quarta-feira, 24 de abril de 2019

NÓS TAMBÉM TEMOS HERÓIS


Por Maria Tereza Mendes



Quando uma amiga francesa me disse que tinha visto uma placa alusiva à participação dos brasileiros na Primeira Guerra Mundial no jardim do Hôpital de Vaugirard em Paris, franzi a testa e a corrigi com um sorriso condescendente: “Segunda Guerra”. Ela me sorriu de volta: “Não, Primeira. Me lembro de ter visto as datas 1914-1918. Tenho certeza.” 

Oi??!!! Como assim? Nós não participamos da Primeira Guerra Mundial!!! Ou participamos?? Vasculhei todos os cantos da minha memória procurando uma referência sobre isso e não encontrei nenhuma. Só encontrei o sorriso dela de certeza absoluta. Constrangida com minha ignorância, me fingi de morta mas registrei mentalmente que ia checar aquela informação. 

Foi assim que desci na estação de metrô Convention (linha 12) e fui caminhando pela rue Vaugirad em direção à Porte de Versailles. Cinco minutos de caminhada e cheguei ao Jardim do Hôpital de Vaugirard. O lugar é um pequeno oásis verde com uma longa alameda ladeada por gramados verdinhos, muitos bancos e árvores. Flanei pelo lugar à procura da placa e depois de alguns minutos eu a encontrei. Sim, lá estava ela. Meu francês é bem meia-boca mas deu pra entender o que estava escrito: “Aqui se ergueu o hospital franco-brasileiro dos feridos de guerra criado e mantido pela colônia brasileira de Paris como contribuição na causa aliada (1914-1918). Placa inaugurada por ocasião do 80° aniversário da presença da Missão Médica Especial Brasileira.” 

Gelei. Uma Missão Médica Brasileira na França na Primeira Guerra Mundial? Como eu nunca ouvi falar sobre isso?!!!! Como é que eu conheço toda a história do American Field Service, uma organização voluntária de norte-americanos para tratar os feridos durante a Primeira Guerra e nunca sequer ouvi falar de uma Missão Médica do meu próprio país???!!!! Imperdoável!!! Com a ajuda do meu incansável amigo Google, sentei em um dos bancos e pesquisei sobre o assunto. Descobri uma história fantástica de coragem, sacrifício e competência quando um navio brasileiro (La Plata) saiu do porto do Rio de Janeiro em 1918, iniciando uma viagem que seria, difícil, perigosa e trágica. 

O perigo rondava os mares com a presença dos famigerados U-boats alemães, submarinos de alta tecnologia que afundavam qualquer barco (política da Guerra Submarina Irrestrita) militar, mercante ou de passageiros, mesmo de países neutros. Inicialmente neutro, o Brasil só se declarou em estado de guerra em outubro de 1917 posicionando-se com os Aliados (EUA, França, Grã-Bretanha) por ter tido vários navios mercantes civis brasileiros afundados pelos alemães. Sem uma marinha ou exército preparado para conflitos da envergadura de potências belicosas como Alemanha, Rússia, EUA e Grã-Bretanha, a ajuda do Brasil para o esforço de guerra foi muito mais voltada à causa humanitária. É aí que entra a Missão Médica Militar Brasileira (MMMB). O La Plata levava a bordo 168 brasileiros entre médicos, cirurgiões, enfermeiros e farmacêuticos voluntariados para a missão, além de alguns oficiais da marinha e exército, cujo objetivo era chegar a Marsellha e de lá seguir para Paris para instalar e operar um hospital com capacidade para 500 leitos para cuidar dos feridos da guerra. 

Os franceses cederam o belo prédio de um antigo convento jesuíta na rue Vaugirard e o hospital brasileiro foi instalado ali recebendo principalmente soldados franceses classificados como “grandes feridos”. Quando a Guerra terminou no final de 1918, o hospital, considerado pelos franceses como de ponta, ainda funcionou até 1919 atendendo a população civil francesa que ainda lutava contra a pandemia da gripe espanhola que varreu a Europa naquele ano. Com a desmobilização do hospital militar, alguns médicos foram convidados a permanecer na França, mas a maioria retornou ao Brasil. 

