quinta-feira, 2 de novembro de 2017

A ARTE DE TRADUZIR


Por Maria Eugenia Celso


Arte difícil entre tôdas, arte até então definitivamente equiparada à de trair, arte cada vez mais indispensável e de cuja importância o extraordinário número de traduções postas em circulação em tôdo o mundo civilizado é seguro e persuasivo indício.

A necessidade de um conhecimento mútuo mais aprofundado e maior faz com que em todos os países, dia a dia, se incremente a industria da tradução e os bons tradutores estejam tomando feitio e personalidade de verdadeiros artistas.  

Em interessante artigo de uma das últimas "Nouvelles Littéraires", Wladimir Weidlé nos esclarece acerca das qualidades requeridas para este gênero de creação literaria, pois não hesita em classificar como verdadeiros creadores, aquêles que conseguem adaptar ao espírito da língua para a qual é vertido um original integralmente respeitado, quer na estrutura íntima de sua essencia, quer nos meandros personalissimos de sua forma. 

O problema da tradução se nos antolha em tôda a sua complexa dificuldade, desde que procuramos dar definição do que seja realmente uma tradução "correta" ou exata.

A coisa, naturalmente, se torna simples e sem maiores rodeios quando se trata de uma obra de ciência ou de um trabalho de utilidade pratica e informativa. Toda gente se acha prèviamente de acôrdo sobre o que se possa aí entender por exatidão e correção.

O caso muda, porém, completamente de figura quando entra em apreço uma obra de arte.

O correto e o exato tomam um sentido diverso, muito menos positivo e ao pé da letra, ampliados insensivelmente pelo imperativo de conservar ao autor traduzido toda a sua saborosa originalidade de estilo e de pensamento.

Para esta delicadíssima tarefa impõem-se muita vez alterações que, embora modificando aparentemente o texto, lhe garantem e até lhe aclaram magnìficamente a projeção no idioma novo, onde foi transportado ao nivel da compreensão de leitores estranhos e quasi sempre apressados.

É por isto que a tradução de um volume de poesia representará sempre trabalho de penetração e de reprodução muito mais penoso e meritório do que a versão de trechos de prosa por mais complicados que se apresentem. 

"Tentar a transfusão de um poema de uma língua para outra, - disse Shelley - é o mesmo que querer jogar a violeta num cadinho para conhecer-lhe a essência do perfume e da côr." O poema é intraduzível por definição, só póde ser recreado à imagem e semelhança do original.

Quando um verdadeiro poeta traduz a obra de outro poeta verdadeiro, o resultado de seu trabalho lhe pertence tanto quanto ao autor do verso traduzido. Não são, todavia, obras de poesia as que mais solicitam o labor dos tradutores. Cabe esta primazia ao romance e, presentemente, às biografias. O que fica perfeitamente averiguado, segundo Wladimir Weidlé, é que os escritores menos traduzíveis não são os maiores. Pelo contrário, os grandes escritores são geralmente os que, mesmo na pior das traduções, guardam qualquer coisa da sua essência imortal. Assim Shakespeare que, mesmo em versões populares, incompletas e deturpadoras, fica sempre Shakespeare.

A tarefa de tradutor é, por conseguinte, ingrata mas necessária. Na história de todas as literaturas desempenha salientíssimo papel.

Graças a ela, intermediário da sua difusão, é que não só um autor estrangeiro se torna acessível à grande maioria dos leitores, como a própria obra se entrosa em novo ambiente literario, aí exercendo a influência de que é susceptível. Tôda influência, no entanto, para ser real e fecunda, exige asssimilação e o primeiro passo para esta assimilação é o tradutor que o dá.

Uma tradução realmente fiel, ou até unicamente viavel, equivale a um enriquecimento do patrimônio literario comum.

É por isto que, cada vez mais, impõem os editores aos tradutores a apresentação de verdadeiras credenciais de escritor. Não basta o conhecimento autentico de dois idiomas, é preciso qualidades literarias comprovadas. Isto da parte do tradutor. Da parte do editor, o senso da escolha, esclarecido e apurado, afim de não cair na terrível confusão de valores no mesmo país, e não colocar no mesmo plano, digno de transpôr as fronteiras da linguagem nacional, o mérito legítimo e os produtos do favoritismo de certa crítica partidaria e parcial, do exibicionismo e da reclame.

Uma tradução perfeita, conclue Wladimir Wleidé, constitue milagre. É por isto, certamente, que todo cuidado é pouco para com o santo que o faz.

Fonte: JORNAL DO BRASIL, edição de 6/6/1939; republicado à guisa de prefácio do livro intitulado TRISTIUM de Ovídio, pp. 7-8.


