sábado, 28 de setembro de 2024

ANÁLISE DAS VARIAÇÕES SOBRE UM TEMA POPULAR BRASILEIRO DE ALEXANDRE LEVY


Por (João da Cunha) CALDEIRA FILHO *
Comentários por Francisco José dos Santos Braga
Reproduzimos aqui texto de CALDEIRA FILHO, constante do seu livro A aventura da música - subsídios críticos para apreciação musical. São Paulo: Ricordi Brasileira, vol. 2, 1971, pp. 33-7.
Este post é dedicado à notável pianista Eudóxia de Barros.

 

A Aventura da Música, por Caldeira Filho-2º volume
Muito diferentes são as vidas dos artistas. Circunstâncias numerosas, subjetivas e objetivas, concorrem para que à vida aventurosa de Liszt se oponha a placidez em que decorreu a de César Franck; para que vejamos, ao lado das lutas de Carlos Gomes em prol da imposição de sua obra, a tranquilidade de Alexandre Levy, cismador e sentimental. 
 
Sua biografia tem pouco a contar. Em janeiro ocorre o aniversário de sua morte. Nascido em São Paulo a 20 de novembro de 1864, aí morreu a 17 daquele mês em 1892, contando somente 27 anos. Dedicado ao progresso artístico da cidade natal e profundamente amoroso das nossas tradições, interessou-se pela difusão da música clássica e contemporânea fundando o Clube Haydn (1883), e pelo caráter brasileiro na produção musical. Tais atividades, ele as realizava apegado ao meio, à família, aos amigos, sensível ao afeto, à amizade, aos laços imponderáveis que para sempre prendem um coração à sua terra e à sua gente. Seu grande desejo era o aperfeiçoamento na Europa. Em 1887 chegou a Paris, munido de várias recomendações. Por estar em férias o Conservatório (de Paris), recebeu lições particulares de Émile Durand (harmonia e contraponto). Iniciada a temporada de inverno, ouviu numerosos concertos e óperas, pôs-se em dia com a atualidade musical da época. Mas aquele mal de que todos sofrem e que só a nossa língua materna sabe exprimir, a “saudade", minava-o insidiosamente, entristecendo-lhe o espírito e ameaçando-lhe a vida. Indeciso entre o regresso e a continuação dos estudos no estrangeiro, morreria de desânimo se conselhos médicos não o fizessem sem demora voltar à pátria. 
 
Destaca-se na sua produção a série “Variations sur un thème populaire brésilien”, composta em S. Paulo e que levara à Europa. O tema é o Bitu ¹
 
Sobre o Bitu refere o dr. José Vieira Fazenda (R.I.H.G.B., tomo 95, volume 149, página 165): “De 10 de fevereiro a 17 do mesmo mês, em 1811, no Rio de Janeiro, houve grandes chuvas, verdadeiro dilúvio, a que o povo chamou "água do monte". Tal acontecimento ficou perpetuado na cantiga "Vem cá, Bitu". Do "Vem cá, Bitu" ocupou-se o erudito dr. Francisco Augusto Pereira da Costa no seu "Folclore Pernambucano". Coloca porém a "água do monte" no ano de 1817. Outros estudiosos da cantiga: Melo Morais Filho, Sílvio Romero, Teófilo Braga, Eduardo Perié, Félix Pereira, etc. Segundo o dr. Joaquim Manuel de Macedo, “o Bitu era um crioulo apaixonado de bebidas alcoólicas e soldado do batalhão dos Henriques. Cantava pelas ruas, exibindo um boneco de molas e, convidado a cantar nas casas particulares, servia de mensageiro de recados amorosos. Afirma o autor que o Bitu morreu soterrado sob a casinha que morava, a qual veio abaixo com o aguaceiro” ²
 
A ternura e a beleza íntima da toada, tão conhecida, prestam-se admiravelmente a conter e transmitir a mensagem expressiva de Alexandre Levy. 
 
Nada mais simples e ingênuo do que a apresentação do tema na região média do instrumento, sem acompanhamento algum. É a melodia natal que aflora aos lábios... Talvez assim também, numa imagem única, se tenha concretizado o complexo de sentimento que envolvia a alma do artista: escolheu e fixou a ideia mais pura e nítida, a mais impregnada de poesia. Jamais ouvimos em concerto estas variações. Imaginamos apenas como deverá soar, sob os dedos privilegiados de grande pianista, esse tema musicalmente isolado, mas tão envolvido pelo rico subjetivismo do artista. 
 
