domingo, 23 de novembro de 2025

SOBRE A LEITURA

Por MARCEL PROUST *
Transcrevemos, com a devida vênia da L&PM Editora, trecho do volume 1228 da COLEÇÃO 96 PÁGINAS, intitulado SOBRE A LEITURA, traduzido por Júlia da Rosa Simões e publicado em 2016, pp. 05-22.
Introdução, notas e bibliografia por Francisco José dos Santos Braga.
Marcel Proust (✰ Auteuil, 1871 ✞ Paris, 1922)

I. INTRODUÇÃO
 
 
Marcel Proust (1871-1922) foi um escritor francês, considerado um dos maiores escritores do século XX. Sua obra mais famosa é "Em Busca do Tempo Perdido", uma série de sete romances que conta a história do narrador Marcel e sua busca pelo sentido da vida. Proust também escreveu ensaios, artigos e contos. 
SOBRE A LEITURA foi publicado originalmente como o Prefácio que Proust escreveu em 1905, para a sua tradução de Sésame et les Lys, de John Ruskin. A observação que um editor francês fez na ocasião em que publicou esse texto ainda é válida atualmente para a edição brasileira: “essas páginas ultrapassam tanto a obra que introduzem, propõem um elogio tão belo da leitura e preparam com tanta felicidade Em busca do tempo perdido, que quisemos, livrando-as da sua condição de Prefácio,  publicá-las na sua plenitude.
Em “Sobre a Leitura”, Marcel Proust nos convida a refletir sobre o ato de ler e sua importância em nossas vidas. O livro aborda temas como a escolha dos livros, a interpretação dos textos e o papel da leitura na formação do indivíduo. 
Aqui se apresenta a oportunidade de revelar um dos mais famosos conceitos proustianos: o da “memória involuntária”, ou seja, um resgate súbito e completo de uma sensação do passado, acionado por um estímulo sensorial presente. Sob esse conceito, emerge um fragmento intacto, vivo e completo do passado, acionado de forma acidental por uma sensação presente — um sabor, um cheiro, um som. 
O estilo proustiano se caracteriza por ser inconfundível: uma sintaxe da alma. A sua leitura é uma experiência sensorial e intelectual única, em grande parte devido a seu estilo muito próprio.  Sua linguagem é extremamente metafórica e poética, enquanto suas frases longas e sinuosas são sua marca registrada, ocupando às vezes uma página inteira, cheia de orações subordinadas, digressões, em movimentos não-lineares, mas associativos, saltando de uma ideia para outra, de uma lembrança para uma reflexão. Conforme Salomao, a frase proustiana é uma tentativa de capturar a totalidade de um instante de consciência.
Proust sustenta que a escolha dos livros que lemos é fundamental para o nosso desenvolvimento intelectual e emocional. Ele defende que devemos ler livros que nos desafiem e nos façam pensar, e não apenas aqueles que nos entretêm. Também é importante ler livros de diferentes gêneros e autores, para ampliar nossa visão de mundo. 
Proust também discute a importância da interpretação dos textos. Ele afirma que não existe uma única interpretação correta de um texto, e que cada leitor pode encontrar significados diferentes na mesma obra. O importante é ler com atenção e refletir sobre o que estamos lendo, para que possamos extrair o máximo de proveito da leitura. 
Proust acredita que a leitura é essencial para a formação do indivíduo. Ele afirma que os livros nos ajudam a desenvolver nossa inteligência, nossa imaginação e nossa sensibilidade. A leitura também nos ajuda a entender o mundo ao nosso redor e a nos tornar pessoas mais críticas e reflexivas. 
Finalmente, neste texto Proust nos oferece uma visão única e apaixonada do ato de ler, e nos mostra como a leitura pode enriquecer nossas vidas.

