terça-feira, 2 de setembro de 2025

FOTOJORNALISMO

Por OLAVO BILAC

Crônica originalmente publicada na Gazeta de Notícias, edição de 13 de janeiro de 1901 e aqui transcrita de BILAC, O JORNALISTA-Crônicas volume 1, pp. 395-7. Organização: Antonio Dimas. São Paulo: Edusp/Ed. Unicamp/Imprensa Oficial de SP, 2006.

 

Vem perto o dia em que soará para os escritores a hora do irreparável desastre e da derradeira desgraça. Nós, os rabiscadores de artigos e notícias, já sentimos que nos falta o solo debaixo dos pés... Um exército rival vem solapando os alicerces em que até agora assentava a nossa supremacia: é o exército dos desenhistas, dos caricaturistas e dos ilustradores. O lápis destronará a pena: ceci tuera cela ¹
 
O público tem pressa. A vida de hoje, vertiginosa e febril, não admite leituras demoradas, nem reflexões profundas. A onda humana galopa, numa espumarada bravia, sem descanso. Quem não se apressar com ela será arrebatado, esmagado, exterminado. O século não tem tempo a perder. A eletricidade já suprimiu as distâncias: daqui a pouco, quando um europeu espirrar, ouvirá incontinenti ² o “Deus te ajude” de um americano. E ainda a ciência humana há de achar o meio de simplificar e apressar a vida por forma tal que os homens já nascerão com dezoito anos, aptos e armados para todas as batalhas da existência. 
 
Já ninguém mais lê artigos. Todos os jornais abrem espaço às ilustrações copiosas, que entram pelos olhos da gente com uma insistência assombrosa. As legendas são curtas e incisivas: toda a explicação vem da gravura, que conta conflitos e mortes, casos alegres e casos tristes. 
 
É provável que o jornal-modelo do Século Vinte seja um imenso animatógrafo ³, por cuja tela vasta passem reproduzidos, instantaneamente, todos os incidentes da vida quotidiana. Direis que as ilustrações, sem palavras que as expliquem, não poderão doutrinar as massas nem fazer uma propaganda eficaz desta ou daquela ideia política. Puro engano. Haverá ilustradores para a sátira, ilustradores para a piedade. 
 
Quando o diretor do jornal quiser dizer que o povo morre de fome, confiará as suas ideias a um pintor de alma fúnebre, que mostrará na tela os cadáveres empilhados pelas ruas, sob uma revoada de corvos sinistros; quando quiser dizer que político X é um cretino que não vê dois palmos adiante do nariz, apelará para o talento de um caricaturista, que, pintando a vítima com um respeitável par de imensas orelhas, claramente exprimirá o pensamento da folha. Demais, nada impede que seja anexado ao animatógrafo um gramofone de voz tonitruosa , encarregado de berrar ao céu e à terra o comentário, grave ou picante, das fotografias. 
 
E convenhamos que, no dia em que nós, cronistas e noticiaristas, houvermos desaparecido da cena – nem por isso se subverterá a ordem social. As palavras são traidoras, e a fotografia é fiel. A pena nem sempre é ajudada pela inteligência; ao passo que a máquina fotográfica funciona sempre sob a égide  da soberana Verdade, a coberto das inumeráveis ciladas da Mentira, do Equívoco e da Miopia intelectual. Vereis que não hão de ser tão frequentes as controvérsias... 
 
Quando é assassinado um homem, este jornal vem dizer que lhe coseram o copo a facadas, aquele que o asfixiaram, aquele outro que lhe estouraram o crânio a tiros de revólver. Ora, o público tem pressa: como há de perder tempo em procurar a verdade dentro deste acervo de contradições e de divergências?... 
 
Há dias, foi preso um sujeito por espancar uma mulher. E os repórteres puseram em campo toda a sua fantasia, com tal gana que o pobre homem veio ontem a público elucidar o caso, conforme se vê nesta sua declaração, textualmente transcrita dos "a pedido"do Jornal do Comércio: "Os jornais deram desencontradas notícias acerca de um crime hediondo que uns vizinhos me imputaram. As versões são diferentes: o Jornal do Brasil anteontem afirmou que eu espanquei minha própria mãe; O País de ontem contou que eu bati em minha tia; O Dia relatou que eu ofendi a minha irmã..." 
 
Concebe-se maior atrapalhação? A verdade é que a mulher espancada não era mãe, nem tia, nem irmã, nem mesmo avó do desgraçado! E é assim que se escreve a História... 
 
Imagine-se agora a série formidável  de complicações que podem trazer esses exageros de fantasia, quando empregados em caso sério, de alta monta para a vida moral da nação. 
 
Uma folha virá dizer amanhã que o Senhor Presidente da República foi a tal ou qual festa, trajando um terno de casimira marrom; outra diria que S. Ex. vestia um dólmã  branco... E a gente, diante de tantas opiniões diferentes, ficará com o juízo a arder, não podendo adquirir uma ideia assentada e perfeita sobre esse ponto, que tão grave influência pode exercer sobre a integridade da pátria e a solidez das instituições republicanas. 
 
Outro caso interessante: o do amigo Galvez, que, depois de ter transposto a porta da eternidade, aparece agora espairecendo pela Puerta del Sol em Madri. É ele? não é ele? quem sabe? fotografem-no, e veremos...
 
Não insistamos sobre os benefícios da grande revolução que a fotogravura vem fazer no jornalismo. Frisemos apenas este ponto: o jornal animatógrafo terá a utilidade de evitar que nossas opiniões fiquem, como atualmente ficam, fixadas e conservadas eternamente, para gáudio dos inimigos... Qual de vós, irmãos, não escreve todos os dias quatro ou cinco tolices que desejariam ver apagadas ou extintas? Mas, ai! de todos nós! Não há morte para as nossas tolices! Nas bibliotecas e nos escritórios dos jornais, elas ficam  as pérfidas!  catalogadas; e lá vem um dia em que um perverso qualquer, abrindo um daqueles abomináveis cartapácios , exuma as malditas e arroja-as à face apalermada de quem as escreveu... Daqui em diante, não haverá esse perigo: ninguém se arrependerá do que tiver escrito, pela razão única e simples de que nada mais se escreverá... 
 
No jornalismo do Rio de Janeiro, já se iniciou a revolução, que vai ser a nossa morte e a opulência dos que sabem desenhar. Preparemo-nos para morrer, irmãos, sem lamentações ridículas, aceitando resignadamente a fatalidade das coisas, e consolando-nos uns aos outros com a cortesia de que, ao menos, não mais seremos obrigados a escrever barbaridades... 
 
Saudemos a nova era da imprensa! A revolução tira-nos o pão da boca, mas deixa-nos aliviada a consciência.
 
GLOSSÁRIO
 
¹ ceci tuera cela - isto vai matar aquilo
²  incontinenti - sem demora
³ animatógrafo - o mesmo que cinematógrafo, aparelho que registra as imagens em uma série de instantâneos, criando a ilusão de movimento ao projetar os fotogramas sucessivamente em uma tela
tonitruosa - com o volume alto
égide - proteção
formidável - terrível, aterrador (uso antigo)
dólmã branco - espécie de túnica militar; modernamente usado por chefs de cozinha
cartapácios - cadernos de apontamentos; maços de papéis manuscritos

II. COMENTÁRIOS
sobre a crônica

Na prova de português/literatura do vestibular para a UERJ-2014/1º exame de qualificação foi apresentada essa crônica de Olavo Bilac, para a qual foram propostas cinco questões com respostas de múltipla escolha em que apenas um dos quesitos estava correto. 
Aproveito a ciência do formulador das questões sobre a crônica para apresentá-las no formato em que foram propostas aos candidatos.
 
1ª Questão
Já em 1901, o escritor Olavo Bilac temia que a imagem substituísse a escrita. No entanto, ele reconhecia aspectos positivos dessa possível substituição.
Um desses aspectos é observado no seguinte trecho:
(A) O século não tem tempo a perder.
(B) Já ninguém mais lê artigos.
(C) aceitando resignadamente a fatalidade das coisas,
(D) não mais seremos obrigados a escrever barbaridades...

Alternativa correta: D

Comentário da questão: A possível substituição da imagem pela escrita, prevista pelo escritor Olavo Bilac em 1901, teria como óbvia consequência a diminuição radical dos textos escritos. Como para Bilac muitos desses textos contêm bobagens e barbaridades, a notícia positiva é que essas bobagens e barbaridades não precisariam mais ser proferidas.

2ª Questão
A profecia para os escritores, anunciada na primeira frase do texto de forma extremamente negativa, se opõe ao tom e à conclusão do texto.
Considerando esse contraste, o texto de Bilac pode ser qualificado basicamente como:
(A) irônico
(B) incoerente
(C) contraditório
(D) ultrapassado
 
Alternativa correta: (A)

Comentário da questão: O texto de Bilac é eminentemente irônico: ele anuncia desastres e desgraças para os escritores, de maneira exagerada, para terminar saudando as mudanças que provocarão essas “desgraças” e esses “desastres”. Logo, seu ponto de vista a respeito das mudanças é na verdade positivo. Os alvos da sua ironia são aqueles que resistem às mudanças e veem tragédia em tudo. As demais opções de resposta são na verdade críticas negativas ao estilo de Olavo Bilac que texto e contexto não autorizam.

3ª Questão
O texto, apesar de escrito no início do século XX, demonstra surpreendente atualidade, conferida sobretudo por uma semelhança entre a vida moderna da época e a experiência contemporânea.
Essa semelhança está exemplificada na passagem apresentada em:
(A) O público tem pressa.
(B) As palavras são traidoras, e a fotografia é fiel. 
(C) Não há morte para as nossas tolices! 
(D) Nas bibliotecas e nos escritórios dos jornais, elas ficam (...) catalogadas.

Alternativa correta: (A)

Comentário da questão: O elemento comum à época em que Bilac escreveu o texto e à nossa experiência contemporânea é a sensação de pressa, de urgência, por parte do público dos jornais. Esse público é formado basicamente pelos moradores das cidades, e a vida nas cidades estimula a pressa das pessoas.

4ª Questão
O cinema se popularizou no Brasil depois de esta crônica ter sido escrita. Nela, porém, o autor já antecipa o advento do novo meio de comunicação.
Um trecho que comprova tal afirmativa é:
(A) E ainda a ciência humana há de achar o meio de simplificar e apressar a vida 
(B) toda a explicação vem da gravura, que conta conflitos e mortes, 
(C) nada impede que seja anexado ao animatógrafo um gramofone de voz tonitruosa, 
(D) a máquina fotográfica funciona sempre sob a égide da soberana Verdade, 
 
Alternativa correta: (C)

Comentário da questão: O cinema pode ser definido como fotografia em movimento, já que se compõe de uma sucessão de imagens estáticas. O escritor imagina um aparelho que projete as imagens e assim as anime, chamando-o justamente de animatógrafo. Ao combinar esse animatógrafo com um gramofone, isto é, com um aparelho para emitir sons gravados, ele antecipa, em 1901, o cinema falado.

5ª Questão
Vereis que não hão de ser tão frequentes as controvérsias… 
A previsão de Bilac sobre a diminuição das controvérsias ou polêmicas, por causa da vitória da imagem sobre a palavra, baseia-se em uma pressuposição acerca da maneira de representar a realidade.
Essa pressuposição está enunciada em:
(A) o desenho critica o real e as palavras expressam consciência
(B) a fotografia reproduz o real e as palavras provocam distorções
(C) a imagem interpreta o real e as palavras precisam de inteligência
(D) a fotogravura subverte o real e as palavras tendem ao conservadorismo

Alternativa correta: (B)

Comentário da questão: Olavo Bilac entendia que as palavras são traidoras, ou seja, podem ser interpretadas de modos diversos por diferentes pessoas, o que provoca conflito e distorções. No entanto, ele supunha que a imagem fotográfica, em particular, reproduzia o real como ele é, não gerando portanto dúvida ou contestação alguma. É com base nessa compreensão prévia que o autor afirma que haverá menos controvérsia.

 

III. BIBLIOGRAFIA

BILAC, Olavo: BILAC, O JORNALISTA - Crônicas volume 1. Organização: Antonio Dimas. São Paulo: Edusp/Ed. Unicamp/Imprensa Oficial de SP, 2006, 899 p.

____________: Fotojornalismo. In DIMAS, Antonio (org.). Vossa Insolência,. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, 415 p.

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

QUANDO OLAVO BILAC FEZ RIR

Por FELIPE FORTUNA *

Originalmente publicado com o título “O humorismo, uma das facetas de Bilac” em O Estado de S. Paulo, edição de 17/12/1988, Suplemento Cultura, pp. 67-69.

 

Um ano antes de morrer de uma infecção pulmo­nar, Olavo Bilac (1865-1918) assinou uma página de publicidade na qual enaltecia as qualidades de um xarope que o teria curado de uma “bronquite perti­naz”. A presença do poeta na vida literária do Brasil, entretanto, se fez notar por muitos outros episódios bem menos irônicos: o escritor de Sagres (1898) não foi apenas o mais fulgurante e popular dos poetas parna­sianos brasileiros, defensor e esteta da es­cultura do verso, mas também folhetinista, conferencista, cronista, publicitário, e so­bretudo humorista — poeta satírico que, sempre sob pseudônimo, ridicularizava ce­nas da vida doméstica ou achincalhava pa­dres e beatas. Identificou-se, por isso, com a literatura oficial que se escrevia na Capi­tal Federal (o Rio de Janeiro) e com a vida mundana dos literatos que frequentavam as confeitarias, os salões de chá e circulavam pela Rua do Ouvidor ou pela Avenida Cen­tral com ânsia de imitar modismos pari­sienses. Sua geração de boêmios, alguns dispersando perversamente seus talentos, como Emílio de Meneses e Paula Nei, con­seguiu, no entanto, fazer do artista literário um escritor profissional: cada um deles vi­via oscilando entre a euforia do pagamento por um soneto publicado na imprensa e a depressão por não conseguir penetrar em certos círculos que poderiam abrigar tanto a Academia Brasileira de Letras quanto jornais de prestígio, a exemplo da Gazeta de Notícias. O escritor da belle-époque não era jamais avesso ao trabalho: em troca de algum dinheiro, escrevia romances, trovas, reclames, anedotas e tudo mais que o interessado quisesse. Isso explica, por exemplo a imensa bibliografia de Coelho Neto, e também a menor de Olavo Bilac — que exercitou seus méritos de versejador na tradução de “Juca e Chico”, do alemão Wilhelm Busch, para crianças, além de par­ticipar ativamente da imprensa sob a guarda de cerca de 60 pseudônimos, o mais conhe­cido sendo Fantásio, com o qual assinava suas crônicas. ¹
 
O mundanismo, a boêmia dourada e as diversas atividades dos escritores não signi­ficavam, obviamente, um desregramento visceral que os incompatibilizaria com sua sociedade: pelo contrário, era notável o esforço em fundar grêmios e associações, de congregar a elite econômica em torno das numerosas conferências literárias e de importar, sempre que possível, algum voca­bulário francês e atitudes caricatas que pas­savam por refinamento europeu da educação. Ainda que Olavo Bilac tivesse sofrido alguns meses na prisão e se visse forçado a um exílio doméstico por causa do confron­to menos com a ideologia dos governantes do que com os interesses pessoais ou de grupo, a imagem perene do poeta é a de um patriota, de um homem cívico que fomen­tou um verdadeiro culto à Pátria e o levou em peregrinação às escolas e aos banquetes nos quais se irmanava às autoridades, so­bretudo as militares. Ao morrer, portanto, Olavo Bilac estava consagradíssimo: seus sonetos há muito vinham merecendo belas molduras nas revistas lidas pelas senhoras; seu nome estava retumbantemente ligado a um projeto nacionalista de que foram exemplos seu longo poema “O Caçador de Esmeraldas” e seus sone­tos sobre lendas brasileiras. Não se pode ocultar, por isso, o poeta que muito contribuiu para a profissionali­zação do escritor no Brasil — filiando-o também ao Estado. O escritor Olavo Bilac, que prestigiosamente anunciou o xarope, dedicando-lhe um soneto que co­meça com esses dois versos:
 
Defende, Amigo o teu país. Defende-o
Como defende a sua furna o leão. 
 
era o mesmo que talvez tivesse percebido um país incurável por causa da trivialidade e do provincianismo que ele retratou nos poemas satíricos. Mas o poeta se encontrava, já próximo da morte, “radicalmente cura­do” — como confessava no anúncio. 
 
O selo parnasiano que Olavo Bilac imprimiu em seus versos divide as opiniões sobre o valor de seu talento e a perfeição de sua técnica. Esconjurado pelo Modernismo, sobretudo o da primeira fase, e reclamado pela Gera­ção de 45 como amável mestre, o poeta ainda sofre os golpes daqueles que revelam bem mais certa atitude mental diante da literatura do que uma convicção crítica so­bre seus poemas. Os mais adoradores e irracionais chegam mesmo a afirmar que o seu nome completo — Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac —, um alexandrino perfeitíssimo, é sintoma de uma predisposi­ção inata para a arte de versejar... Outros, um pouco mais ignorantes, reduzem sua obra a um só poema, “Profissão de Fé”, verdadeira ars poetica do Parnasianismo, transformando-o num estigma de sua arte, e deplorando sua preferência por mármo­res, metais e formas frias. A serena medita­ção de Mário de Andrade, num momento especialmente polêmico, vale ainda como um antídoto contra todas essas expressões da paixão exacerbada ou do ódio ditado pela incompreensão. Num artigo da série “Mestres do Passado” (1921), nomeando o poeta de “deputado da Beleza na terra do Brasil
²”, Mário de Andrade exalta a sua poesia amorosa e erótica, que conseguiu de todo modo “humanizar” o cultor da descri­ção e do detalhe que, em “A Sesta de Nero", por exemplo, teve a proeza de atenuar a importância do imperador em detrimento do cenário em que ele se encontrava: 
 
Nero no toro ebúrneo estende-se indolente... 
Gemas em profusão do estábulo custoso 
De ouro bordado vêem-se. O olhar deslumbra, ardente, 
Da púrpura da Trácia o brilho esplendoroso. 
 
Mas havia, realmente, um poeta de for­te personalidade que admirava publicamente o pré-romântico Bocage num de seus livros iniciais, e já muito famoso lhe dedica­ria uma conferência em que enalteceria o mestre que prezava tanto a sua língua por­tuguesa, o amor e o sofrimento. Talvez seja exagero considerar Olavo Bilac, como fez Ivan Junqueira em sua competente defesa publicada em O Encantador de Serpentes (1987), um versemaker, segundo a celebra­da hierarquia poundiana ³. Versemakers eram, a rigor, todos os poetas parnasianos, e a honra decerto não caberia apenas ao poeta do póstumo Tarde (1919); mas é verdade que um poeta como Théophile Gautier se tornou muito considerado pelo mesmo Ezra Pound que tanto fascinou o polemista Mário Faustino, levando este úl­timo a escrever um elogio do autor de Emaux et Camées (1852), tido por “um perfeito versejador, o que se afirma sem sombra de pejorativo. É bem verdade que Faustino foi impiedoso com o parnasianismo praticado no Brasil, ponderando que muitos dos poetas “não conseguiram passar de românticos bem comportados ”, como se lê em Poesia - Experiência (1977). 
 
O erotismo de Olavo Bilac, no entanto, era quase sempre delirante. Se é verdade que pouco acrescentava à fúria amorosa dos românticos, superava-a justamente por lhe trazer mais experiência, conferindo-lhe maior carnalidade. Mesmo em poemas relativos a um passa­do remoto, como “A Tentação de Xenócrates” ou “Satânia”, impera uma dimensão menos idealizada, que impressiona pouco pelo artifício retórico, como revelam alguns versos do último poema citado, que reproduz o monólogo da boca de uma cortesã:
 
Ardo e suspiro! Como o dia tarda 
Em que meus lábios possam ser beijados, 
Mais que beijados: possam ser mordidos. 
 
A cortesã, a mulher lúbrica e sexual, era uma imagem obsessiva em sua poesia; significativamente, o amor de Olavo Bilac pela Pátria brasileira ganhava por vezes acentos emocionais que se distinguiam precisa­mente pela presença de uma eroticidade toda exacerba­da. A transformação da terra nova e descoberta em corpo feminino talvez seja um topos típico de alguns escritores que vivenciaram as audácias dos seus nave­gantes colonizadores. Em língua portuguesa, Manuel Botelho de Oliveira compôs uma silva “À Ilha da Maré”, erotizando a terra fertilíssima de que tanto se ufanou; em língua inglesa, John Donne saudava a new-found-land como a uma mulher completamente nua, confundindo terra nova e mulher virgem. Para Olavo Bilac, o Bandeirante representava o semeador, o des­bravador, o lutador da terra. Seu personagem encontra-se presente não apenas no tom altissonante de “O Caçador de Esmeraldas”, mas também no soneto IX da série “As Viagens”, intitulado “O Brasil”. Cabe notar que a terra brasileira (palavra de gênero feminino e semanticamente identificada à mulher) só se transfor­ma em Brasil (ou seja, em homem, e, por extensão, em potência), após a passagem do Bandeirante, que vem disseminar a sua força: 
 
Beija-a! é a mais bela flor da Natureza inteira! 
E farta-te de amor nessa carne cheirosa, 
Ó desvirginador da Terra Brasileira! 
 
Não há dúvida, no entanto, de que essa concepção histórica refletia um anacronismo saudoso de um poeta que se comprazia em pertencer a uma aristocracia do espírito, pouco afeito (mas bastante impressionado) ao advento da modernidade que transformava a arquite­tura das cidades e chegava mesmo a transformar o verso, tornando-o mais musical e mais vago, como fizeram os simbolistas. Ele foi um dos maiores oposito­res do Simbolismo, e escreveu mais de uma sátira sobre os poemas novos e cheios de nebulosidades e crepúscu­los. Talvez Olavo Bilac não considerasse a literatura como uma forma de ascese, no sentido percebido por Jean Paul Sartre acerca da poesia de Mallarmé , ou não tivesse condições de restaurar intelectualmente uma aristocracia — aquela que existiu nas grandes civiliza­ções; porém, diante da gigantesca Nova Iorque, em viagem, lamentava não encontrar a mesma solenidade, o mesmo apuro bizantino a que tanto se afeiçoara: a megalópole apagava a “aura” e ascendia um cenário que não lhe fazia sentido, que a um só tempo flagrava sua predileção estética e sua despedida do mundo moderno. Em “New York”, pois, escreveu: 
 
Falta-te o Tempo — o vago, o religioso aroma 
Que se respira no ar de Lutécia e de Roma, 
Sempre moço perfume ancião de idades mortas... 
 
