quinta-feira, 18 de setembro de 2025

A Figura de Disraeli no Teatro Brasileiro

Por SAMUEL MALAMUD *
Artigo publicado originalmente em iídiche no jornal Imprensa Israelita em 23/06/1939.
Transcrevemos com a devida vênia da Imago Editora Ltda., artigo da seção KAHAL constante do livro Documentário, publicado em 1992, pp. 17-18.
Na contracapa de Documentário lê-se esta confissão do autor: Na idade em que me encontro, tendo atuado na vida comunitária judaica do Brasil desde a minha adolescência, me deparei, ao arrumar o meu arquivo, com um volumoso material, acumulado no decorrer de mais de seis décadas: eram entrevistas, comentários, artigos, palestras e discursos que ocupavam dezenas de pastas, além de vários álbuns, contendo um grande número de fotografias.
Embora reunido em meu arquivo pessoal, acredito que a maior parte deste material pertença, de fato, ao acervo da memória da comunidade judaica brasileira, pois registra uma grande variedade de fatos e acontecimentos de seu interesse coletivo e testemunha sua atuação por um período de mais de sessenta e cinco anos a partir dos anos vinte deste século.
Assim, cheguei à conclusão de que, enquanto ainda posso contar com a ajuda da minha memória, tinha, como dever, a tarefa de organizar este arquivo, reunindo a documentação escrita e fotográfica num livro que permitisse, ao mesmo tempo, a sua preservação e ampla divulgação.


 
O teatro brasileiro cresce e se desenvolve. No que diz respeito aos conjuntos teatrais, há empenho pelo aperfeiçoamento, e no que tange às peças a serem levadas em cena, nota-se uma escolha mais cuidadosa quanto ao enredo. 
Em vez das comédias ligeiras que vêm predominando nos palcos, abordando, quase sempre, a mesma temática  banais conflitos familiares, situações ridículas e sem sentido no que tange à vida real  ultimamente são apresentadas, cada vez com maior frequência, peças de gabarito elevado e que contêm alguma mensagem para o espectador. 
O interesse que o governo vem demonstrando pelo desenvolvimento do teatro nacional tem encontrado o devido eco nos meios artísticos e empresariais e é de se crer que, num futuro bem próximo, o Brasil terá um movimento teatral bem desenvolvido e aperfeiçoado, que passará a ter a devida importância dentro da cultura nacional. 
A vontade e o interesse de elevar o nível do teatro são notórios não somente no meio artístico, onde o carreirismo individual e o empenho individualista pelo "estrelismo" começam a dar lugar ao trabalho de conjunto, mas também entre os teatrólogos. Em vez de temática ligeira, eles começam a produzir peças de temática mais real e mais expressiva, seja em forma de comédia ou drama, seja abordando fatos e figuras históricas da vida nacional ou mundial. 
Tivemos a oportunidade de verificar essa modificação que vem ocorrendo no mundo teatral brasileiro quando, a convite de um dos incansáveis batalhadores pelo bom teatro no país  o Dr. Renato Vianna , comparecemos à leitura ¹ da peça Um Judeu, de autoria do teatrólogo Raimundo Magalhães Júnior. 
Trata-se de um dos atuais jovens teatrólogos cujas peças já vêm ocupando um lugar de destaque no teatro nacional, graças à qualidade dos seus enredos e ao seu já demonstrado conhecimento cênico. 
A sua peça Carlota Joaquina, que há várias semanas está sendo representada no Teatro Rival pelo elenco encabeçado por Jaime Costa, vem registrando um sucesso contínuo. Nessa peça é espelhada, de forma muito hábil, a vida familiar e palaciana do rei D. João VI durante a sua permanência no Brasil. 
Na sua nova peça, Um Judeu, a que nos referimos acima e a cuja leitura assistimos, o teatrólogo apresenta a vida do renomado estadista judeu inglês Benjamin Disraeli. 
Esta peça de Magalhães Júnior, escrita há um ano, já foi traduzida para o espanhol pelo grupo teatral argentino de Gerardo Ribas, e estreará no próximo mês em Buenos Aires, no Teatro Maravillas, de acordo com correspondência que o autor nos mostrou. O Dr. Renato Vianna também pretende estreá-la no próximo mês no Rio, tanto que os ensaios já começaram. 
No prefácio da peça o teatrólogo conta que o tema lhe fora sugerido pelo renomado artista nacional Procópio Ferreira. Magalhães Júnior, porém, faz questão de salientar que ele de fato já tinha a intenção de escrever uma peça em que pudesse expressar o seu protesto e repúdio contra as perseguições que os judeus sofrem ultimamente na Europa. Por isso interessou-lhe um tema como Disraeli, pois ao descrever a grande personalidade desse estadista ele tem a oportunidade de demonstrar como são infundadas as agressões e acusações que os judeus vêm sofrendo há séculos, e provar que o judeu, como ser humano e como cidadão, tem uma só personalidade, e não pode estar sujeito a diferentes interpretações. ²
A peça Um Judeu é muito bem elaborada. Raimundo Magalhães Júnior descreve em três atos o ambiente da aristocracia inglesa da época e os princípios rígidos que predominavam na política conservadora britânica, assim como a grande irritação que o aparecimento de Disraeli provocou, primeiro na literatura, como escritor satírico mordaz e, posteriormente, como político ousado e reformador. Ele jamais negou a sua descendência judaica e foi um violento opositor das discriminações raciais e religiosas. 
De forma muito elegante o autor apresenta também a esposa de Disraeli , Marian , inglesa de alta estirpe, que muito o ajudou na sua intensa carreira. Tampouco falta na peça o tom romântico. 
A peça termina com a última realização do grande político para o império britânico, que foi adquirir, com o apoio dos Rothschilds, a maioria das ações da Cia. do Canal de Suez. 
Cheia de bom humor e recheada de pensamentos extraídos da obra de Disraeli, reproduzidos no texto de uma forma muito adequada pelo talentoso teatrólogo brasileiro, a peça certamente há de despertar um grande interesse e registrar os merecidos aplausos do público que irá assistir a ela.
 
Fonte: MALAMUD, Samuel: Documentário: contribuição à memória da comunidade judaica brasileira, Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1992, pp. 17-18. 
 
* SAMUEL MALAMUD (1908-2000), advogado, nascido na Ucrânia em 1908, chegou ao Rio de Janeiro em dezembro de 1923. A partir dos anos 30, transformou-se em um dos mais influentes representantes da comunidade judaica no Brasil. Em 1948, Malamud foi o primeiro Cônsul de Israel no país. Fundou e presidiu, entre outras entidades, a Federação Israelita do Brasil e o Clube Hebraica. Morreu dia 11 de março de 2000, aos 91 anos, de infarto, no Rio de Janeiro.
 
 
II. NOTA EXPLICATIVA
 
 
¹  Uma das influências  do  teatro  iídiche  na  cultura  brasileira,  em  decorrência  da  atuação  de Zygmunt Turkow, é assinalada por [RIBEIRO & WORCMAN, 2013, 522] e se refere a técnicas de representação. Segundo essas autoras, Turkow introduziu a leitura prévia do texto e a análise das personagens pelos atores, sentados em torno de uma mesa, antes dos ensaios em cena; as autoras enfatizam que se tratava de uma técnica nova, pouco usual também no teatro brasileiro, que vivia ainda em torno dos grandes astros, absolutos no centro do palco, e em torno dos quais giravam as marcações.
 
