Por BENÍCIO MEDEIROS *
"Acho Otto um dos melhores contistas do Brasil, embora não goste muito de ler os seus contos, porque são tristes." Rubem Braga
Otto Lara Resende (✰ São João del-Rei, 1º/05/1922 ✞ Rio de Janeiro, 28/12/1992) ocupou a cadeira nº 39 da Academia Brasileira de Letras. |
“Sou um pobre menino do Matola, de São João del-Rei.” Assim, à maneira de Eça, Otto de Oliveira Lara Resende teria começado a autobiografia que nunca escreveu. A frase foi pinçada de uma entrevista a Paulo Mendes Campos. Tem uma certa inflexão de tristeza. Otto nasceu a 1º de maio de 1922 numa casa da Rua do Matola nº 9. No Dia do Trabalho. No ano da invenção do rádio e da teatralização da Semana de Arte Moderna. O que é nascer-se em 1922? O próprio Otto responde:
“Eu nasci no fundo da Idade Média. São João del-Rei, no dia 1º de maio de 1922, era uma comunidade de alta Idade Média. O peso daquele décor barroco, agravado pela massa física das igrejas que aprisionam a cidade numa proteção apavorante, imprime na alma da gente uma marca indelével.”
A República Velha vivia, então, uma das suas piores crises. O presidente Epitácio Pessoa confronta-se com a petulância de oficiais do Exército que, desde a saída de cena do marechal Floriano Peixoto, em 1894, sonham em voltar ao poder. Epitácio Pessoa é um político de mão-firme. Mandou fechar o Clube Militar e prender o marechal Hermes da Fonseca, a liderança militar mais prestigiada da época, por desacato à autoridade civil.
Por consequência, jovens tenentes se rebelam e tomam o Forte Copacabana, em julho, de onde começam a bombardear a cidade, protagonizando o episódio que passaria à história como Os Dezoito do Forte. Foi um ato de violência entre tantos, na época, refletindo um momento especialmente tumultuado no Brasil e no mundo, ainda mal pensado das feridas da Primeira Guerra.
O movimento tenentista produziria, pelo lado direito, a ascensão de uma nova categoria de militares que teria seu papel na política nacional nas décadas seguintes. Pelo lado esquerdo, desaguaria na Coluna Prestes, que começa em 1924, tendo São Paulo como ponto-de-partida, a sua romântica incursão pelos recônditos do Brasil profundo. Denuncia-se a questão social. O país começa a conhecer-se melhor.
Minas estava onde sempre esteve. Preparava-se, àquela altura, para levar ao poder um preclaro filho, Artur Bernardes, o seu Mé, renovando assim a “política do café-com-leite" que imperou no país até a Revolução de 30. Bernardes foi eleito presidente da República em março de 1922 — mesmo mês em que fundou-se o Partido Comunista —, apesar de ter sido estrepitosamente vaiado, no ano anterior, pelas ruas da capital federal.
“São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba” — como diria o compositor Noel Rosa. Todo mineiro, na sua família, tinha uma história envolvendo gado e currais. Partilhas, moratórias, pepitas de ouro. Mas também, uma reconhecida tradição literária que vinha desde os tempos dos poetas-inconfidentes do final dos setecentos.
Em 1921, diz a crônica, o grande Mário de Andrade desabalou-se de São Paulo especialmente para conhecer um poeta simbolista mineiro, que vivia afastado do mundo, Alphonsus de Guimaraens, cujos versos lhe chamaram a atenção. Nascido em Ouro Preto, Alphonsus foi também um poeta triste: “Sinos que dobram, dobras de sudário!”, lamentou-se.
O avô e o bisavô de Otto Lara Resende eram homens do campo, autênticos montanheses, como se diz em Minas. O pai de Otto, Antônio de Lara Resende, embora tenha nascido numa fazenda, a Fazenda Boa Esperança, em Belo Vale, fixou-se aos 19 anos em São João del-Rei como professor. Logo se transformaria no educador mais respeitado das Minas Gerais do seu tempo. Foi entre as tristezas e os livros que cresceu, portanto, o menino Otto Lara Resende.
