quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

ADEUS, TEIXEIRA


Por Antônio Gaio Sobrinho




INTROIBO AD ALTARE DEI - Antífona: Tudo em redor é tanta coisa e é nada - Nise, Anarda, Marília... Quem recordo? Quem responde a essa póstuma chamada?             [De Cecília Meireles: Romanceiro da Inconfidência]

KYRIE ELEISON - Da vanidade da existência: A monotonia compassada dos tique-taques do despertador, sobre a geladeira colocado, deixava pingar no passado, inexoravelmente, as gotinhas intermitentes do tempo. Nesse instante de solidão e cismas, eu me senti como um relógio a que Deus, um dia, dera cordas. E desde aí, meu coração, segundo após segundo, sem parar, vai derramando suas batidas até que a corda se acabe e soe, enfim, o derradeiro minuto de minha vida. Mas aqui claudica a comparação, pois que já não será mais possível dar novas cordas a um coração enguiçado. As pancadas surdas do coração são únicas e irrepetíveis de modo que aqui vivemos, nesta vida, como quem se despede e vai andando os caminhos do mundo, pela última vez, dizendo adeus a tudo e a todos, morrendo a cada piscar de olhos. Ficarão, quem sabe, por algum tempo, algumas pegadas apenas na poeira do chão que pisamos.

OREMUS - In dimidie dierum meorum: Foi com pensamentos tais que, aos 14 de julho de 1980, no meio de meus dias, me senti velho pela primeira vez, morto pela metade, quando vim despedir-me de ti, Teixeira dos meus sonhos infantis. E foi, então, que recordei os tempos volvidos, em criança, quanto tu eras o meu grande e vasto mundo - sic parvis componere magna solebam.  Mas em 12 de março de 1948, após a morte da vó, Mãe Gorda, esse meu mundo infantil começou a ruir, ele, que imaginei durasse: per omnia saecula saeculorum.

MEMENTO ETIAM - Anamnese: E assim, recordando, fiz, entre suspiros de saudade, a chamada dos mortos: Mãe Gorda, Pai Velho, onde estais vós? Anselmo, Sandica, Zezeca, Iza, Chiquinho, Zabelinha, Zé Luiz, Fonça, Luizinho, Amélia, Tita, por onde andais? Lilia, Laura, Titita, Augusto, João, Ramiro, Zezé da Maria, Ni, Naná, Naim, Antônio do Benjamim, cadê vocês? E vós, transeuntes e forasteiros, que por aqui deixastes o rastro de vossa passagem: Vicente e Zeca, Agenor e Sinhá, Noca e João Viriato, Antoninho e Mariquinha, Lica e Mariana, Carioca e Bacurau, Adão e Jovino, Antônio Candinho e Dedé, Balduína, Helena, Tunica e Joaquim, Mercês dos Bentos e leprosos, que fim os levou? Augusto, Barrado, Dionísio, Nilza, por onde alfabetizais? Vislumbradas formas de Servo, Maria da Fonça, Zizinha Doida, Izartina e Clara Anastácia? Padre Heitor e Zé Galdino? Meus vocativos se desmancham em reticências e interrogações perdidas, no mistério do sem respostas. Mas, ó surpresa! Se não me respondem, eis que, de repente, como num milagre, eles, os mortos, voltaram todos. Sim, eu os revejo, cada um e cada uma, desfilando diáfanos na tela branca de uma infinita saudade. 

