Artigo originalmente publicado no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, Ano X, nº 459, p. 36, em 18/12/1965, dia em que comemorávamos o Primeiro Centenário do Nascimento de Olavo Bilac.”
Em 1854 ¹, José de Alecar, folhetinista do "Correio Mercantil", assim se queixava do ofício: “É uma felicidade que não me tenha ainda dado ao trabalho de saber quem foi o inventor deste monstro de Horácio ², deste novo Proteu ³, que chamam - folhetim; senão aproveitaria alguns momentos em que estivesse de candeias às avessas ⁴, e escrever-lhe-ia uma biografia que, com as anotações de certos críticos que eu conheço, havia de fazer o tal sujeito ter um inferno no purgatório, onde necessariamente deve estar o inventor de tão desastrada ideia ⁵".
De fato, não era tarefa das mais amenas e agradáveis escrever folhetins: "Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos, a passar do gracejo ao assunto sério", a bancar "uma espécie de colibri a esvoaçar em zigue-zague, e a sugar, como o mel das flores, a graça, o sal e o espírito que deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho ⁶", bastava para infernizar a vida de um cristão. ⁷
Treze anos depois, em 1867, no mesmo "Correio Mercantil", França Júnior batia na tecla do seu ilustre antecessor, e suspirava: "Triste quadra para quem escreve folhetins! Por toda a parte se espreguiça a indiferença sob milhares de formas. Já lá vão esses tempos em que o folhetinista vinha contar aos leitores as novidades da semana, quando não reduzia à expressão do romance uma intriga amorosa do baile da véspera".
Bem. Isto era a infância da arte. Depois, naturalmente, a técnica jornalística progrediu. Alguns jornais estruturaram-se em empresas relativamente estáveis, amparadas por consideráveis capitais. Passou-se a dar mais importância à colaboração literária. Na introdução do "Ironia e Piedade", Olavo Bilac, enaltecendo o papel desempenhado por Ferreira de Araújo e a "Gazeta de Notícias", vangloriava-se dessa transformação: “A minha geração, se não teve outro mérito, teve este, que não foi pequeno: desbravou o caminho, fez da imprensa literária uma profissão remunerada, impôs o trabalho. Antes de nós, Alencar, Macedo, e todos os que traziam a literatura para o jornalismo, eram apenas tolerados: só o comércio e a política tinham consideração e virtude”.
A modernização do jornal implicou em diversas inovações de ordem técnica, com a inevitável supressão de certas características obsoletas e a criação de feições novas. O folhetim desapareceu, passando a chamar-se crônica. Machado de Assis já é um cronista. Como o próprio Olavo Bilac. Mas este, para não contrariar a tradição, seguia a esteira de seus predecessores Alencar e França Júnior, queixando-se, em 1897, na própria "Gazeta de Notícias", tão amargamente da crônica, quanto aqueles se tinham queixado do folhetim. Em dia de falta de assunto, mal crônico de todos os cronistas, imaginava uma conversa com o diabo:
“Já o diabo se levantara e estava sungando as calças, para desmanchar as joelheiras. O cronista, timidamente, perguntou que recompensa teria, se cumprisse as ordens de S. Exª. S. Exª pensou um pouco e respondeu com uma gargalhada: — Para te recompensar, condeno-te a escrever coisas para as folhas durante toda a vida, tenhas ou não tenhas assunto! estejas ou não estejas doente! queiras ou não queiras escrever!” ⁸
Ou, aos fiéis de Eça de Queiroz, a grandiosa história do Bei de Túnis... ¹⁰ A chamada "falta de assunto", em última análise, é isto: é se ter de escrever à força, “lorsque parfois l'on n'en a nulle envie”. Efetivamente, uma invenção diabólica. (Eu que o diga).
Olavo Bilac, durante muitos anos, na mocidade, viveu da imprensa, exercendo assídua atividade de cronista. Chegou, mesmo, a publicar dois volumes de crônicas selecionadas.
O prosador foi prejudicado pela fama do poeta. Bilac escrevia muito bem, num estilo escorreito e limpo, mas sem aquela vivacidade, aquela agilidade, aquela graça farfalhante, brilhante e meio superficial que constituem, a par do instinto do verdadeiro jornalista, capaz de extrair do cotidiano a reportagem sensacional ou pitoresca, e o comentário justo, um dos segredos do êxito espetacular de João do Rio, como cronista.
O verso era a sua forma natural de expressão. Tinha uma extraordinária facilidade em versejar. Se a crônica é o comentário gracioso, humorístico e malicioso do cotidiano, do acontecimento do dia, suas melhores crônicas eram metrificadas e rimadas. Chegou mesmo a ser um temível panfletário político... em versos.