Seus oito compassos se repetem "moderato molto" na 1ª variação, simplesmente harmonizada a 4 partes. Já aqui uma sutileza: a meia frase final é anacrústica, iniciando-se com o dó sustenido do 6º compasso. No tema, ao contrário, essa nota termina o fragmento anterior (segundo a "nouvelle édition" L-226-I), o que lhe confere expressão toda particular. 
 
A 2ª variação introduz discretamente nas vozes da harmonia certa inquietação expressiva e se encadeia com a , em que as partes ou vozes centrais, em semicolcheias, conduzem um movimento em sextas que, mantido o andamento inicial, parece restabelecer a tranquilidade da evocação. Análoga é a 4ª variação, em que o tema passa à 2ª voz, numa atmosfera de melancolia. Com ela contrasta a seguinte (), acompanhada por acordes, com brevíssima expansão lírica no 3º e 4º compassos, e em cujo fragmento correspondente às palavras "não vou lá", da canção, o autor concentrou a expressão num tratamento harmônico que é um regresso à nostalgia inicial. Até aqui a melodia temática tem sido dada textualmente. O caráter dessa variação serve de transição para a seguinte, a , "allegro molto", em que grande energia é concedida às células rítmicas iniciais do tema, já agora distante e não mais apresentado textualmente. Na sua segunda parte reaparece o lirismo, intensificando-se a expressão em momento correspondente ao assinalado na variação anterior, a recusa "não vou lá", que assim começa a adquirir certa função psicológica, terminando com a alegre energia inicial. Toda a variação parece ser uma reminiscência de Brahms. 
 
A 7ª variação é suavíssimo noturno. A melodia é dada em timbre de violoncelo e num "pianíssimo" que a afasta para as longínquas paragens desejadas pelo artista. Interessante é a seguinte (), "allegretto (in guisa di scherzo)", com a imposição do ritmo ternário ao tema, igualados de maneira geral os valores de notas na 1ª parte e conservada na 2ª maior flexibilidade melódica. Esse scherzo acena a Beethoven, que aparece mais sensivelmente na 9ª variação, "lento (alla funebre)". Felizmente é discretíssimo o rolar dos tambores e o trecho se caracteriza principalmente pelo queixume que aparece desde o 5º compasso. Terminando em suspenso sobre a dominante (nítida lembrança de Schumann), com ela se encadeia a 10ª variação, "Allegretto (Romance sans Paroles)", de expressão amável e delicada. A variação seguinte (11ª) é das mais felizes como caráter, fluindo a melodia num embalador "Allegretto (Pastorale)" de ritmo ternário. O "Andante (religioso)" seguinte (12ª) volta à severidade da maneira a 4 vozes num estilo "legato" algo convencional. A 13ª variação, "Vivacissimo", em 6/8, é outro reflexo da sua preferência por Schumann, lembrando de perto uma das variações dos Estudos Sinfônicos. Os fragmentos temáticos saltam de uma voz a outra num jogo de timbres e de cores conduzido com muito espírito. A concentração reaparece na seguinte (14ª), "Intermezzo: Andante calmo". Já na 15ª, "Moderado molto", volta o espírito de romance sem palavras, numa plasticidade melódica cujo interesse absorve o do tema, dado discretamente na voz inferior. 
 
E chegamos ao final da obra, a 16ª variação, em 6/8. Alexandre Levy quis terminar em alegria (ao contrário de Fauré, em obra análoga) resumindo o caráter das variações VI, XI e XIII no mais amplo dos trechos da coleção, no qual dá plena expansão ao lirismo discreto de momentos anteriores, transformando-o em impetuoso e jovial instante de efusão. Dois acordes rapidamente arpejados são o fecho conciso dessa festa rumorosa. 
 
É interessante ter Alexandre Levy, para exprimir o amor pela terra natal, escolhido a forma da variação, uma das mais antigas por ser a mais espontânea e natural na criação artística, em coincidência com a natureza original do sentimento que prende o homem à sua terra e aos seus. A longa meditação a que se entrega está sujeita às mudanças operadas pelas associações que enriquecem esse estado de espírito, em que se entrelaçam impressões variadas e aparentemente distantes entre si. Assim também o autor esquece a lógica estrita da composição, guiando-se tão somente pela livre sequência expressiva. Tudo é abandono e sentimento. Por isso não vemos aí a condensação das variações em grupos correspondentes a determinados estados poéticos, adotada por outros autores em função de economia expressiva, de equilíbrio da obra total. As cinco primeiras formam, é certo, um grupo homogêneo, mas de ordem menos expressiva do que técnica. De caráter alternado, passando de um a outro sentimento, é a sequência das quatro seguintes. "Romance sans paroles" e "Pastoral" mantêm entre si certa afinidade, reaparecendo a seguir a alternação até o final. Tendo, porém, em vista a simplicidade da apresentação temática, a religiosidade da 12ª, e a alegria da última, poderíamos ver nessa sucessão de momentos característicos as linhas gerais de um processo expressivo que, partindo do mais profundo subjetivismo lança-se depois à ruidosa libertação final. 
 
