Este artigo apareceu originalmente nas páginas 53-59 da antologia "O que a vida quer da gente é coragem", obra comemorativa pelo 110º aniversário de João Guimarães Rosa em Cordisburgo-MG e patrocinada pela Academia Itaunense de Letras-AILE, em 2018
Em 1957, Guimarães Rosa candidatou-se pela primeira vez a imortal da Academia Brasileira de Letras - ABL e obteve apenas 10 votos. Observe-se que Guimarães Rosa já era autor consagrado em 1957, tendo até então lançado os seguintes grandes livros de contos: “Sagarana” (1946) e “Corpo de Baile”, além do romance “Grande Sertão: Veredas” (1956). Em decorrência deste último, Guimarães Rosa recebeu nesse mesmo ano os seguintes prêmios: "Machado de Assis", "Carmem Dolores Barbosa" e "Paula Brito". Em 1961, recebeu da ABL, pelo conjunto da obra, o prêmio "Machado de Assis".
Em 1962, Guimarães Rosa lançou “Primeiras Histórias” e, em maio de 1963, candidatou-se pela segunda vez a membro da Academia Brasileira de Letras - ABL, na vaga deixada por João Neves da Fontoura. A eleição deu-se a 8 de agosto e desta vez Guimarães Rosa foi eleito por unanimidade. Temendo ser tomado por forte emoção, protelou o quanto pôde a cerimônia de posse por quatro anos. Costumava dizer que, empossado, morreria em seguida.
Quando finalmente decidiu tomar posse na Academia Brasileira de Letras - ABL, ocorrida na noite de 16 de novembro de 1967, foi recebido por Afonso Arinos de Melo Franco. Em seu discurso, Guimarães Rosa afirmou, como se prenunciasse a própria morte: “… a gente morre é para provar que viveu.”
Quando se ouve a gravação do discurso de Guimarães Rosa, nota-se, claramente, ao seu final, sua voz embargada pela emoção: é como se chorasse por dentro. É possível que o novo acadêmico tivesse plena consciência de que chegara sua hora e sua vez. Com efeito, três dias após a posse, em 19 de novembro, ele morria subitamente em seu apartamento em Copacabana, sozinho (a esposa fora à missa naquele domingo), mal tendo tempo de chamar por socorro. Assim desapareceu Guimarães Rosa prematuramente aos 59 anos de idade, vítima de enfarte fulminante, no ápice de sua carreira literária. No ocaso daquele 19 de novembro, Guimarães Rosa ficou para sempre encantado, tornou-se um mito, talvez o mais duradouro da literatura brasileira.
Aproveitando a deixa que o próprio Guimarães Rosa nos forneceu nesse seu derradeiro discurso e, ao folhear seus vários livros, me deparei com uma miríade de ditos que evidenciam a sua posição diante do viver e do morrer. Eis alguns colhidos aleatoriamente: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”, “Viver é perigoso”, “Viver é sempre obrigação imediata”, “A colheita é comum, mas o capinar é sozinho”, “Na vida, o que aprendemos mesmo é a sempre fazer maiores perguntas”, “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”, “Viver… o senhor já sabe: Viver é etecetera”, “Vida é sorte perigosa passada na obrigação: toda a noite é rio-abaixo, todo dia é escuridão”, “Viver é um descuido prosseguido”, “O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda parte.”, “A morte de cada um já está em edital.”, “Tempo é a vida da morte: imperfeição”, “Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar — é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então a gente não tem licença de coisa nenhuma!”, “Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem — que Ele é bondade adiante, quero dizer” e muitos outros motivos de reflexão sobre a nossa passagem/páscoa por este mundão de Deus e a nossa despedida de nossa condição humana.
Os contos, novelas e romances rosianos estão situados espacialmente no que se poderia chamar, em sentido amplo, de sertão. Suas narrativas transcorrem nos campos gerais, ou mais simplesmente, nos gerais (cujo espaço geográfico Guimarães Rosa situava no Oeste e Noroeste de Minas Gerais, estendendo-se pelo Oeste da Bahia, e Goiás, até ao Piauí e ao Maranhão), caracterizados pelas chapadas e pelos chapadões, bem como pela vegetação do cerrado. Essas informações sobre o interior do Brasil, onde se passa a ação em “Corpo de Baile”, Guimarães Rosa transmite em carta a seu tradutor para o italiano, Edoardo Bizzarri.
A sua obra se distingue pelas inovações de linguagem, profundamente identificada com os falares populares e regionais, que, plasmados pela erudição do autor, lhe permitiam criar inúmeros vocábulos a partir de arcaísmos, bem como neologismos e onomatopeias a partir do realismo mágico, regionalismo e invenções e intervenções semânticas e sintáticas, que empregava com maestria.