 
 
II. TEXTO introdutório de "Sobre a Leitura"
 
 
TALVEZ NÃO HAJA, EM NOSSA INFÂNCIA, dias que tenhamos vivido mais plenamente do que aqueles que acreditamos ter perdido sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido. Tudo aquilo que, parecia-nos, preenchia-os para os outros e que afastávamos como um obstáculo vulgar a um prazer divino  o jogo para o qual um amigo vinha nos buscar no trecho mais interessante, a abelha ou o raio de sol incômodos que nos forçavam a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar, o lanche que nos haviam feito levar e que deixávamos ao nosso lado no banco, intocado, enquanto acima de nossa cabeça o sol perdia a intensidade no céu azul, o jantar para o qual era preciso voltar e durante o qual só pensávamos em subir para terminar, assim que possível, o capítulo interrompido  tudo isso, que a leitura deveria ter-nos permitido perceber apenas como uma inconveniência, ela pelo contrário gravava em nós como uma lembrança tão doce (tão mais preciosa, segundo nosso julgamento atual, do que aquilo que líamos então com tanto amor) que, se ainda hoje nos acontece de folhear esses livros de antigamente, fazemo-lo como os únicos registros que guardamos dos dias passados e com a esperança de vermos refletidas em suas páginas as moradas e lagunas que não existem mais
 
