quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

OS RECÔNDITOS DA VERDADEIRA MINEIRIDADE


Por Amaro Alves  *


Para se entender os recônditos da alma mineira é necessário muito tempo e atenção. O estado de Minas Gerais é um aglomerado de sotaques, comidas, manifestações culturais, musicalidades e costumes capazes de surpreender o mais experiente observador. Tudo se resume num sofismático teorema, onde a pluralidade se transforma em um homogêneo mosaico. 

O nortão de Minas abriga boa parte da caatinga, tem sotaque abaianado e sua comida tem sabor de dendê. Na Zona da Mata consome-se feijão preto e fala-se chiando que nem carioca. Por causa desse deslize involuntário, apelidaram os juizforanos de cariocas do brejo. No Triângulo, no Alto Paranaíba e no Sul fala-se caipirês paulista por afinidade de fronteira. Em Belo Horizonte fala-se o autêntico mineirês capitalino, que se estende pelas barrancas do Alto São Francisco e as margens ainda limpas do alto Paraopeba. O vale do rio Jequitinhonha é um capítulo à parte, com a musicalidade, o artesanato e sua culinária peculiar. Mesmo assim, algumas unanimidades são possíveis neste Estado-nação, como o frango com quiabo e a costelinha de porco. Em Minas é proibido esquecer o nome dos anfitriões, mesmo que você leve anos para revê-los. De Belo Horizonte para o norte é cerrado. De Belo Horizonte para o sul é mata atlântica. 

Até na serenata havia “rituais” diferentes. Em alguns lugares o homenageado ficava quietinho no escuro recebendo a honraria. Em outras regiões os seresteiros eram convidados a entrar e a eles oferecidas comidas e bebidas. Na Região Central, bastava acender uma luz dentro de casa para dar a entender que “estou ouvindo e estou gostando”. 

Em 1968, Alberto Magela, colega de trabalho na Petrobrás, me convidou para a festa de aniversário de sua esposa, que seria comemorado no seu sítio, no município de Nazareno, na região entre São João del-Rei e Lavras. Seria festividade dedicada aos familiares e alguns amigos. 
Na foto acima de 1914 aparecem sentados os engenheiros Oscar Coelho e Abrahão de Oliveira Leite (O MALHO,  edição de 31/1/1914) - Crédito: Bruno Nascimento Campos, Tarcísio José de Souza e Daniel Gentili
Estação ferroviária de Nazareno-Crédito: Luiz Artur, proprietário da Adega Salute em São João del-Rei















 
Nazareno, MG-Antiga estação ferroviária no distrito de Coqueiros-Crédito: Luiz Artur, proprietário da Adega Salute em São João del-Rei

A propriedade era uma pequena fazenda, muito confortável, bem afastada da área urbana, longe de vizinhos e do movimento de estradas. Como era o mês de junho, meu amigo contratou um sanfoneiro e preparou fogueira e comidas típicas das festas juninas do Rio de Janeiro, de onde somos originários. 

Tão logo o sanfoneiro começou a tocar, foram chegando pessoas que, até para o dono do sítio, eram desconhecidos. Apareciam por todos os lados da propriedade. Pela grota dos fundos, pelo morrinho, pelo pasto, pelo córrego, pelo colchete da frente do pomar. 

Fiquei surpreso com a novidade e perguntei se meu amigo esperava alguém além das quinze pessoas convidadas entre parentes e colegas de trabalho. 

“Sim, Amaro. Preparei comidas e bebidas para trinta pessoas. Aqui na região não se convida ninguém para festa. Basta que se ouça a música ou a prosa animada. Quem ouvir pode chegar que será bem vindo.” 

Eu sabia que no Rio de Janeiro havia comportamento parecido, quando estranhos, geralmente homens adultos, entravam nas festas para beber e comer, sem serem convidados. E assim aconteciam muitas brigas e arruaças. Mas, ali, em Nazareno, eu percebia tratar-se de situação diferente, pois chegavam homens e mulheres, adultos e crianças. 

Meu amigo me tranquilizou. 
“Aqui, esse costume repete-se há décadas, mas há um protocolo a ser seguido. O vizinho deve vestir a melhor roupa, não pode conversar sem ser chamado à prosa, não pode se servir de comidas e bebidas sem que o dono da casa ofereça, deve prestar atenção às conversas e demonstrar por expressão facial que está se agradando com o que ouve.” 

