Por José Antônio de Ávila Sacramento *
Houve em Minas Gerais, no início dos anos setecentos, sérios desentendimentos entre os descobridores do ouro e os forasteiros que desejavam usufruir o minério. Descobertas as minas de ouro nesta região, uma forte corrente humana que aqui se aportou, com gente de todas as classes, etnias e de todas as origens geográficas. No livro Cultura e Opulência do Brasil, do padre João Antônio Andreoni (Antonil), encontramos a seguinte referência do afluxo de pessoas a Minas Gerais: "a sede do ouro estimulou tantos a deixarem suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos como são os das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número de pessoas que atualmente lá estão...".
Aquele afluxo de forasteiros desagradou aos paulistas. Por terem descoberto as minas e por elas se encontrarem em sua capitania, os paulistas reivindicaram direito exclusivo de explorá-las. Assim, entre 1708 e 1709, ocorreram vários conflitos armados na zona aurífera. Os paulistas referiam-se aos recém-chegados com os apelidos pejorativos de Emboabas. Os emboabas aclamaram o riquíssimo português Manuel Nunes Viana como Governador das Minas. Nunes Viana, que enriquecera com o contrabando de gado para a zona mineira, foi hostilizado por Manuel de Borba Gato, um dos mais respeitados paulistas da região. Nos conflitos que se seguiram, os paulistas sofreram várias derrotas e foram obrigados a abandonar boa parte das suas minas.
Com a derrota e a conseqüente expulsão, vários paulistas pararam na região situada entre os Arraiais da Ponta do Morro (atual Tiradentes) e Novo de Nossa Senhora do Pilar (atual São João del-Rei), provavelmente na região da Fazenda do Córrego. Sabedores que lhes vinha em perseguição uma coluna de cerca de 200 homens comandada por Bento do Amaral Coutinho, dali fugiram rumo a São Paulo, embrenhando-se no mato, sendo sitiados e exterminados cruelmente, após se renderem. Coutinho prometera aos paulistas que lhes pouparia a vida, caso se rendessem. Entretanto, quando eles entregaram suas armas, foram impiedosamente massacrados num local que passou para a história com o nome de "Capão da Traição".
A questão de um episódio como este - recheado de traição e sangue - mexe com o imaginário popular. Já chegaram até a erigir um marco em granito e com placa de bronze, sugerindo que o dito Capão ficaria nas imediações de onde hoje está o Bairro de Matosinhos. Há outros dois lugares que são apontados como o possível local onde ficava o Capão da Traição. Basílio de Magalhães também indicava o Bairro de Matosinhos, enquanto Eduardo Canabrava Barreiro indicou a localidade de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, rumo a São Paulo.
No entanto, há um relato importantíssimo do sargento-mor português Joseph Álvares de Oliveira, contemporâneo do acontecimento, posto que fora comandante de uma das companhias que defenderam as fortificações do Arraial Novo. Creio ser este o relato mais confiável a respeito da localização do Capão da Traição. Ele afirma que o local estava a "coisa de légua e meia ao rumo do Norte, em um Capão". Assim, seguindo as orientações do sargento-mor, é possível localizar o local em questão nas imediações da margem direita do Rio das Mortes, nas proximidades da Fazenda do Pombal, Município de Coronel Xavier Chaves, entre os Rios Santo Antônio e Carandaí. É importante ressaltar que Joseph Álvares de Oliveira encontrava-se no Arraial Novo (atual São João del-Rei) e, então, a distância de cerca de aproximadamente 10 km (cerca de uma légua e meia) deve ser calculada a partir de onde ele estava posicionado.