Quem não se lembra, como eu, das leituras feitas na época das férias, sucessivamente tranquilas e invioláveis o suficiente para poder abrigá-las. De manhã, voltando do parque, quando todos tinham ido "dar um passeio", eu me insinuava na sala de jantar onde, até a ainda distante hora do almoço, ninguém entraria além da velha Félicie, relativamente silenciosa, e onde eu teria como únicos companheiros, muito respeitosos da leitura, os pratos pintados pregados na parede, o calendário com a folha da véspera recentemente arrancada, o pêndulo e o fogo, que falam sem exigir uma resposta e cujos suaves discursos vazios de sentido não vêm, como as palavras dos homens, substituir o dos vocábulos lidos. Instalava-me numa cadeira perto do pequeno fogo de lenha, sobre o qual, durante o almoço, o tio madrugador e jardineiro diria: "Não é prejudicial! Suporta-se muito bem um pouco de fogo; asseguro-lhes que às seis horas fazia bastante frio na horta. E dizer que em oito dias será Páscoa!". Antes do almoço que, hélas! ¹, colocaria um fim à leitura, ainda havia duas longas horas. De tempos em tempos, ouvia-se o barulho da bomba de onde a água correria, que fazia erguer os olhos para ela e contemplá-la através da janela fechada, ali, bem perto, na única aleia do jardim que delimitava com tijolos e faianças em meia-lua os canteiros de amores-perfeitos: amores-perfeitos que pareciam colhidos sob aqueles céus belíssimos, céus versicolores e como que refletindo os vitrais da igreja, às vezes vistos por entre os telhados da aldeia, céus tristes que surgiam antes das tempestades, ou depois, bem tarde, quando o dia chegava ao fim. Infelizmente, a cozinheira vinha com muita antecedência colocar a mesa; se ainda a arrumasse sem falar! Mas ela achava preciso dizer: "Você não está bem assim; e se eu aproximasse uma mesa?" E apenas para responder "Não, muito obrigado" era preciso interromper a leitura e trazer de longe a voz que, por dentro dos lábios, repetia sem som, correndo, todas as palavras que os olhos haviam lido; era preciso interrompê-la, fazê-la sair e, para dizer de maneira adequada um "Não, muito obrigado", dar-lhe uma aparência de vida comum, um tom de resposta, que haviam sido perdidos. A hora passava; com frequência, muito antes do almoço, começavam a chegar à sala de jantar aqueles que, cansados, haviam encurtado a caminhada, aqueles que haviam "passado por Méséglise ²", ou aqueles que não tinham saído naquela manhã, "tendo de escrever". Por mais que dissessem "Não quero incomodar", logo começavam a se aproximar do fogo, a consultar o relógio, a declarar que o almoço não seria mal recebido. Cercavam com particular deferência aquele ou aquela que havia "ficado para escrever" e diziam-lhe "Então manteve sua pequena correspondência em dia" com um sorriso em que havia respeito, mistério, malícia e precaução, como se essa "pequena correspondência" fosse ao mesmo tempo um segredo de estado, uma prerrogativa, uma sorte e uma indisposição. Alguns, sem mais delongas, sentavam-se logo à mesa em seus lugares. Aquilo era um aborrecimento, pois constituiria um mau exemplo para os recém-chegados, faria crer que já era meio-dia, e meus pais pronunciariam cedo demais a frase fatal: "Agora, feche seu livro, vamos almoçar". Tudo estava pronto, os talheres todos postos sobre a toalha, em que a única coisa que faltava era aquilo que só era trazido ao fim da refeição, o aparelho de vidro em que o tio horticultor e cozinheiro fazia pessoalmente o café à mesa, tubular e complicado com um instrumento de física que exalasse um cheiro bom e do qual era tão agradável ver subir na campânula de vidro a súbita ebulição que depois deixava nas paredes embaçadas um borra perfumada e escura; e também o creme e os morangos que o mesmo tio misturava, em proporções sempre idênticas, parando exatamente no rosa esperado, com a experiência de um colorista e a intuição de um gourmand. Como o almoço me parecia longo! Minha tia-avó apenas experimentava os pratos, para dar seu parecer com uma tranquilidade que tolerava, mas não admitia, desacordo. Para um romance, para versos, coisas que conhecia muito bem, invariavelmente se remetia, com uma humildade de mulher, ao parecer dos mais competentes. Ela considerava aquele o domínio flutuante do capricho, em que o gosto de uma única pessoa não pode fixar a verdade. Mas em coisas cujas regras e princípios lhe haviam sido ensinados pela mãe, na maneira de fazer certos pratos, de tocar as sonatas de Beethoven e de receber com cortesia, ela tinha certeza de ter uma noção exata da perfeição e de discernir se os outros dela se aproximavam mais ou menos. Nas três coisas, aliás, a perfeição era quase a mesma: era uma espécie de simplicidade nos modos, de sobriedade e de charme. Ela desaprovava horrorizada que colocassem especiarias nos pratos que não exigiam nenhuma, que tocassem com afetação e excesso de pedais, que ao "receber" saíssem de uma naturalidade perfeita e falassem de si com exagero. Do primeiro bocado às primeiras notas, passando por um simples bilhete, ela tinha a pretensão de saber se estava lidando com uma boa cozinheira, com um verdadeiro músico, com uma mulher bem-educada. “Ela pode ter muito mais dedo do que eu, mas falta-lhe bom gosto quando toca com tanta ênfase esse andante tão simples.” “Pode ser uma mulher brilhante e cheia de qualidades, mas é uma falta de tato falar de si nessas circunstâncias.” “Pode ser uma cozinheira muito hábil, mas não sabe fazer o bife com batatas.” O bife com batatas! Peça eliminatória ideal, difícil por sua própria simplicidade, espécie de Sonata patética da cozinha, equivalente gastronômica daquilo que representa, na vida social, a visita da senhora que vem pedir informações sobre um criado e que, num ato tão simples, pode muito bem fazer prova, ou não, de tato e educação. Meu avô tinha tanto amor-próprio que preferia dizer que todos os pratos estavam bem-feitos e conhecia muito pouco de culinária para alguma vez saber quando estavam malfeitos. Ele admitia que este às vezes poderia ser o caso, muito raramente, aliás, mas apenas por pura obra do acaso. As críticas sempre justificadas de minha tia-avó, dando a entender, pelo contrário, que a cozinheira não soubera fazer tal prato, nunca deixavam de parecer particularmente intoleráveis a meu avô. Muitas vezes, para evitar discussões com ele, minha tia-avó, depois de provar algo com a ponta dos lábios, não dava seu parecer, o que, aliás, nos fazia saber imediatamente que este era desfavorável. Ela se calava, porém líamos em seus olhos doces uma inabalável e refletida desaprovação que tinha o dom de deixar meu avô furioso. Ele lhe rogava ironicamente que desse seu parecer, impacientava-se com o seu silêncio, pressionava-a com perguntas, exaltava-se, mas víamos que ela preferiria ser conduzida ao martírio a confessar a certeza de meu avô: que a sobremesa não estava doce demais. 
 
