sábado, 10 de agosto de 2024

Este relógio de reis parece tudo menos um relógio


Por LUCINDA CANELAS - Texto *
CATARINA PÓVOA - Fotografia
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, na coluna CULTURA, artigo publicado na edição de sábado, 10/08/2024, pp. 28-9.
D. Carlota Joaquina quis tirar o trono a D. João VI e depois herdou-lhe o relógio. Com ele, Queluz volta a falar de D. João VI e de D. Carlota Joaquina. Duas pinturas recém-adquiridas também serão expostas em breve.

O relógio de fabrico francês terá sido feito por volta de 1790 e o seu mecanismo está oculto.


Num palácio como o de Queluz há quase sempre trabalhos em curso. Se não são as fachadas a mudar de cor ou as esculturas do jardim em restauro, é a renovação da sala das porcelanas, a mostrar que da dieta de reis e infantes faziam parte o café e o chocolate, ou o restauro do órgão da capela, prestes a fazer-se ouvir outra vez. Nos últimos anos esta residência real tem sido alvo de vários projectos de requalificação, acompanhados por um enriquecimento pontual das suas colecções garantido pelo programa de aquisições que a Parques de Sintra — Monte da Lua, entidade que o gere, alargou a todos os monumentos que tem à sua guarda. 
 
Não surpreende, por isso, que os seus visitantes venham a cruzar-se com as equipas que estão a limpar os enormes lustres dos salões, nem que haja agora três peças compradas nos últimos meses à espera que as estudem e, num dos casos, restaurem, para que possam ocupar os lugares que os conservadores do palácio já lhes destinaram, ajudando a compor a decoração do paço onde moraram, entre outros, os casais D. Maria I-D. Pedro III e D. Carlota Joaquina-D. João VI, assim como dois dos filhos deste último, D. Miguel I e D. Pedro IV, irmãos eternamente inconciliáveis. 
 
Um retrato a óleo de D. João VI (c. 1815) ainda como príncipe regente da autoria do francês Henri-François Riesener; uma pequena pintura da Virgem feita pela princesa Maria Francisca Benedita, a mais nova das quatro filhas de D. José I e irmã da rainha D. Maria I; e um curioso relógio de fabrico francês (c. 1790) que poderá ter sido oferecido a D. João VI, muito provavelmente a peça mais interessante destes três lotes recentemente incorporados na colecção de Queluz. 
 
À primeira vista, esta peça de gosto neoclássico, feita em mármores polidos e bronzes fundidos, cinzelados e dourados, parece uma escultura ou modelo de um monumento público, já que é difícil identificar de imediato o relógio que nela está integrado, de forma bastante engenhosa. 
 
“Os franceses tiveram um papel muito importante no cruzamento da arte da relojoaria com as artes decorativas, criando peças como esta. Os ingleses e os alemães, que fizeram avanços técnicos impressionantes quando falamos de relógios, viam-nos no início, sobretudo, como objectos utilitários — os franceses vão muito além da funcionalidade”, diz o mestre relojoeiro Paulo Anastácio, responsável pela conservação preventiva de todos os relógios do Palácio Nacional de Queluz (PNQ), 15 ao todo, contando com esta nova aquisição. 
 
Para glória do poder real 
Comprado por 35 mil euros num leilão no Porto, em Abril, este relógio poderá ter sido oferecido a D. João VI (1767-1826) na altura em que assumiu a regência do reino, em 1792. Hugo Xavier, historiador de arte e conservador do palácio, garante que a investigação em torno da peça ainda vai no adro, mas que já reuniu elementos precisos sobre a sua filiação francesa e o seu propósito, que está longe de se resumir a sinalizar a passagem do tempo. O relógio (96cm de altura sem plinto, 178cm com), que pertenceu ao banqueiro e mecenas Afonso Pinto de Magalhães (1913-1984), que foi presidente do Futebol Clube do Porto e fundador da Sonae, parece feito à imagem do obelisco que na cidade de Port-Vendres presta homenagem a Luís XVI (1754-1793), o rei deposto e guilhotinado pela Revolução Francesa. O monumento, construído na primeira metade da década de 1780, está hoje despojado de grande parte dos seus elementos decorativos, bem visíveis, com adaptações, no relógio que está hoje em Queluz. 
 
