sábado, 20 de julho de 2024

KAFKA E MANN: UM ENCONTRO NO EXÍLIO


Por ÂNGELA DE ALMEIDA *
Transcrevemos com a devida vênia de AS ARTES ENTRE AS LETRAS, uma publicação de interesse cultural e literário reconhecida pelo Governo Português, nº 366 de 17/07/2024, na coluna Literatura, p. 7.
Franz Kafka e Thomas Mann (da esq. p/ a dir.)
Valorizar a literatura é, fundamentalmente, valorizá-la enquanto trabalho individual de um determinado escritor intricado com circunstâncias normalmente tidas como seguras, tais como residência, nacionalidade, localidade familiar, língua, amigos, etc. ¹ Edward Said

Há cem anos, Thomas Mann (Alemanha, 1875 - Suíça, 1955) publicava A Montanha Mágica e Franz Kafka (Chéquia, 1883 - Áustria, 1924) dizia precocemente adeus ao mundo, depois de escrever O Castelo que não conseguiu concluir e que o amigo, Max Brod, publicaria em 1926. Mann dirá, na introdução à edição americana do livro que apenas um capítulo ou pouco mais terá faltado para concluir a obra. 

The Castle, Segunda Edição publicada por Alfred A. Knopf, contendo a primeira utilização do prefácio de Thomas Mann
 
No tempo vivido por ambos, a humanidade assistiu ao desabar da dignidade humana que a industrialização viabilizou, dando as mãos ao estrelato de uma burguesia fútil, ao colonialismo cruel, portas que se abririam de par em par para a I Guerra Mundial. É, pois, este estado do mundo que se move no universo subtextual do romance moderno de um e de outro, expandindo-se na dor da perda. E o que é o exílio senão a vivência dessa privação, a violência do expatriamento – interior e exterior –, a violência de ser condenado a viver ausente ² de uma terra-mãe, de uma família, de uma cultura, de uma comunidade, de uma identidade, a violência de ter de apunhalar a respiração ardente do carácter? Regressemos ao pensamento subjacente na epígrafe, agora numa outra afirmação também de Edward Said:

Observar um poeta no exílio  o que é diferente de ler a poesia sobre o exílio – é dar-se conta das antinomias incorporadas e sustentadas por uma única e mesma intensidade. ³ (Said, 2000: 181).

E que intensidade, essa que enforma a escrita de um autor com vivência de exílio! Em 1933, quatro anos depois de receber o Prémio Nobel, a ascensão de Hitler ao poder levou a que Mann conhecesse o primeiro asilo na Suíça, partindo, em 1938, para os Estados Unidos da América, onde foi professor da Universidade de Princeton durante dois anos e meio  (28 de Setembro de 1938 - 17 de Março de 1941), tempo em que prefaciou, com uma admiração e um carinho inestimáveis, a edição americana de O Castelo, de Kafka, conforme já referimos. No meio que então frequenta, Mann tornou-se um intelectual de referência, mantendo uma campanha acesa contra o Holocausto nazi que exterminava milhões de inocentes. E, sem dúvida, a grande mancha de sangue que é a guerra foi o chão a partir do qual se ergueu esse monumento literário que constitui A Montanha Mágica, onde tempo e espaço, corpo e espírito, ocidente e oriente, vida e morte, paz e guerra, progresso e tradição, liberdade e aprisionamento, amor e desamor, são temas fundamentais, amplamente pensados e debatidos pelas personagens centrais, como é o caso dos diálogos riquíssimos estabelecidos entre Hans Castorp e o seu mestre, Settembrini:

(Setembrini) – A existência militar – digo isto sem a mínima intenção de contrariar o nosso amigo, o tenente – é insustentável do ponto de vista espiritual, por ser meramente formal, sem conteúdo próprio. O protótipo do soldado é o mercenário que se alista tanto por esta como por aquela causa. (Mann, 1924: 398)

Quanto a Kafka, a violência psicológica que viveu com a autoridade exercida pelo pai, o peso da tremenda solidão na infância, a submissão a cargas horárias de trabalho desumanas, o vazio das funções administrativas que desempenhou, a fragilidade trazida pela doença, a humanidade a desabar aos pés da marcha da industrialização que ditava o abandono da individualidade e a entrega à alienação, à angústia existencial, ao exílio dos sentidos, dos valores, do carácter, ditaram-lhe uma escrita onírica, que haveria de evidenciar o absurdo da vida desumanizada. Na introdução à versão americana de O Castelo, de Kafka, Mann escreveu:

O Castelo é absolutamente um romance autobiográfico. O herói que originalmente deveria falar na primeira pessoa, chama-se K.; ele é o autor que literalmente sofreu todas estas dores e todas estas grotescas desilusões. (...). Na vida pessoal do autor, há um esforço semelhante e sofrido para encontrar uma família e para chegar perto de Deus através duma vida normal. (Mann, 1945: 16).