Os franceses jamais se esqueceram desse ato fraterno dos brasileiros e ali estava eu diante da prova, em frente àquela placa. Fiquei envergonhada por desconhecer essa história, que é muito mais emocionante do que vcs possam imaginar. Fiquei pensando: Pq não nos falam sobre isso na escola? Pq escondem de nós os nossos heróis? Pq nos autodenominamos “terra do samba e futebol” quando somos tão mais que isso? 

Estou escrevendo esse post por duas razões: a primeira é para mostrar como os franceses são gratos por nossa ajuda; a segunda é para desafiar vc a ir além da nossa mediocridade escolar. Se estiver em Paris, visite o Jardin Hôpital Vaugirard (metrô Convention), mas antes, para dar significado à sua visita, conheça essa história em detalhes em http://www.revistanavigator.com.br/navig20/art/N20_art2.pdf e também no livro “O Brasil na Primeira Guerra” de Carlos Darós (ed. Contexto). 

Sim, nós também temos nossos heróis... e não são aqueles q jogam bola ou participam de reality shows.




A imagem pode conter: árvore, grama, atividades ao ar livre e natureza

Esse depoimento foi publicado na página da Rede Social – Facebook da Maria Tereza Mendes em 19/05/2018.



CRÉDITO  PELO  ENVIO  DA  MATÉRIA


Agradeço ao Dr. Mário Pellegrini Cupello, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto, de Valença-RJ, pelo envio da presente matéria com a sugestão de publicação no Blog de São João del-Rei, que imediatamente acolhi, em razão de ser uma página que valoriza os heróis anônimos do Brasil, que são tantos, e trazer o fato histórico às lentes do pesquisadores e historiadores que se interessam pelo assunto.

10 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Dr. Mário Pellegrini Cupello, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto-ICVRP, de Valença-RJ, enviou-me o artigo de MARIA TEREZA MENDES, intitulado NÓS TAMBÉM TEMOS HERÓIS, com sugestão de publicação no Blog de São João del-Rei, o que faço com um grande orgulho dos protagonistas da importante missão humanitária brasileira relatada pela autora.
Ao tomar conhecimento do conteúdo, não hesitei em agradar ao meu amigo em razão do exemplo de civismo e de sentimento humanitário que alguns heróis anônimos do Brasil nos dão, sem pensarem no reconhecimento público ou da História.
Gostaria também de agradecer à autora pelo belo registro no seu Facebook em 19/05/2018.

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Pe. Sáulo José Alves (escritor, autor do livro STABAT MATER: Setenário das Dores de Maria Santíssima, Poema, Sermões e Reflexões e membro da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Prezado Confrade Francisco Braga!

Fantástico a notícia do artigo "NÓS TAMBÉM TEMOS HERÓIS".
Parabéns e obrigado.
Pe. Sáulo

Eudóxia de Barros (insigne pianista, concertista e membro da Academia Brasileira de Música) disse...

🙏🙏🙏👍

Francisco de Oliveira (historiador e pesquisador barbacenense) disse...

Xará, muito interessante o artigo sobre a participação de equipe médica brasileira na 1ª guerra. Estou enviando uma reportagem do ESTADO DE MINAS sobre a participação de médicos mineiros naquela equipe.
Um grande abraço, Francisco.

Jota Dangelo (diretor, ator, dramaturgo e gestor cultural, cronista e escritor) disse...

Impressionante o relato de Maria Cristina Mendes. Uma revelação de fatos que pouca gente conhecia. Eu ignorava completamente! Dangelo

Paulo Roberto Sousa Lima (escritor, gestor cultural e presidente eleito do IHG de São João del-Rei para o triênio 2018-2020) disse...

Parabéns pela reprodução de texto com matéria tão inusitada. Me relembrou o papel do Guimarães Rosa na cobertura legal para a fuga de judeus para o Brasil e América do Sul, na II Guerra Mundial. Sim, temos heróis reconhecidos mundialmente em outros campos que futebol, carnaval/bossa nova e gastronomia. Se voltar a Paris, visitarei o local.
Abraços,
Paulo Sousa Lima

Edu Oliveira (ex-salesiano são-joanense e organizador de encontros salesianos) disse...

Amigo Francisco

O tempora! O mores!

