terça-feira, 19 de março de 2024

ETHELINE ROSAS, a “conservadora de arte moderna” (1924-2012)


Por SÉRGIO C. ANDRADE *
 
O gerente do Blog dedica este artigo ao Acadêmico António Valdemar que lhe sugeriu a publicação feita pelo jornal PÚBLICO de 19/03/2024, Ano XXXIV, nº 12.273, pp. 28-29.

 

Etheline com o marido José  António Rosas - Cortesia: Jorge Rosas


Não será fácil encontrar a palavra que melhor defina quem verdadeiramente foi Etheline Rosas, a brasileira nascida em São Paulo, faz hoje cem anos, que no início dos anos 1960 se radicou no Porto, e aí haveria de desempenhar um papel crucial, ao lado de Fernando Pernes (1936-2010), no projecto que viria a resultar no Museu de Arte Contemporânea de Serralves (MACS). 
 
Conservadora, coleccionadora, galerista, museóloga, curadora, especialista em arte moderna? 
 
Tendo em conta que alguns destes conceitos nem sequer existiam nos anos em que a jovem Etheline começou a trabalhar, como simples funcionária, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, fundado em 1946 pelo industrial e coleccionador brasileiro Francisco Matarazzo Sobrinho (também conhecido como “Ciccilio” Matarazzo) e da sua mulher Yolanda Penteado, talvez a definição mais ajustada seja a avançada pela investigadora portuguesa Sofia Ponte: “Conservadora de arte moderna”. 
 
Na aparente contradição da expressão estará a síntese feliz para retratar o que foi o trabalho tão inovador quanto discreto desta brasileira que, no Porto, foi “a mais proeminente mulher a contribuir para o desenvolvimento inicial da rede internacional da arte contemporânea”, escreve Sofia Ponte no capítulo que dedica a Etheline Rosas no livro recém-publicado em Londres, Women Art Dealers — Creating Markets for Modern Art, 1940-1990
 
Women Art Dealers - Creating Markets for Modern Art, 1940-1990

 
Nesta edição com a chancela Bloomsbury, a brasileira é uma entre 17 mulheres que marcaram os caminhos da arte naquela metade do século XX. Entre elas, encontrando-se coleccionadoras como a americana Peggy Guggenheim ou a italiana Mara Coccia; e galeristas como a americana Bertha Schaefer ou a peruana Simone Rachel Kahn, que em França se tornou depois Simone Breton, mulher do fundador do surrealismo. 
 
Sofia Ponte, investigadora no IADE — Universidade Europeia, em Lisboa, traça nesse livro a biografia de Etheline Rosas (1924-2012), explicando as suas dimensões de “conservadora de arte moderna”, mas também “art dealer” e “museóloga”, realçando o seu contributo para as várias instituições e projectos a que se associou. 
 
Nascida na capital paulista a 19 de Março de 1924, filha de ucranianos emigrados para o Brasil no início do século, Etelvina Isaac Chamis (que, após o casamento, passaria a Etheline Rosas) entrou no mundo da arte moderna quando, com pouco mais de vinte anos, começou a trabalhar no referido Museu de Arte Moderna. 
 
Ao lado do actor David Niven e do coleccionador "Ciccilio" Matarazzo, na V Bienal de São Paulo
 
Em 1949, participa na montagem da primeira exposição oficial do MAM-São Paulo, Do Figurativismo ao Abstraccionismo. A abrir a década seguinte, acompanha o lançamento da bienal de arte paulista, cuidando ao longo de uma década do secretariado, inventário, catalogação e empréstimos, tarefas que lhe dão um conhecimento seguro do meio, mas também de “várias personalidades ligadas à modernidade progressista brasileira”, escreve igualmente Sofia Ponte no artigo para o dicionário Quem É Quem na Museologia Portuguesa (Instituto de História da Arte, Universidade Nova de Lisboa, 2019). Destas relações, a investigadora destaca a colaboração com o crítico Mário Pedrosa, e a coordenação das bienais de 1961 e 1963.
 