Depois do almoço, minha leitura era retomada sem demora; especialmente quando o dia estava um pouco quente, todos subiam para "retirar-se para seus quartos", o que me permitia, pela escadinha de degraus baixos, chegar logo ao meu, no único andar tão baixo que, sentado à janela, bastaria dar um pulo de criança para encontrar-me na rua. Eu fechava minha janela sem conseguir esquivar-me da saudação do armeiro da casa da frente, que, sob o pretexto de baixar suas marquises, vinha todos os dias depois do almoço fumar seu cigarro na frente de sua porta e dar bom-dia aos passantes, que, às vezes, paravam para conversar. As teorias de William Morris, que foram aplicadas com tanta assiduidade por Maple e pelos decoradores ingleses, estabelecem que um quarto só é bonito quando contém exclusivamente coisas que nos sejam úteis e que toda coisa útil, mesmo um simples prego, não deve ser dissimulada, mas tornada aparente. Acima da cama com dossel de cobre e inteiramente descoberto, nas paredes nuas desses quartos higiênicos, algumas reproduções de obras-primas. A julgá-lo segundo os princípios dessa estética, meu quarto não era nada belo, pois estava cheio de coisas que não serviam para nada e que dissimulavam pudicamente, chegando a tornar seu uso extremamente difícil, as que serviam para alguma coisa. No entanto, era justamente dessas coisas que não estavam ali para o meu conforto, mas que pareciam ter sido trazidas por prazer, que a meu ver meu quarto tirava sua beleza. As altas cortinas brancas que resguardavam dos olhares a cama posicionada como ao fundo de um santuário; as camadas de acolchoados de marceline, mantas floridas, colchas bordadas, fronhas de cambraia, sob as quais a luz desaparecia, como um altar durante o mês de Maria sob as grinaldas e as flores e que, à noite, para poder me deitar, eu colocava por precaução numa poltrona na qual elas consentiam passar a noite; ao lado da cama, a trindade do copo com desenhos azuis, do açucareiro idêntico e da garrafa (sempre vazia a partir do dia seguinte ao de minha chegada, por ordens de minha tia, que temia que eu a "espalhasse"), espécies de instrumentos de culto  quase tão sagrados quanto o precioso licor de flor de laranjeira colocado perto deles numa ampola de vidro  que eu não teria acreditado mais permitido profanar, nem possível empregar para meu uso pessoal, do que cibórios consagrados, mas que eu considerava longamente antes de me despir, temendo derrubá-los com um movimento em falso; as pequenas estolas bordadas de crochê que cobriam o encosto das poltronas com um manto de rosas brancas que não deviam deixar de ter espinhos, pois, sempre que eu acabava de ler e queria me levantar, percebia que tinha ficado preso a elas; a campânula de vidro sob a qual, isolado dos contatos grosseiros, o pêndulo tiquetaqueava privadamente para conchas vindas de longe e para uma velha flor sentimental, mas tão pesada para levantar que, quando o pêndulo parava, ninguém, exceto o relojoeiro, cometeria a imprudência de tentar dar-lhe corda; a toalha branca de renda guipir que, colocada como uma capa de altar sobre a cômoda ornada de dois vasos, uma imagem do Salvador e um ramo bento, a fazia parecer com a Mesa Sagrada (que um genuflexório, guardado ali todos os dias, depois que se tinha "acabado o quarto", completava a evocação), mas cujos fiapos sempre presos nas frinchas das gavetas travavam tão completamente o movimento destas que eu nunca conseguia pegar um lenço sem derrubar de uma só vez a imagem do Salvador, os vasos sagrados e o ramo bento, e sem eu mesmo cambalear segurando-me ao genuflexório; por fim, a tripla superposição de pequenas cortinas de burel, grandes cortinas de musselina e enormes cortinas de fustão, sempre sorridentes em sua brancura de pilriteiro, geralmente ensolarada, mas no fundo bastante irritantes em seu desalinho e na teimosia de brincar em torno dos varões paralelos de madeira e a se enroscarem umas nas outras e todas na janela assim que eu queria abri-la ou fechá-la, uma estando sempre ponta, quando eu conseguia soltar a outra, a vir logo tomar seu lugar nas junções tão perfeitamente tapadas por elas quanto por uma moita de pilriteiro de verdade ou por ninhos de andorinha que teriam tido o capricho de instalar-se ali, de modo que essa operação, tão simples na aparência, de abrir ou fechar minha janela, nunca era vencida por mim sem o auxílio de alguém da casa; todas essas coisas, que, além de não poderem responder a nenhuma de minhas necessidades, criavam inclusive um entrave, aliás pequeno, à sua satisfação, que evidentemente nunca haviam sido colocadas ali para a serventia de alguém, povoavam meu quarto de pensamentos de certo modo pessoais, com o ar de predileção, de terem escolhido viver ali e de gostarem, que têm muitas vezes, numa clareira, as árvores, e na margem dos caminhos ou em velhos muros, as flores. Elas o enchiam de uma vida silenciosa e diversa, de um mistério no qual eu me via ao mesmo tempo perdido e enfeitiçado; elas faziam daquele quarto uma espécie de capela onde o sol  ao atravessar os pequenos vidros vermelhos que meu tio havia intercalado no alto das janelas  salpicava as paredes, depois de rosar o pilriteiro das cortinas, com cores tão estranhas como se a pequena capela tivesse sido encerrada dentro de uma grande catedral com vitrais; e onde o barulho dos sinos chegava tão retumbante, devido à proximidade de nossa casa com a igreja, à qual, além disso, nos grandes festejos, os grandes oratórios nos ligavam por um caminho de flores, que eu podia imaginar que eram soados em nosso telhado, logo acima da janela de onde muitas vezes eu saudava o pároco com seu breviário, minha tia voltando das vésperas ou o menino do coro que nos trazia pão consagrado. Quanto à fotografia de Brown da Primavera de Boticelli, ou ao molde da Mulher desconhecida do museu de Lille, que, nas paredes e sobre a lareira dos quartos de Maple, são a parte concedida por William Morris à beleza inútil, devo confessar que haviam sido substituídos, em meu quarto, por uma espécie de gravura representando o príncipe Eugène, terrível e belo em seu dólmã, e que certa noite fiquei bastante espantado em descobri-lo, em meio a um grande estrépito de locomotivas e granizo, sempre terrível e belo, na porta de um bar de estação, onde servia de reclame a uma especialidade de biscoitos. Suspeito, hoje, que meu avô o tenha ganhado em outros tempos, como brinde, da munificência de um fabricante, antes de instalá-lo para sempre em meu quarto. Porém, naquela época eu não desconfiava de sua origem, que nem parecia histórica e misteriosa, e eu não imaginava que pudesse haver vários exemplares daquele que eu considerava como uma pessoa, como um morador permanente do quarto que eu apenas compartilhava e onde o encontrava todos os anos, sempre igual a si mesmo. Faz agora muito tempo que não vejo, e suponho que nunca mais o verei. Contudo, se tal sorte me acontecesse, creio que ele teria muito mais coisas a me dizer do que A primavera de Boticelli. Deixo às pessoas de gosto ornarem suas casas com reproduções das obras-primas que admiram e dispensarem suas memórias do cuidado de conservar delas uma imagem preciosa confiando-as a uma moldura de madeira esculpida. Deixo às pessoas de gosto fazerem de seus quartos a própria imagem de seus gostos e enchê-los somente de coisas que estes possam aprovar. De minha parte, só me sinto viver e pensar dentro de um quarto onde tudo é criação e linguagem de vidas profundamente diferentes da minha, de um gosto oposto ao meu, onde não encontro nada de meu pensamento consciente, onde minha imaginação se exalta sentindo-se mergulhada no âmago do não-eu; só me sinto feliz colocando os pés  na avenida da estação, no porto, ou na praça da igreja  num desses palacetes de província de longos corredores frios onde o vento de fora luta com sucesso contra os esforços do aquecedor, onde o mapa geográfico detalhado do distrito ainda é o único ornamento das paredes, onde cada ruído serve apenas para fazer o silêncio aparecer ao ser perturbado, onde os quartos encerram um cheiro de guardado que o ar da rua vem purificar, mas não apaga, e que as narinas aspiram cem vezes para levá-lo à imaginação, que se encanta, que o faz posar como um modelo para tentar recriá-lo dentro de si com tudo o que ele contém de pensamentos e recordação; onde, ao anoitecer, quando abrimos a porta de nosso quarto, temos a sensação de violar toda a vida que lá ficou dispersa, de pegá-la ousadamente pela mão quando, fechada a porta, avançamos até a mesa ou até a janela; de sentarmos numa espécie de livre promiscuidade com ela no canapé confeccionado pelo tapeceiro do lugarejo no que ele pensava ser o gosto de Paris; de em tudo tocar a nudez daquela vida com o intuito de perturbar a si mesmo por sua própria familiaridade, colocando aqui e ali suas coisas, fazendo o papel de senhor naquele quarto cheio até o teto com a alma dos outros e que conserva até mesmo na forma dos morilhos e no desenho das cortinas a marca de seus sonhos, caminhando de pés nus sobre seu tapete desconhecido; então, temos a sensação de fechar essa vida secreta conosco quando vamos, trêmulos, puxar o ferrolho; de conduzi-la até a cama e de finalmente dormir com ela nos grandes lençóis brancos que cobrem o rosto, enquanto, bem perto, a igreja soa para toda a cidade as horas de insônia dos moribundos e dos apaixonados. 
 
