Por WILSON MARTINS * Artigo originalmente publicado no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, Ano X, nº 459, em 18/12/1965, dia em que comemorávamos o Primeiro Centenário do Nascimento de Olavo Bilac.”

No que se refere a Olavo Bilac, não é uma “revisão do poeta” o que se impõe, mas uma “revisão da crítica”. Em nenhum outro caso terá sido esta última tão sistemática, tão obstinadamente inferior a si mesma; a “excessiva perfeição” que Mário de Andrade, com alguma inocência, nele censurava em 1921 tem desnorteado, ao mesmo tempo, os seus entusiastas e os seus detratores. Medusados pela ideia convencional do Parnasianismo, proposta pelos manuais, os críticos e historiadores da literatura brasileira (em particular os que vieram depois de 1922) parecem ignorar o fato de que a “técnica formidável” não foi apenas, em Bilac, um virtuosismo manual ou auditivo; não é nela que consiste a sua poesia. O maior dos parnasianos brasileiros (e, sem dúvida, um dos mais estupendos parnasianos das línguas latinas) tem pago pelos pecados dos subparnasianos; quando Mário de Andrade reconhecia que a perfeição técnica de Bilac “confinava com a genialidade”, sentia obscuramente, sem poder ou sem querer admiti-lo, que ela era apenas o instrumento de uma sensibilidade e de uma força de expressão poética que, justamente, dele faziam, para além das escolas, das doutrinas e dos recursos mecânicos, um grande poeta. O teórico do Modernismo, que havia sido também poeta parnasiano a seu tempo, não era tão desarmado que tomasse os recursos de expressão por aquilo que Bilac tinha a exprimir e que constituía propriamente a sua poesia; e se essa riqueza esmagadora de força expressional o ofuscava um pouco, isso não o impedia de reconhecer que
“nenhum outro existe que se lhe compare na língua; e mesmo fora desta, poucos emparelham com ele nas línguas que sei. Um há que o supera, um apenas: Victor Hugo.”
O que, no plano mais alto da história literária e da técnica poética, não será pequeno elogio.
Se Olavo Bilac ainda não inspirou a grande obra de análise crítica, objetiva e desinteressada, a que tem direito como um dos maiores poetas da língua portuguesa, é certo que as perspectivas pós-modernistas foram traçadas, ao nível negativo, pelo conhecido artigo de Mário de Andrade, na série dos “Mestres do Passado”. Não que ele tivesse exercido realmente uma influência crítica posterior ao seu imediato e transitório sucesso de sensação em 1921 (pode-se afirmar que essas páginas só foram realmente conhecidas em termos de apreciação crítica depois de exumadas, pelo sr. Mário da Silva Brito, em 1955), — mas porque resumiam, de forma por assim dizer autorizada e fiel, os sentimentos das gerações que, a partir daquele ano, se entregaram à reforma poética. Contudo, é preciso situar corretamente o artigo de Mário de Andrade nas suas coordenadas intelectuais e históricas: trata-se, antes de mais nada, de uma análise polêmica, em que, à falta de poder incriminar Olavo Bilac pelos seus defeitos, ele o condena por suas qualidades; além disso, deve-se notar que não é propriamente o poeta que está em causa, mas o que ele representava na poesia brasileira e que representava tão bem ao ponto de poder simbolizar tudo o que se desejaria destruir. Nessas condições, seria um erro de leitura encarar o artigo de Mário de Andrade como um julgamento crítico objetivo e correto; trata-se apenas, como os demais na série, de um movimento tático na guerra das escolas. É bem evidente que, nessas perspectivas, a justiça e a correção das estimativas estéticas e espirituais é o que menos interessa; o que se tem em vista será apenas a destruição do adversário. Sob as aparências de uma pretensa análise técnica (como a sua estatística das “enumerações” bilaquianas, como se elas fossem um defeito em si mesmas, restrição tanto mais surpreendente por vir de um modernista, isto é, de um homem para quem tais minúcias já não tinham importância nenhuma!), Mário de Andrade escreveu uma página impressionista em que rejeita Bilac essencialmente por questões de gosto.
