Por LAURA GREENHALGH - O Estado de S. Paulo Transcrevemos com a devida vênia do jornal O Estado de S. Paulo, artigo publicado no seu caderno de cultura chamado “Sabático”, edição do dia 18 de junho de 2011.
Quase 60 mil livros, 600 obras de arte, milhares de cartas. Números robustos contornam o incrível acervo que o diplomata recifense Manoel de Oliveira Lima (1867-1928) doou, em 1916, à Universidade Católica da América (Washington DC). É a maior brasiliana fora do País e pode se transformar num centro de estudos brasileiros na capital americana.”
Para quem circula no mundo dos livros, e particularmente no das bibliotecas, a grife Oliveira Lima soa como algo mítico. Mas para quem não tem tanta afinidade com o meio, este sobrenome de origem portuguesa, tão comum nos cartórios brasileiros, passa discreto, sem chamar atenção.
Visita à Oliveira Lima Library, no campus da Universidade Católica da América, em Washington, recupera o legado do historiador brasileiro que trocou as altas rodas da diplomacia para se dedicar à maior biblioteca brasiliana fora do País.
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Manuel de OLIVEIRA LIMA (1868-1928) e seu farto bigode em foto de 1924
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Como discreta é a pequena placa grudada a uma porta no subsolo da biblioteca central da Universidade Católica da América, em Washington (UCA), lê-se nela: The Oliveira Lima Library. Tocando a campainha, a porta branca de escritório se abre e, em vez de um almoxarifado, vê-se a primeira de um conjunto de quatro salas abarrotadas de livros raros e obras de arte. Quem destrava a fechadura é a única funcionária do lugar: a americana Maria Angela Leal, filha de mãe colombiana e pai cubano, formada em estudos latino-americanos na Universidade Stanford (com especialização em literatura brasileira), e que é capaz de saudar o visitante num português surpreendente. É a bibliotecária-chefe, mas sem equipe a coordenar, de uma coleção brasiliana de importância comparável à do bibliófilo José Mindlin (1914-2010), doada para a USP, e mesmo à da Biblioteca Nacional, no Rio. Além de ser a única brasiliana fora do Brasil a constituir uma biblioteca em si mesma, e não parte de uma biblioteca geral — como brasilianas recolhidas às universidades Brown, Stanford ou Texas.
Encaixotando os livros
Aposentado da carreira diplomática ao fim de uma sequência desgastante de desentendimentos com o Barão do Rio Branco — de grandes amigos na carrière viraram desafetos irreconciliáveis —, Oliveira Lima resolveu um belo dia viver em Washington. Já era um nome respeitado nos círculos acadêmicos americanos, afinal foi dele o primeiro curso sobre História do Brasil ministrado nos EUA (em Harvard), o que lhe terá rendido convite posterior para um tour por 12 universidades americanas, como conferencista — itinerário que ele cumpriu de trem, acompanhado por Flora Cavalcanti de Albuquerque, sua mulher e cúmplice na bibliofilia. Pois em 1916, o grand seigneur terrible do Itamaraty decide doar, em vida, seus milhares de livros para a única universidade pontifícia de Washington, de onde foi professor. Deverá ter pesado na escolha o fato de o casamento não ter-lhe dado herdeiros.
A doação foi consumada em troca de apoio logístico. Como o casal dividia o acervo em endereços que mantinha em Londres, Bruxelas e Lisboa, e como a universidade se dispunha a reunir e trasladar os milhares de livros para os EUA, o doador aceitou a proposta, impondo duas condições:
1. que sua brasiliana fosse uma instituição com identidade própria e autonomia no campus; 2. que ele próprio fosse contratado como o primeiro bibliotecário a chefiar a instituição.
Condições atendidas, navios zarparam em 1920 da Europa carregando um acervo que prima não só pelo volume, mas pela qualidade de seus títulos. Thomas Cohen, brasilianista e stanfordiano como Maria, há 21 anos à frente da Oliveira Lima Library, comenta: "Embora o acervo focalize a história colonial brasileira e a primeira República, Oliveira Lima jamais quis que esse patrimônio seguisse para o Brasil. Expressou o desejo em testamento, preocupado com o risco de dispersão dos livros quando ele e Flora não mais vivessem".
Assim, há mais de 90 anos essa brasiliana vive no campus da Universidade Católica da América e seria injusto afirmar que o desejo de preservação do doador não tenha sido atendido. Foi. Mas trata-se de vida modesta demais para um patrimônio que mereceria sede própria, ampla o suficiente para tirar de caixas e arquivos abarrotados os milhares de documentos colecionados pelo bibliófilo, sem falar nas obras de arte, que poderiam formatar exposições temporárias, itinerantes, permanentes.