² [TOLEDO, 1984, 99] considera que
o surgimento de um retrato favorável da figura do judeu é apanágio exclusivo da dramaturgia brasileira elaborada em nosso século (XX). No teatro do século XIX, somente as personagens judias detectadas em dramatizações de episódios do Antigo Testamento apresentam imagem moral positiva.
Segundo [idem, ibidem, 161-162],
na introdução à peça, Magalhães Jr. confessa sua preocupação com as últimas notícias veiculadas sobre a perseguição nazista aos judeus, na Europa. ³ Com este intuito, ele resolve analisar a questão judaica, localizando o problema na Inglaterra vitoriana.
0 texto questiona diversos mitos populares imputados ao judeu  desde a culpa pela crucificação de Cristo, passando por estereótipos relativos ao "caráter" judeu, até a sua ligação com a usura  e conclui pela intolerância religiosa e social da sociedade cristã. [idem, ibidem, 107] apresenta também
o texto de Um Judeu em que Raimundo Magalhães Jr. denuncia este mecanismo de defesa anti-semita. Exemplo:
"- Disraeli - Os judeus sabem pensar, e isto é um crime. Os judeus sabem negociar, e isto é outro crime. Os judeus sabem poupar e isto é outro crime. Somos os maiores criminosos do mundo, não digo eu próprio que só tenho dívidas  mas os de minha raça. E ah! se todas as raças pudessem se vangloriar de tais crimes!
[idem, ibidem, 97] destaca a novidade da peça teatral aqui tratada:
exemplo de postura isenta de formulações preconceituosas é adotado pela peça Um Judeu, de Raimundo Magalhães Jr.. Diversas acusações morais são feitas à figura de Disraeli pelo Parlamento inglês que reluta em aceitá-lo como membro, pelo fato de ele ser judeu, e as respostas da personagem são sempre tentativas de derrubar mitos clássicos, relativos ao dinheiro e à desonestidade. Exemplo:
"- Trollop - Eu, porém, ficarei com as minhas convicções. Nem o parlamento precisa dos judeus,  tanto que sempre passou muito bem sem eles  nem os judeus, que são tão ricos, precisam do parlamento. [...] mas, eu entendo que os judeus  não servem para legislar... Só servem mesmo é para emprestar dinheiro a juros...
"- Disraeli - Dinheiro! Se ninguém é mais desinteressado, ninguém é mais desambicioso, ninguém é mais indiferente ao dinheiro do que eu... Dinheiro! Se eu o quisesse, festejaria os poderosos, eles me abririam a bolsa... Ao contrário, combata-os, sabendo que eles a fecham...

 Em outros trechos da peça, [idem, ibidem, 162-163] reafirma que

a simpatia do do autor pela causa judaica o leva por vezes a uma exaltação um tanto exagerada das qualidades morais da personagem. Exemplo:
"- Disraeli - Podeis dizer teimoso como um judeu... Sei que no fundo, é esse o pensamento dominante a meu respeito... Teimoso como um judeu... Mas, por Deus, dizei também: inteligente como um judeu, tenaz como um judeu, estudioso como um judeu, honesto como um judeu, corajoso como um judeu... Porque anda sempre essa expressão no ar, suspensa, prestes a abater-se como uma espada sobre aqueles que, como eu, vêm do tronco hebraico? Por que nos odeiam, por que nos combatem, por que nos desprezam? Não são virtudes gentis, predicados peregrinos, qualidades positivas, as que têm feito triunfar o judeu onde quer que se manifeste a sua atividade? Os judeus têm os dons da inteligência, o senso realista da vida...
Apesar do tom apaixonado, o texto narra de modo fiel a luta empreendida por Disraeli contra a intolerância da sociedade de sua época, e atribui seu sucesso a características de tenacidade e coragem, descritas como valores morais positivos.
[idem, ibidem, 106] argumenta que
uma postura de desmitificação desta atitude (de tomar o judeu como bode expiatório utilizada pelo anti-semita) pode ser detectada no texto de Raimundo Magalhães Jr., Um Judeu. Todas as acusações preconceituosas relativas ao caráter judeu são criticadas, e, no decorrer da peça, o autor aponta ainda, uma das causas de sua adoção. Exemplo:
" - Disraeli - [...] Os que os desprezam e combatem [os judeus], o fazem por medo ... E de onde vem esse medo? Da ausência de qualidades para concorrer com o judeu... (...)
[idem, ibidem, 108] conclui neste caso:
O indivíduo, sentindo-se inferiorizado, desloca sua agressividade para a figura do judeu, com o propósito de disfarçar sua debilidade. O judeu simbolizaria, então, tudo aquilo que ele não possui.
[idem, ibidem, 158] distingue, no período moderno e contemporâneo do teatro brasileiro, entre peças teatrais aliadas a estereótipos milenares (como o relativo ao deicídio dos judeus, por exemplo) no início do século XX, e, por outro lado, peças teatrais de valor literário. Nessas do segundo grupo, a autora inclui Um Judeu, de Raimundo Magalhães Jr. (1907-1981). Segundo [idem, ibidem, 160-161],
a peça retrata a ascensão política de Benjamin Disraeli até ele atingir o posto de Primeiro Ministro da Inglaterra, enumerando suas lutas contra a intolerância religiosa e o conservantismo do parlamento e da sociedade inglesa de sua época.
A autora conclui que, apesar de ser convencional na sua forma, Um Judeu tende a esmaecer a máscara teatral negativa da personagem judaica, através do questionamento dos mitos imputados aos judeus.
 
³  Transcrevo aqui a nota 17 da pág. 161: 
Anterior à denúncia de Magalhaes Jr., é o inquérito realizado entre intelectuais brasileiros, no ano de 1933, e que resultou numa firme condenação ao anti-semitismo.
Participaram dele: Agrippino Grieco, Coelho Neto, Gilberto Amado, Afrânio Peixoto, Hermes Lima, Oduvaldo Vianna, Humberto de Campos, Menotti del Picchia e Orígenes Lessa, entre outros, todos investindo abertamente contra o Nazismo e condenando as discriminações lançadas contra o povo judeu. Vide Porque ser Anti-Scmita? Um Inquérito entre Intelectuais Brasileiros. R. Janeiro: Civilização Brasileira, 1933.
As peças relacionadas a seguir fazem referência aos campos de concentração e/ou de extermínio instalados pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial:
0 Homem e o Cavalo, de Oswald de Andrade - 1934; 
0 Milagre de Succa, de M. Corinaldi - 1946;
Se eu te esquecer, Jerusalém - 1967 e 0 Sétimo Dia - 1969, de Ari Chen; 
Liberdade, Liberdade, de Millor Fernandes e Flávio Rangel - 1966;
Não Respire, não Coma, não Ria, de Flávio Cerqueira - 1970;
Patética, de Joao Ribeiro Chaves Nctto - 1976.

* MARIA AUGUSTA DE TOLEDO (Bergerman) é professora de literatura brasileira na Universidade de São Paulo (USP). É autora de vários livros, entre eles "O Teatro Judaico no Brasil" e "A Literatura Judaica no Brasil".

 
III. REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS


BERGERMAN
, Maria Augusta de Toledo: MÁSCARA E PERSONAGEM: O JUDEU NO TEATRO BRASILEIRO, São Paulo: Ed. Perspectiva, 2013, 160 p.

MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo: O JUDEU: comédia dramática em três atos e dez quadros. Rio de Janeiro: Editora A Noite, 1939, 149 p.

MALAMUD, Samuel. DOCUMENTÁRIO: contribuição à memória da comunidade judaica brasileira. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1992, 365 p.

RIBEIRO, Paula, & WORCMAN, Susane. “Drama e Humor. O teatro ídiche no Brasil”. In: LEWIN, Helena (org.). Judaísmo e Cultura: Fronteiras em movimento. Rio de Janeiro: Imprimatur, 2013.

TOLEDO, Maria Augusta: O judeu no teatro brasileiro: personagem e máscara, dissertação apresentada à Comissão Julgadora da ECA-USP para obtenção do grau de Mestre em Artes, 1984, 208 p.
No Safari, buscar 
in biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP O JUDEU NO TEATRO BRASILEIRO

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

RECORDANDO A PRAÇA ONZE

Por SAMUEL MALAMUD *
Trecho inicial de livro publicado com idêntico título. Rio de Janeiro: Kosmos Editora, 1988, pp. 17-43.
Na contracapa lê-se este desejo do autor: Seja, pois, este meu depoimento uma homenagem singela de reconhecimento e de gratidão àqueles abnegados trabalhadores de todos os setores e de todos os matizes, que souberam enfrentar, galhardamente, as enormes dificuldades de recém-chegados a uma terra desconhecida e, onde, enquanto labutavam pelo ganha-pão de cada dia, souberam, com entusiasmo e coragem, sem medir sacrifícios, lançar os aicerces das instituições comunitárias básicas com o decidido propósito de assegurar a continuidade das tradições e dos valores culturais milenares dos nossos antepassados.

