sábado, 21 de junho de 2025

PÚCHKIN E GONZAGA: da sanfoninha ao violão

Por BORIS SCHNAIDERMAN *

Transcrevemos com a devida vênia da revista USP, artigo publicado na edição de nº 45, p. 82-84, 2000.

 

O segundo centenário do nascimento de A.S. Púchkin, celebrado em 1999, foi acompanhado da publicação de muitos materiais importantes sobre o poeta russo ¹, mas não vi qualquer referência a um fato que nos interessa de perto: a tradução por ele de uma das liras de Gonzaga. Publiquei na década de 60 um artigo sobre esse tema ², e ele teve alguns desdobramentos, que vou recapitular aqui. 
Baseei-me então em materiais russos que me chegavam, com discussões sobre a relação entre os dois poetas, embora fosse então bem limitado o intercâmbio com instituições culturais soviéticas. A lira traduzida é a de número LXXI ³ e, segundo alguns estudos russos, ele se teria baseado na tradução, em prosa francesa, de E. de Monglave e P.Chalas . Pude convencer-me da exatidão desta referência, graças a um cotejo de textos, que efetivei a partir de uma indicação bibliográfica em Formação da Literatura Brasileira de Antonio Cândido. Este me informou então que havia um exemplar da tradução francesa na seção de livros raros da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Ela é precedida de um curioso prefácio, onde se lê:
Nous ne parlerons pas de notre traduction; le droit de la juger appartient tout entier au public. Fidèles au précepte d’Horace, nous ne nous sommes pas servilement astreints à rendre mot par mot, phrase par phrase. C’est le génie du poète le plus aimable de Portugal que nous avons essayé de faire passer dans notre langue, en regrettant que le peu de flexibilité de la prose française ne nous ait permis de donner à nos lecteurs qu’une bien faible idée de son harmonie imitative, de son rythme souple et varié, de son style tour à tour gracieux, profond et énergique.
Evidentemente, era muito vago, e Púchkin usou com muita liberdade o texto de Monglave e Chalas. Sem dúvida, este é fluente, harmonioso, muito legível até hoje, mas, além das diferenças devidas a uma tradução declaradamente livre, apresenta algumas incorreções. 
Eis ao que ficou reduzida (foi o erro mais grave na tradução desta lira) a estrofe “Na quente sesta,/dela defronte,/eu me entretinha/movendo o ferro/da sanfoninha”: “Dans les chaleurs de l’été, m’entretenant avec elle, je frappais négligemment les cordes de ma guitarre”. 
É claro que os tradutores franceses estranharam aquela “sanfoninha”, que lhes pareceu pouco ibérica ou sul-americana, embora ela seja bastante encontradiça nos versos de Gonzaga, marcando com sua presença aquele “ideal familiar e burguês”, que M. Rodrigues Lapa encontrou em suas liras. Aliás, ela surge logo na Parte I, Lira 1, onde o poeta afirma: “Com tal destreza toco a sanfoninha”, etc. Certamente, o ilustre magistrado se comprazia afirmando esta sua destreza. Mas, com toda a sensibilidade que tinha para tais pormenores, Púchkin só pôde colocar em suas mãos uma guitarra, devido à incorreção dos tradutores franceses. 
A ausência, também, de outros pormenores característicos de Gonzaga e do arcadismo brasileiro empobreceu inevitavelmente o poema, mas isto foi substituído por elementos típicos de Púchkin, que se guiou mais pela intuição poética do que pelo conhecimento do tema. Realmente, mesmo como homem de vastíssima cultura, a par de sua fama de boêmio incorrigível, ele só poderia saber muito pouco a respeito de Gonzaga, da escola mineira de poesia e das circunstâncias reais em que o poema se baseava. E assim mesmo, trabalhando com material tão precário, ele criou sem dúvida um dos poemas curtos mais belos da poesia russa. 
A par do impacto que lhe causou a leitura dos poetas ocidentais seus contemporâneos, Púchkin estava muito marcado pela poesia do século XVIII e percebe-se nele, pelo menos na primeira fase de sua obra, um gosto pelos elementos típicos do arcadismo, com uma freqüência grande de pastores e pastoras, geralmente com um toque erótico mais desbragado que o dos nossos árcades e um acentuado espírito brincalhão. Mas, tendo por baliza o texto francês, acabou expressando um lirismo bem mais comedido. 
Em meu artigo de 1962, escrevi: “É provável que apareça algum dia em russo uma tradução integral das liras de Gonzaga, pois a arte da tradução poética está particularmente desenvolvida na Rússia”. Realmente, não era necessário para afirmar isto nenhum dom divinatório, e já em 1964 a Editora Literatura, de Moscou, publicava a tradução de I. A. Tiniânova das liras e das Cartas Chilenas. E no prefácio ela expunha uma concepção diametralmente oposta à minha, depois de se referir às edições portuguesas de Gonzaga, aparecidas antes do poemeto puchkiniano: “Talvez algumas das pessoas chegadas a Púchkin, e que se interessavam pela literatura portuguesa, tenham tomado conhecimento de algumas dessas edições? Ademais, é difícil supor que uma tradução do francês, sem nenhuma consulta ao original, tenha sido designada por Púchkin não como uma imitação ou um poema a partir de Gonzaga, mas sim, com uma indicação precisa da língua da qual se fez a tradução: ‘Do português’, embora o poeta cuidasse com tanta meticulosidade de cada nuance no significado das palavras”. 