BIBLIOGRAFIA



OVÍDIO: TRISTIUM (Tradução Literal de Augusto Velloso), 2ª edição, Rio de Janeiro: Edição da "Organização Simões", 1952, 223 p.
 

9 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Comentando um texto intitulado "S. João d'El-Rei, por Afonso Celso", publicado em 16/06/2016 no Blog de São João del-Rei, fiz ligeira referência à filha do conde Afonso Celso, chamada Maria Eugênia Celso, nascida em São João del-Rei, fato que despertou meu interesse de conhecer melhor a produção literária da escritora são-joanense.

Em seguida, fiz um trabalho mais direcionado a ela, desta vez no Blog do Braga, em 25/07/2016, a que dei o título de "Maria Eugênia Celso, esquecida intelectual são-joanense (1886-1963)".

Em post de 09/01/2017 no Blog de São João del-Rei intitulado Novas revelações sobre a produção literária de Maria Eugênia Celso, ampliei meus estudos sobre ela, abordando principalmente a capacidade da minha biografada de dominar a língua francesa, sendo-lhe possível manifestar sua sensibilidade poética na forma bilingue, e inclusive em poemas musicados, como é o caso das canções "C'est toi l'Amour" e "N'Aimez que Moi", em parceria com Joubert de Carvalho (lançadas originalmente em disco por Marlene Vallée, em 1932), encontrados no YouTube, bem como seu pendor para a dramaturgia, tendo produzido quatro peças teatrais, que passaram despercebidas pela crítica da ocasião, mas que agora passam a ser estudadas com rigor científico porque se entende modernamente que não se pode escrever sobre o teatro brasileiro ignorando a participação das autoras de textos teatrais.

Recentemente, quando pesquisava sobre o poeta latino Ovídio, deparei-me com um texto da autoria da escritora são-joanense, A arte de traduzir, que, curiosamente, foi utilizado pelo tradutor ou pela editora como prefácio. Achei por bem reproduzi-lo no Blog de São João del-Rei, julgando beneficiar o leitor que se aventura na difícil tarefa de traduzir textos de outras línguas para a nossa portuguesa, adotando, contudo, a mesma grafia que apareceu naquele livro de 1952, embora tenha sido escrito originalmente para o Jornal do Brasil em 6/6/1939.

Sérgio Vasconcelos Correa (compositor e membro da Academia Brasileira de Música) disse...

Meu caro Braga, você sempre descobrindo fatos importantes para a história do nosso Brasil. Parabéns. E como vão as composições?

Não pare, retornar a elas depois de muito tempo não é bom. Faça de tudo, um pouco, mas faça sempre. Não falo por falar. Agora mesmo acabo de ter publicado um texto de ficção
intitulado "Olhos Atentos", pela através da Loja Kindle, que envio anexo. Também faço de tudo, um pouco. Abração do amigo.

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (professor universitário, escritor, poeta e presidente da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Caro Braga, bom dia. Seu cuidado na pesquisa de figuras e personagens de sua terra merece elogios.

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Como sempre o ilustre amigo nos surpreende com suas pesquisas, desta feita com um interessante artigo de autoria da Sra. Maria Eugênia Celso, sobre a “Arte de traduzir”.

Muito bom! Agradeço pelo envio.

Abraços.

João Carlos Ramos (poeta, escritor, ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...

Parabéns!
Obrigado!

Prof. Cupertino Santos (professor de história aposentado de uma escola municipal em Campinas) disse...

Naturalmente eu não conhecia essa senhora - filha do famoso Conde - e a importância que tem no aspecto literário. Sobre a questão da complicada arte da tradução de obras, o professor já havia tratado o problema da tradução para o russo (de uma Lira de Gonzaga), o caso de Puchkin, se não me falha a memória.
Muito bom.
Cumprimentos. Muito grato.

Unknown disse...

Caro Braga,
A informação me foi muito útil, de vez que sou estudioso da língua francesa e já dou os primeiros passos na tradução.
Enviei também para o Prof. Joaquim Esteves (Aliança Francesa - Rio)

Prof. Henryk Siewierski (professor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB, ensaísta, escritor, poeta e tradutor) disse...

Prezado Francico,

Belíssimo e muito atual o texto "A arte de traduzir" de Maria Eugênia Celso.

Muito obrigado por me encaminhar.

Abraços.

José Carlos Hernández Prieto (escritor, tradutor juramentado para a língua espanhola, membro e tesoureiro do Instituto Histórico e Geográfico e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo e confrade: muito obrigado pelo e-mail. Lerei todas as suas "descobertas" com muito prazer.

Abraço fraterno do amigo e tradutor.