quinta-feira, 7 de junho de 2018

DIVINÓPOLIS NA MEMÓRIA DE AFETOS


Por Antônio de Oliveira


Por ocasião das comemorações de inauguração da nova sede e do 57.° aniversário da Academia Divinopolitana de Letras, compartilho o texto abaixo. 

A impressão causada por uma visita a Divinópolis não foi a mesma de cinco anos vividos naquela cidade há décadas. Além de essa cidade, no oeste de Minas, progredir, não parar no tempo cronológico, o tempo psicológico é de outra natureza; e este pode parar, instalar-se num recanto da memória, insinuando um prognóstico de todo aquele período. Para Hemingway, o ontem e o amanhã não existem: “There is nothing else than now”. Tudo parece um Agora distante, de uma ágora que ficou na lembrança impregnada de eternidade. Uma névoa tênue nos separa no tempo, e com o tempo: névoa mista de saudade e de cidade invisível. Um misto de vontade de refazer, de começar de novo e sensação de ter realizado uma corrida e combatido razoável combate. Ou, pelo menos, de ter guardado a fé. Divinópolis aqui é símbolo real, da cidade, e símbolo estendido, que ocupa nosso imaginário, de tantas outras cidades do Divino: Veni, Sancte Spiritus... 

Na sua releitura e à sua maneira, a memória, sorrateiramente seletiva, desenha e redesenha seus arquivos periodicamente regravados. Minha Divinópolis está feita de minhas lembranças. Para mim, hoje, um lugar imaginário. Ou uma “cidade fantasma”, como designou Fernando Sabino a cidade de Belo Horizonte, nos anos 2000, porque seus inseparáveis amigos, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos, não estavam mais ali. Não havia mais com quem falar de literatura e “puxar angústia” nos bancos da Praça da Liberdade. 

Revisitando Divinópolis anos depois, senti-me como passageiro que desce do trem “numa” das últimas estações. Pouco antes, no meu imaginário, havia passageiros com os quais a conversa só engrenara na última hora. Viajava pensativo no trem de minha história. A cabeça reconstruía paisagens no horizonte: ruas, beco malvisto da zona boêmia, (hoje revitalizado, o beco; a zona também está revitalizada em tantos motéis...), praças, gente, quarteirões e esquinas, numa arquitetura desenhada de nostalgia. Ao aterrissar desse bonde da história, a poeira ou a lama de antigas ruas de terra estava sepultada pelo asfalto. Casas, prédios, igrejas, colégios, tudo parecia menor. Ou, talvez, seja apenas a vida que encolhe com o tempo. 

Até parece que algumas fases de nossa vida são verdadeiras reencarnações. E, com mais força, pois dessas fases temos consciência. Ou apenas na nossa consciência. Elas, essas fases, não mais existem, mas persistem na duração do nosso espírito. Não estou aqui a defender um princípio, uma tese, uma crença, um dogma de caráter filosófico-religioso. Portanto, sem polêmica. Apenas estou expondo e partilhando um sentimento, sem observância, no caso, do silêncio obsequioso para com a ortodoxia. Na verdade, por mais que se tente, não é possível resgatar o passado ao vivo. Só em arquivo. Isso porque, consoante constatação do antigo filósofo Heráclito, em frase que ficou famosa, ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. As águas que passam não são mais as que passaram. Da mesma maneira, não é possível reviver exatamente o passado, assim como também não é possível ver o passado tal qual o veem outras pessoas, mesmo ao nosso lado. Cada mente humana está sempre fluindo, num incessante vir a ser, fenômeno conhecido, desde 1890, com William James, como fluxo da consciência. 

Minas são muitas. Divinópolis também. Divinópolis de décadas atrás, por exemplo, representa um pedaço de minha vida, coincidente com o regime militar no País. Um passado de resistência, carregado de esperança. Naquele tempo, mimeógrafo a tinta, aceno e acesso de modernidade, já era um avanço nas escolas, as torres das igrejas de Divinópolis quase tocavam o céu... Largo da Matriz (Praça da Catedral), ainda de terra. Empoeiraaaaaada... Se chovia, a poeira virava barro; se o tempo era seco, a poeira se levantava em redemoinhos ao vento. Redemoinhos que se levantam agora na memória desbotada e se espiralando em reencontros em cada esquina. “Se não podes sonhar, sacode os baús empoeirados” (Fayad Jamis). De vez em quando, naquelas madrugadas, um cavalo passava a passos lentos por sob as janelas do casario. Não existia o Anel Rodoviário. O centro da cidade era passagem obrigatória. 