NOBIS QUOQUE PECCATORIBUS - Memento dos vivos: Em sua companhia, refiz, então, as antigas trilhas, evocando os vivos que inda, poucos, aqui restam ou, muitos, que daqui se foram, um dia, deixando o vazio de sua ausência. Revi Benjamim, lentamente acelerando a desnatadeira, enquanto todos aguardavam, pacientes, a própria vez de lançar na cuba o minguado leite se seus baldes. E, na casa vazia, em desordem, cheirando a latas, sacos e arreios, surgiram Conceição, Zé, Duarte, Altivo, Nelson, Zélia, Anália e Cecília, timidamente sorrindo sua doce meiguice e humildade. Em rápido vislumbre que, logo, se desmanchou, na casa do Servo, encontrei a Gusta, o Viriato, o Eugênio, a Sinhá, a Sílvia, o Miguel, o Mosquito, o Luiz e o Sinval. Mais para cima, em rústico casebre de sapé e pau a pique, no fundo da grota, vi o Bem, o Antão, a Nega, a Nair, o Nilson. E lá no alto junto do ipê dourado de agosto, a Luíza, a Miquita, a Lourdes, o Juca, o Paulo, o Antônio e, depois, o Adebal, o Neto e o Celso. Na boca da cava, retornando, estive com Maria das Candeias e Fifi. Descendo a cava, revi a Inês, bordando seu vestido de noiva, a Tinha, a Teresinha, o Nivaldo. E lembrei-me da Lourdes, no Arraial, e do Hélio, no colégio. E visitei o campinho onde jogávamos bola de meia ou de borracha, na hora do recreio da escola. Desci até a casa do João Gaio e Madalena, do Didi, do Leonardo, do Antônio, que maldosa malacacheta cegou de uma vista. Pelo caminho das sete-casacas, branquinhas e cheirosas, cheguei até  Antonieta, Lourival e Marízi. Perto do moinho, no meio do bosque, em terrenos do Milico, deparei o Chico Simplício e Inhazinha, Zezé e Laurici e também a pequena e bela Suely. Entrei na casa da Zabelinha, para estar com João, Zé e Naná. Na casa do açude, onde, um dia, morou Alaíde, estive com Tonho e Zizinha. E, um pouco adiante, visitei Geraldo e Lilia, com suas crianças: Zizi e Nicinha. Do outro lado do morro, a caminho do Caxambu das gabirobas, escondida de altas canas taquaras e roxinhas, a casa do Zequinha, da Berenice, da Dora e da Nilzinha. Voltando, ainda naquela banda do brejo das painas e taboas, de sapos ferreiros e rãs coaxantes, fui encontrar-me com Adélia, Dito, Osvaldo, Nhô, e as gêmeas Nair e Nadir, vestidas igualmente. Do lado de cá, à margem de baixo do rego da Fazenda, a Chiquita e Leni que, comigo, regulava em idade. Dali, subi pelo cruzeiro e, evitando, por ora, a fazenda, retornei meus passos, já cansados, tomando pelo caminho do açude. Enquanto vinha, acudiram-me à memória o Zé Tomaz, o Neca, o Abel, o Joaquim Viriato e os irmãos Edson e Zé da Turma. E vós outros, os namorados, Lado, Zé Adão, Jovino, João Lopes, Teresinha do Eugênio, e o pessoal do Manoel Inácio, a caminho do trem, com João de Deus e Juvenal, experimenta mala.  E assim cheguei aqui, pertinho de casa, onde pressenti a Senilza, enquanto Tonico vagia com a Geny, de quem ouvi um carinhoso: Oi, Antônio! Sim, oi! Eis-me aqui retornado, de volta a casa onde nasci num já distante dia 28 de novembro de 1936.  

ORATE FRATRES - Visita à casa paterna: Como a ave, que volta ao ninho antigo, depois de um longo e tenebroso inverno, eu quis também rever o lar paterno, o meu primeiro e virginal abrigo. No terreiro: dálias e manacás, beijos e malvas; no interior: chão de terra batida, catres e oratório, e São Jerônimo e São Pedro, em quadros, na parede; na cozinha: o fogão de lenha, a broa de panela e o requeijão, café de garapa; um pedaço de toucinho na picumã. Entrei. Um gênio carinhoso e amigo, o fantasma talvez do amor materno, tomou-me as mãos, olhou-me, grave e terno. E, passo a passo, caminhou comigo. Era esta a sala... (Oh se me lembro... e quanto!) em que da luz noturna à claridade... minhas irmãs e minha mãe... E também meus irmãos: Francisco, nosso Chico: uma espingarda, um cavalo alazão, o cachorro veludo e as canas; o Zito, o nosso Coelho: o violão, o cavalo Sargento, os passarinhos; o Domingos, nosso Mingo: as gaiolas, os sonhos, o carro-de-bois e também aquele álcool que o derrubou daquela vez; a Zita, nossa Biela: o manacá cheiroso, o pilão, os biscoitos; a Hilda, nossa Vanda: seu catrinho de bonecas, balde de água, bacia de roupas, um pilão a socar; a Salete, nossa Biquinha: bonecas, calças de menino, suas casinhas. E o Pai, Pedro Gaio, na cadeira de couro, a pitar; a Mãe, Maria Christina, Tina, na máquina singer, de mão, a costurar. Ah que cedo vos partistes! Por fim, o Antônio, que sou eu, o Dutra: meus carrinhos, meu cavalo de pau, meu moinho, meu ralinho, meu pião, meu finco, meu papagaio, minha bola de meia, minha arapuca, meus soldadinhos de chumbo, meus lápis de cor, meus carreteis, minhas caixinhas de fósforos, minhas pernas de paus, meus corrupios, minhas piorras, meu caminhãozinho de lata verde, minhas frutas de lobo, meu canivete, meus boizinhos de sabuco. Meu catre com colchão de palha, meu sono, meu sonho... meus sonhos... quantos sonhos! O pranto jorrou-me em ondas... Resistir quem há-de? Uma ilusão gemia em cada canto, chorava em cada canto uma saudade.
 