 

Capa do livro

Fotografia dos anos 30 mostrando o aspecto geral do logradouro à época. O chafariz foi projeto do famoso Grandjean de Montigny, autor de várias obras na cidade. As vias laterais são: à esquerda Rua Visconde de Itaúna e à direita Rua Senador Euzébio, ambas extintas durante as obras de abertura da Av. Presidente Vargas na década de 40. A praça foi reduzida e preservada, contudo perdeu totalmente sua originalidade e sua fama ligada ao nascimento do samba, do começo do século XX. Ao fundo a Escola Benjamim Constant e a Avenida do Mangue. Crédito por quase todas as fotos: https://oriodeoutrora.blogspot.com/2020/05/praca-xi-e-seu-entorno.html
 

No dia em que for escrita a história da comunidade judaica do Rio de Janeiro, o período da Praça Onze há de figurar entre os capítulos mais interessantes e de maior destaque, porque foi na Praça Onze e seus arredores que tiveram início o desenvolvimento e a formação da referida comunidade. 
No sentido literal, a denominação "Praça Onze" refere-se apenas a uma praça pública, cujo nome, por extenso, era Praça Onze de Junho, homenagem à data que, em 1865, marcou a vitória do Brasil na batalha do Riachuelo. Entretanto, para a comunidade judaica do Rio de Janeiro, no decorrer dos anos vinte e trinta deste século, essa denominação referia-se não só à própria praça, mas também aos seus arredores, onde viviam centenas de famílias judias, funcionavam dezenas de casas comerciais e pequenas oficinas exploradas por judeus de várias procedência da Europa Oriental e onde funcionava a maioria das suas instituições religiosas, filantrópicas, culturais, sociais, recreativas e ideológicas. Naquele bairro estavam também localizadas as redações e tipografias dos vários órgãos de imprensa que então apareciam no Rio, em iídiche idioma que predominava entre os judeus de origem ashkenazita. 
Desconheço as razões que levaram aqueles primeiros imigrantes judeus, provenientes dos países daquela região e que se radicaram no Rio de Janeiro, a escolher o bairro da Praça Onze para nele se instalarem. É bem possível que, do ponto de vista comercial, o bairro da Praça Onze tivesse, então geograficamente, uma localização privilegiada. Ficava nas proximidades da estação final da estrada de ferro Central do Brasil. O Rio, na época, capital do país, contava com uma população de aproximadamente um milhão de habitantes, na maioria gente das classes média e pobre, que viviam na zona norte e cujo principal meio de transporte era o trem suburbano. A Praça Onze podia ser considerada a porta de acesso à parte central da cidade. 
O bairro da Praça Onze contava, também, com uma numerosa população de imigrantes italianos e portugueses, sem falar nos nativos que imortalizaram o bairro na sua poesia popular. A praça, propriamente dita, celebrizou-se pelas grandes concentrações anuais durante o Carnaval. O carnaval da Praça Onze era famoso pela folia extraordinária perpetuada nas canções daqueles anos. Ainda hoje em dia surgem de quando em vez composições ¹ que relembram com nostalgia aqueles carnavais. 
Mas o meu objetivo é registrar as memórias que tenho com relação à Praça Onze judaica dos anos vinte e trinta, período no qual fui morador e participante ativo de sua vida comunitária. 
Em primeiro lugar, um esquema da situação geográfica da Praça Onze e ruas vizinhas: 
A praça constituía um grande quadrilátero  as duas partes mais extensas faziam parte, respectivamente, das então ruas Senador Euzébio e Visconde de Itaúna, que começavam na Praça da República e se estendiam até à Ponte dos Marinheiros, nas proximidades da Praça da Bandeira. As mencionadas ruas, no seu início até encontrar a Praça Onze, eram constituídas de prédios de dois e três pavimentos, de ambos os lados. Depois eram divididas pela Praça e em seguida pelo Canal do Mangue, este ladeado de palmeiras. O canal existe até hoje dividindo a parte final da atual Avenida Presidente Vargas que absorveu as duas mencionadas ruas. Assim a partir da praça, cada rua tinha somente uma numeração  a Senador Euzébio, números pares, e a Visconde de Itaúna, ímpares. Os outros dois lados do quadrilátero, de menor extensão, eram constituídos por partes das ruas transversais: Santana e Marquês de Pombal. 
 
Fotografia aérea de 1942 quando a praça vivia seus últimos momentos. Obs.: quase todas as construções antigas foram demolidas.
 
Essas duas ruas começavam na rua General Pedra, limítrofe à estrada de ferro. A extensão das mencionadas ruas diferia. A rua Santana findava na rua Frei Caneca, o que acontece até hoje. A rua Marquês de Pombal acabava, naquela época, na rua São Leopoldo, cujo nome foi posteriormente mudado para Júlio do Carmo. As partes da rua Santana e da rua Marquês de Pombal, que cruzavam a Praça Onze, desapareceram completamente, assim como a parte que ficava entre a praça e a rua General Pedra, em virtude da abertura da Avenida Presidente Vargas, o que também motivou o desaparecimento físico da própria Praça Onze. Na ocasião, também, desapareceu o miolo das ruas Senador Euzébio e Visconde de Itaúna entre a Praça e o Canal do Mangue. O que sobrou dessas ruas até a Ponte dos Marinheiros foi incorporado à Avenida Presidente Vargas, e as velhas construções que ainda sobrevivem, vêm sendo pouco a pouco demolidas, cedendo lugar aos edifícios da nova avenida. 
Do lado em que a Praça Onze limitava com a rua Marquês de Pombal, existia uma importante escola pública, denominada Benjamin Constant, homenagem à destacada figura do movimento republicano nacional. Constant era, ideologicamente, um positivista, movimento que contava com um expressivo número de adeptos nas esferas políticas e intelectuais brasileiras no fim do século XIX e início deste século. Contribuiu decisivamente para a instituição da República. A Escola Benjamin Constant, que nos anos vinte foi frequentada por alunos judeus do bairro, também foi vítima da reforma urbana e desapareceu, juntamente com o enorme jardim que tinha nos fundos, espaço de lazer para crianças. 
A maioria dos prédios das ruas transversais à Praça Onze, com exceção de um pequeno trecho da rua Marquês de Pombal, tinha seus andares térreos destinados ao comércio ou a pequenas oficinas, e os andares superiores, à moradia. Entretanto, em alguns sobrados, foram instaladas pequenas indústrias, alfaiatarias, tecelagens, fabriquetas de bolsas, de guarda-chuvas, etc. 
No centro da praça, no início dos anos 20, havia um belíssimo jardim com árvores frondosas e banquetas floridas. Nas veredas, havia bancos, onde os frequentadores ou transeuntes costumavam repousar, para se abrigar do calor. Esses bancos serviam, com frequência, de leito para boêmios e mendigos em noites menos frias. Num canto do jardim ficava o coreto onde, aos domingos, a banda da polícia militar entretinha os visitantes com músicas clássicas e populares. No centro, um repuxo artisticamente elaborado. Esse repuxo encontra-se atualmente instalado no Alto da Boa Vista. 
 
Chafariz ou repuxo que existiu no centro da Praça Onze
 
Em 1927, antes que houvesse qualquer previsão sobre a enorme transformação urbanística que aquela parte da cidade iria sofrer, a Municipalidade do Rio resolveu modificar o jardim da Praça Onze, retirando as árvores, o coreto e os antigos bancos, para tornar mais fácil o trânsito dos pedestres no local. Com a reforma, o jardim perdeu sua intimidade e beleza; o bairro, o último recanto bucólico. 
Duas fotografias de época mostram neste livro como era o jardim da Praça Onze anos e depois da modificação. 
 
Foto dos anos 40: o velho casario da praça permanecia ainda de pé mesmo após a abertura da Av. Presidente Vargas. Obs.: O bloco  central do Edifício "Balança mas não cai" não havia sido erguido.

Imagem de 1967. No canto inferior direito vemos parte da Praça Onze e o começo do Canal do Mangue a céu aberto.

 
Além das ruas já mencionadas, que limitavam diretamente com a praça, devem ser lembradas as ruas laterais, que ficavam um pouco mais distantes, mas que faziam parte também do bairro judeu: Benedito Hipólito, São Leopoldo (depois Júlio do Carmo), General Caldwell, General Pedra, Mem de Sá, Riachuelo, Carlos de Carvalho, Henrique Valadares, Conselheiro Josino, Resende, Marquês de Sapucaí, Machado Coelho, Carmo Neto, Salvador de Sá, Praça da República, além de outras. 
 