Mas, de toda a série dos “Mestres do Passado”, sente-se claramente que esse foi o artigo que mais lhe custou em atitude negativa. Mário de Andrade não poderia deixar de perceber, por um lado, a injustiça de um julgamento parcial e negativo por sistema, enquanto, de outro lado, seria sensível ao que Bilac representava, em camadas mais profundas, como poeta eleito da sensibilidade brasileira. Se, nos parnasianos de segunda linha, a "técnica formidável" servia somente para dissimular a falta de inspiração ou para "congelar" o ímpeto das emoções, em Bilac as duas coisas se completam e ele exprime de forma admirável o conteúdo poético, a substância emocional, que são, em termos literários, a tradução de uma forma de ser psicológica. Se não é verdadeiro, na maneira peremptória e absoluta em que costumam representá-lo, o postulado de que "forma" e "conteúdo" não se distinguem e constituem uma unidade indestrutível, parece inegável que isso ocorre nos poetas realmente grandes; e que ocorra, de toda evidência, em Bilac, será, com certeza, o primeiro indício de sua categoria excepcional.
Iniciando o período em que a poesia assumiu como dever fundamental não ser eloquente, é a eloquência, justamente, o primeiro (e, no fundo, único) defeito que Mário de Andrade denunciava em Olavo Bilac. No ímpeto polêmico, ele se entregou à ironia um pouco pesada de qualificá-lo como “deputado da Beleza na terra do Brasil”, mas, ironia à parte, é certo que Bilac colocou a eloquência poética numa altura que tornou entre nós muito mais difícil o exercício da poesia literária; em consequência, na dificuldade, se não na impossibilidade de superá-lo, só restava às novas escolas a fuga para a frente, isto é, a negação inicial e definitiva da eloquência como valor poético de qualquer significação. Era o caminho aberto para a poesia irônica e sarcástica dos anos 20 e 30, para a poesia cerebral dos anos 30 e 40, correntes essas que, pela multiplicação natural das próprias tendências sobre si mesmas, conduziriam ao fim de partida que é a poesia brasileira dos anos 50 e 60. Esse é um dos aspectos em que melhor se pode medir a larga influência do Modernismo no espaço e no tempo (favorecida, claro está, pela situação mundial da poesia moderna); ele explica, ao mesmo tempo, que continuam a se repetir, sobre Olavo Bilac, os lugares-comuns polêmicos dos anos 20, da mesma forma por que deixamos de exercer sobre ele aquela "leitura crítica" continuada e renovadora que todos os grandes poetas costumam inspirar. Somente os espíritos provincianos e ingênuos costumam periodicamente "expulsar" Victor Hugo ou Bilac, Camões ou Leconte de Lisle, da história literária; bastava que houvessem existido para que, ao contrário, nela se inscrevam para sempre. (Quaisquer que sejam as exigências pessoais de gosto ou os decálogos literários de cada época, o que é assunto completamente diverso).
Não se trata, por consequência, de propor Bilac como poeta que exprimisse as preocupações ou o gosto atual da vanguarda artística brasileira, nem mesmo de opô-lo às correntes modernas da poesia. Pretendê-lo seria, justamente, negar a sua historicidade, isto é, o papel eminente que representou num momento de nossa história intelectual. Contudo, seria igualmente tolo que negássemos aquela parte da sua obra e da sua inspiração que não dependem dos estados cíclicos da sensibilidade, nem das modas periódicas do gosto: há um lado importante de Bilac, não já como poeta, mas como poeta brasileiro, que, segundo penso, está acima dessas coordenadas de apreciação. Mário de Andrade, precisamente, reconhecia que um dos aspectos mais salientes da inspiração bilaquiana, a sensualidade, marcou-lhe a poesia sem jamais atravessar a "ponte muito comprida" que desemboca na obscenidade. Ainda aqui, as implicações polêmicas turvaram a capacidade de julgamento crítico, pois a sensualidade do poeta será, por um lado, a expressão de um temperamento que bem poderíamos reconhecer como nacional e, por outro lado, ela alcança, enquanto expressão poética, as camadas mais profundas da nossa sensibilidade precisamente porque Bilac era eloquente, quero dizer, sabia como exprimi-la.