Hugo Xavier, historiador de arte e conservador de Queluz
 
“É como se este relógio fosse uma maquete do monumento daquela cidade portuária em França, que está completamente descaracterizado, só em pedra. Os bronzes que tinha originalmente desapareceram com a revolução, como o próprio rei”, diz Hugo Xavier. “O relógio tem, como o monumento teria, quatro relevos alusivos a grandes marcos do reinado de Luís XVI, panóplias de armas com elmos e escudos que representam os quatro continentes, tudo em bronze dourado”, e ainda duas proas de navios pontiagudas que parecem prontas a furar um casco inimigo numa batalha qualquer. 
 
Os acontecimentos relevantes do reinado que constam dos quatro relevos na base do obelisco em mármore, dois deles dando acesso ao mecanismo do relógio, por regra escondido, representam a independência dos Estados Unidos, a abolição da servidão em França, a liberdade do comércio marítimo e o relançamento da Marinha francesa, pode ler-se na ficha de inventário da peça, ainda em construção. 
 

 
As “adaptações” feitas pensando num destinatário português são visíveis no globo que encima o obelisco e nas inscrições em português que constam de dois panejamentos em bronze junto às proas de navio. 
 
“Estas inscrições têm excertos de um canto de Os Lusíadas e de uma carta de Sá de Miranda a D. João III, passagens que, de certa maneira, fazem a glorificação do poder régio, o que nos leva a avançar como possibilidade que esta peça seja uma espécie de reacção à Revolução Francesa, uma maneira de o rei português apoiar o rei francês”, explica o conservador de Queluz, acentuando o “valor político, simbólico” deste relógio. 
 
Em que circunstâncias chegou a Portugal? Quem o encomendou? Quem pediu para que fossem gravadas as palavras dos dois poetas? “Não sabemos como entra no país, mas pensamos que será um presente para o rei que depois passa para a sua viúva, D. Carlota Joaquina, que o tinha no seu palácio do Ramalhão [Sintra] quando morreu, aqui em Queluz. E pensamos que será do final do século XVIII, teoria que os chapéus de tricórnio nos homens representados nos quatro relevos parecem corroborar, o que significa que será 30 ou 40 anos mais antigo do que até aqui se julgava. Mas é preciso continuar a estudá-lo para conhecermos melhor a peça e o seu contexto.” 
 
D. João VI e Luís XVI tratavam-se por primos, embora não tivessem uma relação próxima, diz Hugo Xavier, apontando para o globo em metal no topo do obelisco de mármore, com o mapa de Portugal continental em que vêm assinaladas as cidades de “Lisbonne” ou de “Portalegre”. É precisamente este globo, dividido ao meio e com numeração romana e árabe, que indica as horas. 
 
“A serpente que tem na base é o ponteiro e está fixo, ao contrário do que acontece nos nossos relógios. O que roda são os dois discos que formam o globo”, explica o mestre relojoeiro Paulo Anastácio, chamando a atenção para os elementos decorativos que o ligam a Portugal e para o muito que ainda não se sabe sobre esta peça. “Temos de o estudar mais e de o pôr a funcionar. Para já, o que podemos dizer é que é um relógio mecânico, com cordas ou molas para assinalar, com indicação sonora, as horas e as meias horas. Um disco é para as horas, o outro para os minutos. Tem um pêndulo suspenso por um fio de seda que não se vê, e o mecanismo, na base do obelisco, também está escondido. O relógio, aliás, está dissimulado nesta escultura. Se estivesse a funcionar, só víamos mexer os discos do globo.” 
 
À época, por regra, estas peças eram colocadas no centro da divisão para a qual tinham sido especificamente desenhadas e serviam para “surpreender” e “divertir” os convidados da casa, acrescenta Paulo Anastácio, referindo-se ao relógio que terá pertencido a D. João VI e à sua viúva como “uma boa máquina, mas não inovadora”. 
 