Eu não estava há muito tempo lendo em meu quarto e já era preciso ir ao parque, a um quilômetro da aldeia. No entanto, depois do jogo obrigatório, eu abreviava o fim do lanche trazido em cestos e distribuído às crianças na beira do rio, sobre a grama na qual o livro havia sido colocado ainda com proibição de ser retomado. Um pouco mais adiante, em certos recantos bastante desertos e misteriosos do parque, o rio cessava de ser um curso retilíneo e artificial, coberto de cisnes e bordejado por aleias com estátuas sorridentes, e, por instantes, saltitante de carpas, precipitava-se, passava acelerado a cerca do parque, voltava a ser um rio no sentido geográfico do termo  um rio que devia ter um nome  e não tardava a se espelhar (de fato o mesmo que entre as estátuas e sob os cisnes?) por pastagens nas quais dormiam bois e cujos botões-de-ouro ele afogava, espécies de planícies tornadas bastante pantanosas por ele e que, de um lado acompanhava a aldeia ao longo das torres informes, restos, dizia-se, do medievo, alcançavam do outro, por caminhos ascendentes de roseiras-bravas e pilriteiros, a "natureza" que se estendia ao infinito, por aldeias que tinham outros nomes, o desconhecido. Eu deixava os outros acabarem de lançar na parte baixa do parque, perto dos cisnes, e subia correndo pelo labirinto, até certa alameda onde me sentava, invisível, recostado às aveleiras podadas, vendo a plantação de aspargos, as fileiras de morangueiros, a cisterna que, em certos dias, os cavalos pisoteavam fazendo a água subir, a porta branca no alto que era o "fim do parque", e, para além dela, os campos de centáureas e papoulas. Naquela alameda, o silêncio era profundo, o risco de ser descoberto, quase nulo, a segurança tornava-se mais doce com os gritos afastados que, de baixo, chamavam-me em vão, às vezes até se aproximavam, subiam as primeiras escarpas, procurando por toda parte, depois voltavam, sem me encontrarem; depois, mais nenhum ruído; de tempos em tempos, apenas o som de ouro dos sinos que ao longe, para além das planícies, parecia repicar atrás do céu azul, poderia me avisar da hora que passava; no entanto, surpreendido por sua brandura e perturbado pelo silêncio mais profundo que o seguia, esvaziado dos últimos sons, eu nunca tinha certeza do número de badaladas. Não eram os sinos ribombantes que ouvíamos ao voltar para a aldeia  quando nos aproximávamos da igreja que, de perto, havia recuperado sua estatura elevada e rígida, erguendo no azul da noite seu teto de ardósia pontilhado de corvos  e que faziam o som espocar na praça "para os bens da terra". Eles chegavam ao fim do parque fracos e suaves, e não se dirigiam a mim, mas a todo o campo, a todas as aldeias, aos camponeses isolados em suas terras, não me forçavam absolutamente a erguer a cabeça, passavam por mim levando a hora às regiões distantes, sem me verem, sem me conhecerem e sem me perturbarem. 
 