 
Encontro na Ilha Bela 
 
Por esta altura, Etheline tinha-se já cruzado com o portuense José António Rosas (1919-1996), empresário da Casa Ramos Pinto, que então se ocupava do comércio do vinho do Porto no Brasil, e com quem viria a casar em 1964. O filho de ambos, Jorge Rosas, conta ao PÚBLICO as circunstâncias desse encontro: “Numa das idas do meu pai ao Brasil, ele decidiu ir passar um fim-de-semana de barco à Ilhabela, no litoral do Estado de São Paulo, e, numa noite em que houve um baile a bordo, o comandante do navio apresentou-os: dançaram ‘no maior respeito’, como então era de bom-tom, mas a química aconteceu ali.” No dia seguinte, voltaram a encontrar-se, por mero acaso, numa padaria junto ao hotel e ficaram depois a namorar-se apaixonadamente por carta — “era o WhatsApp da altura”, diz Jorge, entre risos.
 
Etheline recebeu, entretanto, uma bolsa para visitar vários museus nos Estados Unidos e na Europa, e foi numa dessas viagens que ambos se reencontraram, e casaram na Suíça em 1964, explica o descendente e actual CEO da Ramos Pinto. 
 
Para o Porto, Etheline Rosas traria não apenas a sua colecção pessoal de arte como a experiência e uma carteira de contactos que a ajudaram a manter a relação com os meios artísticos desse tempo. 
 
“Era uma mulher muitíssimo cosmopolita, como o era também José António Rosas, ambos extremamente viajados”, nota Sofia Ponte em declaração ao PÚBLICO, lembrando, em contrapartida, os costumes conservadores da burguesia portuense onde ela veio parar.
 
O filho realça esse contraste: “O meu pai provinha de uma família muito conservadora; a minha mãe vinha do Novo Mundo, da arte moderna e contemporânea, que pouca gente tinha visto em Portugal”. E cita um episódio que exemplifica esse contraste: “Ela, uma brasileira ultramoderna, chegou ao Porto, à casa dos meus avós, que viviam na Avenida de Montevideu, frente ao mar, e ia para a praia com um biquíni que então já se usava no Brasil, mas ninguém conhecia cá! As minhas primas contaram-me que aquilo eram 30 a 40 homens a olhar para ela, porque era a primeira mulher a usar biquíni na praia da Foz!” 
 
Da Árvore à Mini Galeria 
 
No Porto, e apesar desse meio conservador, Etheline manteve-se activa no mundo da arte, nomeadamente apoiando a acção da recém-fundada Cooperativa Árvore a dar voz aos artistas jovens e independentes — e onde fez chegar figuras como o referido Mário Pedrosa. 
 
Em 1972, passa a dirigir a Mini Galeria, na zona da Boavista, propriedade de Fernando Luís van Zeller, também ligado ao vinho do Porto. No curto período de actividade desta galeria, que fecharia a seguir ao 25 de Abril de 1974 — lembra Sofia Ponte —, Etheline privilegiou artistas que se aventuravam na arte abstracta, e a edição em múltiplos, e deu espaço a jovens como Júlio Resende, Helena Almeida, Ângelo de Sousa, João Machado ou Zulmiro de Carvalho. 
 
Ao PÚBLICO, este escultor recorda ter mostrado nesse espaço, numa altura em que estudava em Londres, o projecto de uma escultura de dez elementos, que só muito recentemente viria a realizar (Ruptura, agora em exposição em Lisboa, na Galeria Quadrado Azul, até 16 de Abril). 
 
“Não a conheci na altura da Mini Galeria, mas tive depois contactos com ela, no Museu de Soares dos Reis, para o Centro de Arte Contemporânea [CAC], em que teve um papel primordial. Ela tinha uma visão muito avançada sobre o que devia ser feito, mas fazia-o sempre com uma delicadeza especial”, recorda Zulmiro de Carvalho. 
 
