sexta-feira, 28 de setembro de 2018

OS DOCES ENCANTOS DA FÉ


Por Amaro Alves *


Hoje, 27 de setembro de 2018, dia de São Cosme e São Damião, voltei 65 anos no tempo. Vejo-me na velha rua Capitão Machado, número 335, fundos, chegando das aulas do 4° ano primário, preparando-me para um dos dias mais doces da minha vida.
- “Hoje é dia de Cosme Damião! Largar os cadernos e correr pelas ruas!”.

Os adultos nos corrigem. São dois santos e não um como proferimos em nossa apressada dicção. Cosme e Damião eram irmãos gêmeos e muitos creem que foram médicos, canonizados pelo milagre que realizaram com o transplante da perna gangrenada de um sacristão. Nas religiões de matriz africana são sincretizados como entidades infantis, razão pela qual a distribuição de doces agrega valor afetivo e religioso ao dia 27 de setembro. Os doutores Cosme e Damião morreram 300 anos depois de Cristo, deixando um legado de bondade e dedicação aos mais necessitados.

Hoje não é dia de almoçar comida salgada, pois os doces nos saciarão a fome de crianças pobres, eternamente desejosas dos sabores da vida. 

Logo na chegada em casa, recebo meus doces, tal como acontece desde tenra infância, pois há uma crença de que doces ofertados para crianças caçulas têm maior força no cumprimento de promessas aos santos médicos. Tenho fornecedores de fé inabalável, que percorrem a vizinhança em busca de “seus” caçulas, na certeza de que somos intermediários poderosos na sua sincera devoção aos Santos das Crianças. Fico feliz em ser caçula nesse dia, mas não gosto de ser Amaro, quando a fila para vacina e injeção no posto de saúde da escola é chamada por ordem alfabética. Nessas horas, almejava ser Zoroastro, Vítor...

Entro em casa e vou logo procurar o saquinho de doces da dona Marlene, uma das mulheres mais ricas da rua. Sua casa destoa da simplicidade mediana das outras residências da vizinhança. Nenhuma pessoa que não fosse de sua família entrara naquela casa de fachada bonita, com a inscrição “Lar de Marlene 1933”. Seu marido sai cedo, volta tarde da noite e ninguém sabe onde trabalha. Seus três filhos estudam “lá pra baixo”, no rumo do centro da cidade, cujas escolas ninguém conhece na rua. Eles têm uma das poucas geladeiras entre os moradores da rua, cujo gelo só pode ser pedido pelos mais pobres depois da extração de dentes. Certa vez, minha tia Iracy extraiu um dente e eu pude, pela primeira vez, experimentar uma limonada com pedras de gelo, graças à piedade de dona Marlene.

Entretanto, é no dia de “Cosme Damião” que sou celebridade na minha casa. Tenho o privilégio de receber os doces personalizados e endereçados aos caçulas. Que capricho! Que qualidade! Parece que os doces de dona Marlene vêm de outro planeta. Bem embalados, cheirosos, saborosos, doces demais. Na santa ignorância da infância eu não compreendia que os doces eram sinceros pagamentos adiantados ou atrasados de promessas aos Santos Gêmeos.

Os devotos mais pobres ofereciam doces mais modestos, muito longe dos padrões de dona Marlene, sendo o mais rejeitado um insosso e sem sabor, derivado de milho, que a criançada apelidava de “cocô de rato”.

O dia 27 de setembro sempre foi especial no imaginário infantil daquelas épocas. Os bairros de subúrbio ficavam entregues às crianças e a seus devaneios em busca dos doces, que se amontoavam em pilhas nas casas dos mais ativos e vigorosos. Embora poucos e de pequena gravidade, aconteciam acidentes com os meninos e meninas, que soltos nas ruas, desconheciam os perigos do trânsito do bairro. 

E como tudo é irreverência na cultura carioca, preparávamos uma armadilha para os incautos.

Sempre havia filas diante dos portões das casas onde ocorria a distribuição de doces e, depois de sua coleta, saíamos anunciando e apontando o rumo da fartura: “Ali está dando!”. E a turba dos pequeninos rumava para lá em desabalada correria.

