terça-feira, 30 de julho de 2019

CARYL CHESSMAN, O CONDENADO DO CORREDOR DA MORTE


Por Francisco José dos Santos Braga



I.  A FACE OCULTA DA JUSTIÇA, por Caryl Chessman

Caryl Chessman (1921-1960) em momento de descontração

PREFÁCIO


Todos conhecem a emocionante história de Caryl Chessman, o escritor condenado do Corredor da Morte, autor de “2455, CELA DA MORTE”, “A LEI QUER QUE EU MORRA” e do livro que ora é lançado: “A FACE CRUEL DA JUSTIÇA”.



Chessman desde o dia três de julho de 1948 está confinado à Penitenciária de San Quentin; sobre ele, durante todos esses longos anos, pesam duas sentenças de morte por sufocação e envenenamento, na sinistra “sala verde” – a Câmara de Gás de San Quentin, na Califórnia.



A FACE CRUEL DA JUSTIÇA narra a mais recente fase da incessante batalha de Chessman para escapar ao verdugo. Conta como ele se tem aprofundado no estudo do sistema processual e penal norte-americano. Mostra os esforços que ele e seus dedicados advogados desenvolvem no sentido de conseguir para si o que alega ser justo: um novo julgamento, porque o que o condenou à morte foi irregularmente transcrito por um escrivão substituto. Nesse julgamento, Chessman afirma que poderá demonstrar, cabalmente, que não é culpado dos horrendos crimes que lhe imputam. 

Recentemente, em meio a violentas demonstrações populares de apoio à pretensão de Chessman, em todo o mundo, o governador da Califórnia, Edmund G. Brown, concedeu um adiamento da execução de Chessman para que o Legislativo californiano estudasse projetos visando a abolir ou suspender experimentalmente a pena de morte naquele estado norte-americano. Qual seja o desfecho, não se pode prever, no momento. Mas, não há a menor dúvida de que para ele terá contribuído, decisivamente, este livro que é um candente libelo contra a pena de morte. 



INTRODUÇÃO 



UMA UNIDADE DE ULTRA-ALTA SEGURANÇA, eriçada de minuciosas garantias de custódia, isolada do resto da Penitenciária Estadual da Califórnia, em San Quentin... 