Esse desejo de libertação transparece também no afastamento cada vez maior da frase temática que, dada textualmente nas cinco primeiras variações, sofre depois todas as modificações que a técnica e a expressão sugeriram ao autor. 
 
Mantendo-se fiel a certo espírito romântico de sua preferência, não apresenta ele os grandes contrastes beethovenianos. Foge ao drama, ao conflito de sentimentos guardando simples dualidade expressiva, cujo caráter geral permanece, a despeito da adoção de indicações mais específicas (religioso, pastoral, etc.). 
 
Evidentemente, no fim do século XIX, depois de Beethoven e dos grandes autores pianísticos do Romantismo, não era de esperar obra-prima mundial no gênero. Ela vale como intenção expressiva, como um dos primeiros apelos ao nacionalismo musical, distante da decoração e do exotismo tão abundantemente sugeridos pelo nosso folclore. 
 
Ainda pela sua situação pós-romântica, depois de Chopin e de Liszt, é curiosa a limitação instrumental adotada por Alexandre Levy. Toda a peça se desenvolve na região média do instrumento com fugazes incursões ao greve e ao agudo. Será reflexo do seu temperamento, de si pouco dado a expansões? 
 
Consideram-no um schumanniano, o que não deixa de ser exato. Mas não é de hoje que nele vemos, apesar das lembranças de Schumann e Brahms, um outro espírito, talvez mais profundo e, librado, tão fino e elegante. E é ainda Fauré o autor sugerido pela limitação pianística assinalada. Ignoramos que contato tenha havido entre os dois artistas, que influências tenha o nosso recebido daquele. Nem por isso, a nosso ver, deixa de existir o fato, explicável, uma vez excluída qualquer aproximação material , pela filiação estética de ambos ao espírito francês, ao qual, embora em grau diferente, pertenciam. 
 
Alexandre Levy morreu quando atingia a época das obras definitivas e pessoais. Sua produção não excedeu suficientemente a fase inicial de assimilação, o que explica em parte o desinteresse de que é objeto. Entretanto, não menos valiosa do que o Tango Brasileiro, tão divulgado, e sem dúvida alguma muito mais interessante e significativa, é a produção ora comentada, merecedora de frequentes execuções pelos nossos maiores pianistas, para que desde logo a ouça o público na melhor versão possível.
 
* Nascido em 10/12/1900 em Piracicaba e falecido em 21/05/1982 em São Paulo, ingressou aos 18 anos de idade no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Estudou piano com Samuel Archanjo (1925) e contraponto, fuga e orquestra com Savino de Benedictis. Mário de Andrade convidou-o para auxiliá-lo nas aulas de história da música que ministrava no conservatório e em 1927 tornou-se professor deste, mas no mesmo ano deixou o país para estudar na França, junto a mestres e artistas de grande renome, como Alfred Cortot, Wanda Landowska, Nádia Boulanger, Marguerite Long, Isidor Philipp e André Pirro. De volta ao Brasil em 1931, passou a lecionar no Conservatório Dramático e Musical paulistano e no Conservatório Musical de Santos. Foi professor por concurso no Instituto de Educação Caetano de Campos onde se aposentou em 1964, jornalista, musicólogo, crítico musical e escritor, fundador da Cadeira nº 20 da ABM-Academia Brasileira de Música.


II. COMENTÁRIOS por Francisco José dos Santos Braga

¹ A canção Vem cá, Bitu usa a mesma melodia da nossa conhecida Cai, Cai, Balão. Sugiro inicialmente a audição da bela peça romântica de Alexandre Levy, interpretada pela ilustre pianista brasileira Eudóxia de Barros in https://www.youtube.com/watch?v=_c_sReey5_0 Observe que ela é “um dos primeiros apelos ao nacionalismo musical”, conforme definiu muito bem Caldeira Filho.

