domingo, 12 de outubro de 2025

BILAC CRONISTA

Por LUIS MARTINS *
Artigo originalmente publicado no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, Ano X, nº 459, p. 36, em 18/12/1965, dia em que comemorávamos o Primeiro Centenário do Nascimento de Olavo Bilac.

Em 1854 ¹, José de Alecar, folhetinista do "Correio Mercantil", assim se queixava do ofício: É uma felicidade que não me tenha ainda dado ao trabalho de saber quem foi o inventor deste monstro de Horácio ², deste novo Proteu ³, que chamam - folhetim; senão aproveitaria alguns momentos em que estivesse de candeias às avessas , e escrever-lhe-ia uma biografia que, com as anotações de certos críticos que eu conheço, havia de fazer o tal sujeito ter um inferno no purgatório, onde necessariamente deve estar o inventor de tão desastrada ideia ". 

De fato, não era tarefa das mais amenas e agradáveis escrever folhetins: "Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos, a passar do gracejo ao assunto sério", a bancar "uma espécie de colibri a esvoaçar em zigue-zague, e a sugar, como o mel das flores, a graça, o sal e o espírito que deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho ", bastava para infernizar a vida de um cristão.  

Treze anos depois, em 1867, no mesmo "Correio Mercantil", França Júnior batia na tecla do seu ilustre antecessor, e suspirava: "Triste quadra para quem escreve folhetins! Por toda a parte se espreguiça a indiferença sob milhares de formas. Já lá vão esses tempos em que o folhetinista vinha contar aos leitores as novidades da semana, quando não reduzia à expressão do romance uma intriga amorosa do baile da véspera". 

Bem. Isto era a infância da arte. Depois, naturalmente, a técnica jornalística progrediu. Alguns jornais estruturaram-se em empresas relativamente estáveis, amparadas por consideráveis capitais. Passou-se a dar mais importância à colaboração literária. Na introdução do "Ironia e Piedade", Olavo Bilac, enaltecendo o papel desempenhado por Ferreira de Araújo e a "Gazeta de Notícias", vangloriava-se dessa transformação: A minha geração, se não teve outro mérito, teve este, que não foi pequeno: desbravou o caminho, fez da imprensa literária uma profissão remunerada, impôs o trabalho. Antes de nós, Alencar, Macedo, e todos os que traziam a literatura para o jornalismo, eram apenas tolerados: só o comércio e a política tinham consideração e virtude

A modernização do jornal implicou em diversas inovações de ordem técnica, com a inevitável supressão de certas características obsoletas e a criação de feições novas. O folhetim desapareceu, passando a chamar-se crônica. Machado de Assis já é um cronista. Como o próprio Olavo Bilac. Mas este, para não contrariar a tradição, seguia a esteira de seus predecessores Alencar e França Júnior, queixando-se, em 1897, na própria "Gazeta de Notícias", tão amargamente da crônica, quanto aqueles se tinham queixado do folhetim. Em dia de falta de assunto, mal crônico de todos os cronistas, imaginava uma conversa com o diabo:

Já o diabo se levantara e estava sungando as calças, para desmanchar as joelheiras. O cronista, timidamente, perguntou que recompensa teria, se cumprisse as ordens de S. Exª. S. Exª pensou um pouco e respondeu com uma gargalhada: Para te recompensar, condeno-te a escrever coisas para as folhas durante toda a vida, tenhas ou não tenhas assunto! estejas ou não estejas doente! queiras ou não queiras escrever!
O que logo evoca, ao leitor familiar de André Gide, aquela observação do "Journal" (1942): 
C'est le grand méfait du journalisme: de vous forcer à écrire, lorsque parfois l'on n'en a nulle envie.

Ou, aos fiéis de Eça de Queiroz, a grandiosa história do Bei de Túnis... ¹ A chamada "falta de assunto", em última análise, é isto: é se ter de escrever à força, lorsque parfois l'on n'en a nulle envie. Efetivamente, uma invenção diabólica. (Eu que o diga). 

Olavo Bilac, durante muitos anos, na mocidade, viveu da imprensa, exercendo assídua atividade de cronista. Chegou, mesmo, a publicar dois volumes de crônicas selecionadas. 

O prosador foi prejudicado pela fama do poeta. Bilac escrevia muito bem, num estilo escorreito e limpo, mas sem aquela vivacidade, aquela agilidade, aquela graça farfalhante, brilhante e meio superficial que constituem, a par do instinto do verdadeiro jornalista, capaz de extrair do cotidiano a reportagem sensacional ou pitoresca, e o comentário justo, um dos segredos do êxito espetacular de João do Rio, como cronista. 