Um guarda armado, de inquiridora lanterna elétrica na mão, patrulhando incessantemente o estreito passadiço de vigia, junto à parede... 
Uma entrada de portões duplos, aferrolhada e de múltiplas fechaduras, apelidada de A Gaiola... 
Um longo e cavernoso corredor, gradeado e entelado, com lâmpadas nuas, acesas vinte e quatro horas por dia, lançando sombras fantasmagóricas pelo teto... 
Trinta e quatro celas de segurança máxima, com grades na frente, paredes de cimento, não tão largas quanto uma pessoa de braços esticados e menos de duas vezes o comprimento do corpo, onde homens atormentados pela esperança são mantidos em confinamento enjaulado por meses, anos e depois são levados, uma tarde, de elevador, para baixo, e “humanamente” mortos na manhã seguinte... 
Este é o Corredor da Morte – no seu melhor aspecto, um lugar impiedoso, sombrio, um pesadelo; no pior, um inferno em vida. 
Há anos o Estado da Califórnia erigiu este frio templo de aço e concreto dedicado à loucura social. E aqui, na agora famosa cela 2455, é onde tenho existido desde a manhã de sábado, 3 de julho de 1948. Depois de mais de oito anos, e meia centena de batalhas judiciais, ainda há uma câmara de gás no meu futuro. 
ISSO não me agrada nem um pouco. 
Não que eu esteja preso por um paralisante temor à morte, pois tenho visto, ouvido, provado e cheirado demais a Morte; tenho estado perigosamente perto da Morte por tempo demais, por vezes demais, para me preocupar com a perspectiva da extinção física iminente. 
Enquanto tenho esperado esta eternidade para morrer, uma mulher e sessenta e nove homens já foram executados naquela “Sala Verde” lá embaixo. Outros ficaram loucos. Alguns dementes ludibriaram o carrasco, pondo violentamente têrmo às suas vidas penhoradas. Eu próprio já tenho estado a poucas horas de ter minha vida extinta, antes que desesperados recursos legais suspendessem abruptamente a execução. 
Não estou preocupado com as raivosas afirmações, segundo as quais irei direto para a parte mais quente e mais horrível do inferno, no momento em que inalar aquela fumaça letal de cianureto. Venha quando e como vier, minha morte física significará apenas uma cessação total da consciência. E se esse inferno cristão, por uma chance em dez bilhões, fôr uma realidade de após a vida, tenho certeza de que o Príncipe das Trevas terá muito trabalho em inventar uma tortura que eu não considere como mero aborrecimento, depois do meu confinamento pelo soberano Estado da Califórnia. 
Além disso, não obstante o fato de que certos fazedores de lendas sem inibições me tenham apregoado como um dos “monstros” mais execráveis do século vinte, eu sou um monstro que o demônio não quer. E êle tem boas razões para isso. Quase que certamente eu violaria a cálida hospitalidade dêsse superestimado arqui-inimigo, com algum engenhoso plano para tirá-lo do negócio, da mesma forma como tenho tentado tirar o emprêgo do carrasco da Califórnia e tornar a sua câmara de gás uma peça de museu. 
O inferno, para minha mente “contorcida”, não faz mais sentido do que o Corredor da Morte e o que considero como assassínio legal, infligido pelo Estado. Isto, eu sei, é heresia para o espírito daqueles indivíduos que seguem a grande tradição de Torquemada e outros, daquela ilustre companhia. 
Uma de minhas características dominantes é uma feroz insistência em permanecer independente, o que pode ser uma razão pela qual sou chamado de egomaníaco (assim como psicopata). Para falar mais às claras, a minha alma, se ainda possuo uma, não está à venda. Em consequência, aquêles que ponderarem sôbre o significado social dêste livro, farão bem em conservar em mente o dito de Joseph Conrad: “A crença em uma fonte supernatural de mal não é necessária; os homens, sòzinhos, são bem capazes de qualquer malvadeza” (incluindo homens auto-santificados, que se proclamam São Jorge, empenhados em combate de morte contra o mal). 
Hoje, como no passado, êsses espécimes oportunistas continuam a demandar o sagrado privilégio de obstruir a lenta luta da humanidade para criar um mundo mais sadio, mais humano. A sua lei é a lei do mêdo, da fôrça, câmaras de execução e retribuição, e submissão de cordeiro à sua vontade patriarcal. Os uivos de alarma angustiado que dêles extraí, considero como altos elogios. Não tremo diante dêles. 
Isto basta quanto ao miasma que se instalou em torno do caso Chessman e do homem na Cela 2455, ocultando a verdade sôbre ambos e desanimando muitas pessoas de se aventurarem bastante perto para uma inspeção própria, por mêdo de contaminação... 

Dizem que o gato tem nove vidas; se isto é verdade, sei o que um gato sente quando, sob as condições mais arrepiantes, é obrigado a gastar as primeiras oito dessas vidas em uma luta pela sobrevivência de câmara de horrores, e a Impiedosa Ceifadora mete na cabeça que será muito divertido tentar arrebatar-lhe a nona. Tudo o que o gatinho pode fazer é assoprar. 
O Homo sapiens pode escrever livros. 
A Face Cruel da Justiça completa uma trilogia iniciada com 2455, Cela da Morte, e continuada com A Lei Quer Que Eu Morra. É uma história que se passa contra o pano de fundo, desenrolando-se na primeira plana, do internacionalmente acompanhado Caso Chessman; mas não é primordialmente uma história daquele Chessman que, no espírito do público, é uma combinação de nome notório nos cabeçalhos, bêsta selvagem e psicopata em uma jaula, e um arrogante ludibriador da Justiça, embora êsse improvável Chessman seja trazido para o palco e receba uma oportunidade para representar pela – sinceramente espero – última vez. 
No que me concerne, seu trabalho terá sido feito, então; seu valor máximo, como alvo para as sensibilidades enraivecidas de bons cidadãos, terá sido compreendido. O bom senso impõe que, na hora indicada, êle pare voluntàriamente, ou seja puxado sem-cerimoniosamente para o lado; e dê a Caryl Chessman – homem e autor – uma oportunidade. Êste mundo é pequeno demais para ambos os Chessman. Um tem de desaparecer. 
O Estado da Califórnia está igualmente determinado a dar cabo, permanentemente, dêste Chessman salafrário. Com o que eu não posso concordar é o meio a ser empregado. O Estado, asininamente, insiste em que nada menos do que uma viagem à sua câmara de gás letal fará o serviço; enquanto que minha posição é que a gente não pode matar com cianureto aquilo que nunca possuiu a realidade da carne e ôsso. Em resumo, embora eu vá continuar a resistir totalmente à drástica e pouco imaginativa solução do Estado, farei o possível para exterminar êste horrendo exemplo de perversidade do século vinte, que leva meu nome. Minhas armas serão as palavras. 
As introduções, embora venham em primeiro lugar nos livros, normalmente são escritas em último lugar, quando o autor pode apreciar o que realmente pôs no papel, e amoldar jeitosamente suas palavras introdutórias a fim de corresponderem ao que apresentou, ao invés do que esperava apresentar. Estou invertendo o procedimento normal, em deferência à necessidade. Geralmente eu sei para onde vai o livro e, especìficamente, sei porque; mas não sei como êle irá terminar ou as reviravoltas dramáticas que êle (e eu) sofreremos antes de que se chegue à última página. Não posso saber. 
Uma cruenta e decisiva luta pela minha vida, na forma de uma audiência plenária, ordenada pela Côrte Suprema dos Estados Unidos, depois de sete anos ou mais de complicado litígio em tribunais estaduais e federais, está para ser iniciada no Tribunal Distrital dos Estados Unidos, em São Francisco. Representando-me estarão os advogados George T. Davis e Rosalie S. Asher. 
Davis tem tido uma fabulosa carreira como promotor público e confidente de políticos. Foi discípulo de August Vollmer, um dos imortais da criminologia científica, e de Max Radin, o gigante legal de uma era recém-finda. Davis tem defendido assassinos denunciados e sem um tostão, e multi-milionários reis da indústria de munições, com igual êxito e zêlo, e com audácia e engenhosidade tática tais que deixaram os advogados oponentes meneando a cabeça, incrédulos. 
Rosalie Sue Asher? Como ela se tornou um dos advogados e uma boa amiga de um homem condenado, a quem os tabloides se têm deliciado em chamar de nomes calculados para excitar e chocar os leitores mais famintos de sensações, é uma parte reveladora do meu livro. 
Outras pessoas que povoarão meu livro são os meus vizinhos, os homens condenados do Corredor da Morte, um pitoresco detetive particular; a mãe de duas crianças, que pagou um terrível preço por me amar; repórteres e colunistas, compassivos, cruéis ou não; jurados obstinados e testemunhas peritas, empenhadas em um jôgo mortal; um escrivão de tribunal, falecido, e seu alcoólico substituto; inflamados promotores, decididos a encher de ciladas este recurso legal de última cartada, e a me enviar ràpidamente para a morte; funcionários da prisão e policiais, e um agente literário e amigo cuja fé em mim como escritor e como pessoa humana nunca fraquejou. 
Com exceção do Chessman de temerosa legenda, essas pessoas são reais. Nenhuma teve de ser inventada para aumentar o impacto dramático dêste livro. 
Em jôgo aqui, está a vida de um homem – a minha própria. O caso é acompanhado e calorosamente debatido em todo o mundo. Tem derrubado e estabelecido precedentes de importância legal. Promete ter repercussões ainda maiores. Se se demonstrar, nas próximas audiências no tribunal federal, que eu fui inconstitucionalmente condenado no início, e que minha condenação foi mantida em grau de recurso, através da convivência e fraude de funcionários públicos, como sustento; e depois, se um júri descobrir, em novo julgamento, que estou inocente dos repulsivos crimes do Bandido da Luz Vermelha (*), como tenho veementemente sustentado em todo êsse brutal sofrimento, há poucas dúvidas de que a Califórnia reexaminará o seu sistema de justiça criminal, com grande possibilidade de abolir essa "relíquia da barbárie humana" – a pena capital. 
Machiavelli chamou a Sorte de mulher. A Justiça, também, é uma mulher – uma atriz cativa, forçada a representar muitos papéis, frequentemente indecentes e estultificantes – e a ser o porta-voz de tanta insensatez, na sua maior parte sinistra e destrutiva. Em seu nome, através dos séculos, temos torturado e assassinado nossos semelhantes. 
Com um grande aparato de retidão, elaboramos uma ciência e uma arte da punição. 

Esta história começa na Califórnia setentrional, em um dia de comêço de outono, cinco anos depois do marco divisor de nosso século...

(*) "O Bandido da Luz Vermelha" (The Red Light Bandit) é a alcunha dada pelos jornais a um homem que molestava casais estacionados nos morros ao redor de Hollywood, roubava o homem e forçava a mulher a sair do automóvel para propósitos sexuais. 


Fonte: CHESSMAN, Caryl: A Face Cruel da Justiça. São Paulo: Distribuidora Paulista de Jornais, Revistas, Livros e Impressos Ltda., 1960, 266 p.



II. JORNAL ÚLTIMA HORA FAZ A COBERTURA DAS ÚLTIMAS HORAS DE CARYL CHESSMAN VIVO E DAS REPERCUSSÕES DE SUA MORTE


Caryl Chessman (na "Cela da última noite" envia dramático apêlo ao governador Brown) 

A UPI em 19 de fevereiro de 1960 divulgou matéria que foi traduzida pelo jornal Última Hora, ano IX, edição 2958, p. 8: 
SAN QUENTIN, 19 (Urgente-UPI) - Já instalado na "cela da última noite", que fica apenas a 13 passos da câmara de gás, e faltando apenas 17 horas para a sua tantas vêzes adiada morte, marcada para as 15 horas de hoje, hora do Rio de Janeiro, Caryl Chessman pediu ao Governador da Califórnia, Edmund G. Brown, que suspenda a sua execução e, ao mesmo tempo, prometeu revelar quem era o "bandido da luz vermelha". 
A petição foi levada a Sacramento, Capital do Estado, pela advogada Rosalie Asher, do grupo de defensores de Chessman. A advogada fez a viagem em companhia de William Linhart, detective particular contratado pelo escritor-condenado, que disse possuir o nome do verdadeiro "bandido da lanterna vermelha".

Chessman identificado no presídio de San Quentin, na Califórnia
Os advogados declararam, no entanto, que há uma possibilidade em um milhão de que Chessman se salve com êsse recurso de última hora. 

BROWN RECEBERÁ A ADVOGADA 

Tão logo chegou a Sacramento, Rosalie Asher pediu uma audiência ao Governador. Brown acedeu em recebê-la. 

Pode Mudar a Situação 

SAN QUENTIN, 19 (UPI) - O próprio Chessman enviou ontem um novo telegrama a Brown, mas o Governador declarou que não tinha poderes jurídicos para atuar. "De acôrdo com a Constituição - disse Brown, em Sacramento, Capital do Estado - careço da faculdade de conceder o perdão". Aparentemente Chessman ficou ontem à noite sem qualquer recurso legal a que recorrer para evitar a morte. Seu advogado, George T. Davis, disse, contudo: "O fim dêste caso não chegará senão às 10 da manhã (uma hora da tarde em Nova Iorque). Essa é a hora da execução." Não se deu à publicidade o conteúdo da última mensagem de Chessman ao Governador, mas informou-se que continha algo que "pode mudar por completo a situação". Antes de entregar a mensagem à advogada Rosalie Asher, em San Quentin, Chessman deu suas últimas instruções sôbre a incineração de seu cadáver e a distribuição de seus pertences. À última hora fêz algumas modificações em seu testamento. 
A advogada disse que êle parecia achar-se em completa calma. O tribunal supremo recusou ontem a petição que lhe dirigiu Chessman, para que o perdoassem, e se negou a adiar a execução por dez dias. Os sete juízes conferenciaram durante uma hora e em seguida rechaçaram o pedido por quatro votos a três, da mesma forma que no dia anterior. Nenhum dêles mudou de opinião de anteontem para ontem. Segundo a lei da Califórnia, a decisão do tribunal impede ao Governador comutar a pena de morte imposta a Chessman. (...) 