Foi no projecto do CAC que Etheline Rosas se associou a Fernando Pernes, e coube-lhe mesmo coordenar a montagem da exposição que deu o pontapé de saída do projecto, Levantamento da Arte do Século XX no Porto, em Julho de 1975, no Soares dos Reis. 
 
Desde essa altura, a dupla Pernes-Etheline não mais se desfez, e foi desse trabalho conjunto e porfiado que nasceu o projecto que levaria ao Museu de Serralves. “Nos papéis em que fui remexer para a minha investigação, encontrei evidências de que ela era uma parceira de facto de Pernes, não uma mera assistente”, nota Sofia Ponte. 
 
Em 1979, ambos integram a designada Comissão Organizadora do Museu Nacional de Arte Moderna do Porto, ao lado de Maria Emília Amaral Teixeira, então directora do Soares dos Reis, dos artistas Júlio Resende e Fernando de Azevedo e do crítico José-Augusto França. 
 
“No arquivo do Soares dos Reis, há um documento em que Maria Emília torna explícito que a direcção do projecto é tanto de Pernes quanto de Etheline”, acrescenta Sofia Ponte, lamentando que o nome dela seja normalmente pouco referido quando se fala de Serralves. 
 
“Etheline Rosas apoiou indiscutivelmente Fernando Pernes, assim como o fez com Mário Pedrosa, nas muitas tarefas e esforços que um director artístico tem em mãos. Mas insistir em que o seu papel foi secundário é bastante tendencioso”, escreve a investigadora no artigo de Women Art Dealers, acrescentando que a análise dos documentos e os testemunhos de amigos e familiares mostram que Etheline era “uma conservadora de arte implacável, uma negociante de arte convincente e uma museóloga consistente”. 
 
Uma caracterização confirmada por Luís Valente de Oliveira, que com ela colaborou no processo que deu origem à Fundação de Serralves e posteriormente ao MACS. “Privei de muito perto com o casal Rosas; a Etheline era uma senhora de uma cultura artística muito sólida; entusiasmava-se por tudo aquilo que fazia, e foi muito importante, no Porto, para expandir o gosto pela arte moderna”. Sem esquecer o papel “fundamental e o rigor profissional notável” de Pernes, o ex-administrador de Serralves realça que a sua colaboradora “trazia concepções novas para o Porto, trazia aqueles contactos todos da sua experiência na Bienal de São Paulo; além das suas imensas qualidades pessoais: o entusiasmo, a aplicação, um espírito muito ordenado”. 
 
Valente de Oliveira recorda ainda a exigência e veemência com que Etheline acompanhou a escolha do lugar para o Museu de Arte Contemporânea do Porto. “Depois da exposição no Soares dos Reis, nós estávamos todos de acordo sobre a necessidade de termos uma colecção de arte moderna bem exposta. Avancei para esse trabalho fazendo a ligação entre a dupla Pernes-Etheline e o engenheiro [então presidente da Câmara do Porto] Paulo Vallada. A procura foi grande, e depois de várias hipóteses, soube-se que Serralves estava à venda”, recorda. E destaca a firmeza com que Etheline Rosas defendeu essa solução. 
 
Legado em Serralves
 
Quem, de algum modo, assumiu em Serralves o legado de Etheline Rosas a seguir à sua reforma em 1992, foi Marta Moreira de Almeida, actualmente directora adjunta do MACS. 
 
Cruzou-se com a conservadora brasileira em 1990, quando ainda estudava História da Arte na Faculdade de Belas-Artes do Porto. “Recebi então um convite para integrar a equipa do Serviço Educativo de Serralves, numa altura em que ela era a responsável pelas exposições e pela Colecção e trabalhava directamente com Fernando Pernes”, diz Marta Almeida ao PÚBLICO
 
Durante cerca de um ano, a jovem estudante colaborou muito de perto com Etheline, no acompanhamento dos artistas e na montagem de exposições. “Foi uma relação muito intensa, em que ela partilhou tudo comigo: a história de Serralves e da Colecção, a organização de exposições... Foi uma pessoa importante no meu trabalho”, nota, realçando o seu empenhamento em tudo o que fazia e na defesa do projecto de Serralves, de quem foi sempre “um pilar”, numa “permanente cumplicidade” com Pernes. 
 