Algumas vezes, em casa, na cama, muito depois do jantar, as últimas horas da noite também abrigavam minha leitura, mas isso somente nos dias em que eu havia chegado aos últimos capítulos de um livro, em que não havia muito mais a ser lido para chegar ao fim. Então, arriscando-me a ser punido se fosse descoberto e à insônia que, acabado o livro, talvez se prolongasse a noite toda, assim que meus pais iam se deitar, eu voltava a acender a minha vela; enquanto isso, na rua bem próxima, entre a casa do armeiro e o correio, banhadas de silêncio, havia um monte de estrelas no céu escuro e todavia azul, e à esquerda, na ruela elevada onde começava sinuosa sua ascensão proeminente, sentíamos a vigília, monstruosa e negra, da abside da igreja cujas esculturas não dormiam à noite, da igreja aldeã, porém histórica, morada mágica do Bom Deus, do pão consagrado, dos santos multicores e das damas dos castelos vizinhos que, nos dias de festa, faziam, quando atravessavam o mercado, as galinhas cacarejarem e as comadres olharem, vinham à missa "em suas parelhas", não deixando de comprarem na volta, na confeitaria da praça, logo depois de terem deixado a sombra do pórtico onde os fiéis, empurrando a porta giratória, espalhavam os rubis flutuantes da nave, alguns desses bolos em forma de torres, protegidos do sol por um toldo  manqués, saint-honorés et génoises ³, cujo aroma ocioso e açucarado continuo associando aos sinos da grande missa e à alegria dos domingos. 
 