Embora romântico em sua essência profunda, o Modernismo, nos primeiros momentos, foi um movimento antilírico (pelo menos nas intenções); é natural que combatesse em Bilac o que mais o caracteriza — o lirismo amoroso — e o que, por outro lado, mais o afasta da figura convencional do Parnasiano. Esses dois equívocos das gerações modernistas concorrem para explicar não somente as suas inegáveis deficiências poéticas (que neste momento não nos interessam), mas, também, a estranha refração crítica que foi, em conjunto, a sua apreciação de Bilac. Julgaram-no exclusivamente pela "Profissão de Fé", em lugar de o lerem no texto e no contexto; tomaram-no, então, como protótipo de Parnasiano, assim como, mais ou menos na mesma época (e depois...), Cruz e Sousa seria tomado como protótipo de Simbolista. Na verdade, Bilac foi um parnasiano de estrita obediência no que se refere aos recursos da versificação e naquela parte de sua obra que tratou os temas convencionais do Parnasianismo; mas não foi apenas isso, e os amantes das estatísticas temáticas talvez se surpreendessem e nos surpreendessem com a revelação de que essa é a parte proporcionalmente menos numerosa na sua obra.
Há o Bilac amoroso, da emoção pessoal, que está longe da convencional "impassibilidade" parnasiana e que é, nesse aspecto, o autor de muitos dos mais belos poemas da língua portuguesa; há o Bilac dos temas propriamente brasileiros, nos quais se revelou, em nosso País, o que mais se aproximava da genuína inspiração épica, sem sacrifício da espontaneidade e da perfeição formal. Mário de Andrade observava que "O Caçador de Esmeraldas" era, nesse particular, "o esplendor dos esplendores". E acrescentava:
“Que realização integral da Beleza! Fascina e deslumbra. Mas seria injustiça consagrar o poemeto só como realização do Belo. Na fala sobrenatural que consola a morte de Fernão Dias, há mesmo uma comoção ondulante, uma frescura impetuosa de mar. [...] Bilac quando chegou a essa parte do poema estava comovido. Incendiavam-lhe a alma, chicoteavam-lhe o espírito os arremessos de amor da pátria, sentimento em que foi constante e sincero toda a vida. A perfeição dos versos continuou porque a sua técnica era tal que todas as suas comoções eram já metrificadas, com exatidão, rimadas com abundância. E o fim do seu poemeto é colossal. E foi nele, muito mais do que no soneto "Pátria", sobre o qual paira a sombra irônica de Stecchetti, e mais do que nos livros escolares, que o seu sincero patriotismo teve a melhor ocasião de se manifestar poeticamente.”
Como sempre acontece na história literária, foi por paradoxo a incomparável grandeza de Bilac que mais o desserviu, em termos de luta escolástica, perante as gerações modernistas. Por um lado, ele pagou pelo desgaste inegável do Parnasianismo e, o que não deixa de ser irônico, pelas debilidades do Simbolismo brasileiro (Nestor Victor queixava-se de que a glória de Bilac havia impedido o reconhecimento oportuno de Cruz e Sousa); por outro lado, era inevitável que a perfeição formal, levada ao ponto em que a levou, acabasse por se anquilosar nas articulações, por se tornar cada vez mais rígida e mais automática. Esse é, contudo, um "defeito" de que só nos apercebemos na leitura continuada de toda a obra; além disso, muito do que acreditamos simples repetição de processos formais é, na verdade, a manifestação do seu estilo. Com efeito, Bilac é um poeta de estilo inconfundível e, por estilo, devemos compreender aqui não apenas os seus recursos característicos e pessoais na construção do verso mas, também, e acima de tudo, uma visão particular do mundo, um tipo de sensibilidade e uma filosofia de vida, elementos todos que os analistas costumam deixar um pouco demais na sombra. Do lirismo pessoal aos temas de reverberações épicas, da poesia histórica aos grandes painéis descritivos, dos temas filosóficos aos simples divertimentos de artesão, não se pode dizer sem injustiça que a inspiração de Bilac era numericamente reduzida; mais injusto ainda seria afirmar que, em cada caso, ele não soubesse descobrir, com infalível segurança, o conteúdo poético específico.