Há uma crônica muito curiosa de Rubem Alves, intitulada “Sobre o morrer”, publicada em 18 de outubro de 2011, que diz, entre outras coisas, que, apesar de a morte ser o destino de todos nós, a ideia de morte repentina não o atraía, porque ele precisava de tempo para escrever o seu último haikai, capaz de sintetizar “o esforço supremo para dizer a beleza simples da vida que se vai”. Nessa célebre crônica comentou que, diante da proximidade da Morte, iria repensar seus valores e listou alguns discípulos da mesma mestra (a Morte), cuja convivência não dispensaria: primeiro “Mallarmé que tinha o sonho de escrever um livro com uma palavra só”; depois, os poetas em geral e, por fim, apenas três prosadores, intelectuais de nomeada: um alemão, um francês e um brasileiro, como aprendizes da mesma mestra, a Morte. Atentemos para as suas próprias palavras: “A Morte me informa sobre o que realmente importa. Me daria ao luxo de escolher as pessoas com quem conversar. E poderia ficar em silêncio, se o desejasse. Perante a morte tudo é desculpável... Creio que não mais leria prosa. Com algumas exceções: Nietzsche, Camus, Guimarães Rosa. Todos eles foram aprendizes da mesma mestra. É certo que não perderia um segundo com filosofia. E me dedicaria à poesia com uma volúpia que até hoje não me permiti. Porque a poesia pertence ao clima de verdade e encanto que a Morte instaura. E ouviria mais Bach e Beethoven. Além de usar meu tempo no prazer de cuidar do meu jardim...”
Por que Rubem Alves, entre tantos representantes da boa técnica literária brasileira, escolheu apenas Guimarães Rosa entre os prosadores? Na impossibilidade de sabermos dele próprio o motivo dessa eleição, aventuro-me a responder que o que era ponderável para Rubem Alves é que a universalidade da obra de Guimarães Rosa se deva a uma série de fatores, que vão desde o plano de expressão, nas mãos de Guimarães Rosa, impregnando seu texto de conotações, de realismo fantástico e de uma multiplicidade de dimensões, até a metalinguagem, o que torna o relato pleno de significados e passível de diversas interpretações. As técnicas empregadas são multidimensionais, deixando transparecer várias camadas sobrepostas. Tudo isso está muito próximo à proposta poética.
Resta ainda acrescentar que a ação poética da obra de Guimarães Rosa baseia-se na oralidade. Guimarães Rosa faz seu relato vincular-se à preservação intencional do verbo ancestral. Sua prosa poética funda suas raízes na música intuída e praticada pelos poetas-cantadores do sertão.
Consideremos o conto “Cara-de-Bronze” (do livro “Corpo de Baile”), o múltiplo relato de um velho e rico fazendeiro enfermo, que vive fechado em sua propriedade, rodeado de vaqueiros. Sozinho, perto da morte, pede a seu mais fiel vaqueiro, chamado Grivo, — poeta-cantador, dotado das virtudes de humildade, simplicidade e pureza de espírito, — que vá procurar, numa longa viagem, a essência da vida, “o quem das coisas”.
A escolha recai sobre aquele que tem as virtudes da criança e que está incumbido de trazer a aurora à noite de seu senhor, mediante apenas o relato do que viu e ouviu (aprendeu) na sua longa jornada. Valendo-se de secreto poder, o menestrel, um descompromissado com as coisas que atam o homem ao interesse, adivinha-lhes a beleza. É tudo o que Cara-de-Bronze desejava ouvir. Guimarães Rosa desloca assim a narrativa do “Cara-de-Bronze” para uma dimensão mitopoética.
Cara-de-Bronze sente solidão devido à proximidade do termo de sua vida terrena. É plausível imaginar Grivo (ou o mitológico Grifo?) assumindo o papel de facilitador da passagem do velho fazendeiro para o além, munido de seu poder de mediador ou médium. Entre os dois se estabelece enorme empatia; a aproximação do termo da vida favorece a identificação daquele que parte, com o rapsodo que viaja em busca da sabedoria do poético. A apologia da poesia faz Guimarães Rosa antepor à abertura do conto o seguinte terceiro poema (paratexto) pleno de metáforas e metonímias evidentes:
Reza a mitologia grega que havia um deus velho mas imortal, Caronte (Grivo), encarregado de transportar em uma barca estreita, para além dos rios infernais do Hades, — Estige e Aqueronte, — as sombras ou almas dos mortos (Cara-de-Bronze), cujos corpos tivessem recebido sepultura, mediante o pagamento de um óbolo. Em vida ninguém penetrava na barca de Caronte, a não ser que tivesse, como Eneias, por salvo-conduto um ramo de ouro, — mimo da Sibila de Cumes quando ele quis descer aos Infernos, — colhido na árvore sagrada de Core ou Perséfone.