Mas, nem sempre a notícia era verdadeira. Esperávamos juntar um bom número de coleguinhas e apontávamos para o outro quarteirão além da esquina e gritávamos:
-“Ali está dando!!”.

E quando a turba dos pequenos chegava, correndo, na curva da esquina, completávamos o verso:
- Cocô de rato, vai levando!!”

Em seguida, fugíamos para o doce abrigo de nossas casas. 

Que São Cosme e São Damião nos perdoem.


                                                                              (*) Sanitarista aposentado, fotógrafo de Natureza.

9 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Quem se esquece da prenda no Dia de São Cosme e São Damião, ofertada por pessoas caridosas ou por simples pagadores de promessas?
O Blog de São João del-Rei prestigia a crônica carioca, acolhendo o texto em que o colaborador AMARO LUIZ ALVES relembra fatos de sua infância no dia 27 de setembro através de narrativa encantadora, leve, quase folclórica, intitulada Os Doces Encantos da Fé.

SOBRE O AUTOR
http://saojoaodel-rei.blogspot.com/2017/12/colaborador-amaro-luiz-alves.html

TEXTO
http://saojoaodel-rei.blogspot.com/2018/09/os-doces-encantos-da-fe.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Eudóxia de Barros (insigne pianista, concertista e membro da Academia Brasileira de Música) disse...

Obrigada e parabéns!
Eudóxia

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Muito interessante! Lemos com grande interesse o artigo de autoria de seu colaborador, Amaro Luiz Alves. O tema nos remete à nossa infância, quando muito mais do que a “veneração” ao santo (que ele nos perdoe!!!!), era o quanto de balas e doces poderíamos ganhar, naquele “dia tão doce e especial”.

Agradecemos pelo envio.

Abraços, dos amigos Mario e Beth.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga!
Grato pelo saboroso texto, com perdão do trocadilho. Também na minha primeira infância, sem imaginar o que seria essa linda tradição do sincretismo brasileiro, estava ansioso por provar uma panelinha de canjica oferecida no portão de casa por um menino negro de pés descalços, mandada pelo "Seu Silvestre" , de um "Terreiro" vizinho, cujo batuque semanal embalava,protetor, minhas noites de medo do escuro. Mas, para meu profundo dissabor e decepção, a minha mãe, também desconhecedora do sentido de tão estranha prenda para mim, temerosa de "bruxedo", mandou depois eu mesmo jogar todo o conteúdo da guloseima para o galinheiro. Rio-me toda vez que vejo ou como canjica. E vivam São Cosme e Damião!
Abraço,
Cupertino

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (professor universitário, escritor, poeta e membro da Academia Divinopolitana de Letras, onde é Presidente) disse...

Prezado confrade e amigo Braga, paz e bem. Agradeço o envio da deliciosa ( em ambos os sentidos) crônica. Saudação amiga para você e esposa. Fernando Teixeira

Paulo Roberto Sousa Lima (escritor, gestor cultural e presidente eleito do IHG de São João del-Rei para o triênio 2018-2020) disse...

Obrigado pelo envio.

Danilo Carlos Gomes (cronista, escritor e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal e da Academia Brasiliense de Letras) disse...

Mestre Braga, muito boa a crônica do Amaro Luiz Alves sobre sua infância e as lembranças do Dia de São Cosme e Damião ("São Cosme Damião"...).Não tenho nenhuma lembrança dessa efeméride lá em Mariana, MG, no meu tempo de menino. Lembro-me muito de sinos, igrejas, procissões, bandas de música, brigas políticas ( PSD x UDN, nós éramos pessedistas e juscelinistas), Carnaval, Semana Santa, Noites de São João. Obrigado. Abraço do Danilo Gomes.

Vamireh Chacon Albuquerque (professor universitário e autor de Os Partidos Brasileiros no Fim do Século XX) disse...

Sempre lembrado das Minas e das Gerais prossigo acompanhando vocês.