domingo, 10 de fevereiro de 2019

MINHA AMIZADE COM TARCÍSIO NASCIMENTO TEIXEIRA


Por Mário Bruno Gonçalves Carezzato



Quando conheci o Tarcísio, ele ainda estudava no seminário — Colégio Pio XII em São Paulo — e já estava no último ano de Teologia. 

Na época eu lecionava piano no Liceu Coração de Jesus, onde cursei o primário, ginásio e técnico em Contabilidade. 
Foto do autor quando jovem

Numa visita que Tarcísio fez ao Liceu, conversamos bastante e eu o vi e ouvi tocar. Ao perguntar-lhe se tinha começado a estudar muito cedo, disse que nunca tinha tido uma aula sequer com professor. Era totalmente autodidata, o que me impressionou muito. Depois soube que também tocava sax e flauta. Contou-me que estava para deixar o Pio XII, logo que terminasse o curso, pois a diretoria o tinha dispensado com a desculpa de que ele gostava mais do piano — ou de Música — do que de Deus. Uma pena! Tinha para mim que ele seria um ótimo padre. 

Observo que Tarcísio fazia de tudo para não falar do passado. Na única vez que perguntei a ele sobre sua família, disse que era de São João del-Rei, mas que quase todos já estavam morando em Belo Horizonte. Para ele a vida tinha começado depois de ter tirado a batina. 

Saindo do seminário, alugou um quarto no sobradinho de uma moça de origem alemã chamada Mod. Durante algum tempo tudo parecia bem, mas um dia a Mod me ligou pedindo que fosse até lá que o Tarcísio não estava nada bem. Fui até lá e constatei que era real a apreensão dela. Estava com depressão, não queria sair e só tomava leite, não queria comer. Conversamos, consegui tirá-lo de lá e rapidamente melhorou. Constatei aí o quanto foi terrível ter que deixar de lado o sonho de ser ordenado padre, acalentado desde criança. 

Um dia me ligou para irmos ao cinema. Eu não tinha condição de pagar, mas ele disse que pagaria. Ele queria assistir a todos os filmes que não pôde ver no tempo do seminário. Começamos a assistir a filmes de forma desenfreada. Olhava no jornal a programação de todos os cinemas de São Paulo e "vamos lá!" Foi assim que conhecemos os melhores e os piores cinemas de São Paulo. 

Tarcísio prestou o concurso para o Banco do Brasil e conseguiu ser aprovado na primeira tentativa, onde ficou até se aposentar. Mudou-se para um pequeno apartamento na Baixada do Glicério, um lugar não muito bom, mas o aluguel era tentador. Ajudei na mudança e, ao ver que a vizinhança parecia um pouco perigosa, fiquei dois anos sem visitar o Tarcísio, mas nos encontrávamos sempre. Depois desse tempo morando lá, certo dia me convidou para inaugurar o apartamento que havia comprado. Um bom apartamento na Rua Cesário Motta Junior na região central, perto do bairro de Santa Cecília. Comecei a ir quase todos os dias e foi quando começamos a tocar a quatro mãos. Então ele tinha comprado um bom piano.

Foto tirada no coral da Igreja do Liceu Coração de Jesus quando me formei no Curso de Virtuosidade em Piano. Eu estava com 21 anos. Além de mim e do Tarcísio estão na foto meus 3 irmãos e mais alguns amigos.

Tarcísio tinha uma escrita musical bonita e limpa.

Cópia de Tarcísio para a partitura de "Mosteiro" do Maestro Souza Lima

Transportou várias partituras para mim e até me fez cantar uma "canção" de Rachmaninoff, em russo ¹ : Les eaux du printemps (tradução em francês) ou Spring Waters (tradução em inglês), Romance Op. 14 nº 11. É claro que eu não falava russo, mas ele acompanhava uma soprano russa que me passou a pronúncia e então passei a cantar em russo.

Romance Op. 14 nº 11 de Sergei Rachmaninoff, para barítono e piano (transposto para Dó maior por Tarcísio).  Como dá para ver, o acompanhamento é um pequeno concerto de piano.
Só cantei essa peça duas vezes em recitais, uma com a Rachel Peluso e outra com o Tarcísio. Ninguém mais conseguia acompanhar devido às dificuldades técnicas exigidas do pianista.