Se Thomas Mann não tivesse sofrido também, embora em circunstâncias diferentes, o padecimento do exílio, se não fosse ele também um mutilado da liberdade, do direito ao livre pensamento e a uma vida plena de sentido, se não fosse ele também um paladino da humanidade, por certo que aquelas não teriam sido as suas palavras: ambos viveram exilados, condenados à mutilação do carácter e do pleno direito à felicidade.
 
 
* Escritora, tradutora, autora de 12 livros publicados e investigadora científica portuguesa, doutora em Literatura Portuguesa, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

 

NOTAS EXPLICATIVAS 

 

¹  Tradução de Ângela de Almeida. V. Said, Edward (2000). Reflections on exile and other essays. Cambridge: Harvard University Press: 10. 

²  «Quem se diz “exilado” denuncia uma ausência imposta por uma vontade alheia ou pelo destino.» (v. Lourenço, Eduardo (1994). O canto do signo - existência e literatura, 1957-1993. Lisboa: Presença:209.) 

³ Tradução de Ângela de Almeida 

V. Corngold, Stanley (2022). The mind in exile: Thomas Mann in Princeton. Princeton: Princeton University Press. 

Tradução de Ângela de Almeida.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

 

Lourenço, Eduardo Eduardo (1994). O canto do signo - existência e literatura, 1957-1993. Lisboa: Presença. 

Corngold, Stanley (2022). The mind in exile - Thomas Mann in Princeton. Princeton: Princeton University Press. 

Mann, Thomas (1924). A montanha mágica (título original, Der Zauberberg). Herbert Caro, trad., Maria da Graça Fernandes, rev. Lisboa: Livros do Brasil (1958). 

Mann, Thomas (1945). «Homage». The castle, with an introduction by Thomas Mann. Edwin and Villa Muir, trad. New York : Alfred. A. Knopf. Inc.

3 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
No começo de maio de 1940, THOMAS MANN, escritor laureado com o Prêmio Nobel em 1929, então residindo em Princeton, recebeu uma carta do seu editor de New York, Alfred Knopf, indagando se ele, "grande admirador das novelas de KAFKA", estava disposto a escrever "uma pequena introdução" para a próxima edição de "O CASTELO". Em 23 de junho Mann enviou-lhe sua introdução datilografada (como sua Homenagem a Kafka), com a observação de que tinha ficado mais longa do que ambos, o editor e ele, tinham pretendido, porque ele "não tinha poupado nenhum esforço em servir o propósito de introduzir o leitor americano nas novelas de Kafka". Seja como for, sua "Homenagem" saiu publicada como tal e  serviu muito bem o propósito cogitado. Parcialmente, graças aos bons ofícios de Mann, que "não tinha poupado nenhum esforço" em servir o citado propósito, Knopf foi beneficiado com uma edição 20 vezes superior à primeira.
Vejamos a apreciação da investigadora portuguesa ÂNGELA DE ALMEIDA desses fatos e de outros na sua bela crônica publicada em AS ARTES ENTRE AS LETRAS e reproduzida no Blog de São João del-Rei.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/07/kafka-e-mann-um-encontro-no-exilio.html 

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Paulo Roberto Sousa Lima (escritor, gestor cultural e secretário da Diretoria do IHG de São João del-Rei para o triênio 2024-2026) disse...

Parabéns, confrade Francisco Braga pelos dois belos resumos sobre a
vida e obra de um autor difícil de ler, por ser envolvente e
incomodativo, e importante de ler, por ser um critico do nosso modo de
vida ocidental atual. A crise da modernização pela industrialização
trouxe o que Karl Marx analisou e Max Weber sistematizou, o domínio da
individualidade pela burocratização: o espaço do racional-legal.
Num tempo em que vários autores, críticos literários e editoress publicam suas visões sobre este magnifico escritor, agradeço por ter publicado estas duas pérolas da documentação jornalística sobre um momento triste do pós I e II Grandes Guerras na Europa e a repercussão em todo o mundo: a vida e obra do judeu Kafka, o que sonhava com a Palestina.
Abraços fraternos,
Paulo

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Através dessa publicação sobre a biografia de Kafka um estímulo para o estudo de sua personalidade, obra e de sua conturbada época.
Excelente homenagem!
Cumprimentos,
Cupertino