O poeta que tanto cultivava o passado escrevia, ao mesmo tempo, versos satíricos sobre os acontecimentos mais recentes — sobre as epidemias que atingiam o Rio de Janeiro, sobre as mudanças de ministros, sobre as enchentes. Seus sonetos, poemas e quadras espalha­vam-se por praticamente todas as publicações da épo­ca, como o jornal Novidades, ou então A Rua, Vida Semanária, Gazeta de Notícias e, mais tarde, a revista A Bruxa — de que foi fundador e diretor. A intensa colaboração de Olavo Bilac na imprensa surpreende pela quantidade — quantidade que ultrapassa a dos poemas publicados em livro. A vida acadêmica do Brasil ainda não foi capaz de gerar uma só edição crítica dos livros de Olavo Bilac, o que é mais grave não só porque se trata de um escritor exponencial de certa época literária como também por ter sido ele um poeta que corrigia frequentemente os seus versos. Não era ainda, quando criticava os costumes ou gozava a sôfre­ga sonolência do presidente Artur Bernardes, o “segun­do Olavo Bilac” que se revelaria ordeiro patriota, conforme estudo de João do Rio por ocasião da morte do parnasiano . Por algum tempo, no entanto, especial­mente entre 1895 e 1898, enchia quase diariamente as páginas da Gazeta de Notícias com poemas que glosa­vam desde uma simples sedução, seguida de estupro, até piadas sobre a velhice, a impotência e o homosse­xualismo, sem esquecer os epitáfios que dedicava aos políticos, permeados de ironia necrófila. Em 1897, quando Alberto de Oliveira perdeu seu cargo de diretor da Instrução Pública, por causa da ascensão de Alberto Torres à Presidência do Rio de Janeiro, Olavo Bilac juntou-se a Guimarães Passos e os três escreveram poemas satíricos que seriam mais tarde reunidos num volume intitulado Lira Acaciana (1900); o sucesso do gênero era grande, e, antes deste livro, fora editado em 1897, assinado por Puff & Puck, o livro Pimentões. O primeiro de seus autores era, na verdade, Guimarães Passos, companheiro satírico de jornal. Um outro satí­rico, Pedro Rabelo, editaria As Filhotadas — Casos d’0 Filhote, a seção que surgiu a 2 de agosto de 1896 para coroar o sucesso dos versos humorísticos que se espalhavam pelo jornal, a partir de então reunidos com destaque na primeira página. O editorial de apresenta­ção não fazia por menos: 
 
O Filhote, órgão que não tem partido, vem preen­cher uma lacuna que há muito se fazia sentir nesta terra em que os partidos não têm órgão. 
“A empresa que criou este Filhote andou a ver se devia dá-lo em grande formato; resolveu fazê-lo peque­no, para torcê-lo à feição das circunstâncias; e, fazen­do-o pequeno, teve medo de o deixar andar sozinho pelas ruas, e então resolveu que ele andaria, por ora, no colo da mãe. A gente da Gazeta, que é toda cheia de partes, queria que O Filhote saísse na última página, como matéria paga; mas O Filhote alegou que não era filho de preta Mina e não queria ter de virar de bordo quando chorasse para mamar. Ficou, pois, assentado que O Filhote sairia na primeira página, ao alto, encai­xado na Gazeta, como um caso de superfelação. (Nota para o sr. Malvino, do Liberdade macho: Superfelação não é nome feio.) 
“E como O Filhote ainda não teve tempo de reler os livros de Mme. Staffe, é provável que faça caretas a alguém, coisa desculpável em crianças, e deixe a língua de fora, mesmo aos poderes constituídos. 
“Com os quais tenho a honra de ser — De VV. EEx. atento venerador e criado. 
O PAI DA CRIANÇA

É compreensível que se encontrem dentre os poe­mas estampados em jornais e revistas alguns marcados pelo humor senil e até ingênuo. As anedotas muitas vezes eram previsíveis, e a obrigação de escrever assi­duamente contribuía ainda mais para a má qualidade de muitas delas. Durante a passagem do século, porém, aquelas sátiras tratavam de temas inusitados e, até certo ponto, reservados; exalavam um anticlericalismo discreto, mas constante; traziam para o público chaco­tas sobre os recessos da vida conjugal e do conflito entre os sexos. A Gazeta de Notícias divulgava, orgu­lhosamente, a quantidade de exemplares diariamente vendidos: 40.000. A população do Rio de Janeiro se nutria de jornal, ainda mais que este agregara há algumas poucas décadas um público feminino que lia com avidez os folhetins. No jornal, as carreiras literá­rias nasciam ou se enterravam; a vida jornalística, feita de muita intriga e alguns ódios, levou Olavo Bilac e Raul Pompéia à beira de um duelo, que não se consu­mou apenas em virtude da intervenção de amigos comuns. Não era mesmo possível que o poeta de Poesias (1902) se mantivesse à parte do único meio de divulgação da atividade literária. Seu estro de verseja­dor e seu atilado talento de cronista fundiram-se enfim no poeta satírico. Em 23 de outubro de 1896, por exemplo, publicava-se este “Velho Conto”: 
 
No Apolo, canta-se uma ópera, 
Em que há um drama de amor. 
A prima-dona está pálida... 
Canta aos seus pés o tenor. 
 