² Recomendo ainda a leitura de Tormentas Cariocas: seminário Prevenção e Controle dos Efeitos dos Temporais no Rio de Janeiro, coord. Luiz Pinguelli Rosa e Willy Alvarenga Lacerda, Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ, onde se encontra artigo de Maurício de Almeida Abreu, intitulado "A cidade e os temporais: uma relação antiga", especialmente da p. 17 e início da p. 18.

Uma descrição mais pormenorizada as "Águas do Monte" é dada in "Memórias de Rio de Janeiro inundado em relatos de cronistas e literatos", por Andréa Casa Nova Maia, pp. 5-8. A autora atribui a destruição no Morro do Castelo à inundação da cidade, “quando desabaram várias casas, muralhas e barracos, deixando sobre as ruínas inúmeras vítimas.” Continua dizendo que “as famosas Águas do Monte até quadrinha cantada inspiraram! De acordo com Carlos Kessel (KESSEL, 2008, pp. 35-36), o estribilho da cantiga 
que começa pelo "Vem cá, Bitu, vem cá..."  referia-se a um pobre coitado que fora apanhado pelo desabamento quando bebia num dos botequins da rua do Cotovelo, logo abaixo do Castelo de São Sebastião:

Que é do teu camarada
A água do monte levou.
Não foi água, não foi nada,
Foi cachaça que o matou.


Para concluir, a autora cita uma crônica de Machado de Assis in A Semana, de 2 de fevereiro de 1896:
“Pior que tudo, porém, se a tradição não mente, foram as águas do monte, assim chamadas por terem feito desabar parte do morro do Castelo. Sabes que essas águas caíram em 1811 e duraram sete dias deste mês de fevereiro. Parece que o nosso século, nascido com água, não quer morrer sem ela. Não menos parece que o morro do Castelo, cansado de esperar que o arrasem, segundo velhos planos, está resoluto a prosseguir e acabar a obra de 1811. Naquele ano chegaram a andar canoas pelas ruas; assim se comprou e vendeu, assim se fizeram visitas e salvamentos. Também é possível, como ainda viviam náiades, que assim as fossem buscar as fontes. Talvez até se pescassem amores.”
 
 
III. BIBLIOGRAFIA

 
CALDEIRA FILHO, João da Cunha. A aventura da música - subsídios críticos para apreciação musical. São Paulo: Ricordi Brasileira, vol. 2, 1971,  131 p.

3 comentários:

Francisco José dos Santos Braga disse...



Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Luiz Heitor, no seu livro 150 Anos de Música no Brasil (1800-1950), destaca que "as Variações sobre um tema popular brasileiro de ALEXANDRE LEVY, dedicadas ao seu professor Gustavo Wertheimer, obra que, depois da Sertaneja (1869), de Brasílio Itiberê, velha, já, de 20 anos atrás, era a primeira composição brasileira de tipo nacionalista. O tema popular empregado é a célebre canção Vem cá, Bitu, originada em uma catástrofe na qual perdeu a vida o tipo popular desse nome, no ano de 1811; espalhada por todo o país, transmitida de geração em geração ela se tornou a mais conhecida de nossas melodias tradicionais. Em 16 Variações, (...) Levy "transformou essa melodia muito habilmente, envolvendo-a nos artifícios rítmicos e harmônicos ditados pela sua musicalidade e excelente formação. A obra foi originalmente escrita para piano (...)".
O Blog de São João del-Rei tem o prazer de dedicar este post à análise musical que CALDEIRA FILHO redigiu sobre essas notáveis Variações de Alexandre Levy.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/09/analise-das-variacoes-sobre-um-tema.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Francisco José dos Santos Braga disse...

Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...
Obrigado, Braga!
Sem dúvida, Seu blog é cultura.
Vamos acessar e aprender mais um pouco...
Uma ótima semana.

Francisco José dos Santos Braga disse...


Hilma Pereira Ranauro (escritora, autora de "Descompasso" e "O Falar do Rio de Janeiro" e membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Virtual Mageense de Letras) ) disse...
Caro amigo,
acabo de ler ANÁLISE DAS VARIAÇÕES SOBRE UM TEMA POPULAR BRASILEIRO DE ALEXANDRE LEVY.
Como vê, vou lendo a partir do último
Quanta coisa há que não sabemos!
Creio haver um ajudador para os que gostam de saber, não?
Tudo bem por aí?
Um abração.

Hilma Ranauro