O verso era a sua forma natural de expressão. Tinha uma extraordinária facilidade em versejar. Se a crônica é o comentário gracioso, humorístico e malicioso do cotidiano, do acontecimento do dia, suas melhores crônicas eram metrificadas e rimadas. Chegou mesmo a ser um temível panfletário político... em versos. 

Isto não quer dizer, entretanto, que Bilac não fosse um bom cronista, embora ofuscado pela glória do poeta. Ocupa, mesmo, posição definida e de realce na história da crônica carioca, que é a própria história da cidade do Rio de Janeiro, em sua lenta transformação de costumes, hábitos, modas, gostos, divertimentos, paixões políticas, da fisionomia urbana e social, condicionada pelo progresso e o desenvolvimento demográfico  de França Júnior a Rubem Braga, de José de Alencar a Fernando Sabino, de Machado de Assis a Lêdo Ivo. 

Para se conhecer o roteiro da vida cotidiana do carioca do princípio do século, nos belos tempos do soneto parnasiano e da boemia literária na Colombo e na Pascoal, é preciso ler os cronistas da época  e Bilac é dos mais bem informados e idôneos. Curioso, por exemplo, é ler-se a sua crônica sobre a desvalorização da Apólice, escrita em 1909  e confrontá-la com a de Machado de Assis, sobre o mesmo tema, publicada em 1894, na época do Encilhamento. 

Mais proveitosa e interessante ainda, para o historiador dos costumes cariocas, é sem dúvida a que escreveu em 1900, sobre o "Café-Cantante" ¹¹. Começa o cronista:

Nestes últimos dez anos, quantas manias temos visto desabrochar, viçar e morrer, nesta versátil e inconsequente cidade! Passageiras, precárias manias...
E passa a enumerá-las: as corridas de cavalos, o jogo da péla (frontão), o jogo da bola (boliche), o ciclismo...
Por fim, chegou o bicho e matou tudo. Tem sido essa a mania de mais pertinácia no viver. E provavelmente não será vencida pela mais recente, pela de agora, pela do café-cantante.
No que Bilac demonstrava muita perspicácia e instinto profético, pois o "bicho" chegou até nós e o café-cantante há muito morreu. 
Mas em 1900 estava em pleno apogeu e era a atração principal da vida noturna carioca.
Não há rua, por mais esconsa, por menos frequentada, que não possua atualmente o seu café-cantante.
Onde na véspera era uma loja de secos e molhados, uma charutaria ou uma papelaria, surge da noite para o dia um café-cantante. Bilac previne o leitor:
Entras. E, em lugar do teu charuteiro ou do teu merceeiro, encontras uma rapariga que te oferece um chope. A tua loja é uma cervejaria! Ao fundo, com um estrado velho, improvisou-se um palco. À beira dele, um piano inválido desmancha-se em lundus e em tangos. E eis ali surge, de saias curtas, uma cantora a chalrar...
E a crônica termina com uma interrogação lançada ao futuro:
Ai! vamos ver quanto há de durar a nova mania! E, depois desta, que outra virá?
Hoje estamos em condições de informar que a mania do café-cantante não durou muito. E podemos fazê-lo, graças a outro cronista. De fato, em 1908, João do Rio, em crônica, movimentada e pitoresca, (está no "Cinematógrafo"), lamentava A decadência dos chopes, que outra coisa não eram senão os mesmos cafés-cantantes de oito anos antes  mania efêmera da cidade, logo substituída por outras, que também passaram, como tudo passa sobre a terra, no dizer de um folhetinista... 
 
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS pelo Gerente deste blog 
 
¹ Trecho da crônica de 24 de setembro de 1854 constante do livro "Ao correr da pena" (1874) de José de Alencar, consistindo este de uma série de crônicas publicadas no Correio Mercantil e no Diário do Rio de Janeiro, em coluna de idêntico título. Na ocasião, ele tinha 25 anos, em início de carreira. A atividade jornalística do autor cearense, a propósito, teve influência decisiva em seu trabalho de ficcionista, refletindo nos seus primeiros romances Cinco Minutos (1856) e A Viuvinha (1857), cuja fonte se encontra exatamente nas referidas crônicas. Essa atividade jornalística permitiu ao autor desempenhar o papel de literato, fabulista, poeta, crítico teatral, dramaturgo, político, polemista, flâneur e pensador com posicionamentos polêmicos. 
Link para ler o e-book de "Ao correr da pena" (em domínio público): https://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1838 

² Figura grotesca imaginada pelo escritor latino Horácio. Tal figura conjugava partes de diferentes animais. 