Antônio de Lara Resende, além de professor, gramático e memorialista, foi um rigoroso e longevo patriarca, lídimo representante da TFM — a Tradicional Família Mineira. Católico praticante e militante, se correspondia e mantinha relações de amizade com os grandes líderes eclesiásticos e laicos do seu tempo. Casou com dona Maria Julieta Oliveira e teve nada menos que 20 filhos, dos quais Otto era o quarto. O padrinho de batismo de Otto foi o escritor católico Jackson de Figueiredo, que morreu em 1928, aos 37 anos, afogado durante uma pescaria na Avenida Niemeyer, no Rio. Quanto ao professor Lara Resende, morreu aos 94 anos, em 1988, cercado por mais de 150 descendentes.
Não se pode esquecer, no contexto da infância de Otto, a assustadora presença do espírito do Caraça — o “santo e inesquecível Caraça” a que se referiu, nas suas memórias, o pai de Otto. Este ficou órfão aos nove anos. Aos 14 foi enviado para o Colégio do Caraça. Devia a sua formação escolar, moral e espiritual, e mesmo a profissão de educador que abraçou, a essa tradicional instituição educacional mineira, dirigida pelos padres lazaristas, hoje extinta.
O Caraça pode ter sido muito bom. Mas não tinha boa fama entre os jovens estudantes. Durante várias gerações, a simples menção do nome provocava calafrios nos meninos em débito com as obrigações familiares em todo o Brasil. “Se continuar assim, te mando para o Caraça!” Era esta, entre todos, a mais terrível das ameaças. Perguntado, Antônio Lara Resende negou que a palmatória fosse o principal recurso pedagógico daquele castelo mal-assombrado encravado nos contrafortes da Serra do Espinhaço, região central de Minas, a 1.500 metros de altitude. Mas, no imaginário infantil, era. Falava-se, também, de outros horrores fantasiosos nunca confirmados.
Ao fundar o seu próprio colégio, o Instituto Padre Machado — depois transferido para Belo Horizonte, quando a família para lá se mudou, em 1938, e finalmente entregue, tempos depois, ao controle dos padres barnabitas — o velho Lara Resende só o poderia ter erigido nos moldes do velho e bom Caraça que conheceu e amou. Disse ele ao fazer um balanço da sua longa vida de educador: “Minha filosofia de educação continua sendo aquela que a Igreja Católica colheu dos evangelhos, através dos seus legítimos intérpretes.”
Adulto, o filho Otto diria:
“Aquela educação bem-medida demais deu à gente referências muito nítidas demais, para apreciar o mundo e a vida. No contexto daquele maniqueísmo simplista e inocente, as noções de bem e de mal ficavam demasiadamente claras, excessivamente bem-separadas.”
O Instituto Padre Machado era uma espécie de versão mineira, portanto mais conventual, do célebre Colégio Abílio, do Rio, dirigido por Joaquim Abílio Borges, que inspirou O Ateneu, de Raul Pompéia. Lá não havia conversa, espaço para dúvida. Que o diga o escritor João Guimarães Rosa, do qual Antônio Lara Resende, por uma casualidade do destino, foi professor. O futuro autor de Grande Sertão: Veredas, como registrou mais tarde Otto Lara Resende, recordava-se de São João del-Rei — com o casario antigo, as igrejas barrocas e os seus sinos plangentes — como um lugar triste, um tédio só.
Rosa referia-se também com melancolia à sua passagem pelo Instituto Padre Machado ¹ e a seu antigo mestre, com os claros olhos azuis a refletir firmeza e autoridade. Certa vez Joãozito, como o escritor era conhecido na infância, foi pego em flagrante delito. Qual seja: lendo um livro de Camilo Castelo Branco durante a aula! O severo diretor o puniu. Não com palmatória. Mas com o flagelo da cópia, castigo em voga na época, que consistia em copiar várias vezes, até a exaustão, um mesmo texto. No caso de Joãozito, o texto versava sobre os benefícios da leitura. Só que nas horas adequadas...
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Foi pelas mãos de um professor do colégio de seu pai, Benone Guimarães, também egresso do Caraça, que Otto Lara Resende fez contato com alguns autores cujos livros o acompanhariam pelo resto da vida. Foi no Instituto Padre Machado, também, que estreou como jornalista, tendo desempenhado as funções de “gerente”, eleito por voto secreto, do jornalzinho feito pelos alunos.