Retruquei, com veemência de rábula: 
“Mas, Alberto, quem fez esse regulamento esdrúxulo e autoritário?” 

E veio a resposta:  
“Foi o tempo, meu amigo. Foram muitos anos de prática da paz, da boa vizinhança e do respeito mútuo. E tudo se dá com a maior naturalidade. Assim se amolda a relação de vizinhança e essas regras são nada mais do que a manifestação do respeito que deve existir ao se entrar na casa de um vizinho. E tem mais, aqui ninguém entra em casa alheia sem tirar os sapatos ou os chinelos. Logicamente, hoje é diferente por ser dia de festa. E digo mais. Por esta e outras razões, apaixonei-me por este lugar e sua gente”. 

E foi assim que a festa para quinze pessoas redundou em festança de trinta. As regras protocolares serviram para começar, mas em pouco tempo todos se liberaram das amarras do ritual. Naqueles rincões, o desconhecido é um inimigo em potencial até que se torne pessoa conhecida. Daí em diante passa a ser amigo para sempre. Cantamos, dançamos, rimos, comemos, bebemos e conversamos até a madrugada. O dia queria clarear quando os últimos “convidados” foram acolhidos pelas brumas e pelos orvalhos nos caminhos para as suas casas. O único incidente da festa aconteceu com o sanfoneiro, que cansado e embriagado, caiu no córrego, no caminho de casa, mas com reflexos suficientes para proteger seu instrumento das águas frias da noite. 

Em 1984, eu morava em Brasília e ofereci um almoço em meu sítio para alguns amigos músicos. O grupo era composto por umas doze pessoas e a animação musical ficava por conta de excelentes violeiros. 

Lá pelo meio da tarde, entrou pelo portão principal um rapaz aparentando trinta anos. Dirigiu-se a um lado da varanda, encostou-se na parede perto dos violeiros e ali ficou, apreciando, silenciosamente, o movimento da festa. Meu caseiro falou-me indignado: 

“Que sujeito intrometido! Nunca vi caseiro em festa de patrão e ainda mais sem ser convidado”. Perguntei se conhecia aquele rapaz e ele informou que era um caseiro novato que trabalhava há pouco tempo numa chácara na vizinhança. Alguns amigos chegaram a ensaiar discretas manifestações de incômodo com a presença do intruso. 

Comecei, então, a observar o incógnito visitante e percebi algumas posturas que havia visto dezesseis anos antes, lá pelas bandas de São João del-Rei. Ele parecia vestir a sua melhor roupa, nada falou, não se serviu à mesa posta com comidas e bebidas e demonstrava grande atenção com o que os músicos tocavam e cantavam. Aproximei-me do rapaz e comecei um diálogo. 
“Boa tarde, amigo. Onde você mora?” 
“Trabalho na chácara do doutor Nilo.” 
“Como você se chama? 
“Josué da Silva Pereira, filho de Sinhozinho Pereira e Dona Benvinda.” 
“De onde você é?”. 
“O senhor não conhece. É bem na roça, lá no interiorzão de Minas Gerais.” 
“Pode falar. Morei em Belo Horizonte e conheço mais de cem municípios de Minas.” 
“Sou nascido e criado em Nazareno.” 

Fiquei surpreso com a coincidência e muito emocionado com a oportunidade de ter em minha casa um exemplo vivo do mais reservado e autêntico espírito da mineiridade. 

Servi um farto prato com as melhores comidas da mesa e, com o coração pulsando de alegria, ofereci ao Josué, que prontamente aceitou. Sentei-me ao seu lado e almoçamos juntos, enquanto conversávamos sobre as coisas singelas de Nazareno. O Josué ficou mais um pouco, certamente esperando pelos doces da sobremesa e as modas de viola. Ao cair da tarde despediu-se de mim e sumiu nas sombras do crepúsculo. 

Na sua santa ingenuidade, Josué pensava que o mundo se igualava à candura do povo de Nazareno e que os costumes de lá serviriam para a vida em qualquer lugar. Voltei a vê-lo e cumprimentá-lo outras vezes na vizinhança, mas logo desapareceu dali. 

Como as outras pessoas estariam interagindo com aquele intruso, fiel depositário dos mais autênticos sentimentos extraídos dos recônditos da alma mineira?

                       *  Amaro Alves é Sanitarista e fotógrafo de Natureza