sábado, 21 de setembro de 2024

O TEMPO E SEU USO


Por CARLOS MENDONÇA LOPES *
 
Imagem da pintura de Salvador Dalí, intitulada Persistence of Memory, de 1931,   pertencente à colecção do MoMA de New York. Uma leitura possível da pintura, é vê-la como uma medida do tempo desperdiçado e interrogar-se o espectador se gosta do que vê.

 
 
Ganhou nos nossos dias divulgação acrescida um soneto atribuído a Frei António das Chagas, no século António da Fonseca Soares, (1631-1682), Conta e tempo, ao ser cantado por Camané  com música de fado ¹
 
Aborda o soneto, na peculiaridade formal da poesia barroca, a questão que a certa altura da vida todos nos colocamos: que fiz com o tempo que me foi dado viver? 
 
O assunto vem tratado no soneto de Frei António das Chagas na perspectiva religiosa e da vida no além, questionando as contas que é preciso prestar a Deus sobre a forma de viver o tempo de uma vida. 
 
Acontece que cerca de meio século antes, a mesma questão: que fiz com o tempo que me foi dado viver?, foi formulada em idênticos termos poéticos, que não teológicos, por Martim de Castro do Rio (c.1548-1613), poeta maneirista entre os poetas menores contemporâneos de Camões. 
 
Refere o soneto de Martim de Castro do Rio esta prestação de contas a si próprio e não a Deus, colocando, portanto, a ênfase na responsabilidade individual sobre as consequências das escolhas do viver, e não como as pedras do caminho para um qualquer prémio ou castigo, a que a perspectiva religiosa conduz. 
 
O poema de Frei António das Chagas é no vocabulário e desenvolvimento da ideia idêntico ao soneto de Martim de Castro do Rio, e hoje dificilmente escaparia a ser considerado um flagrante plágio, a que nem o desvio da reflexão introduzida no poema pela presença de Deus salvaria. Eram outros tempos e o poema passou à história com inteira propriedade como de Frei António das Chagas, permanecendo o poema de Martim de Castro do Rio, que lhe é anterior, no esquecimento dos manuscritos até à sua edição recente. 
 
Nunca é demais realçar ser o tempo o único bem que a cada indivíduo verdadeiramente pertence. E é na compatibilização das escolhas, ao vender o tempo que se possui, trabalhando para ganhar o dinheiro que permite viver, com a utilização do seu uso no quadro de valores que nos governam a vida, que reside a responsabilidade do balanço perante si, ou Deus, do que cada um fez e faz com o seu tempo. 
 
Soneto de Martim de Castro do Rio:
 
Ao tempo 
 
O tempo de si mesmo pede conta, 
É necessário dar-se conta a tempo, 
Que quem gastou sem conta tanto tempo, 
Como dará sem tempo tanta conta? 
 
Não quer levar o tempo tempo em conta 
Pois conta se não fez de dar-se a tempo, 
Onde só pera conta havia tempo, 
Se na conta do tempo houvesse conta. 
 
Que conta pode dar quem não tem tempo 
Em que tempo a dará quem não tem conta, 
Que a quem a conta falta, falta o tempo. 
 
Vejo-me sem ter tempo, com ruim conta, 
Sabendo que hei-de dar conta do tempo 
E que se chega o tempo de dar conta. 
 
Soneto de Frei António das Chagas
 
Conta e Tempo 
 
Deus pede estrita conta de meu tempo. 
E eu vou do meu tempo, dar-lhe conta. 
Mas, como dar, sem tempo, tanta conta 
Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo? 
 
Para dar minha conta feita a tempo, 
O tempo me foi dado, e não fiz conta, 
Não quis, sobrando tempo, fazer conta, 
Hoje, quero acertar conta, e não há tempo. 
 
Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta, 
Não gasteis vosso tempo em passatempo. 
Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta! 
 
Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo, 
Quando o tempo chegar, de prestar conta 
Chorarão, como eu, o não ter tempo… 
 


II. NOTA BIBLIOGRÁFICA 
 
 
O soneto de Martim de Castro do Rio encontra-se em A Poesia de Martim de Castro do Rio (c.1548-1613), Mafalda Ferin da Cunha, Imprensa da Unicersidade de Coimbra, edição digital. Edição modelar que pela primeira vez reúne a poesia atribuível ao poeta, e até esta edição, distribuída por numerosos manuscritos. 
Deste soneto, Ao tempo, encontrou a compiladora 28 versões manuscritas, com ligeiras divergências, como sempre acontece nestes manuscritos, por desvio da recolha oral ou erro do copista. A compiladora escolheu a lição do manuscrito da Biblioteca Nacional BN6046, que transcrevi, dando conta em notas e anexo das variações encontradas. 
 
Não possuo edição impressa do soneto Conta e Tempo. Correm na Internet variadíssimas publicações com este soneto atribuído a Frei António das Chagas (1631-1682). 
Não encontrei referência sobre a sua publicação original impressa, ou manuscrita para confirmar a validade da atribuição, mas assumo que esteja correcta. 
 
* Gerente do Blog Vício da Poesia / Portugal.
 
III. NOTA EXPLICATIVA
 
 
 
IV. CRÉDITO PELA AUTORIA DA MATÉRIA
 
 

4 comentários:

Francisco José dos Santos Braga disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Francisco José dos Santos Braga disse...

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
O foco do presente post é o poema de autor português, FREI ANTÓNIO DAS CHAGAS. Seu nome António da Fonseca Soares, também conhecido por Padre António da Fonseca, (Vidigueira, 25 de junho de 1631 – Varatojo - Torres Vedras, 20 de outubro de 1682) foi um frade franciscano e poeta português, destacando-se na história portuguesa mais pela sua faceta literária que propriamente eclesiástica.
Frei António das Chagas foi um homem ousado e de génio arrebatado que deixou lendárias muitas das suas proezas. A sua vida e obra ilustram bem a mentalidade barroca da época, ambas cheias de contrastes e peripécias.
Poeta e prosador, deixou obras suas em quase todos os cancioneiros manuscritos da época, nomeadamente nos dois mais importantes, a Fénix Renascida e o Postilhão de Apolo.
De sua produção poética, selecionei o soneto "CONTA E TEMPO" para breve divagação.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/09/o-tempo-e-seu-uso.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Francisco José dos Santos Braga disse...

Jorge Antunes (compositor, regente, precursor da música eletroacústica no Brasil, ex-professor no Departamento de Música da UnB, artista plástico e poeta) disse...
Oi, Braga:

No exato momento em que você aborda e divulga soneto curioso do Frei António das Chagas,
eu acabei de "pintar", ou "compor" ou "escrever" um quadro-soneto também curioso.
Veja em anexo.
Abraço,
Jorge Antunes

Anônimo disse...

Prezado confrade Francisco Braga, não conhecia o soneto, mas certamente dele farei minha referência de tempo; desses novos tempos aqui em Brasília. Excelente trabalho. Parabéns!