Fui agraciado com o primeiro lugar no Concurso da Canção de Câmara Brasileira, instituído pelo compositor Osvaldo Lacerda. Devido à minha colocação, aproveitei duas oportunidades que surgiram: primeiro, fui convidado a realizar muitos recitais pelo Brasil. Segundo, fui convidado para integrar o Madrigal da Orquestra de Câmara de São Paulo.



Nesta ocasião, fizemos Tarcísio e eu um recital no Teatro Municipal de São Paulo, o que deu bastante projeção em nossa carreira artística.

Cartaz anunciando nosso Recital na entrada do Teatro Municipal de São Paulo
Tarcísio, ao piano, acompanhando-me no palco do Teatro Municipal de São Paulo

Algum tempo depois, houve a oportunidade de o Madrigal ir a Dakar, capital do Senegal na África francesa, para duas apresentações, e depois à Itália, nas cidades de Roma e Lucca. Pessoalmente fui convidado para fazer um recital na Sala da Imprensa Internacional, em Roma, e precisava de quem me acompanhasse. Surgiu a oportunidade quando o maestro Olivier Toni aumentou, de dois para três, os cantores de cada voz. Apresentei o Tarcísio que cantava como baixo e muito bem.

Componentes do Madrigal da Orquestra de Câmara de São Paulo: Tarcísio Teixeira e eu (baixos)

Também houve muitos outros registros de nossa participação em concertos, cujos programas apresento abaixo, cabendo destacar os principais em minha opinião:




Graças ao Tarcísio e outro amigo nosso, o tenor Lamberto Puccinelli, consegui fazer a viagem e muito bem. Lamberto presenteou-me com uns filmes para tirar fotos da viagem e Tarcísio entrou com um empréstimo em dinheiro. Nunca me cobrou, só paguei quando pude, anos depois, sem juros ou correção monetária. Só ele mesmo!

O Estadão noticia o embarque da Orquestra e coral para a África e Europa
Quanto às fotos trazidas, que já eram ruins, foram convertidas em slides que projetei, filmei em VHS e fotografei da televisão. O resultado ficou abaixo da crítica. Mas não vou resistir de postar a foto menos pior...

Da esq. p/ dir.: Tarcísio, Lamberto e eu
Nosso sucesso não demorou a chegar ao Brasil nas páginas dos principais periódicos paulistanos.

Fizemos o recital em Roma, as apresentações, a excursão pela Itália por nossa conta e resolvemos voltar de navio.







Depois que voltamos, começamos a nos distanciar devido ao meu trabalho. Comecei a trabalhar em estúdios de gravação e, junto com dois de meus irmãos, a fazer bailes e shows como integrante do grupo Os Carbonos, com extensa discografia de 1967 a 1981. Também fui convidado a ser professor fundador de dois conservatórios do interior do Estado de São Paulo, em Taubaté e Pindamonhangaba.

Os anos se passaram rapidamente e um belo dia ao atender a porta, à minha frente estavam dois amigos: José Roberto Vaz e Tarcísio Nascimento Teixeira. O primeiro tinha conhecido no apartamento do Tarcísio. Este estava ali para se despedir de mim, antes de voltar para São João del-Rei, sua cidade natal, e queria me fazer essa feliz surpresa. Conversamos bastante e só fiquei um pouco preocupado de vê-lo inconsolável a chorar copiosamente na hora da despedida.

Depois disso, só vi o Tarcísio anos depois, quando uma aluna minha, mineira de Juiz de Fora — soprano Zélia Ribeiro — enviou-me foto em companhia do meu dileto amigo. Olhei para a foto com saudade daqueles bons tempos e notei que ele estava bem mais gordo, mas ainda era o mesmo Tarcísio, um dos melhores amigos que tive na vida.

Minha aluna soprano Zélia Ribeiro e Tarcísio


NOTA  EXPLICATIVA

¹  TEXTO DO POEMA QUE INSPIROU SERGEI RACHMANINOFF A COMPOR O ROMANCE OP. 14 Nº 11: 

ВЕСЕННИЕ ВОДЫ 

Фёдор Иванович Тютчев (1803-1873)

Ещё в полях белеет снег,
А воды уж весной шумят —
Бегут и будят сонный брег,
Бегут и блещут и гласят...