Otto conheceu Benone Guimarães quando cursava o final do ginásio, em 1938, pouco antes de deixar São João del-Rei. Àquela altura, seguindo o exemplo do pai, já era professor de Francês, idioma que aprendeu por conta própria. Muitos anos depois, numa conferência na Academia Municipalista de Letras de Belo Horizonte, ele evocaria o antigo professor Benone como um exigente copidesque, que não apenas dirigia o jornalzinho e orientava os colaboradores como não deixava passar nada que o seu “crivo caracense” considerasse impróprio.
Foi, a bem dizer, o início das agruras de Otto na imprensa. Um artigo seu, devidamente guaribado por Benone, lhe pareceu, quando saiu, totalmente desfigurado. “Sofri e escondi a decepção.” Talvez por não se ver nos textos publicados, Otto chegou a inventar um pseudônimo, para assinar as suas colaborações, que na verdade se aproximava muito mais de um trocadilho infame: Oh Tu!
Para compensar, o exigente Benone Guimarães, leitor de autores clássicos e modernos, apresentou o adolescente Otto ao que havia de melhor na literatura.
“Não sei avaliar até onde Benone Guimarães, como meu professor, diagnosticou em mim o vírus literário, esta grave infecção que me impediu de ter um destino mais pacato, de dormir melhor e viver menos cansado”,
diria Otto depois.
“Nas mãos de Benone Guimarães, vi o primeiro exemplar de Boletim de Ariel, a revista literária dos anos 30. Nela escrevia Grieco e eu, curioso, admirador, li todos os livros do Grieco que me caíram sob os olhos.”
Grieco, com a sua faiscante inteligência, seu estilo ferino e demolidor, era um dos críticos literários mais respeitados, e temidos, do país.
Foi aí que Otto resolveu ser escritor.
“Eu estava convencido de que tinha vindo ao mundo para escrever, para lutar com as palavras, por mais vã que fosse essa luta.”
Por influência de Benone, tornou-se um leitor voraz de Machado de Assis.
“A descoberta de Machado de Assis, de sua visão cética, amarga, de sua ironia, de seu sense of humour, desvendou um mundo para mim. Aos catorze, quinze anos, eu talvez fosse mais amargo e mais pessimista do que Machado...”
Além de pessimista, asmático. Preocupada com a saúde do filho, a mãe de Otto, dona Julieta, durante os seus acessos de asma, o punha numa cadeira de balanço, em local privilegiado da sala de jantar, para que pudesse desfrutar melhor do ar puro que entrava pela janela. Foi nessa condição de doente, quase mártir, que Otto Lara Resende viu irromper, mundo doméstico adentro, um homem que até então, para ele, não passava de uma suprema sumidade, um inalcançável mito.
Seu primeiro contato com Alceu Amoroso Lima, ou Tristão de Athayde, como também se assinava o famoso escritor e pensador católico, jamais lhe saiu da memória. Já tinha visto uma foto do doutor Alceu, engalanado com seu fardão da Academia, entronizado como se fosse um santo, na vitrine de uma casa comercial de São João del-Rei. Agora o via em carne e osso, dentro da sua própria casa, não como um deus, mas como um homem.
Membro proeminente do Centro Dom Vital, organização da direita católica fundada em 1922 por Jackson de Figueiredo, da qual o pai de Otto fazia parte, Alceu fora a São João del-Rei para uma conferência sobre as repercussões do catolicismo na sociedade.
Como um menino olhando sob a lona do circo, Otto esgueirou-se sorrateiro pelo salão onde pontificava o ilustre conferencista. Não entendeu nada do que ele disse. Mas entendeu tudo, no dia seguinte, sem precisar sair de casa. Aprendeu, por exemplo, que um homem pode muito bem ter duas caras: “Uma convencional, acadêmica e fardada; outra, jovial, humana e simpática.”
