quinta-feira, 18 de setembro de 2025

A Figura de Disraeli no Teatro Brasileiro

Por SAMUEL MALAMUD *
Artigo publicado originalmente em iídiche no jornal Imprensa Israelita em 23/06/1939.
Transcrevemos com a devida vênia da Imago Editora Ltda., o 1º artigo da sessão KAHAL constante do livro Documentário, publicado em 1992.
Na contracapa de Documentário lê-se esta confissão do autor: Na idade em que me encontro, tendo atuado na vida comunitária judaica do Brasil desde a minha adolescência, me deparei, ao arrumar o meu arquivo, com um volumoso material, acumulado no decorrer de mais de seis décadas: eram entrevistas, comentários, artigos, palestras e discursos que ocupavam dezenas de pastas, além de vários álbuns, contendo um grande número de fotografias.
Embora reunido em meu arquivo pessoal, acredito que a maior parte deste material pertença, de fato, ao acervo da memória da comunidade judaica brasileira, pois registra uma grande variedade de fatos e acontecimentos de seu interesse coletivo e testemunha sua atuação por um período de mais de sessenta e cinco anos a partir dos anos vinte deste século.
Assim, cheguei à conclusão de que, enquanto ainda posso contar com a ajuda da minha memória, tinha, como dever, a tarefa de organizar este arquivo, reunindo a documentação escrita e fotográfica num livro que permitisse, ao mesmo tempo, a sua preservação e ampla divulgação.


 
O teatro brasileiro cresce e se desenvolve. No que diz respeito aos conjuntos teatrais, há empenho pelo aperfeiçoamento, e no que tange às peças a serem levadas em cena, nota-se uma escolha mais cuidadosa quanto ao enredo. 
Em vez das comédias ligeiras que vêm predominando nos palcos, abordando, quase sempre, a mesma temática  banais conflitos familiares, situações ridículas e sem sentido no que tange à vida real  ultimamente são apresentadas, cada vez com maior frequência, peças de gabarito elevado e que contêm alguma mensagem para o espectador. 
O interesse que o governo vem demonstrando pelo desenvolvimento do teatro nacional tem encontrado o devido eco nos meios artísticos e empresariais e é de se crer que, num futuro bem próximo, o Brasil terá um movimento teatral bem desenvolvido e aperfeiçoado, que passará a ter a devida importância dentro da cultura nacional. 
A vontade e o interesse de elevar o nível do teatro são notórios não somente no meio artístico, onde o carreirismo individual e o empenho individualista pelo "estrelismo" começam a dar lugar ao trabalho de conjunto, mas também entre os teatrólogos. Em vez de temática ligeira, eles começam a produzir peças de temática mais real e mais expressiva, seja em forma de comédia ou drama, seja abordando fatos e figuras históricas da vida nacional ou mundial. 
Tivemos a oportunidade de verificar essa modificação que vem ocorrendo no mundo teatral brasileiro quando, a convite de um dos incansáveis batalhadores pelo bom teatro no país  o Dr. Renato Vianna , comparecemos à leitura da peça Um Judeu, de autoria do teatrólogo Raimundo Magalhães Júnior. 
Trata-se de um dos atuais jovens teatrólogos cujas peças já vêm ocupando um lugar de destaque no teatro nacional, graças à qualidade dos seus enredos e ao seu já demonstrado conhecimento cênico. 
A sua peça Carlota Joaquina, que há várias semanas está sendo representada no Teatro Rival pelo elenco encabeçado por Jaime Costa, vem registrando um sucesso contínuo. Nessa peça é espelhada, de forma muito hábil, a vida familiar e palaciana do rei D. João VI durante a sua permanência no Brasil. 
Na sua nova peça, Um Judeu, a que nos referimos acima e a cuja leitura assistimos, o teatrólogo apresenta a vida do renomado estadista judeu inglês Benjamin Disraeli. 
Esta peça de Magalhães Júnior, escrita há um ano, já foi traduzida para o espanhol pelo grupo teatral argentino de Gerardo Ribas, e estreará no próximo mês em Buenos Aires, no Teatro Maravillas, de acordo com correspondência que o autor nos mostrou. O Dr. Renato Vianna também pretende estreá-la no próximo mês no Rio, tanto que os ensaios já começaram. 
No prefácio da peça o teatrólogo conta que o tema lhe fora sugerido pelo renomado artista nacional Procópio Ferreira. Magalhães Júnior, porém, faz questão de salientar que ele de fato já tinha a intenção de escrever uma peça em que pudesse expressar o seu protesto e repúdio contra as perseguições que os judeus sofrem ultimamente na Europa. Por isso interessou-lhe um tema como Disraeli, pois ao descrever a grande personalidade desse estadista ele tem a oportunidade de demonstrar como são infundadas as agressões e acusações que os judeus vêm sofrendo há séculos, e provar que o judeu, como ser humano e como cidadão, tem uma só personalidade, e não pode estar sujeito a diferentes interpretações. ¹
A peça Um Judeu é muito bem elaborada. Raimundo Magalhães Júnior descreve em três atos o ambiente da aristocracia inglesa da época e os princípios rígidos que predominavam na política conservadora britânica, assim como a grande irritação que o aparecimento de Disraeli provocou, primeiro na literatura, como escritor satírico mordaz e, posteriormente, como político ousado e reformador. Ele jamais negou a sua descendência judaica e foi um violento opositor das discriminações raciais e religiosas. 
De forma muito elegante o autor apresenta também a esposa de Disraeli , Marian , inglesa de alta estirpe, que muito o ajudou na sua intensa carreira. Tampouco falta na peça o tom romântico. 
A peça termina com a última realização do grande político para o império britânico, que foi adquirir, com o apoio dos Rothschilds, a maioria das ações da Cia. do Canal de Suez. 
Cheia de bom humor e recheada de pensamentos extraídos da obra de Disraeli, reproduzidos no texto de uma forma muito adequada pelo talentoso teatrólogo brasileiro, a peça certamente há de despertar um grande interesse e registrar os merecidos aplausos do público que irá assistir a ela.
 
Fonte: MALAMUD, Samuel: Documentário: contribuição à memória da comunidade judaica brasileira, Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1992, pp. 17-18. 
 
* SAMUEL MALAMUD (1908-2000), advogado, nascido na Ucrânia em 1908, chegou ao Rio de Janeiro em dezembro de 1923. A partir dos anos 30, transformou-se em um dos mais influentes representantes da comunidade judaica no Brasil. Em 1948, Malamud foi o primeiro Cônsul de Israel no país. Fundou e presidiu, entre outras entidades, a Federação Israelita do Brasil e o Clube Hebraica. Morreu dia 11 de março de 2000, aos 91 anos, de infarto, no Rio de Janeiro.
 
 
II. NOTA EXPLICATIVA
 
 
¹ [TOLEDO, 1984, 99] considera que
o surgimento de um retrato favorável da figura do judeu é apanágio exclusivo da dramaturgia brasileira elaborada em nosso século (XX). No teatro do século XIX, somente as personagens judias detectadas em dramatizações de episódios do Antigo Testamento apresentam imagem moral positiva.
Segundo [idem, ibidem, 161-162],
na introdução à peça, Magalhães Jr. confessa sua preocupação com as últimas notícias veiculadas sobre a perseguição nazista aos judeus, na Europa. ² Com este intuito, ele resolve analisar a questão judaica, localizando o problema na Inglaterra vitoriana.
0 texto questiona diversos mitos populares imputados ao judeu  desde a culpa pela crucificação de Cristo, passando por estereótipos relativos ao "caráter" judeu, até a sua ligação com a usura  e conclui pela intolerância religiosa e social da sociedade cristã. [idem, ibidem, 107] apresenta também
o texto de Um Judeu em que Raimundo Magalhães Jr. denuncia este mecanismo de defesa anti-semita. Exemplo:
"- Disraeli - Os judeus sabem pensar, e isto é um crime. Os judeus sabem negociar, e isto é outro crime. Os judeus sabem poupar e isto é outro crime. Somos os maiores criminosos do mundo, não digo eu próprio que só tenho dívidas  mas os de minha raça. E ah! se todas as raças pudessem se vangloriar de tais crimes!
[idem, ibidem, 97] afirma:
exemplo de postura isenta de formulações preconceituosas e adotado pela peça Um Judeu, de Raimundo Magalhães Jr.. Diversas acusações morais são feitas à figura de Disraeli pelo Parlamento inglês que reluta em aceitá-lo como membro, pelo fato de ele ser judeu, e as respostas da personagem são sempre tentativas de derrubar mitos clássicos, relativos ao dinheiro e à desonestidade. Exemplo:
"- Trollop - Eu, porém, ficarei com as minhas convicções. Nem o parlamento precisa dos judeus,  tanto que sempre passou muito bem sem eles  nem os judeus, que são tão ricos, precisam do parlamento. [...] mas, eu entendo que os judeus  não servem para legislar... Só servem mesmo é para emprestar dinheiro a juros...
- Disraeli - Dinheiro! Se ninguém é mais desinteressado, ninguém é mais desambicioso, ninguém é mais indiferente ao dinheiro do que eu... Dinheiro! Se eu o quisesse, festejaria os poderosos, eles me abririam a bolsa... Ao contrário, combata-os, sabendo que eles a fecham...

 Em outros trechos da peça, [idem, ibidem, 162-163] reafirma que

a simpatia do do autor pela causa judaica o leva por vezes a uma exaltação um tanto exagerada das qualidades morais da personagem. Exemplo:
"- Disraeli - Podeis dizer teimoso como um judeu... Sei que no fundo, é esse o pensamento dominante a meu respeito... Teimoso como um judeu... Mas, por Deus, dizei também: inteligente como um judeu, tenaz como um judeu, estudioso como um judeu, honesto como um judeu, corajoso como um judeu... Porque anda sempre essa expressão no ar, suspensa, prestes a abater-se como uma espada sobre aqueles que, como eu, vêm do tronco hebraico? Por que nos odeiam, por que nos combatem, por que nos desprezam? Não são virtudes gentis, predicados peregrinos, qualidades positivas, as que têm feito triunfar o judeu onde quer que se manifeste a sua atividade? Os judeus têm os dons da inteligência, o senso realista da vida...
Apesar do tom apaixonado, o texto narra de modo fiel a luta empreendida por Disraeli contra a intolerância da sociedade de sua época, e atribui seu sucesso a características de tenacidade e coragem, descritas como valores morais positivos.
[idem, ibidem, 106] argumenta que
uma postura de desmitificação desta atitude (de tomar o judeu como bode expiatório utilizada pelo anti-semita) pode ser detectada no texto de Raimundo Magalhães Jr., Um Judeu. Todas as acusações preconceituosas relativas ao caráter judeu são criticadas, e, no decorrer da peça, o autor aponta ainda, uma das causas de sua adoção. Exemplo:
" - Disraeli - [...] Os que os desprezam e combatem [os judeus], o fazem por medo ... E de onde vem esse medo? Da ausência de qualidades para concorrer com o judeu... (...)
[idem, ibidem, 108] conclui neste caso:
O indivíduo, sentindo-se inferiorizado, desloca sua agressividade para a figura do judeu, com o propósito de disfarçar sua debilidade. O judeu simbolizaria, então, tudo aquilo que ele não possui.
[idem, ibidem, 158] distingue, no período moderno e contemporâneo do teatro brasileiro, entre peças teatrais aliadas a estereótipos milenares (como o relativo ao deicídio dos judeus, por exemplo) no início do século XX e peças teatrais de valor literário. Nessas do segundo grupo, a autora inclui Um Judeu, de Raimundo Magalhães Jr. (1907-1981). Segundo [idem, ibidem, 160-161],
a peça retrata a ascensão política de Benjamin Disraeli até ele atingir o posto de Primeiro Ministro da Inglaterra, enumerando suas lutas contra a intolerância religiosa e o conservantismo do parlamento e da sociedade inglesa de sua época.
A autora conclui que, apesar de ser convencional na sua forma, Um Judeu tende a esmaecer a máscara teatral negativa da personagem judaica, através do questionamento dos mitos imputados aos judeus.
 
²  Transcrevo aqui a nota 17 da pág. 161: 
Anterior à denúncia de Magalhaes Jr., é o inquérito realizado entre intelectuais brasileiros, no ano de 1933, e que resultou numa firme condenação ao anti-semitismo.
Participaram dele: Agrippino Grieco, Coelho Neto, Gilberto Amado, Afrânio Peixoto, Hermes Lima, Oduvaldo Vianna, Humberto de Campos, Menotti del Picchia e Orígenes Lessa, entre outros, todos investindo abertamente contra o Nazismo e condenando as discriminações lançadas contra o povo judeu. Vide Porque ser Anti-Scmita? Um Inquérito entre Intelectuais Brasileiros. R. Janeiro: Civilização Brasileira, 1933.
As peças relacionadas a seguir fazem referência aos campos de concentração e/ou de extermínio instalados pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial:
0 Homem e o Cavalo, de Oswald de Andrade - 1934; 
0 Milagre de Succa, de M. Corinaldi - 1946;
Se eu te esquecer, Jerusalém - 1967 e 0 Sétimo Dia - 1969, de Ari Chen; 
Liberdade, Liberdade, de Millor Fernandes e Flávio Rangel - 1966;
Não Respire, não Coma, não Ria, de Flávio Cerqueira - 1970;
Patética, de Joao Ribeiro Chaves Nctto - 1976.


III. REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS


BERGERMAN
, Maria Augusta de Toledo: MÁSCARA E PERSONAGEM: O JUDEU NO TEATRO BRASILEIRO, São Paulo: Ed. Perspectiva, 2013, 160 p.

MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo: O JUDEU: comédia dramática em três atos e dez quadros. Rio de Janeiro: Editora A Noite, 1939, 149 p.

MALAMUD, Samuel. DOCUMENTÁRIO: contribuição à memória da comunidade judaica brasileira. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1992, 365 p.

TOLEDO, Maria Augusta: O judeu no teatro brasileiro: personagem e máscara, dissertação apresentada à Comissão Julgadora da ECA-USP para obtenção do grau de Mestre em Artes, 1984, 208 p.
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in biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP O JUDEU NO TEATRO BRASILEIRO

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