Passaram-se os anos e eu andei pela cidade. Não para reconhecê-la, sabia eu, mas para recuperá-la, resgatá-la. Já não sabia mais o que havia em Divinópolis. Nesse resgate que repasso agora a amigos reais de hoje, de carne, osso e coração, em tertúlias virtuais, inimagináveis naquela Divinópolis de então. Os de antigamente, muitos deles já se foram. 

Em Divinópolis, anos depois, o tempo para mim se desmoronou. A cidade aí está, conglomerada e movimentada. Sensação estranha. Uma espécie de crise existencial. Divinópolis não é a mesma. Também eu, sendo eu, ao mesmo tempo não o sou. Espremidas entre prédios de grande altura, as torres das igrejas perdem para os aviões que, ultrapassando a velocidade do som, desafiam os céus. E desafiam também a compreensão das pessoas em relação ao progresso, que nem sempre diz a que veio. Sonhos sonhados há meio século ainda resistem em tornar-se realidade social. Como nunca na história deste país, a violência assusta, a corrupção impera, a miséria campeia em cada esquina. 

Nessa revisita a Divinópolis, anos depois, procurei ver o dentro e o fora, o baixo daquele tempo e o alto de hoje, pisei supostamente as mesmas ruas, respirei um ar mais poluído, visitei a Catedral e o Santuário. E me lembrei do antigo convento. Divinópolis, privilegiada, ainda privava da presença do Convento dos Franciscanos, grande centro de pensar, onde lecionaram luminares da filosofia e da teologia, dentre outros, um Frei Odulfo, um Aloísio Lorscheider. Bernardino Leers e Nicholaas Plaeschart também foram professores na antiga FAFID. Essa presença franciscana faz parte da trajetória da cidade, presença que com certeza deitou raízes de cultura, de música e de ação social na terra do Divino. Historicamente, tenho comigo que a FAFID veio em boa hora. Com o encerramento das atividades do Convento, de alguma forma uma faculdade pioneira, em Divinópolis, teria como missão implícita seguir as pegadas das sandálias franciscanas. Por sinal, vindo a funcionar depois nas próprias dependências do convento já então desativado. Outra consideração que me parece pertinente: quem se dedica à missão de pensar deve calçar as sandálias da humildade. 

Voltando à imagem dividida, do casario antigo e do atual, a escola em que Isa, minha esposa, estudara, no internato do Colégio Nossa Senhora do Sagrado Coração: esmirrado entre prédios e enjaulado por edifícios, sem a imponência arquitetônica de outrora. Cidade diferente, mudada, agitada, sem tempo para reconstruções mentais fazendo ganchos com o passado que fluiu, fruído, usufruído, desfrutado. Ou malbaratado? Não importa. Somos hábeis em criar problemas imaginários. Por que não criar também soluções imaginárias? Entrelaçando o passado, dando-lhe caráter de continuidade. Revestindo-o, sem angústia, com uma túnica inconsútil, com um tecido contínuo. Pois, enquanto vivemos, somos tecelões. Tecelões do tempo. Cada um com sua tarefa. A tarefa de viver.

11 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Tenho o prazer de apresentar ao leitor do Blog de São João del-Rei um novo colaborador, que vem enriquecê-lo com a sua expertise no gênero literário da crônica. Trata-se de ANTÔNIO DE OLIVEIRA, que estreia exatamente com uma crônica intitulada DIVINÓPOLIS NA MEMÓRIA DE AFETOS, em homenagem às comemorações de inauguração da nova sede e do 57º aniversário da Academia Divinopolitana de Letras em 08/06/2018.

Sobre o colaborador
http://saojoaodel-rei.blogspot.com/2018/06/colaborador-antonio-de-oliveira.html

Texto da crônica
http://saojoaodel-rei.blogspot.com/2018/06/divinopolis-na-memoria-de-afetos.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Dr. Arnaldo de Souza Ribeiro (advogado, escritor e presidente da Academia Itaunense de Letras-AILE) disse...

Prezado Francisco,

Bom dia.

Lamento não poder encontrar com o ilustre Amigo na próxima sexta-feira, considerando que neste dia participarei do lançamento do livro da acadêmica Maria Lúcia Mendes.

Gostaria de fazer um Convite ao Amigo, porém, gostaria de fazê-lo via telefone. Peço-lhe informar um número que possa fazer contato.

Receba o meu fraternal abraço, extensivo à esposa Rute Pardini.

Arnaldo

Toni Ramos Gonçalves (escritor, editor, promotor cultural, ex-Presidente e Acadêmico da Academia Itaunense de Letras-AILE) disse...

Bom dia, meu caro amigo Francisco Braga!