Não existe a pretensão e nem seria possível com este simples artigo determinar a localização exata do Capão da Traição. O que há, isto sim, é a simples e necessária intenção de se provocar ações que possam culminar nessa exata localização, pensando nos 300 anos do final da Guerra dos Emboabas. Na verdade estas provocações já surgiram no Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, e, também, de maneira formidável, através de um relato do produtor rural e empresário Cipriano Chaves de Resende sobre a existência de vestígios de um antigo e quase que desconhecido cemitério no município de Coronel Xavier Chaves. O dito cemitério está localizado no "Pasto da Lagoa", parte integrante da atual Fazenda Ouro Fino (já denominada Fazenda do Areão, Fazenda do Rio das Mortes e Fazenda Venda Nova). Aquelas covas poderão nos mostrar códigos históricos que as justifiquem como depósitos das vítimas do massacre ocorrido no Capão da Traição.
Este escriba sempre achou que seria interessante e necessário estabelecer parcerias entre as prefeituras e as entidades histórico-culturais-educacionais de São João del-Rei e de Coronel Xavier Chaves (o atual prefeito desta última cidade, Helder Sávio, está bastante interessado no assunto). Tudo isto poderia ser realizado com o apoio do Instituto Estrada Real, para solicitar à 13ª Superintendência Regional do IPHAN-MG e ao IEPHA-MG auxílio no sentido de efetuar prospecções arqueológicas no local, investigar a origem daquele cemitério e a datação de restos mortais porventura ali encontrados, bem como de promover estudos que fundamentem a exata localização do Capão da Traição, palco de um dos mais tristes e sangrentos episódios da Guerra dos Emboabas. Na verdade, estas provocações foram enviadas formalmente, pelo IHG de São João del-Rei, ao IEPHA e ao IPHAN, desde o ano de 2007, estando a questão sem atendimento até o momento.
A hipótese de se efetuar pesquisas arqueológicas no sítio do antigo campo santo chamou a atenção do jornalista Gustavo Werneck. Ele veio até São João del-Rei, foi até o local do suposto cemitério e publicou boa matéria no jornal Estado de Minas, o que não surtiu os efeitos e nem despertou as atenções esperadas. Em outubro de 2008, a Revista de História, editada pela Biblioteca Nacional, voltou a tocar no assunto sob o título A Guerra da Memória - Na região dos Emboabas, poucos marcos remetem hoje ao episódio histórico ocorrido há 300 anos. No imaginário popular, persistem as lendas, em matéria assinada por Lorenzo Aldé, que finalizou escrevendo: "A Guerra (dos Emboabas) pode estar meio esquecida. Mas ainda não acabou".
Os órgãos que seriam os responsáveis pelas pesquisas solicitadas não responderam aos clamores do IHG de São João del-Rei. Pensou-se até em tirar a dúvida por conta própria, escavando o local. Mas, para não serem acusados de profanar um possível patrimônio arqueológico, de fundamental importância para Minas Gerais e para o Brasil, os interessados na questão preferiram não se arriscarem, até porque também não possuem recursos técnicos e financeiros para realizar as escavações de forma apropriada e proceder a datação do material que porventura for encontrado.
Mas, a despeito de já ser um pouco tarde, se ainda houver interesse, há tempo para agirmos com boa vontade e firmeza históricas neste sentido. Creio que se estas ações forem agilizadas e colocadas em prática, terminaremos este ano do tricentenário do final da Guerra dos Emboabas e do massacre do Capão da Traição em plenas condições de dissipar algumas dúvidas e, conseqüentemente, de apresentar belíssimas e reais contribuições para a nossa História!
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* José Antônio de Ávila Sacramento nasceu em São João del-Rei/MG (distrito de São Miguel do Cajuru). É sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, membro efetivo da Academia de Letras de São João del-Rei, conselheiro titular do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural. Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (Belo Horizonte/MG). Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (João Pessoa/PB). Sócio Correspondente da Academia Bauruense de Letras (Bauru/SP). Sócio Correspondente da Academia Mageense de Letras (Magé/RJ). Mais...
Um comentário:
Interessantíssimo! É possível visitar o local indicado por JOseph, ou é uma propriedade particular?
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