³ Deus marinho, que podia assumir diferentes formas, associado a rios e corpos oceânicos de água, filho de Poseidon e Fenícia. Considerado o deus da "mudança elusiva do mar", sugere a constante mudança da natureza do mar e a qualidade líquida da água. 

De mau humor. 

Alencar está se referindo ao inventor do folhetim. 

Alencar faz uso de imagem metafórica, ao comparar o folhetinista a um "colibri" que busca extrair "graça, sal e espírito" de fatos triviais. 

O texto de Alencar reflete características de um viés jornalístico, com leveza e humor. 

Crônica de 18 de abril de 1897 para a Gazeta de Notícias, constante de BILAC, O JORNALISTA, em publicação de Antônio Dimas das Crônicas-volume 1, pp.  229-232.

Trad. Esse é o grande erro do jornalismo: forçar você a escrever, quando às vezes você não tem vontade de fazê-lo. 

¹ O Bei de Túnis era o nome do governador otomano da Tunísia, instituído no século XVI. Eça de Queiroz escolheu-o como figura de referência em algumas das suas crônicas para a "Gazeta de Notícias", do Rio de Janeiro, quando não tinha assunto ou quando queria apontar alguém como culpado pelas malfeitorias da política caseira. Eça "desancava" o Bei de Túnis  sinônimo erudito para "bode expiatório" , personalidade que, por essa razão, é, ainda hoje, recorrentemente citada na literatura e na escrita jornalística no Brasil. 
Também Machado de Assis, numa das crônicas da série Bons dias! (1888-89),  mais exatamente a de 19 de julho de 1888 , recorre ao alto funcionário otomano para denunciar o mau hábito de se acreditar naquilo que não é entendido. Na crônica, Boas noites chega a lamentar não ser o bei de Túnis".  
Para a autora, segundo nos faz entender, uma das grandes vantagens de se viver em Túnis seria a cordialidade estabelecida, graças ao fato de não se entender o que dizem os habitantes de lá, e vice-versa. O Rio de Janeiro estaria presente, pois Boas  noites  assinaria  jornais  e  leria  todos  os  artigos,  das  contendas  aos  debates parlamentares  e  manifestos  políticos.  Assim,  algumas  “pérolas”  brasileiras  não perderiam o valor naquela terra distante, mesmo o que viesse dito ou escrito “em dialeto barbaresco”, pois o colégio de intérpretes trataria de verter o conteúdo dos jornais. Denunciando o mau hábito de acreditar naquilo que não é entendido, Boas noites também define a situação imaginária do tunisiano, o qual não entenderia ninguém, nem os outros o entenderiam, e daí surgiram as relações mais cordiais, assim como surgira a amizade entre Von Stein e os índios do Xingu." (Cf. BETELLA, Gabriela Kvacek. Machado de Assis enfrenta tragédias e farsas na crônica: a reflexão crítica de Bons Dias!, Curitiba: Editora UFPR, Revista Letras, nº 62, pp. 17-18, jan/abr 2004)

¹¹ Crônica de 11 de março de 1900 para a Gazeta de Notícias, constante de BILAC, O JORNALISTA, em publicação de Antônio Dimas das Crônicas-volume 1, pp. 338-341.

 

III. AGRADECIMENTO

 

O gerente do blog manifesta seu agradecimento ao Acervo do Estadão, graças ao qual foi possível a transcrição da presente relíquia literária.

 

IV. BIBLIOGRAFIA 

 

BETELLA, Gabriela Kvacek. Machado de Assis enfrenta tragédias e farsas na crônica: a reflexão crítica de Bons Dias!, Curitiba: Editora UFPR, in Revista Letras, nº 62, pp. 11-25, jan/abr 2004.

COSTA, Francisco Seixas da: O Bei de Túnis, post de 02/04/2013 
 
BILAC, Olavo: BILAC, O JORNALISTA: Crônicas-volume 1. Organização: Antonio Dimas. São Paulo: Edusp/Ed. Unicamp/Imprensa Oficial de SP, 2006, 899 p.

Um comentário:

Francisco José dos Santos Braga disse...

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Tenho o prazer de transcrever no Blog de São João del-Rei a crítica de OLAVO BILAC enquanto cronista, feita por LUIS MARTINS, que, no seu texto, aborda também a transição do folhetim para a crônica no jornalismo brasileiro.
O texto foi publicado por O Estado de S. Paulo em 18/12/1965, dia em que se comemorava o Primeiro Centenário do Nascimento de Olavo Bilac.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/10/bilac-cronista.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei