segunda-feira, 2 de maio de 2022

UMA NOITE NO ZOO COM PUCCINI


Por Evaldo Balbino

Evaldo Balbino, presidente da Academia de Letras de São João del-Rei (2022-2024)

 
Meu sobrinho músico Luís Gustavo convidou-me outro dia para assistir a um belo espetáculo no Jardim Japonês do zoológico de Belo Horizonte. Ele tocaria na Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, a qual faria, juntamente com o Coral Lírico de Minas Gerais, o acompanhamento orquestral da ópera Madame Batterfly de Giacomo Puccini. 
 
O Jardim Japonês da Fundação Zoobotânica de Belo Horizonte transformado em cenário da ópera "Madame Butterfly" de Giacomo Puccini durante o mês de maio de 2013
 
Eu não gosto de zoológicos. Duas vezes em minha vida entrei nesse tipo de ambiente. A primeira foi em Belo Horizonte, há muitos anos, com minha irmã Ediceia e seus dois filhos. Por insistência dela, é claro, que queria dar um domingo de lazer para os pupilos. A segunda vez foi no Jardim Zoológico de Madri, quando na capital espanhola estive por nove meses. Lá eu dividia apartamento com uma senhora cubana. E também por insistência dela tive que fazer a indesejada visita. Somos assim, não é mesmo? Muitas vezes cedemos à vontade dos outros para satisfazê-los. É longo e árduo o caminho que nos leva ao amadurecimento necessário para que possamos aprender a ouvir nossas próprias vontades. Hoje em dia já me dou ao luxo de me ouvir mais, de me seguir melhor. 
 
Por que não gosto de zoos? Porque para mim o lugar de animais selvagens é na selva. E poderão me perguntar como faremos, nesse caso, com os animais em extinção. Ora bolas, como faremos? Todo mal deve ser cortado é pela raiz. E se esse mal está lá nas selvas, é lá mesmo que ele deve ser combatido. Não é enjaulando tigres e elefantes que vamos salvar os animais. Defendo a liberdade plena, incondicional. Nada mais triste, por exemplo, do que ver um pássaro preso numa gaiola ridícula! Eu me canso de falar isso a conhecidos meus, mas não adianta. O ser humano muitas vezes é egoísta. Prefere o estranho e sádico deleite de ver um bicho trinando na prisão a ver asas explorando os ares, os galhos das árvores, as copas supremas da vida livre. Isso de preferir a nossa felicidade à felicidade alheia é terrível. E é mais terrível ainda quando nossa felicidade se constrói sobre o alicerce da prisão do outro. 
 
Na noite da ópera de Puccini, no entanto, o zoológico mostrou-me outra face. A noite estava fria, e o caminho que levava ao Jardim Japonês estava nublado e silencioso entre árvores. Funcionários guiavam-nos com lanternas até o nosso destino. Os animais deveriam estar dormindo, e talvez bem longe desses bulícios humanos que gostamos de fazer. Surpreendi-me com a decoração do jardim que até então eu desconhecia. E fiquei emocionado, pois nada mais perfeito do que uma ópera ao ar livre! E mais perfeito ainda é um jardim com decoração japonesa para ser o cenário de uma história acontecida no Japão na segunda metade do século XIX. Uma história na verdade inventada, mas que recupera o momento histórico da invasão dos Estados Unidos naquele país. Toda invenção é real, eu sempre digo, porque nos fala da própria vida. 
Traje da personagem Cio-Cio-San (Madame Butterfly) por Adolfo Hohenstein

 
Como tragédia da expansão e do domínio norte-americano no mundo, Madame Butterfly singularmente nos conta sobre o estupro dos sentimentos de uma gueixa que, iludida por um tenente americano, Pinkerton, vê apenas no suicídio a única maneira de recuperar sua honra maculada. O marinheiro ama o exotismo e a beleza da gueixa, toma-a por esposa nos rituais japoneses, passa uns tempos com ela, parte do Japão e lhe promete voltar na primavera seguinte. As primaveras, contudo, sucedem-se, e o marido não volta. Ela, grávida, tem um filho de Pinkerton e vai afundando cada vez mais na miséria. A despeito de tudo, ela insiste em acreditar num amor inabalável e espera incondicionalmente pelo marido. Este, quando retorna três anos depois, já vem casado “de verdade” com uma “verdadeira esposa americana”. A paixão volúvel do marujo é atravessada por remorsos, e mesmo assim ele e sua “esposa verdadeira” arrancam o filho da gueixa. Fazem isso porque pensam que somente os dois têm condições de “educar um filho”, e não uma cantora e dançarina a serviço do entretenimento de homens. O drama em construção precipita-se quando a gueixa se mata. A história dessa gueixa, cujo nome é Cio-Cio-San, é a de alguém que se lança de um navio em chamas nas ondas terríveis de um mar impiedoso. 
 
Cio-Cio-San: Con onor muore chi non può serbar vita con onore. 
Trad.: Com honra morre aquela que não pode manter a vida com honra.
 
Apesar de todas essas coisas ásperas da vida, naquela noite no zoo eu pude ter momentos de suavidade e salvação. Um zoológico encarcerando animais selvagens, o frio que como lâmina nos cortava a todos no Jardim Japonês, o desrespeito de diferentes culturas pela mulher e pela gueixa e a volubilidade dos sentimentos humanos – tudo isso não foram elementos suficientes para fazer desabarem meu mundo e minha vontade de amor. Foram três atos de puro sentimento e expressividade. Música de fina orquestração, num requinte que nos levava aos píncaros de sentimentos sublimes. Chorei em diversos momentos da ópera. Apesar de todas as coisas ásperas da vida, eis que a arte entra em cena e nos faz encarar tudo o que é feio com mais discernimento e beleza. 
(BALBINO, Evaldo. Apesar das coisas ásperas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016. p. 65-67) 

 

Capa do livro de crônicas "Apesar das coisas ásperas", por Evaldo Balbino

 

II. AGRADECIMENTO
 
O autor agradece à cantora lírica Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas nesta crônica.