Depois de lida a última página, o livro estava terminado. Era preciso interromper a corrida desvairada dos olhos e da voz que acompanhava sem som, parando apenas para tomar fôlego, com um suspiro profundo. Então, a fim de dar outros movimentos dirigidos aos tumultos há muito desencadeados dentro de mim para poderem se acalmar, eu me levantava, começava a caminhar ao longo da cama, os olhos ainda fixos em algum ponto que em vão seria procurado dentro do quarto ou na rua, pois situado a apenas uma distância de alma, uma dessas distâncias que não se medem em metros e léguas, como as outras, e que, aliás, é impossível confundir com elas quando se vê os olhos "distantes" daqueles que pensam "em outra coisa". Mas como? O livro era só aquilo? Os seres aos quais havíamos concedido mais atenção e carinho do que às pessoas reais, nem sempre ousando confessar a que ponto os amávamos, e quando nossos pais nos encontravam lendo e pareciam sorrir de nossa emoção, fechando o livro com uma indiferença afetada ou um tédio fingido; essas pessoas por quem tínhamos arquejado e soluçado, não as veríamos nunca mais, nunca mais saberíamos algo a seu respeito. Já havia algumas páginas que o autor, no cruel “Epílogo”, tivera o cuidado de "espaçá-los", com uma indiferença incrível para quem sabia com que interesse eles tinham sido seguidos passo a passo até ali. A ocupação de cada hora de suas vidas nos havia sido narrada. Depois, subitamente: "Vinte anos após esses acontecimentos, era possível encontrar nas ruas de Fougères um ancião ainda ereto, etc.". E o casamento cuja deliciosa possibilidade tínhamos sido levados a vislumbrar ao longo de dois volumes, assustando-nos e a seguir regozijando-nos com cada obstáculo apresentado e depois removido, era por uma frase acidental de um personagem secundário que descobríamos que havia sido celebrado, não sabíamos ao certo quando, naquele espantoso epílogo escrito, parecia-nos, do alto do céu, por uma pessoa indiferente a nossas paixões do momento e que tomara o lugar do autor. Teríamos desejado tanto que o livro continuasse e, se isso fosse impossível, ter outras informações sobre todos aqueles personagens, descobrir algo de suas vidas, empregar a nossa em coisas que não fosse de todo estranhas ao amor que nos tinham inspirado e cujo objeto de repente nos fazia falta, não ter amado em vão, por uma hora, criaturas que amanhã seriam apenas um nome numa página esquecida, num livro sem relação com a vida e sobre o valor do qual estávamos bastante enganados, visto que seu quinhão neste mundo, compreendíamos agora e nossos pais nos informavam por meio de uma frase desdenhosa, não era absolutamente como havíamos acreditado, conter o universo e a vida, mas ocupar um lugar bastante estreito na biblioteca do notário, entre as pompas sem prestígio do Journal de Modes illustré e da Géographie d'Eure-et-Loir... [...]
 