Они гласят во все концы:
«Весна идёт, весна идёт!
Мы молодой весны гонцы,
Она нас выслала вперёд!»

Весна идёт, весна идёт!
И тихих, тёплых, майских дней
Румяный, светлый хоровод
Толпится весело за ней.

TEXTO DO POEMA EM PORTUGUÊS, TRADUZIDO POR FRANCISCO JOSÉ DOS SANTOS BRAGA, GERENTE DO BLOG DE SÃO JOÃO DEL-REI:

ÁGUAS DE PRIMAVERA

Fiodor Ivanovich Tiutchev


Os campos ainda estão cobertos com neve branca,
Mas as águas já estão rolando num marulho primaveril —
Correm e acordam o litoral sonolento,
Correm e brilham e alto anunciam...

Elas anunciam por todos os cantos:
“A primavera está chegando, está chegando!
Nós somos os mensageiros da nova primavera,
Ela nos enviou avante!”

A primavera está chegando, está chegando!
E uma dança de roda cor-de-rosa claro
De silenciosos, mornos dias de Maio
Se amontoa alegremente atrás dela.

♧             ♧             ♧

Gravações célebres do Romance Op. 14 nº 11 de Sergei Rachmaninoff:

1) Nicolai Gedda. Piano: Alexis Weissenberg

https://youtu.be/pN01TFWDl4Q

2) Dmitri Hvorostovsky. Piano: Ivari Ilja

https://youtu.be/XzpLTSOEurE

3) Angela Gheorghiu. Piano: Dan Grigore

https://youtu.be/fiGdkT-jej8

6 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

O Blog de São João del-Rei tem o prazer de hospedar texto do Professor de canto lírico e cantor MÁRIO BRUNO GONÇALVES CAREZZATO, que se dispôs a reproduzir, a meu pedido, páginas de suas "memórias", povoadas de música, juventude e sensibilidade na etapa mais feliz de sua vida.

Nelas desponta a figura do saudoso pianista são-joanense TARCÍSIO NASCIMENTO TEIXEIRA, o bom amigo que lhe deu alegrias e estímulo na arte do piano e do canto e com quem desenvolveu uma parceria temporária nos palcos paulistanos e durante uma excursão ao Senegal e à Europa.

https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2019/02/minha-amizade-com-tarcisio-nascimento.html

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Agradecemos pela gentileza em enviar-nos este artigo memorialista, de autoria de Mário Bruno Gonçalves Carezzato sobre seu amigo Tarcísio Nascimento Teixeira. Muito interessante: lemos com grande interesse.

Abraços, de Mario e Beth.

Cris Carezzato disse...

Ótimo artigo!!!! :)

Mario Bruno Gonçalves Carezzato disse...

Caro Francisco, só tenho a agradecer pois ficou muito bom. Foi emocionante ler e recordar do saudoso amigo Tarcísio. Abrs. Mario Bruno.

João Bosco de Castro Teixeira (escritor, ex-professor/reitor da UFSJ e ex-presidente da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Francisco, recebi a matéria sobre meu dileto primo Tarcísio. Gostei muito. Quanto mais sei sobre ele, mais o admiro. Enviei o texto para o irmão mais velho dele, Edgar, almirante aposentado. Não sei se o conhece. Tem uma linda história de vida. É pessoa muito culta, como soía acontecer com os grandes das forças armadas.
Francisco, muito obrigado. Abraço. João Bosco

Maria Zelia Wolff disse...

Bravo!!!!! Parabéns ao nosso Ilustre Amigo MARIO BRUNO GONÇALVES CAREZZATO - (Maestro Arranjador, Pianista, Cantor e Professor de Técnica Vocal) por tão bela carreira da Arte Musical e de Canto!!!
Agradecimentos ao Ilustre Pianista Sr. TARCÍSIO NASCIMENTO TEIXEIRA POR ESTA FELIZ IDÉIA de tornar pública uma carreira tão brilhante!!!!

Parabéns a ambos, pois o Brasil precisa destas iniciativas para o bem da
Arte Musical e sua divulgação, a fim de não nos vermos diante de tanta ignorância!!!! Abraços