Isto não quer dizer, entretanto, que Bilac não fosse um bom cronista, embora ofuscado pela glória do poeta. Ocupa, mesmo, posição definida e de realce na história da crônica carioca, que é a própria história da cidade do Rio de Janeiro, em sua lenta transformação de costumes, hábitos, modas, gostos, divertimentos, paixões políticas, da fisionomia urbana e social, condicionada pelo progresso e o desenvolvimento demográfico — de França Júnior a Rubem Braga, de José de Alencar a Fernando Sabino, de Machado de Assis a Lêdo Ivo.
Para se conhecer o roteiro da vida cotidiana do carioca do princípio do século, nos belos tempos do soneto parnasiano e da boemia literária na Colombo e na Pascoal, é preciso ler os cronistas da época — e Bilac é dos mais bem informados e idôneos. Curioso, por exemplo, é ler-se a sua crônica sobre a desvalorização da Apólice, escrita em 1909 — e confrontá-la com a de Machado de Assis, sobre o mesmo tema, publicada em 1894, na época do Encilhamento.
Mais proveitosa e interessante ainda, para o historiador dos costumes cariocas, é sem dúvida a que escreveu em 1900, sobre o "Café-Cantante" ¹¹. Começa o cronista:
“Nestes últimos dez anos, quantas manias temos visto desabrochar, viçar e morrer, nesta versátil e inconsequente cidade! Passageiras, precárias manias...”
“Por fim, chegou o bicho e matou tudo. Tem sido essa a mania de mais pertinácia no viver. E provavelmente não será vencida pela mais recente, pela de agora, pela do café-cantante.”
“Não há rua, por mais esconsa, por menos frequentada, que não possua atualmente o seu café-cantante.”
“Entras. E, em lugar do teu charuteiro ou do teu merceeiro, encontras uma rapariga que te oferece um chope. A tua loja é uma cervejaria! Ao fundo, com um estrado velho, improvisou-se um palco. À beira dele, um piano inválido desmancha-se em lundus e em tangos. E eis ali surge, de saias curtas, uma cantora a chalrar...”
“Ai! vamos ver quanto há de durar a nova mania! E, depois desta, que outra virá?”
² Figura grotesca imaginada pelo escritor latino Horácio. Tal figura conjugava partes de diferentes animais.
³ Deus marinho, que podia assumir diferentes formas, associado a rios e corpos oceânicos de água, filho de Poseidon e Fenícia. Considerado o deus da "mudança elusiva do mar", sugere a constante mudança da natureza do mar e a qualidade líquida da água.
⁴ De mau humor.
⁵ Alencar está se referindo ao inventor do folhetim.
⁶ Alencar faz uso de imagem metafórica, ao comparar o folhetinista a um "colibri" que busca extrair "graça, sal e espírito" de fatos triviais.
⁷ O texto de Alencar reflete características de um viés jornalístico, com leveza e humor.
⁸ Crônica de 18 de abril de 1897 para a Gazeta de Notícias, constante de BILAC, O JORNALISTA, em publicação de Antônio Dimas das Crônicas-volume 1, pp. 229-232.
⁹ Trad. Esse é o grande erro do jornalismo: forçar você a escrever, quando às vezes você não tem vontade de fazê-lo.
¹¹ Crônica de 11 de março de 1900 para a Gazeta de Notícias, constante de BILAC, O JORNALISTA, em publicação de Antônio Dimas das Crônicas-volume 1, pp. 338-341.
III. AGRADECIMENTO
O gerente do blog manifesta seu agradecimento ao Acervo do Estadão, graças ao qual foi possível a transcrição da presente relíquia literária.
IV. BIBLIOGRAFIA
BETELLA, Gabriela Kvacek. Machado de Assis enfrenta tragédias e farsas na crônica: a reflexão crítica de Bons Dias!, Curitiba: Editora UFPR, in Revista Letras, nº 62, pp. 11-25, jan/abr 2004.
Um comentário:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Tenho o prazer de transcrever no Blog de São João del-Rei a crítica de OLAVO BILAC enquanto cronista, feita por LUIS MARTINS, que, no seu texto, aborda também a transição do folhetim para a crônica no jornalismo brasileiro.
O texto foi publicado por O Estado de S. Paulo em 18/12/1965, dia em que se comemorava o Primeiro Centenário do Nascimento de Olavo Bilac.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/10/bilac-cronista.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
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