O bairro da Praça Onze, tendo a praça como ponto de convergência e de encontro, teve uma vida judaica dinâmica e ativa do começo dos anos vinte até o fim dos anos trinta, e dava a impressão de um enorme gueto, sem muralhas ou restrições. 
Naquele período, a população judaica do Rio crescia diariamente, devido ao enorme afluxo imigratório então procedente dos países da Europa Oriental. Aos poucos, os imigrantes foram se fixando em todos os bairros da cidade, principalmente da zona norte: Andaraí, Vila Isabel, Tijuca, Engenho Novo, Méier, Engenho de Dentro, Cascadura, Madureira, Ramos, Olaria e Penha. Chegou, inclusive, a surgir uma comunidade bastante numerosa, formando um vilarejo judaico, no município de Nilópolis, a uma hora de trem do Rio, pela Central do Brasil. Mas a Praça Onze continuava a ser o centro catalisador da vida comercial e social judaica e assim se manteve até a desapropriação e consequente demolição dos imóveis para a abertura da Avenida Presidente Vargas, que atualmente se estende da Candelária até à Ponte dos Marinheiros e que, entre outras, eliminou as ruas Senador Euzébio e Visconde de Itaúna. 
Na Praça Onze propriamente dita, estavam sediadas, no início dos anos vinte, três instituições: a Federação Sionista, cuja fundação se deu em 1922 à rua Senador Euzébio, 132, sobrado, por cima do Cinema Praça Onze (no mesmo local se reunia o Grêmio Juvenil Kadima); o Clube Juventude Israelita, fundado em 1920 e que tinha sua sede no sobrado do Café Praça Onze, que ficava no meio entre as esquinas das ruas Senador Euzébio e Visconde de Itaúna; do mesmo lado, no sobrado da esquina da rua Visconde de Itaúna com a Praça, confinando com a sede do Clube Juventude Israelita, funcionava a sinagoga Beith Iaakov (A Casa de Jacob). 
Na rua Visconde de Itaúna, bem próximo à Praça Onze, encontravam-se os locais da Sociedade Beneficente das Damas Israelitas (Froien Farain) e do Centro Obreiro Morris Wintschevsky. 
A redação e administração do jornal Iidische Folkstzeitung (Jornal Popular Israelita), fundado em 1927 e que começou a circular em novembro daquele ano, era na rua Visconde de Itaúna, 67. No mesmo local funcionava a tipografia que imprimia o jornal e que pertencia à firma Horowitz & Cia. Ltda., composta dos sócios Eduardo Horowitz, Jacob Schneider e Salomão Gorenstein. 
A redação e administração do semanário israelita Dos Iidische Vochenblat (O Semanário Israelita) tinha seu endereço, de início, na rua Visconde de Itaúna, 120, sobrado. A tipografia Schreiber & Kendler, de propriedade de dois cunhados, ambos originários da, então, Palestina, funcionava no início dos anos vinte na rua Visconde de Itaúna, 46. Nessa tipografia era impresso o semanário Dos Iidische Vochenblat. Posteriormente, tanto a tipografia como a redação e a administração do referido semanário transferiram-se para a loja da rua Santana, 40. Em 1927 o semanário passou a denominar-se Brazilianer Iidische Presse (Imprensa Israelita Brasileira). Finalmente, quando o jornalista Aron Bergman adquiriu o periódico em 1929, abreviou a sua denominação para Iidische Presse (Imprensa Israelita). Esse periódico continua aparecendo até hoje. 
Na rua Santana, 6, bem próximo à administração e redação do jornal Brazilianer Iidische Presse, instalou-se, em fins de 1927, a tipografia, redação e administração do semanário Unzer Leben (Nossa Vida), do qual apareceram apenas o primeiro número e uma edição extra. 
Na mesma rua e no mesmo quarteirão, no nº 22, entre as sedes dos dois jornais, foi erguida a sinagoga Beith Israel (A Casa de Israel), que acabou sendo desapropriada e demolida, em virtude das modificações urbanísticas motivadas pela abertura da Avenida Presidente Vargas. 
 
Beith Israel na rua Tenente Possolo com Henrique Valadares. Crédito pela foto: Samuel Malamud (p. 37)

Ainda na rua Santana, mas já nas proximidades da rua Frei Caneca, ficava a sede da Sociedade dos Vendedores Ambulantes. A sociedade do Cemitério Israelita que, de início, teve seu endereço na rua Mariz e Barros, 292, casa 9, transferiu-se nos anos vinte para a rua Santana, onde acabou adquirindo o imóvel, que possui até hoje, embora não mais mantenha os seus escritórios naquele local. 
Na rua São Leopoldo, 13, posteriormente Júlio do Carmo, funcionou durante longos anos a Biblioteca Scholem Aleichem, que posteriormente se transferiu para a rua Senador Euzébio, 57, sobrado. Quase em frente, no nº 44, sobrado, logo após a sua fundação em 1928, mantinha sua sede a Organização Juvenil Sionista "Hatchiah" (Renascença), que em virtude de determinações legais no fim dos anos trinta que proibiam atividades políticas a entidades nacionais em cooperação com entidades estrangeiras, viu-se obrigada a modificar os estatutos e a sua denominação para Biblioteca H. N. Bialik. 
Bem próximo à sede da Hatchiah, no nº 78, sobrado, funcionava a Caixa Cooperativa de Empréstimos "Lai Spar Casse". 
Além dessas entidades, mantinham endereços nas imediações da Praça Onze o Politischer Ferband (Sociedade dos Conterrâneos Poloneses), a Wizo (entidade sionista feminina), os movimentos sionista Poalei-Zion (Obreiros de Sion), de direita e esquerda, a Liga em prol da Eretz Israel Obreira, as instituições de orientação pró-soviética que apoiavam a colonização agrária judaica na Rússia comunista, o Brazcor e o Bikor, e o movimento sionista religioso Mizrachi, que tinha como seu centro a sinagoga Iavne. Essa sinagoga veio a instalar-se na rua Júlio do Carmo, 13, após a mudança da Biblioteca Scholem Aleichem. 
 
Na Praça Onze existiam três botequins ou cafés. O mais antigo denominava-se "Praça Onze" e funcionava no prédio em cujo sobrado estava instalado o Clube Juventude Israelita. Na parte da frente e no centro, ficavam as mesinhas com tampo de mármore, cada uma com quatro cadeiras com assentos de palha em volta, e as laterais, com duas cadeiras, para atender a freguesia. Naquela época não se tomava café em pé. Os frequentadores acomodavam-se em torno das mesinhas, batendo papo, descansando, lendo jornal, tratando de negócios, contando piadas, discutindo assuntos comunitários, fazendo fofocas, revendo os cartões das vendas a prestação, encontrando amigos, tirando um cochilo ou simplesmente vendo o tempo passar. Não faltavam preguiçosos e malandros para quem o botequim era um refúgio. Na parte dos fundos do salão, ficavam as mesas de bilhar, onde, desde cedo até altas horas da noite, exímios jogadores se empenhavam em demonstrar sua habilidade, alguns como mero passa-tempo e outros apostando quantias às vezes bem altas. 
O botequim que ficava na rua Santana fazendo esquina com o número ímpar da rua Visconde de Itaúna denominava-se "Capitólio". Nesse botequim também havia bilhares. Dispunha de poucas mesas para os tomadores do cafezinho, por falta de espaço. 
O terceiro café, o "Jeremias", tinha, também, padaria e confeitaria. Foi aberto no fim dos anos vinte e não possuía bilhares. Era menor que os outros dois, mas dispunha de instalações mais imponentes, com bonitas vitrines de vidro bisotado. Ficava na rua Senador Euzébio fazendo esquina com a rua Santana lado par, na vizinhança da redação do jornal Imprensa Israelita
Nos anos vinte, a clientela dos dois primeiros botequins consistia, na sua absoluta maioria, de judeus. No Café Praça Onze reuniam-se, geralmente depois do almoço, os dirigentes do Clube Juventude Israelita e outros ativistas sociais, porque o Clube abria às quatro da tarde. O Clube era um ponto de encontro, com sala de leitura, que alguns aficcionados aproveitavam para jogar xadrez. Os membros da diretoria lá iam diariamente para cuidar das atividades do Clube. O café no andar térreo servia como ponto intermediário na hora da chegada e da saída. 
Enquanto o Clube Juventude Israelita existiu naquele local, havia movimento e agitação no botequim, com discussões acirradas. No Praça Onze podia-se também fazer uma "boquinha". O dono, português, conhecia a todos, e os frequentadores sentiam-se em casa. Em época de eleições, apareciam no botequim os candidatos em busca de votos, principalmente para as Câmaras Municipal e Federal. Já naqueles anos, os políticos acreditavam que os judeus representavam uma força eleitoral, não percebendo que a maioria ainda era de estrangeiros recém-chegados sem direito a voto. 
No Café Capitólio, também predominava a clientela judaica. De manhã lá se reuniam os comerciantes e donos de pequenas indústrias da vizinhança. No final da tarde, era a vez dos prestamistas, que faziam por lá as suas compras para atender as encomendas do dia de sua freguesia e marcavam encontros com clientes, quando se tratava da escolha de móveis, de tirar medidas no alfaiate, experimentar uma roupa feita, ou escolher alguma jóia. 
Na maioria dos sobrados, habitavam famílias judaicas, muitas de donos dos estabelecimentos comerciais do andar térreo. 
O Café Jeremias era o mais tranquilo. Naquele canto havia menos comércio para atender os prestamistas. Além disso, o próprio Café tinha mais aspecto de confeitaria ou restaurante, onde aliás se podia obter uma refeição bem razoável. O espaço era reduzido. Naquele local reuniam-se, quase diariamente, a partir dos fins de 1929, os amigos e colaboradores da Imprensa Israelita, encabeçados pelo redator proprietário Aron Bergman. 
 