A falta de inovação não significa, neste caso, falta de sofisticação: “O sistema de discos tinha já sido testado, usado, mas era raro. Assim como era raro uma peça como esta, para ser vista de todos os lados. O facto de o relógio estar disfarçado e o seu mecanismo escondido, aponta para um trabalho de equipa, entre o relojoeiro e o artista. É uma peça tecnicamente arrojada.” 
 
O facto de se parecer com o modelo do monumento de homenagem a Luís XVI pode explicar-se, diz o conservador Hugo Xavier, pelo facto de, na época, a imagem desse obelisco circular em várias gravuras, tanto do seu aspecto geral, quanto das quatro cenas representadas na base, dando conta de episódios relevantes no seu reinado. 
 
O relógio, que constava do inventário das posses da rainha que muito se endividou para apoiar os esforços antiliberais do seu filho Miguel (D. Miguel I), mas também para comprar jóias, vestidos e lingerie nas melhores lojas de Paris, como bem mostram as listas de compras que se lhe conhecem, estava entre a lista de bens que decoravam a Quinta do Ramalhão em 1829, um ano antes da sua morte. 
 
A rainha tê-lo-á herdado do marido, que morreu em 1826, aos 58 anos, em circunstâncias pouco claras. Durante muito tempo correram rumores de que teria sido assassinado pelos miguelistas, em virtude de uma conspiração que poderia até envolver a rainha, mas os historiadores dividiram-se quanto à tese de homicídio, tendo sido preciso esperar pelo ano 2000 para que um estudo forense apontasse para envenenamento com arsénio. 
 
A rainha mal-amada 
Carlota Joaquina (1775-1830), uma infanta de Espanha que em Portugal se tornou rainha, foi sempre muito mal vista pela corte dos Bragança, tanto em Lisboa como no Rio de Janeiro, não faltando sequer quem lhe atribuísse vários amantes e chegasse mesmo a defender que o infante D. Miguel não seria filho de D. João VI. 
 
“Carlota chega a Queluz com dez ou 11 anos para casar com um príncipe oito anos mais velho. Tinha uma educação muito cuidada e um temperamento rebelde, se o compararmos com o das restantes mulheres da corte portuguesa, que estavam habituadas a visitar conventos e a pintar santinhos”, diz Hugo Xavier. Lembra que, nos últimos anos, a historiografia tem olhado para a figura de Carlota Joaquina para além da “lenda negra” que à volta dela se construiu e que levou a que a ela se referissem, em Portugal e no Brasil, como a “mulher tenebrosa” ou a “megera de Queluz”. 
 
A corte portuguesa, “recatada”, não via com bons olhos as festas sumptuosas nos jardins de Queluz, que incluíam passeios de barco no canal dos azulejos, animais exóticos à solta entre os convidados e fogo-de-artifício, e não aceitava, sobretudo, a sua inclinação para a política e a sua tendência para diminuir as qualidades de governante de D. João VI. “Ela era uma mulher com voz, coisa rara para a época, muito hábil nos bastidores da política, com grande influência junto do filho Miguel, que diziam ser o seu preferido, e muito coerente no seu apoio à causa absolutista.” 
 
Da análise da sua correspondência, lembra Hugo Xavier, remetendo para um artigo da investigadora Teresa Martins Marques, da Faculdade de Letras de Lisboa, resulta um retrato diferente da rainha, com mais nuances. Escreve a investigadora, fazendo referência ao trabalho de duas colegas, a portuguesa Sara Marques Pereira, e a brasileira Francisca Nogueira Azevedo, que Carlota Joaquina era “uma mulher de elevada cultura política, com rasgos de extraordinária sagacidade, para além de mãe atentíssima, sobretudo no que concerne à saúde dos seus filhos”. Era também “uma filha dedicada” e uma “esposa muitas vezes terna, contra tudo o que dela se propalou”. 
 
Retrato a óleo de D. João VI (c. 1815) da autoria de Henri-François Riesener.

 
O marido, D. João VI, benevolente face às tentativas de usurpação do poder da mulher e do filho D. Miguel, é a figura retratada noutra das compras recentes para o paço de Queluz. A pintura foi adquirida na LAAF — Lisbon Art and Antiques Fair, e está, garante o conservador do PNQ, em “excelentes condições”. Mostra D. João VI quando era ainda príncipe regente e em breve deverá ser exposta nos seus aposentos no palácio. 
 
“Tem muitos pontos de contacto com o retrato que há no Museu do Tesouro Real, em que já é rei, mas era desconhecida até que apareceu num leilão na Alemanha, em Março deste ano, onde foi comprada e, depois, vendida em Lisboa.” À Parques de Sintra, esta obra, que terá sido executada por volta de 1815, já com D. João VI no Brasil e prestes a tornar-se rei, custou 60 mil euros. 
 
Obra do pintor Henri-François Riesener, filho do construtor de mobiliário alemão de Luís XVI e da sua Maria Antonieta, terá sido encomendado pelo marquês de Marialva, o então embaixador de Portugal em Paris, apurou já a investigação da equipa de Queluz. O ainda regente é representado a apontar para Portugal Continental num globo terrestre, que assenta sobre um mapa do Brasil, para que não restem dúvidas da ligação entre os dois territórios que, a partir de Dezembro de 1815, formariam o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. 
 
“O mais curioso neste retrato é que foi feito a partir de outras referências visuais, como gravuras, e da descrição oral que o marquês terá feito do rei”, diz Hugo Xavier. “O Riesener não foi ao Brasil pintar o D. João VI, que, aliás, não gostava nada de posar para os retratos.”
 
* Jornalista da secção de Cultura do PÚBLICO

4 comentários:

Francisco José dos Santos Braga disse...

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
A partir de 1794, o PALÁCIO DE QUELUZ torna-se residência oficial da rainha D. Maria I – que entretanto enviuvara – e, em 1821, foi morada provisória dos príncipes regentes D. João VI e D. Carlota Joaquina, o que exigiu a adaptação de alguns espaços interiores e a construção de novos edifícios para acomodar a Corte, a Guarda e a criadagem.
A geração seguinte, marcada pela Guerra Civil que opôs os irmãos D. Miguel e D. Pedro IV de Portugal e primeiro Imperador do Brasil (D. Pedro I), encerrou a vivência real do Palácio de Queluz. D. Miguel, defensor da causa absolutista, confrontou o seu irmão D. Pedro IV, que lutou para impor o liberal constitucionalismo. D. Pedro vence a guerra, mas, por se encontrar doente, abdica do trono de Portugal a favor da sua jovem filha, D. Maria II. É no Palácio de Queluz, no quarto D. Quixote, onde nasceu, que D. Pedro IV acaba por morrer.
Em 1910, o Palácio Nacional de Queluz (PNQ) foi classificado como Monumento Nacional.
A jornalista LUCINDA CANELAS do jornal PÚBLICO trata, além desses assuntos, de importantes aquisições que recentemente entraram no inventário do PNQ e que têm a ver com a figura de D. João VI: um relógio extremamente valioso que ganhou de presente de Luís XVI e sua pintura, então príncipe regente bem jovem, pelo pintor francês Henri-François Riesener.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/08/este-relogio-de-reis-parece-tudo-menos.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Francisco José dos Santos Braga disse...

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima ((professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG-MG e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...
Esse palácio é meio mal-assombrado...
Abs

Francisco José dos Santos Braga disse...

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
Caro professor Braga
Novos e notáveis objetos que fazem aumentar o interesse no referido palácio e que, indiretamente, nos evocam as vergonhosas depredações do "08 de janeiro", cujo desqualificado autor do atentado contra o relógio de D.João VI já foi condenado, mas cujos responsáveis graúdos - militares e empresários - continuam no aguardo de suas punições, senão ainda conspirando contra o país .
Saudações,
Cupertino

Francisco José dos Santos Braga disse...

Róbson Arantes disse...
Gosto de História. Parabéns!