Marta Almeida nota, no entanto, que Etheline “nunca foi curadora”. “Ela fazia questão de que o pensador era o Pernes”, o que não significa que o seu nome tivesse ficado apagado na história de Serralves. “No Porto, e nos meios artísticos, toda a gente conhecia o trabalho dela.” 
 
Aconteceu depois que Jorge, o filho de Etheline e José António Rosas, casou com uma irmã de Marta, e essa circunstância acrescentou um vínculo familiar à amizade entre ambas. “Ela passou-me o seu legado em Serralves e, mesmo depois de reformada, nunca deixou de manter-se ligada à fundação”, testemunha Marta, realçando a sua permanente preocupação com a gestão da Colecção, a conservação das obras, as questões da humidade, da temperatura, de que tinha um conhecimento bastante apurado, adquirido no Brasil e através de uma cultura anglo-saxónica”. “Aprendi tudo com ela”, resume a directora adjunta do MACS. 
 
“Etheline não se punha nunca em bicos de pés, era uma pessoa muito discreta, mas sempre muito firme e eficaz, características a que associava uma permanente insatisfação”, sintetiza Valente de Oliveira. 
 
 
* Licenciado em Filosofia (Universidade do Porto); professor do ensino secundário (1979-88). Jornalista profissional desde 1988, com carreira em O Primeiro de Janeiro (1988-89) e PÚBLICO (desde 1989); colaborador n’O Comércio do Porto, Expresso e Grande Reportagem; co-fundador das revistas Cinema Novo e A Grande Ilusão. Autor dos livros O Porto na História do Cinema (2002), Ao Correr do Tempo – Duas Décadas com Manoel de Oliveira (2008) e Serralves – 20 Anos e Outras Histórias (2009). Autor do documentário Manoel de Oliveira, O Caso Dele (2007). Co-autor do Dicionário de Personalidades Portuenses do Século XX (2001) e de As Casas da Música no Porto – Vols. I, II e III (2009-2011).

2 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Hoje se comemora o centenário de nascimento de ETHELINE ROSAS (✰19/03/1924, São Paulo ✞ 2012, Porto), museóloga, especialista em arte moderna e contemporânea, que o Blog de São João del-Rei homenageia como "brasileira em destaque". Foi no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP) que ela começou a gerir algumas exposições e a ter contato "com várias personalidades ligadas à modernidade progressista brasileira". Depois de se casar com José António Rosas em 1964, começa a dar os primeiros contributos culturais na cidade do Porto:
entre 1972 e 1974, coordenou as atividades da Mini-Galeria e, em 1975, a montagem da exposição "Levantamento da Arte do Século XX no Porto", mostra que inaugurou o CAC-Centro de Arte Contemporânea do Porto. O Parque e Casa de Serralves sediaram a primeira e demais equipes de museólogos de Serralves, até 1992, ano em que ela se aposentou.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/03/etheline-rosas-conservadora-de-arte.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008) disse...

Não conhecia a história de Etheline Rosas, mas há uma ligação bem próxima...
meu avô materno, nascido na Rua da Alegria, no Porto, em casa na frente da "Escola Normal", é Francisco de Magalhães Pinto, da casa Ramos Pinto, fabricante do famoso Vinho do Porto. Veio para o Brasil acompanhando um tio dele que iria ser representantecomercial do Vinho em Bambuí, MG. Casou-se com minha Avó, Maria Laudelina Garcia Leão (nome de solteira).
Como minha mãe era filha direta de português e ainda viva, fizemos o processo de nacionalidade portuguesa dela. Assim, eu e irmãos, tornamo- nos fllhos diretos de portuguesa, e, pela legislação da época,
também adquirimos dupla nacionalidade.
Heitor