O comércio judaico que predominava na Praça Onze era o de móveis. Os judeus contribuíram muito para o desenvolvimento dessa indústria, que era explorada, na época, principalmente, por marceneiros portugueses e espanhóis. A loja de móveis mais tradicional e importante do bairro pelo espaço que ocupava era a "Casa Sion", que contava com um seção de decorações. A segunda em tamanho, "A Liberdade", possuía também uma fábrica e uma serraria na Travessa Universidade, no bairro do Andaraí. 
Além das grandes, havia muitas outras lojas menores, todas com estoque semelhante, embora algumas com móveis mais simples e baratos. Esses estabelecimentos não dependiam exclusivamente dos vendedores ambulantes, porque os interessados na compra de móveis sabiam que esse comércio estava concentrado na Praça Onze. Depois, expandiu-se pela rua do Catete e pelos demais bairros, como Méier, Engenho de Dentro, Cascadura, Madureira e Ramos. 
Existiam ainda no bairro algumas lojas de fazendas, de confecções, roupa de cama e mesa, joalherias, guarda-chuvas, calçados, alfaiatarias, etc. 
Um percentual muito reduzido entre os imigrantes possuía profissão. A maioria pertencia à classe média baixa, que na sua terra natal se havia dedicado ao pequeno comércio ou à intermediação. Por isso, tornar-se um vendedor ambulante representava para eles uma ocupação mais fácil e mais promissora. 
Para tornar-se um vendedor ambulante, havia, ainda, necessidade que alguém apresentasse o candidato aos estabelecimentos fornecedores para lhe assegurar o crédito. A mercadoria era fornecida para pagamento em 90 ou 120 dias. Nesse ínterim, o vendedor ambulante, quando era trabalhador, capaz e esforçado, criava para si uma base econômica. A maioria dos prestamistas vivia no primeiro período de sua atividade fazendo uma economia severa em todos os sentidos, para poder adquirir uma situação mais estável, ou seja, um equilíbrio financeiro. 
Mesmo os poucos profissionais como torneiros, sapateiros e mecânicos também preferiam, face à baixa remuneração e à perspectiva pouco promissora, optar pelo trabalho de venda a prestações. Viam no comércio ambulante maiores possibilidades para um enriquecimento rápido. Os que realmente continuaram na sua profissão eram em pequeno número  linotipistas e gráficos , enquanto os periódicos judaicos em iídiche podiam pagar-lhes ordenados compensadores no seu ofício. Havia ainda outros, profissionais proletários convictos, que faziam questão absoluta de trabalhar na sua especialidade e lutar por uma sociedade mais justa. Quanto aos ourives, aliavam a profissão ao comércio. Cortadores, tecelões e alfaiates, quando arrumavam alguns recursos, procuravam logo estabelecer-se e comercializar a sua profissão. Forneciam a sua produção tanto aos estabelecimentos como aos vendedores ambulantes, a preços mais acessíveis. Muitos milionários de hoje na indústria e no comércio de roupas feitas e tecelagem devem as suas fortunas àquela geração de imigrantes, que sacrificou os seus melhores anos de vida, com suor e trabalho, para criar uma base econômica sólida e próspera para os seus herdeiros que com a sua visão e iniciativa mais modernas souberam desenvolver e fazer prosperar as iniciativas de seus antepassados. 
 
Durante todos os dias da semana, a Praça Onze fervilhava de judeus. Os vendedores ambulantes movimentavam-se agitadamente, sempre apressados, percorrendo os estabelecimentos comerciais, de preferência ao entardecer. Deviam também ir um pouco mais longe, através da Praça da República, até as ruas General Câmara, Alfândega, José Maurício depois Tomé de Sousa, hoje República do Líbano, onde existiam estabelecimentos de tecidos, calçados e roupa de cama e mesa. Algumas dessas lojas pertenciam a judeus sefarditas. Na Avenida Gomes Freire, que já ficava mais próxima ao centro da cidade, perto da Praça Tiradentes, localizavam-se os estabelecimentos que vendiam sedas e tecidos finos. 
O prestamista naquela época preenchia uma lacuna importante no atendimento das necessidades econômicas das camadas mais pobres. O trabalho era muito difícil. Carregar as mercadorias nos ombros, de porta em porta, em busca de compradores, era tarefa árdua. Prosperando o prestamista, pagava um carregador. Mesmo assim, ainda continuava sendo um trabalho duro. Dificilmente almoçava. Por economia e para não perder tempo, limitava-se a uma média e pão com manteiga para matar a fome. Mas foi o vendedor ambulante quem possibilitou a muita gente adquirir, através de pagamento a prazo, roupa, mobiliário, jóias e outros objetos úteis. Naturalmente que entre os compradores encontravam-se também os maus pagadores, conhecidos na linguagem popular dos prestamistas como "caloteiros" ou em iídiche Tzvekes (pregos). Mas a grande maioria cumpria com os seus compromissos. 
O vendedor ambulante judeu foi o precursor dos grandes estabelecimentos de venda a crédito, mas que atuam em condições seguras e com a ajuda das instituições financeiras. A venda a prestação contribuiu também para que o vendedor ambulante fosse penetrando, pouco a pouco, na sociedade brasileira e facilitou o estabelecimento de relações de amizade entre a população autóctone e o imigrante, que assim se foi integrando no meio ambiente. 
A principal língua de comunicação entre os judeus da Praça Onze era a iídiche, ouvida em todas as entonações, pronúncias e nuances: russo, polonês, lituano, de acordo com a origem do imigrante. Essa língua ressoava em todos os recantos. Às vezes, também encontravam-se judeus conversando em russo, polonês ou romeno e raramente em húngaro. 
Os empregados não judeus dos estabelecimentos comerciais foram, pouco a pouco, aprendendo o iídiche, o mesmo tendo acontecido com alguns comerciantes de origem sefardita (espanhola  Sefarad significa em hebraico Espanha), devido à numerosa clientela de origem ashkenazita (judeu proveniente da Europa Oriental  Ashkenaz em hebraico significa Alemanha). Recordo-me como todos admiravam o empregado de cor que desde menino trabalhava numa fábrica de capas e que falava fluentemente o iídiche. O seu patrão nunca conseguiu aprender o português. Não fazia uso do idioma: negociava somente com judeus; social e ideologicamente só convivia com judeus, seus companheiros de ideias, adeptos do movimento socialista israelita Bund. (O movimento Bund foi fundado em fins do século XIX na Rússia e era anti-sionista. Lutava pelo direito das minorias nacionais.) Por isso mesmo, o iídiche para ele era mais do que suficiente. 
 
Se a Praça Onze regurgitava de judeus durante o dia, o movimento à noite não era menor  passeava-se nas calçadas e no jardim, mormente antes de sua reforma. 
Nas casas dos anos vinte não existiam instalações de ar condicionado. Morava-se, geralmente, num espaço apertado, por questão de economia. Quanto ao arejamento, a arquitetura da época não se preocupava muito com esse tipo de conforto. Por isso, aproveitava-se no verão as noites de bom tempo para passear ou ficar sentado nas calçadas em frente às suas moradias, para se refrescar. 
Além da população judaica que lá habitava, a Praça Onze era frequentada durante a noite por dirigentes e associados das várias instituições judaicas que ali mantinham sede. Compareciam os sócios do Clube Juventude Israelita, da Biblioteca Scholem Aleichem, ou de outras instituições, para conversar, assistir ou participar de algum empreendimento, trocar um livro, ler algum periódico. 
Os imigrantes recém-chegados, solteiros, e os que estavam sem família, também ficavam na Praça Onze até altas horas da noite. Após o fechamento do comércio, faziam as suas refeições no bairro. Na Praça Onze e nas proximidades várias pensões familiares forneciam refeições dos tradicionais pratos da cozinha judaica. Além disso, havia o Restaurante Schneider que, de início, estava instalado num sobrado da rua Visconde de Itaúna e, depois, passou a funcionar na rua Santana, 72. 
O Schneider foi durante longos anos um dos endereços mais populares da comunidade judaica carioca. 
O restaurante abria, geralmente, às 11 horas da manhã e fechava à meia noite. Se, durante os dias da semana, era difícil conseguir um lugar nas horas habituais de almoço e jantar, aos sábados e domingos então, nem falar. Havia filas intermináveis na calçada e esperava-se horas. Para ser atendido mais rapidamente, era preciso gozar da amizade pessoal do proprietário Schneider, de seu genro Bernardo ou pelo menos do chefe dos garçons. O local não era grande e não tinha capacidade para acomodar muita gente. 
O Restaurante Schneider foi dos últimos estabelecimentos a cerrar as portas quando ocorreu a reurbanização daquele bairro. Enquanto foi possível, Bernardo, que herdou o restaurante, o manteve em funcionamento, e muitos de seus antigos clientes vinham de quando em vez, na hora do almoço, com o duplo objetivo de matar as saudades dos pratos típicos da cozinha judaica e pela nostalgia que sentiam da Praça Onze que estava acabando. 
 
