Por Francisco José dos Santos Braga
Senhor José Cláudio Henriques
M.D. Presidente do IHG de São João del-Rei,
Permita-me
quebrar o protocolo, abdicando de meu dever de Mestre de Cerimônias para assumir
minha condição de confrade por alguns instantes, pois necessito que Vossa
Senhoria me conceda a palavra para fazer algumas considerações sobre a nossa cidade como simples cidadão, visando
conscientizar os novos confrades de nossas urgentes e ingentes preocupações.
Fiquei
ausente de minha terra natal por praticamente 40 anos, tendo-a deixado em 1971.
Passei por São Paulo (capital), Brasília, São Paulo, Americana, Curitiba, São
Paulo, Porto Velho e Brasília e, após essa minha errância, reencontrei
definitivamente minha terra natal em 2011, qual Ulisses retornando a Ítaca.
Posso dizer, com conhecimento de causa, que São João del-Rei é uma cidade
diferenciada em relação a todas as cidades que conheço, quer na minha condição
de residente quer na de turista. Há cerca de 15 dias atrás, ouvindo a Rádio
Itatiaia, soube que São João del-Rei tinha sido agraciada com o título de
cidade mais hospitaleira do Brasil. De fato, nossa cidade acaba de conquistar o
1º lugar no “ranking” dos destinos mais hospitaleiros do Brasil, divulgado pelo
site AirBNB, plataforma que pesquisa lares no mundo. Segundo o site, nossa
cidade se destaca por fazer parte de um circuito histórico que estampa muito
charme com os casarios, templos e museus, formando um cenário carregado de
cultura que traz à tona lembranças do Brasil Colônia. Acolhe tão bem seus
visitantes a ponto de ser acusada pelos próprios são-joanenses, ao verem a
rápida prosperidade dos forasteiros, de ser ótima madrasta, mas péssima mãe.
Prefiro considerar filhos adotivos os que não são naturais da terra. De fato,
São João del-Rei tem a qualidade de acolher bem a todos, tanto os seus filhos
quanto os filhos adotivos.
Aqui
se transpiram cultura e arte. Em 08/04/1941 Lincoln de Souza cunhou a inédita
expressão “Cidade dos Sinos”,
identificadora da cidade de São João del-Rei. Outra expressão conhecida é “Cidade da Música”. [GUERRA, 1968:
15-6, apud ALMEIDA, Samuel Soares] considera que “comprovadamente o registro musical tem seu início no ano de 1717,
quando o maestro Antônio do Carmo liderou uma banda de música no tôpo do
Bonfim, por motivo da chegada a então Vila de São João del-Rei do governador D.
Pedro de Almeida, o conde de Assumar.” Além disso, o epíteto provavelmente
provenha de suas duas orquestras centenárias (Lira Sanjoanense, fundada pelo Mestre José Joaquim de Miranda, e Ribeiro Bastos, fundada por Mestre
Francisco José das Chagas), sendo a primeira, de 1776, a mais antiga das
Américas, e a segunda de 1840. Antonil, muito antes, tinha dito que esse era um
lugar muito alegre e capaz de se fazer
nele morada estável. Já o epíteto “mui nobre e leal Villa de Dom João V"
lhe foi concedido por mérito, por ter socorrido, com galharda expedição, o
governador Antônio de Albuquerque, para expulsão dos franceses de Duguay-Trouin
do Rio de Janeiro, em 1711, e por ter-se prontificado a socorrer o Conde de
Assumar, por ocasião da sedição de Vila Rica, em 1720. José Bonifácio a chamou
de “briosa e fiel”, por sua
participação na causa da Independência. A certa altura de sua história passou a ser chamada de “Princesa do Oeste”, título também
disputado por cidades que nasceram em tempos mais recentes.
Especialmente
para os historiadores, esta cidade é um manancial permanente de inspiração para
o desenvolvimento de pesquisas e trabalhos acadêmicos. Além do arquivo das já
citadas Orquestras Centenárias, encontram-se à disposição dos pesquisadores os
arquivos do IPHAN (testamentos, inventários e outros); da Biblioteca Municipal,
que há três meses atrás completou 190 anos de custódia de um acervo monumental,
formado pelos livros de atas do Senado da Câmara e pelas bibliotecas de Batista
Caetano de Almeida, José de Resende Costa (filho) e outros; também pelos acervos
mantidos pelo IHG e pela Academia de Letras; pelo arquivo eclesiástico da
Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar (livros de batizados, casamentos e
óbitos, principalmente); pela Biblioteca Otto Lara Resende da UFSJ em três
“campi” são-joanenses, que comporta o maior acervo teatral de São João del-Rei,
que pertenceu ao Clube Teatral Artur Azevedo, que também abriga desde setembro de 2006 o
acervo musical do compositor Koellreutter, líder do movimento Música Viva no
Brasil em 1938, bem como, finalmente, incorpora desde maio de 2012 o acervo do CEREM-Centro de
Referência Musicológica José Maria Neves.
Prezados
novos confrades que tomam posse nesta data de 3 de dezembro de 2017,
Quero
trazer a seu conhecimento um fato que nos incomoda muito e nos interessa
particularmente. Refiro-me ao sumiço de Livros de Atas do Senado da Câmara que são, em parte, supridos por informações de historiadores que
tiveram acesso a esses livros, estranhamente. De acordo com a Convenção da
UNESCO em 1966, há ilicitude na venda dos bens culturais. Constata-se que há um
movimento de repatriação dos bens culturais em todo o mundo, sob a alegação de
que a Convenção precisa ser cumprida.