Cohen sonha fazer da Oliveira Lima um centro de estudos brasileiros em Washington aberto a pesquisadores e ao público em geral, mas para isso busca investidores tanto no Brasil quanto nos EUA. Sabe-se que a dotação orçamentária da universidade paga despesas básicas de manutenção e pouco sobra para a compra de títulos novos que tenham a ver com as vigas mestras da brasiliana.
Quanto ao patrimônio pessoal dos Oliveira Lima, deixado por Manoel e por Flora para constituir o fundo de preservação da biblioteca, se rarefez com o tempo. Afinal, eram gente de cultura, não de grande fortuna. Hoje, a preocupação de dar não só uma sede digna, mas visibilidade a esse legado, se justifica mais do que nunca: quando for totalmente digitalizada, quem poderá garantir que a Oliveira Lima Library não vá parar num depósito de livros, numa dessas warehouses inimagináveis?
Caçador de raridades
A pergunta pode parecer apocalíptica, mas está no centro do debate atual sobre o futuro das bibliotecas acadêmicas nos Estados Unidos. E, no caso específico, a situação se complica pela quantidade de obras de arte do acervo. Em seus deslocamentos pelo mundo, como diplomata, Oliveira Lima adquiria livros raros de marchands que também comercializavam pinturas, mapas ou gravuras de boa procedência. Foi de um deles, Frederic Müller, que comprou uma paisagem de Pernambuco pintada por Frans Post (1612-1680), artista holandês que veio ao Brasil na comitiva de Maurício de Nassau. Trata-se de obra de tanto valor que Cohen aceitou tirá-la do subsolo e emprestá-la à National Gallery of Art, de Washington. Lá a tela vive em melhor estado de conservação e segurança, ao lado de mestres como Vermeer e Rembrandt.
Outros itens atingem esse patamar de importância, como a tela de Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830) retratando o Largo do Machado, no Rio; o único busto em bronze de d. Pedro I, moldado pelo escultor Marc Ferrez (1788-1850); a única cópia colorida existente de Rerum per Octenium in Brasilia, de Gaspar Barleus (1584-1648), obra sobre os oito anos de administração de Nassau no Brasil, ilustrada com aquarelas de Frans Post; o primeiro livro em francês sobre o País, do franciscano André Thevet (1502-1590) – La Singularité de la France Anthartique (circa 1556); belos retratos a óleo de d. João VI, personagem de alentada biografia escrita por Oliveira Lima ¹; enfim, livros raros e obras de arte vão se entrelaçando de forma a moldar o universo intelectual de um homem saído de Pernambuco para crescer nos salões da Europa, sem perder de vista seu país de origem: a onda abolicionista, a transição do regime monárquico para o republicano, o Brasil no concerto das nações, o palco da Primeira Guerra Mundial…
O sociólogo Gilberto Freyre, de quem Oliveira Lima foi grande amigo e com quem se correspondeu pela vida afora, dizia que ele tinha “um quadro mental lusitano, com certas gaucheries”. E que sofria da incontinência da pena. Afinal, como explicar esse intelectual que trocou a fogueira das vaidades da diplomacia — sendo ele próprio muito vaidoso — para se dedicar ao mundo introspectivo dos livros e da arte?
Um quixote gordo
Oliveira Lima nasceu em Pernambuco, filho de um negociante português que fez fortuna no comércio do açúcar. Quando estava com 6 anos, o pai decidiu voltar a Portugal com a família e lá se foi o garoto, de olho comprido no que ficou para trás. Tanto que fundou em Lisboa, aos 15, uma revista chamada Correio do Brasil. Com 21, o então aluno de Teófilo Braga se formou na Academia Superior de Letras e passou a colaborar na Revista de Portugal, dirigida por Eça de Queirós. É nesse ponto que decide voltar à terra natal para ingressar no serviço diplomático.
Casou-se com Flora, filha de senhor de engenho em Cachoeirinha (PE), e passou a ocupar postos de representação a partir de 1890: primeiro em Lisboa, depois Berlim, Washington (sob o comando do diplomata Salvador de Mendonça, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, a ABL), Londres (onde assistiria aos funerais da rainha Victoria), Tóquio (quando mergulhou em estudos sociológicos sobre os japoneses), Caracas (depois de driblar ordens de Rio Branco de seguir para Lima), Estocolmo e Bruxelas (quando chegou a ministro plenipotenciário da embaixada).
Nesse trânsito de vida, além de acumular livros, reservava tempo para escrever em média 15 cartas por dia (daí o total de 200 mil arquivadas na biblioteca). Entre seus missivistas, de Machado de Assis a Gilberto Freyre, se encontra a nata das letras luso-brasileiras, fora intelectuais europeus e americanos, como o geólogo e bibliófilo John Casper Brenner, que doaria uma brasiliana de 1.600 volumes para a Universidade Stanford, na Califórnia. Analisando-se essas cartas (e muito há para ser analisado), emergem os confrontos políticos e embates intelectuais em que Oliveira Lima se meteu, a ponto de Freyre o chamar de “Quixote Gordo”. Há, por exemplo, a longa correspondência com Joaquim Nabuco, em que se vê de início um jovem republicano a trocar farpas com o abolicionista célebre, exilado por defender a monarquia. Acompanhando a correspondência entre ambos por mais tempo, percebe-se como trocam de posição: mais tarde Nabuco defenderia a República e Oliveira Lima a atacaria, criticando as oligarquias no poder.