Embora predominasse na população judaica nos anos vinte a atividade do vendedor ambulante, havia imigrantes que se recusavam terminantemente a tornar-se mascates. Sem profissão determinada e sem idioma, não foi fácil para eles arranjarem ocupação. Alguns foram trabalhar como condutores de bonde. O movimento desse meio de transporte no Rio, naquela época, era grande, pois interligava quase todos os bairros da cidade. A maioria dos condutores e fiscais era de portugueses. Com o crescimento da imigração judaica, houve uns poucos que optaram por esse ganha-pão. 
O trabalho de condutor não era fácil nem confortável. Fizesse calor ou chovesse, durante dez a doze horas ininterruptas, o condutor devia fazer acrobacias para poder movimentar-se de um extremo a outro do carro, nos estribos, que não eram cobertos, trajando o uniforme que a Companhia lhes fornecia e que não era feito de um tecido próprio para o clima. O condutor devia cobrar o preço da passagem e registrar no relógio o número de passageiros. Precisava ter uma boa memória para lembrar-se dos que já haviam pago pelo percurso e observar os que embarcavam durante as paradas, muito próximas umas das outras. 
Tive a oportunidade de travar amizade com um desses condutores, um jovem imigrante originário da Transilvânia. Talentoso, com uma bagagem intelectual bastante expressiva para a sua idade, não se conformou em tornar-se vendedor ambulante. Não tinha nenhuma inclinação para esse tipo de comércio. Obrigado a manter-se de alguma maneira, preferiu ser condutor. Permaneceu pouco tempo nessa profissão, porque era muito cansativa. De natureza boêmia, com alguns recursos que conseguira acumular, lançou-se em busca de melhores oportunidades no Nordeste e, posteriormente, partiu para o exterior. Nunca mais tive notícias de seu paradeiro. Deixou-me como recordação uma foto em companhia de um seu colega de trabalho, ambos trajando o uniforme de condutor. Essa foto me serve como documento autêntico para comprovar a participação judaica nessa profissão árdua e difícil, mas que propiciou situação vantajosa para os poucos persistentes. 
 
Dois condutores de bonde judeus; o da esquerda é Mendel Elefant. Crédito pela foto: Samuel Malamud (p. 35)
 
Na Praça Onze também não faltavam desocupados e preguiçosos que simplesmente não gostavam de fazer força. Perambulando o dia inteiro pelos botequins, jogando ou assistindo ao bilhar, acomodavam-se junto a algum conhecido ou conterrâneo, que por acaso encontrassem, para filar um cafezinho, um chope, um sanduíche ou um cigarro. Alguns entravam em pensões particulares e mesmo no restaurante Schneider, para tentar conseguir uma refeição à custa de alguém. Viviam de "mordidas", sonhando com algum ganha-pão que não exigisse esforço. 
 
Nos meses de verão, quando o calor era demasiado, grande parte da população judaica da Praça Onze se dava ao luxo de tomar banho de mar, seguindo o exemplo de seus vizinhos não judeus. Nas madrugadas, principalmente aos sábados e domingos, famílias inteiras enchiam os bondes que levavam às margens da baía da Guanabara, nas imediações da parte do porto denominada Ponta do Caju. O bonde atravessava a rua Senador Euzébio e a viagem levava de 15 a 20 minutos até o ponto de destino. Com o bonde que partia da rua Santana, outros banhistas preferiam as imediações do Mercado Municipal, que então funcionava na Praça 15 de Novembro, nas proximidades do ponto de onde até hoje partem as barcas para Niterói, ilha do Governador e Paquetá. Eram as célebres barcas da Cantareira. 
O movimento dos banhistas era grande e tinha-se a impressão de que se tratava de uma excursão coletiva de lazer. A algazarra era imensa. Todos falavam e cantavam algo e ao mesmo tempo. Iam já vestidos com roupas de banho e envoltos em toalhas. Alguns levavam farnel, porque programavam ficar por mais tempo à beira-mar. Muitas vezes participei com meus pais desses banhos de mar. Chegamos a experimentar o gosto dos banhos tanto da praia do Caju como os da Praça 15 de Novembro. Quando me lembro das águas na praia do Caju, gordurosas do óleo e sujas dos despejos dos navios cargueiros que por lá ficavam ancorados, ou das águas poluídas da Praça 15, onde flutuava toda sorte de legumes e frutas estragadas que os comerciantes do mercado municipal que lá funcionava lançavam na baía, não consigo compreender como entrava naquelas águas. 
Se os frequentadores da Praça 15 não se perturbavam com os detritos, os da praia do Caju achavam que aquelas águas gordurosas curavam reumatismo. Na verdade, era a sua necessidade de um pouco de distração, de algo diferente, que justificava tudo. 
Quem ousava naqueles anos ir tomar banho na praia do Flamengo ou Botafogo? Somente uns poucos comerciantes já bem situados na vida, alugavam táxi e mandavam suas famílias para aquelas praias, ficando o carro à espera. Era um luxo que só um ricaço se poderia permitir. Copacabana nem entrava em cogitação. 
Quando alguma figura de destaque  escritor, conferencista, emissário de alguma entidade mundial  chegava ao Rio em visita à comunidade, era levado a passeio, de preferência à noite, pelas praias da Avenida Atlântica, para que pudesse apreciar os variados estilos arquitetônicos das luxuosas residências daquela avenida e admirar o cintilante colar de pérolas formado pela sua iluminação. Esse colar luminoso era um cartão de visitas do Rio da época. Ipanema e Leblon ainda eram desertos de areia. 
 
A sinagoga mais antiga da Praça Onze  Beith Iaakov, fundada em 1916  marcou o início da organização comunitária. Nos anos vinte, essa sinagoga não tinha nenhuma dificuldade em promover as rezas tanto matutinas como as da tarde e da noite. Havia sempre um minyan (número mínimo de dez varões maiores de 13 anos de idade). A sinagoga denominada Beith Israel, com sede na rua Santana, 12, foi fundada mais tarde por um grupo de dissidentes da primeira. Conforme relata o comunicado publicado no número comemorativo do primeiro aniversário do semanário Dos Iídiche Vochenblat, datado de 14 de novembro de 1924, os fundadores da Beith Israel queriam uma sinagoga em bases democráticas e, por isso, retiraram-se da Beith Iaakov que se achava dominada por um grupo prepotente que não admitia mudanças na direção. A sinagoga Beith Israel foi a primeira a ter sede própria. Além destas duas sinagogas, havia, ainda, outros pequenos agrupamentos (minyanim) religiosos, que se organizavam de acordo com a sua cidade de origem, ou com a sua filiação chassídica. 
A Beith Iaakov contava na época com um grande número de sócios e era a mais importante da Praça Onze. Não era suficientemente espaçosa para acolher maior número de pessoas nas datas religiosas mais importantes. A diretoria cogitou de construir um templo que atendesse ao crescimento da comunidade. Mas, enquanto essa ideia não se concretizava, alugava-se para as datas religiosas mais concorridas o salão do Clube Ginástico Português, que ficava na rua Buenos Aires, entre a Praça da República e a Avenida Passos. Era um salão amplo, com enormes espelhos nas paredes e que podia comportar o numeroso público que comparecia às rezas de Ano Novo (Rosh Hashaná) e Dia do Perdão (Yom Kipur). Esse salão era também alugado, com frequência, por diversas entidades judaicas para outros empreendimentos, devido à sua proximidade da Praça Onze e por comodidade. 
 