Divinópolis está apenas 50 km de Itaúna, mas nesta sexta feira dia 8 de maio será a noite de autógrafos da escritora itaunense Maria Lúcia Mendes, livro que fui o editor e não posso deixar de prestigiar. (convite segue abaixo)

Aproveito para informá-lo que o livro O que a vida quer da gente é coragem, ficará pronto na gráfica no dia 20/06/2018 e em breve informarei o data do lançamento.

Faço votos de sucesso pela sua apresentação.

Um forte abraço e bom fim de semana.

Atenciosamente,

Toni Ramos Gonçalves

Editor

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Que belo texto de caráter memorial, de Antônio de Oliveira, recheado de sentimentos de saudade e de pureza em suas lembranças, como a que tentar rever uma Divinópolis em um passado – ora distante – que só a ele pertenceu. Uma cidade que evoluiu, transformou-se e que não mais se encaixa em suas memórias de décadas passadas, quando lá viveu por 5 anos. Apreciamos a leitura.

Parabéns a Antônio de Oliveira pela excelente crônica, bem assim nossas felicitações ao Ilustre amigo Braga pela iniciativa de divulgar, através de seu blog, tal conteúdo literário.

Abraços, de Mario e Beth.

Dra. Merania de Oliveira (jornalista e viúva do ex-presidente da Academia Marianense de Letras, Dr. Roque Camêllo e fundadora do Instituto Roque Camêllo) disse...

Dr. Francisco Braga,
Paz, saúde e alegria!

Infelizmente, acabei de desmarcar no hotel, em Divinópolis, a minha reserva de hoje para amanhã.

Gostaria muito de estar presente nesta justa homenagem ao 57º aniversário da ADL-Academia Divinopolitana de Letras, cujo encerramento contará com a apresentação artística da nossa querida soprano Rute Pardini e também com sua participação ao piano. Apareceu um contra-tempo e tive que me sacrificar, não encontrando os amigos para os justos aplausos.

Obrigada pelo convite e leve o meu abraço e do Instituto Roque Camêllo a cada um dos membros desta conceituada entidade.
Merania de Oliveira

Antônio de Oliveira (cronista, autor de "Sou cronista e não sabia..." e ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Francisco,

Estou um pouco atordoado. Você fez tudo acontecer tão rapidamente e me deixou imensamente sensibilizado. Grande abraço. Bom fim de semana e sucesso garantido ao acompanhar D. Rute, ao piano. Antônio

Antônio de Oliveira (cronista, autor de "Sou cronista e não sabia..." e ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras) disse...
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Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Que belo texto de caráter memorial, de Antônio de Oliveira, recheado de sentimentos de saudade e de pureza em suas lembranças, como a que tentar rever uma Divinópolis em um passado – ora distante – que só a ele pertenceu. Uma cidade que evoluiu, transformou-se e que não mais se encaixa em suas memórias de décadas passadas, quando lá viveu por 5 anos. Apreciamos a leitura.

Parabéns a Antônio de Oliveira pela excelente crônica, bem assim nossas felicitações ao Ilustre amigo Braga pela iniciativa de divulgar, através de seu blog, tal conteúdo literário.

Abraços, de Mario e Beth.

Prof. Mário Celso Rios (professor, escritor, conferencista e presidente da Academia Barbacenense de Letras) disse...
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Prof. Mário Celso Rios (professor, escritor, conferencista e presidente da Academia Barbacenense de Letras) disse...

Parabéns!

Eu enviei uma mensagem alusiva à data!

E vcs dois, Rute e Braga...como sempre:

E L E G A N T E S ❗

Já tivemos contato produtivo com a ADL nos tempos da saudosa Edite Silva e do Dr. Jadir Vilela de Souza, entre outros. Aliás, esse último ainda é atuante lá?

Mário Celso

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (professor universitário, escritor, poeta e membro da Academia Divinopolitana de Letras, onde é Presidente) disse...

Prezado Braga, o texto de Antonio de Oliveira tem o sabor doce e amargo das remembranças. Infelizmente, as cidades (e Divinópolis não foge à regra) fazem sombras em nossa memória, erguendo prédios onde moravam lembranças de afeto e cobrindo de asfalto a poeira plena de passos saudosos. Costumo dizer que moro em outra cidade, tão diversa daquela em que vivi minha infância e a maturidade. No entardecer de meus anos, vejo-me quase um estranho. Pode dizer a seu primo que ele, noutra localidade e, eu, neste torrão, vivemos a mesma nostalgia de uma Divinópolis diferente, na qual o desenvolvimento urbano derrotou nosso passado. Pelo que me trouxe o texto, cumprimente-o por mim. Abraço em confraternidade você e Rute. Fernando Teixeira