Vou
procurar ser específico.
O
primeiro exemplo
Lê-se no livro Et
Caetera, de Antônio Gaio Sobrinho, no capítulo “Três Momentos da História
de São João del-Rei”, pp. 68-69:
“A
criação da Vila de São João del-Rei se deu em 8 de dezembro de 1713, com o
seguinte Auto de Levantamento, que,
aqui, transcrevo literal e fielmente da primeira edição das Ephemerides Mineiras de José Pedro
Xavier da Veiga, editadas pela Imprensa Official do Estado de Minas, em Ouro
Preto, no ano de 1897. Diz o importante documento:
"Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil sete
centos e treze annos, aos oito dias do mez de Dezembro do dito anno neste
Arraial do Rio das Mortes, aonde veio por ordem de Sua Magestade, que Deus
Guarde, Dom Braz Balthazar da Silveira mestre de campo general dos seus
exercitos, governador e Cappitão General da Cidade de S. Paulo, e Minas, para
effeito de Levantar Villa o dito Arraial; e logo em virtude da dita Ordem, que
ao pé deste Auto vae registrada, o criou em Villa com todas as solemnidades necessarias,
levantando o Pelourinho no lugar, que escolheu para a dita Villa a contento, e
com approvação dos moradores della, a saber na Xapada do morro que fica da
outra parte do corrego para a parte do Nascente do dito Arraial, por ser o
citio mais capaz e conveniente para se continuar a dita Villa, a qual elle dito
Mestre de Campo General e Governador e
Capitão General appellidou com o nome de São João d’El Rey, e mandou que com
este titulo fosse de todos nomiado em memoria do nome de El’Rey Nosso Senhor
por ser a primeira Villa que nestas Minas elle dito Governador e Cappitão
General levanta assistindo a esta nova erécção o Dezembargador Gonçalo de
Freitas Baracho, como Menistro do dito Senhor que se acha Ouvidor Geral desta
dita Villa, como tão bem assistio toda a nobreza, e Povo della, e se levantou
com effeito o dito Pelourinho, e ouve elle dito Governador e Capitão General
por erecta a dita Villa, creando nella os Officiais necessarios, assim de
Milicias, como de Justiça conducentes ao bom regimen della, e mandou se
procedesse a elleição de pelouros para os Officiaes da Camara na forma da Ley, e de tudo mandou
fazer este Auto que assignou com o dito Dezembargador, Ouvidor Geral, e eu
Miguel Machado de Avelar Escrivão da Ouvidoria Geral que o escrevy. Dom Bras de
Balthazar da Silveira // Gonçalo de Freitas Baracho."
Vale
a pena, informar que Xavier da Veiga esclarece que se trata de reproducção litteral de documento official,
existente no Arcchivo Publico do Estado. Segundo José Álvares de Oliveira, que,
em 1750, publicou sua História do
Distrito do Rio das Mortes, esse Auto
de Levantamento se acha lavrado
no livro primeiro do registro da dita Câmara a folhas trinta e sete.
Infelizmente esse livro desapareceu dos arquivos locais. Estaria ele recolhido
no Arquivo Público Mineiro (donde Xavier da Veiga transcreveu nas Ephemerides
Mineiras)? Se sim, não seria o caso de reavê-lo para esta cidade?”
O segundo exemplo
Em 06/03/1838
houve a elevação de S. João del-Rei à categoria de Cidade, por força da Lei
Provincial nº 93, de 6-3-1838. É
lamentável que o Livro de Atas do Senado da Câmara, que cobre o período de 1835
a 1839, se encontre desaparecido dos arquivos locais, razão por que não se pode
saber como se passaram, em 1838, as solenidades em vista da promoção. Também
não adianta recorrer ao Astro de Minas,
pois ele nada reportou.
O terceiro exemplo
Encontra-se
de posse da Biblioteca Nacional o Livro de Assentos de Batizados da Freguesia
de N. Sra. do Pilar da Vila de São João del-Rei (1742-1749), adquirido de um
genealogista são-joanense em 1938. Esse livro contém não só o registro do batismo do
Tiradentes (em 12 de novembro de 1746), mas também de seus irmãos, além de
Bárbara Eliodora e de muitos povoadores e fundadores da Vila de São João
del-Rei. No ofício de 1º de novembro de 2006 do Presidente da Academia de Letras de São João del-Rei
ao Presidente da Biblioteca Nacional, Sr. Muniz Sodré, o pedido de repatriação do
referido livro eclesiástico foi rechaçado. Em resposta, detalhes da operação foram fornecidos em ofício de 28 de fevereiro de 2008, alegando que a Biblioteca Nacional
estava impossibilitada de “alienar patrimônio público”, bem como “doar” o que
fora comprado em dezembro de 1938 por 6
mil contos de réis. Na realidade, o Presidente da Biblioteca Nacional estava utilizando um
eufemismo, pois na realidade a aquisição do livro representava
uma receptação indigna para com o povo são-joanense, por se tratar de um bem
público. Assim sendo, evidenciou-se na posse desse livro eclesiástico uma
apropriação indébita por parte da Biblioteca Nacional, salvo melhor juízo.