9 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Tenho o prazer de apresentar o novo colaborador do Blog de São João del-Rei: EVALDO BALBINO, natural de Resende Costa, professor de Língua Portuguesa do Centro Pedagógico UFMG, poeta e escritor.
Selecionei uma crônica de seu livro Apesar das coisas ásperas (2016), intitulada Uma noite no zoo com Puccini, uma saborosa página litero-musical que envolve o leitor com sua magia e frescor.
Na referida crônica, seu autor narra a emoção que sentiu ao assistir a uma apresentação, ao ar livre, da ópera Madame Butterfly de Giacomo Puccini com libreto de Luigi Illica e Giuseppe Giacosa, no Jardim Japonês da Fundação Zoo-Botânica de Belo Horizonte, durante maio de 2013.

Gostaria de fornecer ao leitor alguma informação sobre o elenco que participou das apresentações naquele não tão distante mês de maio de 2013:
Ópera: Madame Butterfly
Música de Giacomo Puccini
Libreto de Luigi Illica e Giuseppe Giacosa

Direção musical e Regência – Gabriel Rhein-Schirato
Direção de cena – Livia Sabag
Orquestra Sinfônica de Minas Gerais
Coral Lírico de Minas Gerais (16 cantores)
Solistas da ópera:
Cio-Cio-San ("Butterfly") – Eiko Senda e Masami Ganev
Suzuki (criada de Butterfly) – Luciana Monteiro
Pinkerton (tenente da marinha dos Estados Unidos) – Fernando Portari
Sharpless (cônsul dos Estados Unidos em Nagasaki) – Douglas Hans
Bonzo (tio de Cio-Cio-San) – Cristiano Rocha
Goro (agente imobiliário e matrimonial) – Wagner Moreira
Yamadori (príncipe prometido à mão de Cio-Cio-San) – André Fernando
Kate Pinkerton (esposa americana de Pinkerton) – Daiane Melo

Para o diretor musical e maestro Gabriel Rhein-Schirato, a ópera é uma das mais célebres e comoventes do repertório italiano: “O trágico amor da japonesa Cio-Cio-San pelo marinheiro Pinkerton mostra o encontro de culturas distantes. Enquanto o marinheiro pensa estar apenas saboreando um pouco de prazer no Oriente se casando com uma ingênua gueixa, esta entende aquele amor como o único de sua vida”, afirma. Sobre a música da ópera, o maestro destaca a junção de diferentes melodias, que garantem singularidade ao conjunto. “Giacomo Puccini encontra em Butterfly a história perfeita para mostrar todo o seu poder de comover a plateia por meio de melodias sentimentais e sofisticadas e, ainda, de situações cuidadosamente calculadas para levar o espectador frequentemente à comoção. A pitada oriental dada por Puccini à música confere um ar exótico e estranhamente encantador ao espetáculo”, diz.

Texto: Uma noite no zoo com Puccini
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2022/05/uma-noite-no-zoo-com-puccini.html 👈

Breve currículo de Evaldo Balbino
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2022/05/colaborador-evaldo-balbino-da-silva.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Evaldo Balbino (escritor e membro da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Prezados Francisco e Rute, que primor na edição desta pauta no tópico! E que esmero na busca das informações sobre o compositor, a ópera e a apresentação em 2013!

Parabéns!

Divulgarei entre meus contatos!

Agradeço por este convite de vocês, por esta dádiva!

Abraços amigos!

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Bravo!

Gilberto Mendonça Teles (autor de O terra a terra da linguagem e Hora Aberta-Poemas Reunidos e é membro da Academia Goiana de Letras) disse...

Obrigado pela notícia. Abraço do Gilberto

Edésio de Lara Melo (professor de música nos cursos das Universidade do Estado de Minas Gerais e professor efetivo da Universidade Federal de Ouro Preto, atuando principalmente nos seguintes temas: canto coral, regência, canto lírico, técnica vocal, musicologia e história) disse...

Excelente! Que bom ver o Evaldo Balbino por aqui. Saudações a todos.

Frei Joel Postma o.f.m. (compositor sacro, autor de 5 hinários, cantatas, missas e peças avulsas) disse...

Olá, Francisco e Rute! A Orquestra Sinfônica de Minas Gerais é excelente! Nota 10!! Votos Franciscanos de "Paz e Bem"! f. Joel.

Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...

Parabéns ao Prof. Evaldo Balbino.
Às vezes temos surpresas como música no zoológico.
A Arte tudo muda.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira

Maria Auxiliadora Muffato (poetisa são-joanense) disse...

Boa tarde, Francisco. Cumprimentos ao Prof. Evaldo Balbino por tão bela narrativa desta sua noite no zoo.
"Apesar das coisas ásperas", os momentos de encantamento acontecem. Estejamos prontos para acolhê-los.
Sempre grata,
Maria Auxiliadora Muffato.

Mario Pellegrini Cupello - Arquiteto, Escritor, Presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto - Valença RJ disse...

Caro amigo Braga
Agradecemos pela gentileza do envio.
Muito interessante!
Abraços, meus e de Beth.
Mario P. Cupello