O jornal Última Hora, ANO IX, Rio de Janeiro, edição 3 de maio de 1960 nº 345 publicou as seguintes matérias:

Chamada na p. 1: "Até o último segundo, o mundo inteiro esperava que a Suprema Côrte da Califórnia concedesse o perdão a Caryl Chessman. Mas, em vez de um gesto nobre e generoso, que reafirmasse a fé na recuperação moral do homem, a Justiça norte-americana preferiu transformar-se num instrumento de vingança fria e selvagem, regredindo aos tempos mais primitivos. Vemos, nesta radiofotografia da UPI, o oficial de justiça ler para o advogado de Chessman e jornalistas a decisão fatal da Justiça, minutos antes da execução. 
A opinião pública mundial ficou profundamente traumatizada com a execução de Caryl Chessman, realizada, ontem, num clima de "suspense" cruel e desumano. Por muito tempo ainda, os gritos lançados pelo famoso escritor, ao morrer na câmara de gás de San Quentin (segundo testemunho do correspondente da agência France-Press), ecoarão pelos quatro cantos da Terra como o último e desesperado protesto de um homem que se proclamou inocente até o fim. Nesta radiofotografia da UPI, vemos o último retrato de Chessman, tirado a 26 de abril, e a câmara de gás, o que os prisioneiros chamam "o quarto verde". 

Na p. 5: Proposto o 2 de Maio (Data da Morte de Chessman) Como Dia da Jornada Internacional Pelo Progresso do Direito 

CARYL CHESSMAN foi assassinado pelo Estado da Califórnia - afirmou a UH o poeta e escritor Rossine Camargo Guarnieri, que foi, em São Paulo, o campeão da luta em defesa da vida do presidiário-escritor, tendo pronunciado em 30 dias, 17 conferências contra a pena de morte. 
Na capital bandeirante, Camargo Guarnieri obteve o pronunciamento contrário à morte de Chessman da Câmara Municipal, Assembléia Legislativa e de todas as Faculdades de Filosofia, além de ter feito uma carta-aberta ao cardeal-arcebispo, D. Carmelo Mota, e três apelos ao Presidente da República, a um dos quais o Sr. Kubitschek respondeu: "Peço a Deus que ilumine os julgadores de Chessman, mas como Presidente do Brasil não posso interferir nesse julgamento". 
Ainda emocionado, ao saber da notícia de que Chessman acabava de ser executado na câmara de gás de San Quentin, o escritor, que mais lutou no Brasil contra a execução do presidiário-escritor, disse, depois de informar que está escrevendo um livro a respeito: "Estou rascunhando uma carta ao Ministro Nelson Hungria. Nela direi que morreu um importante homem de nosso tempo, um homem que, com esfôrço, sofrimento e inteligência indescritíveis emergiu do pântano do crime para se transformar em patrimônio cultural da humanidade. Nós, que lutamos em defesa da vida de Chessman e que empreendemos uma campanha para iluminar consciências obscuras, temos, agora, um outro dever mais alto a cumprir: o de prosseguir com a luta contra a justiça retributiva em todos os Países do mundo. E a nossa bandeira será a memória de Caryl Chessman."

Jornada Internacional 

Prosseguindo, disse: "Neste lúgubre 2 de maio, estou propondo ao Ministro Nelson Hungria que iniciemos, a partir de hoje, uma campanha universal para transformar o 2 de maio em "Jornada Internacional pelo Progresso do Direito". Creio que é da alta tribuna do Supremo Tribunal Federal do Brasil que deve partir o grito inicial dessa luminosa jornada em defesa do homem. Que caiba ao povo brasileiro, que tanto tem feito em pról das causas humanitárias, a glória de iniciar uma luta para minorar os sofrimentos do homem. Ninguém mais autorizado que o Ministro Nelson Hungria para desferir êsse grito endereçado a tôdas as côrtes de justiça da terra. Para êsse trabalho em favor da humanidade, podem contar com a minha modesta ajuda.