Realmente, Púchkin tinha diversos amigos que se interessavam pela poesia portuguesa e chegaram a aprender a nossa língua. E esse fato tem sido apontado por estudiosos russos. Um deles, N. O. Lerner, escreveu num artigo de 1916 (minha citação é indireta) que, sendo o texto posterior à estada de Púchkin em Odessa, ele poderia ter se encontrado ali com “portugueses ou levantinos que falavam português”. 
Todas essas lucubrações me parecem fantasiosas e pouco verossímeis. É verdade que Tiniânova está certa ao afirmar que Púchkin era muito rigoroso em matéria de tradução, asserção esta que se baseou tanto na atividade tradutória do poeta como em artigos seus sobre poesia traduzida. Mas, a par desta atitude severa, aparecia nele, às vezes, um gosto histriônico pela mistificação, pelo disfarce, pelo jogo livre com os textos, e que não se pode deixar de lado. Aliás, ambos estes aspectos aparecem claramente nos versos que traduzi com Nelson Ascher para uma coletânea de prosa e poesia de Púchkin . Se o poema “Antchar” traz referência exata ao texto de Coleridge que lhe serviu de ponto de partida, “Corvos” é na realidade paráfrase de uma balada escocesa, sem que isto seja referido no texto. 
Todavia, as suposições de Tiniânova tiveram bastante aceitação. As dificuldades de comunicação entre o Brasil e a Rússia, mesmo antes de 1964, impediram-me de tomar conhecimento, na época, de dois estudos sobre esse tema publicados pelo importante comparatista M. P. Aleksiéiev (recentemente falecido) nos anais da Academia de Ciências da URSS, um deles anterior ao meu texto e outro um pouco posterior. No entanto, ele os reelaborou e transformou num ensaio que aparece em seu livro Púchkin e a Literatura Mundial . Finalizando o ensaio, ele escreveu: “As observações feitas por I. A. Tiniânova a respeito do original português são interessantes, mas apesar disso não decidem definitivamente o problema do texto que Púchkin teve em mãos. Observemos, em relação a isto, que eslavistas brasileiros atuais continuam achando que a tradução de Púchkin tenha sido feita a partir da tradução francesa em prosa” . Segue-se uma citação de meu artigo de 1962. A meu ver, tanto no caso de Aleksiéiev como de Tiniânova, faltou um cotejo do poema de Púchkin com a tradução de Monglave e Chalas. No artigo em questão, eu me recusava categoricamente a expor em prosa algo que fora escrito em versos (e que versos!). Mas agora não posso deixar de recorrer à “desprezível prosa”, como dizia o próprio Púchkin, tão cônscio do limiar entre uma e outra 
Na passagem citada, temos: “Vindo de longe, a donzela aproximava-se de mim. Eu cantava ao encontro de minha bela, tangendo a guitarra”. (Aliás, Púchkin utiliza um termo russo bem onomatopaico para “tangendo”: “briatzaia”.) Nesta passagem, ele afasta-se tanto do original de Gonzaga como de sua tradução francesa. Mas o aparecimento daquela “guitarra”, em lugar da pitoresca “sanfoninha”, parece indicar maior proximidade com o texto de Monglave e Chalas. No caso, uma coincidência é bastante inverossímil. Em todo caso, isso nos confirma que ele chegava a tratar os textos estrangeiros com bastante liberdade. 
O seu gosto pronunciado pelo jogo e a mistificação deu origem a diversas situações bem curiosas. Foi o caso, por exemplo, dos seus Cantos dos Eslavos Ocidentais. Segundo nota a uma das edições das obras completas pela Academia de Ciências da URSS , eles consistem em três textos criados pelo próprio poeta, dois traduzidos de uma coletânea de canções sérvias e doze paráfrases de poemas que Prosper Mérimée publicou, sem assinatura, no livro La guzla, ou choix de poésies Illyriques, récueillies dans la Dalmatie, la Bosnie, la Croatie et l‘Hérzégovine. Depois de concluir a sua coletânea, Púchkin pediu a um amigo comum que se informasse com o escritor francês sobre o organizador e tradutor do livro. Esse amigo recebeu então uma carta muito espirituosa de Mérimée, onde este confessava ter forjado os textos e dizia: “Faites mes excuses à M. Pouchkine. Je suis fier et honteux à la fois de l’avoir attrapé”, etc. O poeta russo incluiu essa carta no prefácio à sua coletânea, dando conta assim daquela mistificação de Mérimée, mas sem dizer nada sobre os três poemas que ele mesmo havia forjado ¹
Também a paráfrase do poema de Gonzaga faz parte daquela busca da contribuição poética dos mais diversos povos, que Púchkin absorveu vorazmente e transmitiu a seu público. Assim, muitos momentos da poesia mundial são assimilados pelos russos como parte de seu próprio universo poético graças a este crivo puchkiniano tão pessoal e, ao mesmo tempo, tão ligado às culturas mais diversas.
 