A comissão formada para a compra do terreno em que se ergueria o templo julgava que o bairro da Praça Onze continuaria sendo por longos anos o centro da vida judaica do Rio. Além da sinagoga, pretendia-se construir um centro social. Foi comprado, então um enorme terreno na esquina das ruas Tenente Possolo e Henrique Valadares, nas proximidades da rua Conselheiro Josino, perto do Centro Israelita Brasileiro Bené Herzl, da comunidade sefardita cuja construção antecedeu à do templo e foi inaugurado em 16 de junho de 1929. 
A campanha para angariar os recursos para a construção do templo começou com a venda de títulos de sócio fundador, com direito a um lugar permanente e marcado na sinagoga, como é de praxe. Mas logo surgiram as dificuldades. Já então, numerosos judeus, economicamente bem situados, começavam a mudar suas residências da Praça Onze para outros bairros surgindo núcleos judaicos na Tijuca, em Vila Isabel, nas localidades suburbanas da Central do Brasil e da Leopoldina, onde se iam formando centros religiosos e culturais. Havia, ainda, o problema da locomoção. Os preceitos religiosos ortodoxos proíbem aos devotos viajar aos sábados e demais dias sagrados. 
O orçamento para a construção do templo ia crescendo continuamente, devido ao encarecimento constante dos materiais e da mão de obra. Isso levou a comissão a desmembrar uma parte do terreno e pô-la à venda, renunciando, assim, à construção do centro social. O lote desmembrado foi adquirido por um cidadão português, que ergueu ali um edifício que até hoje existe e a que deu curiosamente o nome de "Graças a Deus"... 
O templo serviu durante longos anos como centro de congregação da comunidade, ao qual comparecia grande número de fiéis com suas famílias, principalmente nos dias mais santificados. Além disso, realizava-se no templo a maioria dos casamentos, bar-mitzvoth e demais atos religiosos de importância. Atualmente, toda a região onde o templo fica situado se esvaziou do elemento judeu. Nos dias da semana, é impossível reunir dez elementos para o mynian. Aos sábados, ainda acontece, de quando em vez, uma cerimônia de bar-mitzvá ou um casamento. Mesmo nos dias mais santificados, quando os familiares dos antigos fundadores costumam comparecer para a prece em sua memória, o número é bastante reduzido. Há alguns anos vieram integrar o quadro social do templo os sócios remanescentes da sinagoga Beith Israel, cujo prédio na rua Santana foi desapropriado e demolido em virtude das obras do Metrô. Eles transferiram para a caixa do templo a importância recebida pela desapropriação mediante a condição de serem admitidos como sócios do mesmo. Por diversas vezes se tem tentado reavivar o funcionamento do templo. O mesmo acaba de passar por uma radical reforma, mas a sua situação geográfica não ajuda. Em diversos bairros foram construídas novas sinagogas, que atendem às respectivas concentrações judaicas, sediadas principalmente na zona sul da cidade. Além disso, toda a vida religiosa em geral sofreu uma grande transformação nos últimos anos. A maioria da comunidade se está alheando da prática religiosa e da tradição. 
O templo da rua Tenente Possolo serve hoje como marco de uma época da história da comunidade judaica e representa um monumento que a mesma tem por obrigação conservar. 
Recordo-me muito bem do tempo em que o templo foi construído, e do esforço e sacrifício dos ativistas que atuaram neste trabalho. A comissão de construção recebeu, então, uma grande ajuda financeira do filantropo Wolf Kadischevitch Klabin, um dos colocadores da pedra fundamental, e ainda de um judeu norte-americano, o milionário Marvin, que vivia no Rio de Janeiro, mas mantinha pouco contato com a comunidade judaica. Contribuiu muito com o seu prestígio e estímulo o rabino Dr. Isaías Rafalovitsch, que representava a Jewish Colonization Association no Brasil, (...) conhecida pela sigla JCA e que os judeu pronunciam ICA, da maneira como é lida em iídiche. (...)

* SAMUEL MALAMUD (1908-2000), advogado, nascido na Ucrânia em 1908, chegou ao Rio de Janeiro em dezembro de 1923. A partir dos anos 30, transformou-se em um dos mais influentes representantes da comunidade judaica no Brasil. Em 1948, Malamud foi o primeiro Cônsul de Israel no país. Fundou e presidiu, entre outras entidades, a Federação Israelita do Brasil e o Clube Hebraica. Morreu dia 11 de março de 2000, aos 91 anos, de infarto, no Rio de Janeiro.


II. NOTA EXPLICATIVA pelo gerente do Blog de São João del-Rei
 
¹ Por exemplo, eis os versos da canção “Praça Onze,” de autoria de Grande Otelo e Herivelto Martins, interpretada pelo Trio de Ouro, Castro Barbosa & Regional de Benedito Lacerda:
 
Praça Onze
Música: Herivelto Martins

Vão acabar com a Praça Onze
Não vai haver mais Escola de Samba, não vai
Chora o tamborim
Chora o morro inteiro
Favela, Salgueiro
Mangueira, Estação Primeira
Guardai os vossos pandeiros, guardai
Porque a Escola de Samba não sai
 
Adeus, minha praça Onze, adeus 
Já sabemos que vai desaparecer
Leva contigo a nossa recordação
Mas ficarás eternamente em nosso coração
E algum dia nova praça nós teremos
E o teu passado cantaremos
 
Segundo o site  Receita de Samba, in Herivelto Martins e a Praça Onze...:
"Em 1941, Hereivelto Martins foi procurado pelo amigo Grande Otelo que trazia uma letra sobre o fim da Praça Onze, que seria demolida para a construção da Avenida Presidente Vargas.
Ao dar uma olhada na letra,  gigantesca, Herivelto disse que não estava interessado. Grande Otelo insistiu tanto que Herivelto acabou compondo uma nova letra e fez o samba sozinho. Incluiu o amigo apenas por ter sugerido o tema.
Nascia ali um dos maiores sucessos do compositor, o samba “Praça Onze”, gravado em 1941 pelo Trio de Ouro e que foi um grande sucesso no carnaval do ano seguinte."

 
III. AGRADECIMENTO
 
À minha amada esposa Rute Pardini pela edição e ajuste de imagens da autoria de terceiros.
 
 
IV. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
 

MALAMUD, Samuel: Recordando a Praça OnzeRio de Janeiro: Kosmos Editora, 1988, 119 p.
 
FREIRE, Quintino Gomes: O Rio Judaico valoriza legado cultural e educacional de Samuel Malamud, Diário do Rio, edição de 20/05/2025
 
Links consultados em 12/09/2025:

domingo, 7 de setembro de 2025

VERSOS ADORMECIDOS

Por ANTÔNIO CARLOS SECCHIN *

Um passeio pela trajetória do poeta alagoano Guimarães Passos, cujo trabalho permanece esquecido.
Matéria originalmente publicada pelo blog Rascunho na Edição nº 241 de maio de 2020 e transcrita aqui.
O gerente deste blog agradece ao fotógrafo da Natureza, Amaro Luiz Alves, o envio do presente texto com a sugestão de publicá-lo nesta página.

Guimarães Passos (✰ Maceió, 22/03/1867 ✞ Paris, 09/09/1909)

 

Membro da Academia Brasileira de Letras. Nascido em Maceió, deixou as Alagoas bastante cedo: aos 19 anos, veio para o Rio de Janeiro, onde inicialmente trabalhou na imprensa e consolidou sua carreira de homem de letras. Praticou vários gêneros literários, mas notabilizou-se como poeta. Exímio cultor das formas fixas, destacou-se não só pela vertente lírica, mas pelo cultivo de uma verve mordaz e satírica, que o levou a indispor-se com alguns escritores e confrades. Faleceu na Europa. Estou me referindo a Guimarães Passos. 
 
Membro-fundador da cadeira 26 da ABL, hoje ocupada por Marcos Vilaça ¹. Seu patrono foi o escritor, igualmente lírico, satírico e boêmio, Laurindo Rabelo, cognominado o Poeta Lagartixa. Sucedido por outro entusiasta frequentador da vida noturna, Paulo Barreto, dito João do Rio. Depois, de temperamento mais moderado, vieram Constâncio Alves, Ribeiro Couto, Gilberto Amado e Mauro Mota. 
 
Sua vida atribulada foi objeto de um delicioso livro, Guimarães Passos e sua época boêmia (1953), de Raimundo de Menezes. Anedotas de um Rio belle époque, onde era de bom-tom morrer cedo, e longe do rincão natal, de preferência na França, mesmo que todos consideremos que é melhor estar vivo no Afeganistão do que estar morto em Paris. Guimarães passou para o Além aos 42 anos. Olavo Bilac, mais longevo, faleceu aos 53. 
 
Não é gratuita a menção a Olavo Bilac, a quem o alagoano certa feita denominou “queridíssimo irmão”. Foi intensa a parceria com Bilac, sob cujas asas Guimarães Passos sempre encontrou guarida. Com efeito, quatro livros estamparam a coautoria dos dois escritores. 
 
