, 'horror vacui' significa medo do espaço vazio, representado pelo silêncio, do qual foge a massa. Para preencher ou saturar o vazio sentido pela multidão e abafar sua ansiedade, é utilizada a música. O autor, entretanto, se intitula defensor do silêncio construtivo tanto nas escolas quanto nos parques públicos e empresas.
Os ruídos dos vários ambientes sociais frequentados pela multidão são abafados pelas músicas de fundo ou musiquetas, que preenchem artificialmente todos os vazios (por exemplo, nos elevadores, nos restaurantes, nos banheiros, nos consultórios odontológicos, etc.).
Murray Schafer, estudando esses conceitos, chegou à conclusão de que se faz necessário que todos tomemos consciência da paisagem sonora que nos cerca, ou seja, dos sons que compõem um determinado ambiente, sejam estes sons de origem natural, humana, industrial ou tecnológica.
Para isso, ele como educador musical criou para seus alunos exercícios para a atenção minuciosa aos sons ouvidos (à qual chamou de "limpeza de ouvidos") em uma determinada paisagem sonora, classificando-os e selecionando-os e, a partir deles, os alunos criavam possibilidades musicais, quer improvisando ou compondo, quer imitando-os ou recriando-os. Além disso, recomendava ao educador musical na sala de aula treinar estudantes na gravação de paisagens sonoras dando-lhes sons específicos para gravar e também promover passeios sonoros, destinados a "uma exploração da paisagem sonora de uma determinada área utilizando-se uma partitura como guia. Essa partitura é constituída por um mapa que chama a atenção do ouvinte para os sons do ambiente que serão ouvidos no decorrer do passeio". Em linhas gerais, é disso que trata o artigo de Roudesindo Soutelo.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/07/horror-vacui.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008) disse...

Muito esclarecedor.
A ubiquidade da "maquininha do Diabo" (celular) tende a preencher de sons e imagens 24 horas das pessoas hoje, sobretudo dos mais jovens.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Tema de interesse que normalmente não é sequer lembrado, exposto de forma não menos interessante. É de se notar que, em quaisquer eventos, a norma tem se tornado o volume sonoro ao extremo e, além disso, a sonoridade ter-se transformado em elemento de alteração de consciência. Tudo menos silêncio, mais uma poluição para os sentidos. Poder-se-ia deduzir sobre que tipo de civilização e personalidade estão daí emergindo?
Saudações.
Cupertino.