Fonte: REVISTA USP, São Paulo, nº 45, pp. 82-84, março/maio 2000. 
 
* Traduziu Púchkin, Tolstói e Dostoiévski, entre outros. Trabalhou também em companhia dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e é um dos grandes nomes no que tange às reflexões sobre tradução no Brasil.
 
 
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS
 
 
¹ Alguns dados biográficos novos podem ser encontrados em A. S. Púchkin, A Dama de Espadas e Outros Contos (São Paulo, 34 Letras, 1999), com traduções minhas em prosa e alguns poemas traduzidos em colaboração com Nelson Ascher. 
 
² Boris Schnaiderman, “Púchkin, Tradutor de Gonzaga”, in Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, 16/6/1962. O presente trabalho é um desenvolvimento desse artigo, que foi reproduzido com alguns acréscimos no nº 1 da revista Tradterm, desta Universidade (1994), e na publicação Fortaleza Voadora (Fortaleza, s.d.) 
 
³ P. 127, vol. I, da edição crítica de M. Rodrigues Lapa (Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1957). Em outras edições, a numeração é diferente. 
 
Marilie – chants élégiaques de Gonzaga, traduits du portugais par E. de Monglave et P. Chalas, Paris, C. L. I. Panckoucke, éditeurs, 1825. 
 
A. S. Púchkin, op. cit
 
M. P. Aleksiéiev, “Púchkin i Brasílskii Poét” (“Púchkin e Um Poeta Brasileiro”) in Púchkin i Mirovaia Litieratura (Púchkin e a Literatura Mundial), Leningrado, editora Naúka (Ciência), 1987. 
 
Op. cit., p. 559. 
 
No poema narrativo “O Conde Núlin” aparecem os versos “Nos últimos dias de setembro / (Falando em desprezível prosa)”. 
 
Obras Completas de A. S. Púchkin em 10 volumes, Moscou, edição da Academia de Ciências da URSS, 1956-58. 
 
¹Op. cit., vol. III, p. 286.
 
 
III. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
ALVES, Dário Moreira de Castro: EUGENIO ONEGIN: ROMANCE EM VERSOS, prefácio da autoria de Adelto Gonçalves e tradução do Embaixador Dário (1928-2010), Moscou: Azbooka Atticus, 2008 (edição russo-portuguesa)
 
GONÇALVES, Adelto: GONZAGA, UM POETA DO ILUMINISMO, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, 544 p.
 
PIMENTEL, A. Fonseca: GONZAGA E PUCHKIN > > > PARTE I, publicado no Blog de São João del-Rei em 24/09/2017
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2017/09/gonzaga-e-puchkin-parte-i.html

____________________: GONZAGA E PUCHKIN > > > PARTE II, publicado no Blog de São João del-Rei em 24/09/2017
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2017/09/gonzaga-e-puchkin-parte-ii.html

____________________: A PROPÓSITO DE UMA LIRA DE GONZAGA, publicado no Blog de São João del-Rei em 28/09/2017
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2017/09/a-proposito-de-uma-lira-de-gonzaga.html
 
 
SCHNAIDERMAN, Boris. PÚCHKIN E GONZAGA. DA SANFONINHA AO VIOLÃO. Revista USP, São Paulo, Brasil, n. 45, p. 82–84, 2000. DOI: 10.11606/issn.2316-9036.v0i45p82-84. Disponível em: https://revistas.usp.br/revusp/article/view/30116 (Acesso em: 19 jun. 2025).

3 comentários:

Francisco José dos Santos Braga disse...

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Em “Púchkin e Gonzaga: da sanfoninha ao violão”, Schnaiderman discute o trabalho de Púchkin como tradutor de Tomás Antônio Gonzaga, poeta luso-brasileiro do Arcadismo, conhecido como Dirceu. Segundo Schnaiderman, Púchkin fez a tradução de algumas de suas poesias para o russo por intermédio de uma tradução francesa que já continha erros de tradução, os quais teriam aparecido também na tradução russa. Por exemplo: a palavra “sanfoninha” se transformou em “violão” no texto em russo.
Mesmo assim, a poesia traduzida por Púchkin “faz parte daquela busca da contribuição poética dos mais diversos povos” e “muitos momentos da poesia mundial são assimilados pelos russos como parte de seu próprio universo poético”.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/06/puchkin-e-gonzaga-da-sanfoninha-ao.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Francisco José dos Santos Braga disse...

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, atual Terceiro Vice-Presidente TJMG, escritor e membro do IHG-MG e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei, bem como sócio correspondente da Academia Barbacenense de Letras) disse...
Eita, foi longe nosso poeta!
Abs

Francisco José dos Santos Braga disse...

Anderson Braga Horta (poeta, escritor, ex-presidente da ANE-Associação Nacional de Escritores e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, cujo livro mais recente de novembro 2024, Iniciações, revisita os anos felizes de sua infância na Cidade de Goiás) disse...
Ótimo, Francisco.
Obrigado.
Abraço
Anderson