Num camarote, o Hermogênio 
Diz à mulher: “Que sandeu! 
“Perdes tanto tempo em cânticos... 
“Ai! que tolo! se fosse eu! 
 
“Se fôssemos nós, se fôssemos 
“Eu e tu, meu coração. 
“Certo outra coisa faríamos, 
“Que não cantigas, pois não?” 
 
Porém, com um sorriso irônico, 
Ela, abanando-se, diz: 
“Sim, pode ser!... mas se o público, 
“Marido, pedisse bis?” 
 
Uma nota predominante das composições satíricas de Olavo Bilac alude aos incidentes da vida sexual dos recém-casados, aos casos de adultério, à moral suspeita dos padres, ao homossexualismo masculino e aos tro­cadilhos inspirados nas partes corporais. Por isso mes­mo é que no prefácio a Pimentões seus autores adverti­ram: “Isto não é leitura para meninas ingênuas que não sabem o que é a vida, nem para meninos sem buço que ainda se dedicam ao saute-mouton e à peteca”. Da parte de Olavo Bilac, pelo menos, o gosto pelo erotis­mo desenfreado era evidente já nos livros publicados com seu nome; e foi Mário de Andrade, numa observa­ção espetacular sobre a sensualidade do poeta, naquele mesmo artigo, quem escreveu: “Olavo Bilac foi exímio na pintura da pornocinematografia. Felizmente poucas páginas lhe dedicou” . O crítico refere-se, é claro, ao poeta de “Primavera” — mas de certo modo explica muito sobre o poeta satírico que, com suas ambiguida­des, antes enfatizava do que atenuava o sexo, explici­tando-o e tornando-o cômico. E o que ocorre, por exemplo, nesse trecho do poema “Castigo”, em que duas mulheres comentam entre si o casamento de uma amiga com um certo Gregório, e duvidam do seu sucesso:
 
“Realmente, que destino, 
Com franqueza não atino, 
Este mundo tem enganos! 
Que o Gregório, além de feio, 
É um sujeito entrado em anos”
 
O eleito Príncipe dos Poetas Brasileiros, não reconheceria, com o título outorgado em 1913 pela revista Fon-Fon!, os versos sem qualquer nobreza ou requinte parnasiano que tratavam tão cruamente da circunstân­cia e do mundanismo. Também não reconheceria o poeta que adaptava a fábula de La Fontaine sobre a galinha dos ovos de ouro ao desastre econômico do Encilhamento; que escrevia uma “Ode ao Ba­cilo Vírgula” com a qual registrava a presença nociva da bactéria entre os cariocas; que apontava contra os inimigos políticos as agudas lanças já treinadas pelo antiflorianismo; que saudava a tromba-d’água que la­vava as ruas com mais eficiência do que a limpeza pública; que satirizava a mitologia greco-latina e os personagens históricos ou bíblicos, enxertando-os na personalidade de algum ministro ou presidente; que aproveitava as melodias populares da época para escre­ver novas letras, mais ao gosto da atualidade sócio-política; que se deslumbrava com o vazio na Câmara dos Deputados e com o bolso cheio de muitos deles; que, enfim, ao perceber alguma autoridade acordando de um sono cheio de ócio, se surpreendia: 
 
Aquela pasta (suspeito) 
Não era pasta, era leito... 
Acordou! que comoção! 
Mas não tenha medo, ó gente! 
Porque ele acordou somente 
Para pedir demissão!
 
Ainda não se escreveu um estudo que resgate a psicologia do escritor que atravessou a conflitante pas­sagem do Império para a República brasileira. Sérgio Miceli escreveu uma interessante análise sobre os anatolianos — é bom lembrar que o jovem Drummond se considerava um deles — no opúsculo Poder, Sexo e Letras na República Velha (1977). A revisão histórica do período, no entanto, aparece em boas mãos — tendo sido iniciada com Brito Broca, em A Vida literá­ria no Brasil-1900 (1956), até Cinematógrafo de Letras (1987), de Flora Süssekind, sem esquecer a interpreta­ção de Nicolau Sevcenko em Literatura Como Missão (1983). O grupo desses estudos permite compreender, ao menos, as sutilezas da vida literária brasileira duran­te uma belle-époque tão diversificada que abarcou os últimos solfejos parnasianos, a angústia transcendente dos simbolistas, a prosa um tanto positivista de Eucides da Cunha e as críticas sociais de Lima Barreto. Na entrada do século XX, a situação de um escritor como Olavo Bilac parecerá irônica: o antigo escritor que esbravejara contra o Marechal de Ferro agora sorria para as forças militares, que imediatamente endossa­ram os seus projetos para a lei do serviço militar e aplaudiram a sua doutrina da defesa nacional. Surgira, enfim, um escritor pedagogo e moralista — que parece ter transferido o rigor da métrica para uma caligrafia da disciplina. Nunca é demais lembrar o que desse instante surgiu: 
 
Pátria! latejo em ti, no teu lenho, por onde 
Circulo! e sou perfume, e sombra, e sol, e orvalho! ¹
 
Talvez fosse interessante observar certas tendências nacionalistas e guerreiras, algumas reacionárias, outras fascistas, que assombraram poetas diferentes como Bilac, D'Annunzio, Appolinaire e Ezra Pound. E, ainda, descobrir os acidentados itinerários da vida literária que muitas vezes forjavam um duplo do artista literário. Duplo que parodiava seus contemporâneos, que conhecia as mazelas da política, como fez com o célebre soneto de Luís Guimarães Jr., “Visita a Casa Paterna”, transformado em “Visita ao Tesouro”: 
 
Como um’ave que volta ao ninho antigo, 
Depois de fazer muito desaforo, 
Eu quis também rever este Tesouro, 
O meu primeiro e virginal abrigo. 
 
Entrei. Um gênio pérfido e inimigo 
(Era o espectro do Déficit!) num choro, 
Por entre ratos e gambás em coro, 
Tomou-me as mãos, e caminhou comigo. 
 
Aqui, outrora... (Oh! se me lembro e quanto!) 
Houve muito dinheiro acumulado! 
E hoje, papai, nem um vintém... O pranto 
 
Jorrou-me em ondas... Meu Tesouro amado! 
Um compadre comia em cada canto, 
Comia em cada canto um encostado! ¹¹
 
O humor é uma das heranças irrecusáveis que o poeta parnasiano, o compositor de hinos e o nacionalista que foi Olavo Bilac nos deixa. Com esta faceta, oficialmente desconhecida, será possível compor o retrato mais aproximado de um escritor que permanece conhecido apenas pela suntuosidade do beletrismo; e, no entanto, o poeta foi um dos que mais engajaram a atividade do escritor nas formas que a imprensa e a publicidade consagravam a um novo público. 
 
* Mestre em Literatura pela PUC/RJ, é poeta, ensaísta e diplomata. Autor de Ou Vice-Versa (1986), Atrito (1992) e Estante (1997), poemas; A Escola da Sedução (1991) e A Próxima Leitura (2002), crítica literária; Curvas, Ladeiras - Bairro de Santa Teresa (1997) e Visibilidade (2000), ensaios. Traduziu a obra integral da poeta francesa Louise Labé no volume Amor e Loucura (1995).
 
 
 
II.  AGRADECIMENTO 

À minha amada esposa Rute Pardini Braga pela formatação dos registros fotográficos utilizados neste trabalho. 

 
III. NOTAS EXPLICATIVAS
 
 
¹ Cf. J. Galante de Sousa, “Olavo Bilac e seus Pseudônimos”, in Machado de Assis e outros estudos, pp. 41-75. Trata-se do trabalho mais exaustivo e guia perfeito para a identificação dos pseudônimos do poeta. No mesmo volume, também importante o estudo “Um Livro Chamado Pimentões”, pp. 201-210. 
 
² Apud Mário da Silva Brito, História do Modernismo brasileiro. 1. Antecedentes da Semana de Arte Brasileira (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, 5ª edição), p. 284.

³ “Bilac: Versemaker”, in O encantador de serpentes (Rio de Janeiro: Alhambra, 1987), pp. 61-74.
 
Poesia-experiência (São Paulo: Perspectiva, 1977),  p. 77.

Jean-Paul Sartre, Mallarmé – La Lucidité et sa Face d'Ombre (Paris: Gallimard, 1986),  p. 33 e pp. 151-168.

A ideia do “outro” Olavo Bilac é comentada por R. Magalhães Júnior, in Olavo Bilac e sua época (Rio de Janeiro: Americana, 1974), pp. 266-277.

Cf. nota 3, p. 286.

Gazeta de Notícias, 16 de março de 1897. Republicado em Pimentões (Rio de Janeiro: Laemmert & Cia., 1897), poema XXXI.
 
Acordou”, in Gazeta de Notícias, 20 de novembro de 1896. 

¹“Pátria”, in Poesias (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, 2ª edição), p. 267.

¹¹ Lyra acaciana (Rio de Janeiro, 1900), pp. 21-22
 

IV. MATÉRIAS REFERENTES A OLAVO BILAC NO BLOG DE SÃO JOÃO DEL-REI