Com Dom Bosco sempre

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga
Muita gente também desconhece(ia) a participação do Brasil de forma tão generosa naquele tristemente célebre conflito. Interessante a forma com que a Sra. Maria Tereza reagiu à descoberta, ainda mais pelo inesperado local do honroso registro. Excelente publicação! Certamente temos e continuaremos tendo heróis e heroínas; a grande maioria anônimos(as).
Grato
Cupertino

Adalberto Guimarães Menezes (Ten Cel, tetraneto do Tiradentes, historiador, membro do IHG-MG, sócio correspondente do IHG de São João del-Rei, autor do livro Parque Histórico Nacional Tiradentes e do opúsculo Comenda da Liberdade e Cidadania) disse...

Caro amigo Francisco Braga.

Recebo com muita satisfação suas correspondências eletrônicas versando sobre variados assuntos, todos de interesse do Brasil, e sempre carregadas de civismo e patriotismo. Procuro aproveitar seus ensinamentos copiando o que é de maior interesse para todos nós, e coloco em cartazes no Círculo Militar de BH, especialmente em uma portaria utilizada pela juventude do Colégio Bernoulli, que em nossa área faz exercícios físicos.

A sua última comunicação sobre a missão médica do Brasil na França, por ocasião da Primeira Guerra Mundial, me trouxe importantes ensinamentos. Eu tinha conhecimento da referida missão, mas não da sua importância e do que representou para os combatentes franceses, e ao mesmo tempo mostrando a imagem do Brasil naquelas plagas. Muito bem escrito o artigo de Maria Tereza Mendes, não só pela riqueza de detalhes como o português correto e elegante que ela mostrou. Vou tirar dele os dados que praticamente ninguém conhece, e colocar com destaque nos Círculo Militar de BH, e também encaminharei para os associados do IHG-MG.

Muito obrigado,

e continue alimentando o meu intelecto com sua grande cultura. Devo acrescentar que nas informações hauridas em suas comunicações não deixo de citar seu nome. Peço recomendar-me à sua distinta esposa Rute, brilhante cantora.

Abraços de Adalberto G Menezes

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Adendo do CBG (na Carta Mensal nº 156 de set/out 2020):

Trecho de “A Missão Médica Especial Brasileira de caráter militar na Primeira Guerra Mundial”
Por Carlos Edson Martins da Silva, Contra-Almirante (RM1-Md). Chefe da Seção de Medicina de Combate da Academia Brasileira de Medicina Militar.

Extraído de artigo contido no vol. 10, nº 20 / 2014 da revista Navigator, publicação da Diretoria de Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha, cujo link está indicado nesta página, logo acima.

Integravam a Missão 86 médicos aos quais, posteriormente, somou-se um grupo de seis médicos que já estavam em solo francês, atuando no Hospital Franco-Brasileiro mantido pela colônia brasileira em Paris, totalizando assim em 92 o contingente de médicos da Missão. Deste grupo 11 médicos eram militares de carreira e os demais civis comissionados militares com patentes que variavam de coronel a 2° tenente. Além dos médicos, integravam a missão 17 acadêmicos de medicina e 16 membros, entre farmacêuticos, pessoal de intendência, de secretaria e contínuos. O contingente da Marinha era de 6 médicos e 2 farmacêuticos e o do Exército de 5 médicos, 1 farmacêutico e 2 intendentes além de 1 sargento e 30 praças indicados para constituir a guarda do futuro Hospital Brasileiro. O total foi de 131 componentes. Quinze médicos viajaram acompanhados de suas esposas, que atuariam como enfermeiras de campanha.

No artigo, somos informados de alguns integrantes da Missão portadores de sobrenomes conhecidos, entre eles: Dr. Mário Kroeff, então 1º tenente médico do Corpo de Saúde da Marinha, futuro pioneiro da oncologia no Brasil e primeiro diretor do Instituto Nacional de Câncer; o deputado, comissionado com a patente de coronel, Dr. José Tomaz Nabuco Gouvêa, Chefe da Missão, cirurgião, professor de Ginecologia e diretor do Hospital da Gamboa no Rio de Janeiro; General Napoleão Felippe Aché, comandante da Missão junto ao comando aliado; Prof. Benedicto Montenegro, um dos criadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP.

O Hospital esteve ativo até o fim de 2019. Depois de reintegrado à Universidade de Paris, muitas enfermarias do hospital receberam o nome de médicos brasileiros integrantes da Missão, além de vários terem sido agraciados a Comenda da Legião de Honra e com o Título de Oficial da Instrução Pública da França.

Link: http://cbg.org.br/cartamensal/156/