Na p. 8: COLUNA DE UH - Chessman: um Golpe Profundo no Prestígio Mundial dos EUA 
O Brasil inteiro recebeu com um sentimento de indignação e horror a notícia do assassínio legal de Caryl Chessman. O protesto estende-se a todo o mundo civilizado, mas particularmente esclarecido perante a opinião pública como aconteceu no Brasil - graças, em grande parte, à cobertura dada por ÚLTIMA HORA - êsse sentimento assume expressões patéticas, de irada invectiva, de revolta e mesmo de náusea ante a frieza do atentado. Bastaria, ontem à tarde, percorrer as ruas centrais da cidade, auscultar o povo junto às bancas de jornais, nos coletivos, nos elevadores, nos locais de trabalho, para verificar a extensão e a profundidade da reação despertada pela morte do prisioneiro de San Quentin. 
(...) 
Chessman foi friamente assassinado - esta a opinião que ninguém conseguirá arrancar das mentes de milhões de criaturas em todos os quadrantes do globo. Não são apenas as pessoas simples que assim pensam, mas também algumas das maiores expressões mundiais do Direito Penal, inclusive em nosso País. Não é apenas uma reação emocional e instintiva: é a condenação racional aos costumes da "barbárie" que ainda persistem nos códigos de comunidades supostamente civilizadas. 
O fetichismo da letra legal prevaleceu sôbre a lei mais alta que mandava poupar a vida de Caryl Chessman. Mas, que aconteceu? Os juízes togados e as autoridades que ordenaram essa execução parecem mesquinhos ante a grandeza adquirida em doze anos de luta e sofrimento por êsse homem cheio de defeitos, mas que demonstrou, afinal, ser um Homem. E os Estados Unidos perdem, com a morte de Chessman, um elemento moral irrecuperável. A imagem da grande Nação americana que, hoje, aparece diante do mundo é algo que inspira pena e desgôsto. 

CLAMOR CONTRA A EXECUÇÃO DE CHESSMAN: OPINIÃO PÚBLICA REPUDIA A PENA DE MORTE 

Em tôdas as camadas sociais do País causou o mais profundo impacto a notícia da morte do presidiário-escritor Caryl Chessman. Numa "enquête" realizada pela reportagem de ÚLTIMA HORA, juristas, escritores, engenheiros, sociólogos, jornalistas e homens do povo tiveram oportunidade de manifestar o repúdio unânime à pena de morte, que muitos classificaram de "crime oficializado contra o homem". 
- Sou contrário à pena de morte de um modo geral e só poderia receber com tristeza a notícia da execução de Chessman. A pena de morte contraria, não apenas o sentimento brasileiro, mas se choca, também, com o sentimento universal. Já está na hora de abolirmos por completo esta espécie de pena" - acentuou o jurista. (...) 

Poetisa Condena 

Antes de pensarmos na pena de morte, antes de cogitarmos dêsse crime inominável, deveríamos estudar uma forma de reabilitação do criminoso, fôsse ele quem fôsse, escritor ou não, pacato ou revoltoso, piedoso ou sanguinário. Sou contrária à pena de morte, sob todos seus aspectos. Deve haver uma maneira, no meu entender, de evitar ou corrigir os crimes, sem puni-los com outro crime. Particularmente no caso Chessman, acho que a pena de morte poderia ser transmutada em prisão perpétua - e isso mesmo como recurso extremo. Para mim, a pena de morte não resolve". Quem fez estas revelações para a reportagem de ÚLTIMA HORA é a escritora Cecília Meireles, que também veio a saber da execução de Chessman por intermédio de nossa ligação telefônica. 