II. NOTAS EXPLICATIVAS

 
¹ Interjeição francesa que significa "ai de mim! ou infelizmente".

² Na sua obra "Em busca do tempo perdido", no primeiro volume intitulado "No Caminho de Swann", Proust fala de dois caminhos que atravessavam sua propriedade de Tansonville: primeiro, o caminho de Méséglise ou de Swann,  caminho dos pilriteiros cor-de-rosa, do cheiro dos lilases e das macieiras; segundo, o caminho de Guermantes, o do curso do rio La Vonne (note-se que rivière é feminino em francês) que atravessa a comuna Vivonne,  o das plantas aquáticas, dos mistérios, dos pensamentos elevados e sofisticados. Enquanto o de Méséglise ou de Swann é o caminho do amor e do erotismo, o de Guermantes é o da descoberta da vocação. É neste último, que se dará a primeira experiência do narrador ao descrever as impressões e sensações despertadas pelas torres de Martinville.
Os dois caminhos, tão diferentes para o narrador, "se comunicam imediatamente com o coração".

³ Modalidades de bolos, normalmente de massa folhada, decorados com glacês caramelizados e recheados com chantilly.
 

III. BIBLIOGRAFIA


BOTTON, Alain de: Como Proust pode mudar a sua vida, Rio de Janeiro: Rocco, 1999, 193 p.
 
PROUST, Marcel: SOBRE A LEITURA, Porto Alegre: L&PM Editora, volume 1228 da COLEÇÃO 96 PÁGINAS, 96 p.
 
SALOMAO: Marcel Proust: Resumo, Aula e Exercícios, Blog Seu Saber, post de 27 de julho de 2025.

3 comentários:

Francisco José dos Santos Braga disse...

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Tenho o prazer de enviar-lhe a tradução de Júlia da Rosa Simões para o texto intitulado SOBRE A LEITURA, do escritor francês MARCEL PROUST, publicado em 1905 como prefácio ao livro Sésame et les Lys, de John Ruskin. Esse prefácio caiu no goto do público a ponto de a editora publicá-lo independente da obra prefaciada.
Em “Sobre a Leitura”, Marcel Proust nos convida a refletir sobre o ato de ler e sua importância em nossas vidas.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/11/sobre-leitura.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Francisco José dos Santos Braga disse...

Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008)) disse...
PRECIOSO!

Francisco José dos Santos Braga disse...

Agostinho Dias Carneiro (membro da ABRAFIL-Academia Brasileira de Filologia, lexicógrafo, autor de Redação em Construção: A Escritura do Texto e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas) disse...
Leitura obrigatória!!! Obrigado e abraços!