Neste ano do centenário, pode-se pensar que, criticamente, a fortuna literária de Bilac se marca por três momentos decisivos: de 1888, ano de aparecimento das "Poesias", a 1921, ano crucial na preparação do Modernismo (mas, não esqueçamos que muitos dos seus admiradores já haviam manifestado alguma decepção com "Tarde", em 1919); de 1921 a 1965, período em que, fato raro na história da literatura, Bilac conserva o seu estatuto de grande poeta apesar do silêncio rancoroso da crítica e da sua hostilidade evidente; de 1965 em diante, na medida em que se pode prever maior objetividade de julgamento e maior maturidade do pensamento crítico. Valha esse esquema o que valer, terá, pelo menos, o mérito de notar uma importante singularidade na carreira ântuma e póstuma de Bilac, que é o seu desdobramento em ciclos extremamente largos; a não ser Victor Hugo, não haverá, talvez, outro exemplo de poeta que se haja mantido por tão longo tempo no primeiro plano da vida literária; Victor Hugo, de resto, renovava-se ideológica e tecnicamente de período para período, o que não se pode subestimar no processo de perpetuação ou de permanência. Mas, Olavo Bilac é, por 30 anos, sem contestação, o grande poeta brasileiro, carreira que, sozinha, pode-se comparar à duração do próprio Modernismo e que, no seu caso, tem, ainda, a caracterizá-la, o fato de haver resistido e sobrevivido à lenta degradação da escola em que se inscrevia; não surpreende que muitos se hajam mostrado pressurosos em exilá-lo apenas por tanto ouvi-lo chamar de justo. Na verdade, por volta dos anos 20, sobretudo em sua primeira metade, era preciso ser anti-Bilac para ser alguma coisa; o que não deixa de estranhar é o longo período em que preponderaram nos nossos julgamentos críticos as perspectivas propostas pelo Modernismo. Digamos que, na primeira fase, era tão convencional admirar Bilac quanto foi convencional denegri-lo na segunda. A honra e o orgulho da crítica não consistem apenas, como já se disse, em renovar de tempos em tempos os seus juízos; eles devem consistir, acima de tudo, na coragem de enfrentar e de afrontar os julgamentos convencionais e as modas literárias.
* Wilson Martins (✰ São Paulo, 03/03/1921 ✞ Curitiba, 30/01/2010) foi um professor, escritor, magistrado, jornalista, historiador e crítico literário brasileiro, autor da coleção monumental História da Inteligência Brasileira (7 volumes) e A Crítica Literária no Brasil (2 volumes).
2 comentários:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Relembrando um momento especial de nossa crítica literária, temos o prazer de visitar o Suplemento Literário do Estadão na data de 18/12/1965, por ocasião do Primeiro Centenário de Nascimento do nosso maior poeta parnasiano, OLAVO BILAC.
O Blog de São João del-Rei oferece espaço ao notável crítico literário brasileiro, WILSON MARTINS, num artigo para O Estado de São Paulo naquela data luzidia.
Essa relíquia está preservada no Acervo do Estadão, ao qual prestamos as mais profundas reverências.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/10/bilac-o-poeta-e-critica.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Pedro Rogério Moreira (jornalista e sócio da Gracián Telecom, cronista e memorialista brasileiro) disse...
Obrigado, Mestre!
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