O primeiro deles, Pimentões, de 1897, com versos humorísticos e maliciosos, anteriormente divulgados no jornal O Filhote, foi publicado sob os pseudônimos Puff (Guimarães) & Puck (Bilac). 
 
A seguir, o Tratado de versificação, de 1901, fortemente inspirado no Tratado de metrificação, de António Feliciano de Castilho, de 1851, livro que consolidou o sistema hoje em vigor na língua portuguesa. Até a primeira metade do século 19, seguíamos o modelo espanhol, que consiste, para finalidade métrica, em adicionar uma unidade à última sílaba tônica. Assim, durante séculos, Os Lusíadas foi considerado poema com versos de 11 sílabas, e não de versos decassilábicos. 
 
Outra coautoria registrou-se no Guide des États-Unis du Brésil, de 1904, com a colaboração de Bandeira Júnior. Nunca reeditado ou traduzido em português, trata-se de importante publicação, que, após traçar em linhas gerais a história de nosso país, concentra-se no Rio de Janeiro. Um grande mapa anexo ao livro permite que conheçamos em detalhes a configuração da cidade em pleno transcurso da gestão Pereira Passos (1902-1906), ou seja, o Rio de Machado de Assis e de Aluísio Azevedo. Dentre as informações do Guia, lê-se, no tópico dos feriados nacionais, que eles se resumiam a 10, nenhum deles de caráter religioso. Ao dia 3 de maio era atribuída a chegada de Pedro Álvares Cabral ao nosso território. Sobre a datação do evento, escreveram Guimarães Passos e Bilac [minha tradução]: “O Brasil foi descoberto em 22 de abril de 1500. Fazendo no calendário gregoriano a correção necessária, esta data corresponde a 3 de maio. É nesse dia que se comemora oficialmente a descoberta”. O Brasil de Bilac e Guimarães correspondia, basicamente, ao espaço carioca, ou, como à época se dizia, fluminense. A rigor, o livro poderia chamar-se Guia do Brasil e/ou do Rio de Janeiro. Os registros sobre a então capital federal ocupam mais da metade do volume, acrescidos de um alentado anexo publicitário, com a indicação de centenas de estabelecimentos comerciais, de prestadores de serviço ou de locais de lazer e prazer. Dentre eles, um certo Teatro Follies Brésiliennes, situado à Rua do Catete, prometia aos frequentadores “diversões de toda espécie”. 
 
Mesmo numa obra sem parceria em vida, sucedeu uma aliança póstuma. Referimo-nos ao Dicionário de rimas. Na sua segunda edição, de 1913, lê-se a advertência: “Estando esgotada a edição /…/ de Guimarães Passos [de 1904], confiamos agora ao senhor Olavo Bilac o cuidado de fazer a revisão do trabalho”. É espantoso que, num curto lapso de tempo — dois anos — tenham sido publicadas duas obras sobre tão específico assunto, uma vez que em 1906 Mário de Alencar lançava o seu Dicionário das rimas portuguesas, sem fazer, porém, qualquer menção à obra do confrade da ABL, à qual ele certamente tivera acesso. Cotejamos ao acaso a listagem de três conjuntos de rimas em ambos os dicionários, e constatamos que das 38 palavras repertoriadas por Passos em 1904, 37 reapareceram no livro de Alencar, em 1906. Para evitar a pecha de cópia integral, Mário, nas opções para rimas em “ávida”, cuidou de suprimir o adjetivo “pávida”. 
 
Num assomo de rara franqueza, que decerto não terá agradado ao editor H. Garnier, Mário, na introdução ao livro, assim se expressou: “A ideia desta obra não partiu de mim. Por espontânea resolução, eu não a faria nunca, entre outras razões porque não sinto gosto para esta espécie de trabalho e porque tenho dúvidas sobre a utilidade de um Dicionário de rimas”. Praticou o que hoje denominaríamos de “sincericídio”, termo, aliás, que ainda não consta de nenhum dicionário, e cujas potenciais rimas são capazes de inspirar muitos poemas de natureza mórbida. 
 
Obras individuais 
 
A Academia Brasileira de Letras repôs em circulação a obra de Guimarães Passos, reeditando, em 1997, suas duas únicas coletâneas poéticas individuais: Versos de um simples, de 1891, e Horas mortas, de 1901. O autor nos legou, no total, apenas 147 peças, das quais exatamente uma centena em forma de soneto. 
 
Versos de um simples contou com um alentado prefácio de Luís Murat, de quem o poeta foi muito próximo. Guimarães Passos agiu bem e com prudência ao cultivar essa amizade, pois o prefaciador, independentemente dos dotes propriamente literários, era bastante temido por seus sucessivos rompantes, que não raro descambavam para o confronto físico, sendo Murat, ademais, conhecido como um exímio capoeirista. 
 
Nesse livro de estreia, a epígrafe é de Camões, o que atesta a índole reclassicizante do Parnasianismo. Em dois momentos Olavo Bilac comparece, de modo oblíquo: nos poemas Luta, a ele dedicado, e Nel mezzo del cammin, cujo título se apropria de um verso de Dante, procedimento idêntico ao que Bilac utilizara, três anos atrás, num soneto de suas Poesias. Em Versos de um simples, encontra-se o mais famoso texto de Passos, notório a ponto de incomodamente reduzir o autor à condição de poeta de um poema só, conforme, anos mais tarde, seria o caso de Júlio Salusse com o famigerado Cisnes. Em Guimarães, os versos em voga foram os de Teu lenço
 
Esse teu lenço que eu possuo e aperto 
De encontro ao peito quando durmo, creio 
Que hei de um dia mandar-t’o, pois roubei-o, 
E foi meu crime, em breve, descoberto. 
 
Luto, contudo, a procurar quem certo 
Possa nisto servir-me de correio; 
Tu nem calculas qual o meu receio, 
Se, em caminho, te fosse o lenço aberto… 
 
Porém, ó minha vívida quimera! 
Fita as bandas que habito, fita e espera, 
Que, enfim, verás em trêmulos adejos 
 
Em cada ponta um beija-flor pegando, 
Ir o teu lenço pelo espaço voando 
Pando, enfunado, côncavo de beijos. 
 
Seu segundo e derradeiro conjunto de poemas, Horas mortas, foi acolhido com elogios e ressalvas pelo crítico e historiador José Veríssimo. No ensaio Alguns livros de 1901, após elencar mais de uma vintena de livros de poesia lançados naquele ano, observou: “A maior parte destes poetas não tem editores, publicam-se a si mesmos, à sua custa e certamente alguns com grande sacrifício. Mostra isso uma das feições de nossa vida literária, e as precárias condições materiais da literatura e do homem de letras aqui […] segundo me observava um dos nossos editores, isto é uma terra em que todo mundo faz versos, mas onde ninguém os compra”. Sobre Guimarães Passos declarou: “Poeta delicado, de emoção ligeira e superficial […] verso natural e espontâneo, poeta despretensioso […] É gracioso, é mesmo belo, de uma beleza especial, não muito alta, mas que começa a ser rara em nossa poesia”. 
 
Para demonstrar o satisfatório nível poético de Passos, Veríssimo transcreveu Guarda e passa
 
Figuremos: tu vais... É curta a viagem; 
Tu vais e, de repente, na tortuosa 
Estrada vês, sob árvore frondosa, 
Alguém dormindo à beira da passagem; 
Alguém, cuja fadiga angustiosa 
Cedeu ao sono; em meio da ramagem 
Exausto dorme... Tinhas tu coragem 
De acordá-lo? Responde-me, formosa. 
 
Quem dorme, esquece... Pode ser medonho 
O pesadelo que entre o horror nos fecha, 
Mas sofre menos o que sofre em sonho. 
Oh! Tu que turvas o palor da neve, 
Tu que as estrelas escureces, deixa 
Meu coração dormir… Pisa de leve. 
 
A posteridade pisou tão de leve na poesia de Guimarães Passos, que não conseguiu tirá-la do esquecimento em que ela até hoje... infelizmente permanece adormecida. 
 
 
* Poeta, professor, ensaísta, escritor, crítico literário brasileiro e membro da ABL, eleito em 3 de junho de 2004, sucedendo Marcos Almir Madeira na cadeira 19.
 
 
 
II. NOTA EXPLICATIVA do gerente do Blog de São João del-Rei
 
 
¹ Atualmente a cadeira nº 26 é ocupada por José Roberto de Castro Neves, eleito em 29/05/2025, após o falecimento de seu antecessor, Marcos Vilaça, dois meses antes, em 29/03/2025.