Não Quis Ouvir 

Também a escritora Clarice Lispector condenou a execução do escritor Chessman. "Recusei-me a ouvir as notícias que estavam sendo transmitidas por tôdas as estações de rádio - disse ela. A pena de morte é um verdadeiro crime contra o homem: é um crime para corrigir outro crime. Mesmo que um homem fôsse culpado, não deveria pagar com a morte. Só nos resta, agora, ficarmos indignados por muito tempo", concluiu. 

Na p. 9: NASCEU UM MÁRTIR: GRITOS DE CHESSMAN NA CÂMARA DA MORTE ABALARAM O MUNDO 
SAN QUENTIN, 3 (FP) - Caryl Chessman entrou na câmara de gás às 14.00 horas (10.01 locais). Muito pálido, foi imediatamente ligado à cadeira de execução por quatro guardas. Enquanto se procedia a essa operação, Chessman piscou um ôlho a duas môças jornalistas que êle convidara especialmente para assistir à execução. O chefe dos carcereiros deu-lhe umas pancadinhas no ombro e o pessoal abandonou a câmara de gás. Imediatamente a porta foi fechada.

Chessman sendo preparado na cadeira da câmara de gás
Às 14.03 horas (10.03 locais), as pastilhas de cianurêto foram colocadas na bacia que encontrava no lado da cadeira de execução. Pouco a pouco os mortíferos gases começaram a inundar a reduzida peça. Um minuto depois, Chessman que havia respirado profundamente, deitou bruscamente a cabeça para trás e dobrou-se sôbre si mesmo. Às 14.05 (10.05 locais), o condenado gritou e voltou a lançar a cabeça para trás. Às 14.06 (10.06 locais) as mãos de Chessman começaram a tremer e o seu lívido rosto cobriu-se de suor. Mais uma vez, Cary Chessman proferiu um grito apagado, quase um rugido. Às 14.07 (10.07 locais), a sua cabeça inclinou-se bruscamente para frente. Um minuto depois Chessman ficou imóvel, como a cabeça sôbre o peito. Às 14.12 (10.12 locais), o médico de San Quentin declarou que o condenado tinha morrido. 

Nasceu o Mártir 

NOVA IORQUE, 3 (UH) - A opinião pública norte-americana está profundamente dividida e chocada com a execução de Caryl Chessman na câmara de gás de San Quentin. A opinião geral é de que morreu o "bandido" mas nasceu o mártir cuja tragédia dará maior impulso à campanha contra a pena de morte. Considera-se, também, que a execução de Chessman sofreu influência política em virtude da proximidade das eleições presidenciais. 

A Agonia 

SAN QUENTIN, Califórnia, 3 (Por Robert Strand, da UPI) - Caryl Chessman morreu ontem, serena e resignadamente, na câmara de gás de San Quentin. O condenado entrou na câmara às 14 horas e 2 minutos. Os guardas precisaram de menos de um minuto para amarrá-lo à cadeira. Às 14 horas e 3 minutos as pastilhas de cianureto começaram a cair no recipiente de ácido sulfúrico e a câmara se encheu ràpidamente de gás. Caryl Chessman foi declarado oficialmente morto às 14 horas e 12 minutos. Suas últimas palavras foram o "Adeus!" que disse sorrindo dèbilmente para os guardas que o amarraram à cadeira. 
Depois que os guardas se retiraram da câmara, Chessman voltou a cabeça para a direita, para fitar nos olhos alguns dos jornalistas que o conheciam e que assistiam à execução através das janelas de grossos vidros da câmara de gás. 
(...) 
Às 10.12 horas, quando foi declarado morto, tinha no rosto uma expressão de cansaço e tristeza. Sua última declaração pouco antes de morrer foi como sempre sustentou - que jamais fôra o "Bandido da Luz Vermelha" por cujos crimes foi condenado à morte em 1948. Caryl Chessman prometera morrer como um homem, "com dignidade", e cumpriu sua palavra. Ao chegar à câmara, tinha estampado no rosto um ar de dignidade desafiante, porém os que o conheciam bem, disseram que o sofrimento e o mêdo se refletiam em cada um dos sulcos de sua face.