HAEC COMMIXTIO - Comunhão geral: Agora, sim, a Fazenda, onde minhas visões me levam ao termo destas lembranças. E lá a última visão, resumindo todas, enche-me de lágrimas os olhos, ali no velho e querido casarão, com seus salões e escuras alcovas, seu porão, antiga senzala, com barricas, troncos, giramundos e assombrações. Eis, elas e eles, vivos e finados, estão todos agora, novamente reunidos, como antigamente. Os mortos revivem. Os ausentes retornam. Os de Lavras vieram. E os presentes se ajuntam, e as crianças só riem. Os salões povoam-se de sombras e espectros. Os ecos adormecidos acordam. As vozes perdidas ressoam. A sanfona, os violões, cavaquinhos e pandeiros enchem de música os vazios e os espaços, à luz onírica das lamparinas. A família dança reunida. Um baile para Nezita!

ITE MISSA EST - Adeus, enfim adeuses: O baile surrealista terminou. Tudo, novamente, jaz agora em silêncio. E eu me despeço, Teixeira da minha infância. Vou-me embora, aqui não volto mais, não. Adeus casas e cruzeiros, caminhos antigos, cavas e atalhos. Roças: mandiocais e cafezais, milhos brotando, feijão florindo e arroz cacheando. Pepinos e melancias. Arvoredos e bambuzais, laranjeiras, canaviais; maracujás, gabirobas e araçás; araticuns e juás, pitangas e goiabas, veludos, muricis e amoras. Amoras e amores, Adeus! Rio, cachoeira e enchentes, remanso, canoas e caixote. Açude, lagoas, corgos e regos. Gementes carros de bois, arados, cambões, cangas e enxadas. Moinhos, ralos, engenhos, engenhocas e alambiques. Fornos e fogões, tachos e braseiros. Muros, valos, cercas, currais, porteiras e tronqueiras.  Ruínas, adeus!

Adeus, meus animais: vacas e bois, touros e novilhas, éguas e cavalos. Galos e galinhas, patos e perus, cães e gatos, porcos e tatus. Crioulo, adeus. Pintassilgos e curiós, papa-arrozes e patativas, sanhaços e bem-te-vis, maritacas e periquitos. Rolinhas e canarinhos, bicando amarelos no farelo do terreiro em tardes de estio. Sapos e rãs, pererecas e lagartixas, cigarras e vagalumes, sabiás, codornas e inhambus, seriemas e saracuras: mamãe Maricota quebrei teu pote. Urubus e gaviões, deus-qué-um, adeus!

Adeus, encontros e brincadeiras: visitas, café com biscoito, canjiquinha com couve; arrasta-pés, sanfonas, violões e pandeiros; catecismos, roupas domingueiras, rezas, novenas e ladainhas: Nossa Senhora visitadora: chamamos tia Maria... quando procuro Jesus, ela me conduz. Lanternas, luares, futebol, natação, baralhos e damas; corridas de arco, palhadas de arroz e feijão, brinquedos de roda, tatu passa aqui, gata parida, malhas. Cantigas e vozes, perdidas vozes... sussurros, adeus!

Adeus escolas: Cartilhas e tabuadas, noves foras, adeus! Adeus vultos. Diluentes espectros aéreos, adeus! Adiós, muchachos, meninos e meninas! Quem partiu, quem ficou, quem morreu, para todos, adeus! Adeus, Teixeira, paisagem antiga, tu não existes mais; és, apenas, uma sombra que se desmancha, uma recordação que agoniza, um tempo bom que passou. Nada mais resta que um eco perdido, uma neblina, uma miragem que se apaga, ao longe. Uma reticência que se eterniza numa lágrima que secou. 

9 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

A segunda parte do livro "Et Caetera" (2016) é constituída de crônicas, de Antônio Gaio Sobrinho, natural de Conceição da Barra de Minas e colaborador do Blog de São João del-Rei. A parte primeira do livro é dedicada a pesquisas do autor em arquivos paroquiais, livros antigos do Senado da Câmara e outros, em São João del-Rei, tendo o nosso blog publicado alguns desses trabalhos.
Pedi a Gaio para fazer uma sucinta análise de sua crônica que possibilite ao leitor a compreensão da carga emotiva de sua memória envolta num ritual litúrgico típico de um período anterior ao Concílio Vaticano II. Eis a visão de Gaio para a sua viagem ao passado:
"ADEUS, TEIXEIRA é uma crônica de saudades, lembrando a década de quarenta, no povoado familiar onde eu vivi os primeiros doze anos de minha vida. São memórias tumultuadas que ressurgiram em minha mente num dia de 1980, cerca de quarenta anos depois de vividas, as quais, ao escrevê-las, tentei ordenar, mal e mal, numa espécie de liturgia, donde as expressões latinas do ordinário da Missa, que abrem os parágrafos. São evocações sentimentais que somente quem viveu o contexto, ou quem as tem parecidas, pode plenamente compreendê-las, como o citado caixote que se usava para a travessia sobre o Rio das Mortes Pequeno. Enfim, sou eu e meus fantasmas, fantasmas queridos que insistem em conversar comigo, embalados, quem sabe, na dolência do belo soneto "Visita à casa paterna" de Luiz Guimarães Júnior."