Ao tomar posse na ABL, em 1902, na cadeira 39 ², proferiu um discurso oceânico exaltando a figura do historiador Francisco Varnhagen (1816-1878), mas aproveitou para ajustar contas com a diplomacia brasileira (“deixou de ser arte para virar uma profissão”). Não faltaram alfinetadas ao chanceler Rio Branco. Um dos pontos de divergência entre ambos era a anexação do Acre, alvo do inconformismo de Oliveira Lima. Considerava o País grande (e mal administrado) demais para ganhar outro naco territorial. Não houve acordo entre “Quixote Gordo” e Juca Paranhos — este, filho do Visconde de Rio Branco, figurão do império.
Entre patranhas e artimanhas do Itamaraty — foi tachado de monarquista ao criticar republicanos e germanófilo por defender a neutralidade brasileira na Primeira Guerra Mundial —, Oliveira Lima preferiu aposentar-se da diplomacia para se dedicar ao jornalismo, à crítica literária e, acima de tudo, aos livros que colecionou e escreveu.
As missões de representação renderam várias obras, como Nos EUA (1899), No Japão (1914), Na Argentina (1919). Além da biografia de d. João VI, deixou outras obras históricas, como Memórias Sobre o Descobrimento do Brasil e História Diplomática do Brasil, alguns títulos escritos originalmente em francês, como Machado de Assis: Son Oeuvre Littéraire ou Sept Ans de Republique au Brésil, e ainda teve tempo de escrever suas Memórias, obra editada nos anos 30 por Flora, já viúva, e Gilberto Freyre.
“Quixote Gordo” fez a alegria dos chargistas com seu corpanzil de pernas afinadas e barriga proeminente, embora a obesidade lhe tenha causado inúmeros problemas de saúde.
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Na
foto acima, em que aparece com a cúpula da Universidade Católica da
América, quatro anos depois da chegada dos livros à biblioteca, se vê
como estava magro, rosto abatido e flácido, olhar melancólico. |
Trabalhou na sua brasiliana até morrer, quando foi substituído por Flora (que mais tarde contrataria o historiador português Mauricio Cardozo, ex-aluno de Gilberto Freyre, 45 anos depois substituído pelo brasilianista Richard Morse, e por fim substituído por um de seus alunos, Thomas Cohen). A residência do casal em Columbia Heights, não distante da universidade, foi vendida após a morte de Flora e o produto da transação também ficou para a biblioteca. Oliveira Lima não quis outras glórias. Da lápide de seu túmulo no Cemitério Mont Olivet, na capital americana, nem seu nome consta. Apenas o epitáfio: “Aqui jaz um amigo dos livros”.
II. COMENTÁRIOS DO GERENTE DO BLOG
¹ D. JOÃO VI NO BRASIL
(1909) de Manuel de Oliveira Lima. A 3ª edição do livro foi lançada em
1996 no Rio de Janeiro: Topbooks, com 790 páginas e prefaciada pelo
crítico Wilson Martins. Esse livro é utilizado como base de estudos para
a confecção de obras de época, entre romances, filmes, peças de teatro e
seriados de televisão, por ser o mais completo e detalhado sobre a
chegada da Família Real ao Brasil, em 1808, e as mudanças que tal fato
desencadeou na história do País. Às obras citadas da autoria de Oliveira Lima, ainda se pode adicionar dois importantes estudos de sua lavra: Formação
histórica da nacionalidade brasileira (Rio de Janeiro: Topbooks, 2ª
ed., 1997) e O movimento da Independência, 1821-1822 (São Paulo:
Melhoramentos, 1922).
² Oliveira Lima, um dos mais notáveis historiadores brasileiros, nasceu no Recife em 25 de dezembro de 1867, filho de Luís de Oliveira Lima e Maria Benedita de Oliveira Lima. Faleceu em Washington (Estados Unidos da América), em 24 de março de 1928.
Foi diplomata e um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras e criou a Cadeira nº 39 da ABL-Academia Brasileira de Letras, cujo patrono é Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro. Foi Secretário de Legação do Embaixador Salvador de Mendonça, outro Acadêmico fundador da Cadeira nº 20 que tem como patrono Joaquim Manuel de Macedo, e em suas “Memórias”, publicadas dez anos depois de sua morte, enaltece a figura a quem serviu.