Chessman morreu em nove minutos, depois de ter evitado o encontro com a morte durante onze anos, dez meses e sete dias, desde que foi condenado em 1948 por crimes de roubo, seqüestro e perversão sexual.

Ocupam quase inteiramente a página 16 as seguintes matérias, cujo título aparece em letras garrafais:
– TRAUMATIZADA A OPINIÃO PÚBLICA MUNDIAL: "CHESSMAN FOI ASSASSINADO!"
– DOZE ANOS DE AGONIA À ESPERA DA MORTE!
– MORREU CHESSMAN PROTESTANDO INOCÊNCIA ATÉ O FIM
– TELETIPOS E TELEFONES DE ÚLTIMA HORA FICARAM LIGADOS DIRETAMENTE COM SAN QUENTIN

Fonte: http://memoria.bn.br/pdf/386030/per386030_1960_00345.pdf

10 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

O Blog de São João del-Rei reproduz hoje a Introdução e o Prefácio do livro A FACE OCULTA DA JUSTIÇA, da autoria do escritor CARYL CHESSMAN, leitura de cabeceira de muitos de nós ou de nossos pais na década de 60. Matérias do jornal ÚLTIMA HORA, do Rio de Janeiro, serão reproduzidas, cobrindo o último dia de vida do condenado à pena de morte e e no dia seguinte à sua execução. Aqui podemos apreciar a repercussão de sua morte em todo o mundo e, em especial, entre os brasileiros.
Em outro post do Blog de São João del-Rei, serão mostradas diferentes visões bem referenciadas a favor e contra a pena de morte, publicadas no Brasil e em Portugal, quase todas relativas à execução de Caryl Chessman.

TEXTO DE CARYL CHESSMAN
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2019/07/caryl-chessman-o-condenado-do-corredor.html
BREVE BIOGRAFIA
https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2019/07/colaborador-caryl-chessman.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Arnaldo de Souza Ribeiro disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Dr. Arnaldo de Souza Ribeiro (advogado, professor de Direito, escritor e presidente da Academia Itaunense de Letras-AILE) disse...

Prezado Dr. Francisco,
Parabéns pelo cuidado e escolha dos temas, que são tratados com maestria pelo amigo.
Tive acesso a estes livros, àquela época, não recomendados aos jovens.
Estimo ler novamente trechos selecionados e apresentados com bom gosto e correção.
Cordial abraço,
Arnaldo

Diamantino Bártolo (professor universitário Venade-Caminha-Portugal, gerente de blog que leva o seu nome http://diamantinobartolo.blogspot.com.br/) disse...

Estimado amigo Francisco Braga
Muito obrigado.
Abraço.

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (professor universitário, advogado, escritor, poeta e membro da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Prezado Braga, abraço amigo e confraterno. Este livro, cuja introdução e prefácio você reproduz, à época, despertou muitas controvérsias em torno da pena de morte. Num tempo em que se questiona a violência, certamente este debate pode retornar. Transmita à Rute minhas homenagens. Fernando Teixeira.

Ozório Couto (poeta, escritor, autor de "Lyra Aterradense" e membro do IHGMG e da Academia Mineira de Letras) disse...

Caro Braga, boa lembrança.
Como sempre, faz bem. Abraço, Ozório Couto

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Agradeço pelo envio deste caso, da década de 1950, que ensejou a exibição do filme “O bandido da luz vermelha”: assisti a este filme!

Com os renovados agradecimentos, receba o abraço saudoso,

Dos amigos Mario e Beth.

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Tema instigante

Prof. Bernardo Diniz (professor da rede de ensino fundamental do DF) disse...

Muito bom. A História não se repete mas revive fatos que demonstram a fragilidade humana escondida atrás de uma prepotência que macula a mais inocente alma sob a édige do poder.
Um grande abraço e obrigado pelos textos reflexivos e notícias de SJDR.

Carlos Gomes. blogspot. Com disse...

Foi um cruel processo que violou todos os direitos humanos e que culminou com a execução de um homem sem provas conclusivas. Abraço.