Luiz Solano, conhecido por O Repórter do Planalto ( É membro da Academia de Letras e Artes do Planalto, do Instituto Histórico e Geográfico do DF, da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), do Sindicato dos Jornalistas no Distrito Federal e da Federação Internacional de Jornalistas) disse...

Bom dia, amigo.
Tenho recebido as tuas postagens. Leio e gosto.
Abraços do Luiz Solano.

Diamantino Bártolo (professor universitário Venade-Caminha-Portugal, gerente de blog que leva o seu nome http://diamantinobartolo.blogspot.com.br/) disse...

Bom dia, prezado amigo Francisco.

Muito obrigado.

Antecipadamente, bom final de semana.

Abraço.

Diamantino

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador do TJMG, escritor e membro da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Gaio é fora de série!

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (professor universitário, escritor, poeta e membro da Academia Divinopolitana de Letras, onde é Presidente) disse...

Muito grato pelo texto enviado. Abraço amigo para você e Rute.
Fernando Teixeira

Gilberto Mendonça Teles (poeta, crítico literário, agraciado com o prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra e com o Prêmio Juca Pato) disse...

Meu caro FJBraga,

Obrigado pela oportunidade de ler as suas crônicas. Depois de março, penso passar uma noite em del Rei. Mas aviso-o de véspera. Abraço do Gilberto.

Danilo Carlos Gomes (cronista, escritor e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal e da Academia Brasiliense de Letras) disse...

Prezado amigo e mestre Francisco Braga,
obrigado por ter-me enviado o texto "ADEUS, TEIXEIRA", de Antônio Gaio Sobrinho. É um dos textos memorialísticos mais belos, bonitos, poéticos que já li. Embasado por cultura humanística bem da tradição nossa mineira. Texto de profunda humanidade e poeticidade. Saudade, nostalgia. Beleza literária.
Imprimi para ler em casa, hoje à noite, tomando cerveja Antarctica, com tira-gosto de queijo canastra de meia-cura...Parabéns ao grande escritor que é o Gaio, natural de Conceição da Barra de Minas, como este velho escriba é natural de Mariana. Tivemos uma infância parecida. E gostei dos rituais, da liturgia. Sou leitor da "Regra", de São Bento Abade e, embora pecador, gosto do mundo religioso e místico. Abraço do grato leitor Danilo Gomes.

Prof. Cupertino Santos (professor de história aposentado de uma escola municipal em Campinas) disse...

Olá, professor Braga!
Não pude deixar de me identificar com o autor hoje destacado, o Sr. Antônio Gaio; sou também obcecado por meu passado e é verdadeiramente terna a referência dele ao momento em que percebe seu próprio envelhecimento! Aliás que belíssima meninice e que memória prodigiosa tem ele!
Pessoas como nós tendem a ver o universo do passado como algo irremediavelmente perdido, o que parece verdadeiro se observamos apenas a sua dimensão material. Ainda assim, não fica claro, no meu caso, se vivem entretanto de forma objetiva no nosso presente e naquilo que nos constitui e constituirá.
Consta que Goethe teria dito: " Não há um passado que mereça ser revivido com nostalgia. Existe apenas um mundo eternamente novo e que se forma com a ampliação dos elementos do passado. Portanto, a verdadeira nostalgia deve ser sempre produtiva para criar um mundo melhorado."
Finalmente, é atribuída a Shakespeare esta ironia: " O tempo se assemelha a um anfitrião da alta sociedade que aperta friamente a mão do amigo que se despede e que, braços estendidos, abraça efusivamente o recém-chegado."
Grato.
Abraços.
Cuper

Paulo Roberto Sousa Lima (escritor, gestor cultural e presidente eleito do IHG de São João del-Rei para o triênio 2018-2020) disse...

Lindo. Me trouxe à mente o pensamento de que "a vida que temos é um eco do que fazemos...". Me emocionei e fez minha manhã mais radiante do que está. Deus me permita conviver e aprender muito com o Mestre Gaio.
Abraços fraternos.