Causou-lhe um espanto de “proporções dantescas”, conforme escreveu, esse seu encontro, o primeiro de uma longa série, com Alceu Amoroso Lima. Ver de repente, não mais que de repente, em meio a uma crise de asma, do ângulo da sua modesta cadeira de balanço,
“a glória descer de suas altitudes olímpicas para, como qualquer mortal, tomar café com biscoito de polvilho e pão de queijo”,
equivaleu a um verdadeiro alumbramento.
“Foi esta, por certo, a primeira lição que recebi de Tristão de Athayde — a de me impor a certeza de que um grande homem pode ser, e quase sempre o é, também e antes de tudo, um homem comum, um homem humano.”
Otto, de sua parte, não foi mais ou menos isso?
* Jornalista e escritor, nasceu em Niterói-RJ em 1947 e faleceu no Rio de Janeiro em 11/10/2019. Estreou na imprensa em 1970 como repórter do jornal Última Hora. Trabalhou como editorialista no Jornal do Brasil, no Estado de S. Paulo; foi repórter e crítico literário da revista Veja, redator da revista Isto É, editor do Jornal da Globo e redator-chefe da revista Manchete. Também foi diretor de jornalismo da Academia Brasileira de Imprensa (ABI), editor da Revista do Livro da Biblioteca Nacional, tendo participado do conselho editorial da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. É autor de “A poeira da Glória” (Relume Dumará, 1998), “Brilho e sombra” (Bem-Te-Vi, 2006), sobre a vida e obra de Otto Lara Resende, e “A rotativa parou” (Record, 2010), que relata a história do jornalista Samuel Wainer à frente do jornal Última Hora.
II. NOTA EXPLICATIVA do gerente do Blog
¹ Em trabalho anterior registrei “breve
passagem de Guimarães Rosa pelo Ginásio Santo Antônio de São João del-Rei, dirigido por
frades franciscanos holandeses. Seu professor de português era o
severíssimo Antônio de Lara Resende, pai de Otto Lara Resende. Consta
que GR não se adaptou à comida oferecida. Por isso, retornou a Belo
Horizonte para conclusão de seus preparatórios no Colégio Arnaldo e
Ginásio Mineiro e posterior ingresso, aos 17 anos, na Faculdade de
Medicina da Universidade de Minas Gerais...”. Esta divergência em relação ao exposto no texto visa apenas esclarecer o leitor, não desmerecendo de forma nenhuma o excelente trabalho de Benício Medeiros sobre a biografia de Otto Lara Resende.
III. BIBLIOGRAFIA versando sobre o Caraça
BRAGA, Francisco José dos Santos: NO CARAÇA... CRIME REAL?, postado no Blog do Braga em 24/12/2024.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/12/no-caraca-crime-real.html
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/12/no-caraca-crime-real.html
MEDEIROS, Benício: OTTO LARA RESENDE: a poeira da Glória, integrante da série “Perfis do Rio”. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará: Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, 1998, 141 p.
2 comentários:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
O Blog de São João del-Rei transcreve, com a devida vênia da Editora Relume Dumará, o capítulo intitulado À SOMBRA DO CARAÇA, extraído do livro “OTTO LARA RESENDE: a poeira da Glória” por BENÍCIO MEDEIROS, no qual fornece dados biográficos do próprio biografado, incluindo elementos históricos de sua própria lavra para traçar os primeiros 16 anos de vida de Otto, durante os quais mostra a ascendência que sobre o biografado exerceram o Colégio do Caraça, sua filial são-joanense chamada Instituto Padre Machado, o ambiente familiar e o barroquismo da cidade de São João del-Rei.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/01/a-sombra-do-caraca.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Danilo Gomes ((escritor, jornalista e cronista, membro das Academias Mineira de Letras, Marianense de Letras e Brasiliense de Letras) disse...
Prezado Mestre Francisco Braga, é sempre bom ler sobre Otto Lara Resende. Conheci alguns dos irmãos dele e principalmente o pai, o Professor Antônio, que deixou dois volumes de memórias. Esses Lara Resende são uma glória de São João del-Rei, de Minas e do Brasil. Otto me deu a honra de ser o autor do prefácio do meu livrinho "Em torno de Rubem Braga", de 1991, de pequena tiragem, esgotado. Com meus cumprimentos e votos de feliz 2025, fica aqui o abraço de seu confrade na Academia Marianense de Letras, Danilo Gomes.
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