Teria Guimarães Rosa pensado em Caronte quando moldou o seu personagem Grivo no seu conto “Cara-de-Bronze” ou teria ele acessado no arquivo do inconsciente coletivo o arquétipo compartilhado por toda a humanidade, como queria Carl Gustav Jung?
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16 comentários:
Em 2018, participei como articulista de uma antologia intitulada "O que a vida quer da gente é coragem" (p. 53-59) patrocinada pela Academia Itaunense de Letras-AILE em comemoração aos 110 anos do nascimento de João Guimarães Rosa, natural de Cordisburgo-MG.
Para isso, remodelei um discurso que tinha pronunciado quando de minha posse na Academia Formiguense de Letras em outubro de 2014, o qual publiquei no Blog do Braga na mesma ocasião, fazendo alguns acréscimos.
Aqui segue meu artigo de 2018 para sua apreciação.
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2020/10/o-viver-e-o-morrer-na-obra-de-guimaraes.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Nobre Confrade Braga,
Estes registros são riquíssimos. Na memória atual e para a posteridade. Parabéns! Saudades de vocês!
Att.,
Paulo José (Pajo)
Agradeço o envio, caro Braga. Já havia lido o artigo na antologia da Academia Itaunense de Letras. Cumprimento-o pelo texto e, particularmente, pelo tema focado. Fernando Teixeira. Laus Deo.
Obrigado,
Fantástico!
Oi, Braga:
Parabéns.
Belíssimo texto.
Tomo a liberdade de encaminhá-lo ao Gerson Valle, libretista da ópera Olga e autor de minha biografia, apreciador dos grandes feitos literários como é o caso desse seu artigo.
Abraço,
Jorge Antunes
Grande Rosa!
Caro professor Braga.
Parabéns por essa abordagem do sentido da obra - e mesmo da vida - de Guimarães Rosa, que chama a atenção para a riqueza das alternativas literárias exploradas pelo genial escritor.
Grato.
Cupertino
Parabéns pelas ricas informações bem como pelas criações. Belíssimas.
Caro Francisco, acabei de ler, de supetão porque não consegui parar, seu lindo escrito sobre o Viver e o Morrer em GR. Sabe que sou encantado com ele, não sabe? Faço dele leitura contínua, mesclada com aquela de Machado de Assis. Pois bem: apreciei muito seu trabalho, que comporá minha biblioteca roseana. E vou enviar seu escrito para outros leitores, maiores e menores apreciadores do grande mineiro.
Obrigado, Francisco, por ter iluminado mais minha noite de leitura.
Um abraço.
Querido,
Que morte triste a de Guimarães Rosa, né?
Parabéns, meu querido, por esse belíssimo artigo, carregado de sentimento e emoções!
Obrigada, meu doce, por me enviá-lo.
Acho este um de seus mais belos trabalhos.
Um beijo.
Caro amigo Braga
Mais uma vez lhes felicitamos por exaltar – com a maestria de sempre – a memória histórica das grandes personalidades brasileiras que nos deixaram preciosos legados.
Este é o caso de Guimarães Rosa, um entre os mais notáveis escritores brasileiros, tendo feito parte da terceira geração dos modernistas, além de ter seguido a carreira diplomática e se formado em medicina.
Tivemos oportunidade de visitar a casa onde ele nasceu, hoje um pequeno museu em Cordisburgo, aonde retornava quase sempre para atender em seu pequeno consultório, no interior da casa. Visitamos, também, o antigo e reconstituído “armazém” de seu pai, contíguo à casa.
Em relação ao seu discurso de posse na Academia Formiguence de Letras, em 2014: uma excelência literária! Parabéns!
Agradecemos pelo envio.
Abraços de Mario e Beth.
Nossa, confrade Braga, como a matéria da sua mensagem ficou atual com o falecimento dos nossos amigos Mario Celso Rios e agora Agostinho Guimarães.
Receba um fraterno e triste abraço.
Paulo Sousa Lima
Grato. Abrs.
Caro Francisco,
Gratidão pela remessa do link anexo
Pe. Sílvio
Meu prezado amigo FJSBraga,
já ouvi, já li, tantos escritos do Rosa.
No que você me enviou fiquei extasiado. Lindo.
Meus parabéns.
Seu amigo de sempre,
Lùcio Flávio.
Olá preclaro colega de magistério na FGV.
Há mto esperava de vc um depoimento sobre Guimarães Rosa. Por ser literato e agraciado de Euterpe por um lado e por ser mineiro de outro. Gostei muito, prossiga. Há um mar a ser navegado nesse sertão roseano q é dentro da gente.
Abçs
Celeste
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