domingo, 23 de junho de 2024

SÃO KANTÉ DE PARIS


Por ROGÉRIO CASANOVA *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO P2 nº 12.470, na coluna CRÓNICA, matéria publicada na edição de domingo, 23/06/2024. 
N'Golo Kanté joga na posição de meio-campo

Sob qualquer análise rigorosa e imparcial dos factos disponíveis, São José de Cupertino foi a pessoa mais engraçada do século XVII. Nascido em 1603 no calcanhar de Itália, começou a irritar pessoas praticamente desde o berço. Roberto Nutti, autor da sua primeira hagiografia, descreveu-o como “uma criança impetuosa, volátil, e dada a fúrias”. Era também dado a entrar em transes ao mínimo pretexto: na escola, deram-lhe a alcunha “Boca Aberta”; a família mais próxima, incluindo a mãe, preferia chamar-lhe “idiota” ou “inútil”. 

 
Já adolescente, especializou-se na arte de mostrar incompetência em qualquer tarefa que lhe confiassem. Conseguiu arruinar um negócio de venda de legumes através de olímpicas proezas de distracção. Um sapateiro de quem foi aprendiz descreveu-o como “um desastre” e dispensou-o ao fim de poucos dias. 
 
Filho de um carpinteiro, e nascido num estábulo, a religião deve-lhe ter parecido uma óbvia escolha de carreira. Tentou ingressar na Ordem Franciscana, pedindo uma cunha a dois tios, ambos membros respeitados, que o rejeitaram com o argumento persuasivo de que ele era demasiado “ignorante” e “esquisito”. Os Capuchinhos, cujos critérios de admissão eram aparentemente mais laxos, aceitaram-no. José tinha 17 anos. Destacado para a cozinha do convento, armou tamanha confusão (loiça partida, sopas entornadas, etc.) que acabou por ser expulso. Num segundo convento, mandaram-no tomar conta de uma mula: se a mantivesse viva durante uns dias, seria admitido. A tarefa deve ter requerido todos os seus poderes de concentração, mas José conseguiu. Entusiasmado com o sucesso, dedicou-se a ser irritante de outras maneiras: passou a alimentar-se apenas de relva, feijão e couves podres, a dormir um máximo de duas horas por noite, passando o resto do tempo a flagelar-se, e a soltar gritos nos momentos mais inoportunos. Ao fim de um tempo, começou também a levitar. 
 
Ao princípio levitava sozinho, depois em companhia. Uma vez levitou com um cordeiro nos braços, com o qual ficou duas horas a conversar, flutuando por cima de uma árvore. Chegou a levitar com outros frades, para sua compreensível consternação. Ninguém o suportava: o esvoaçar, a gritaria, as multidões que começava a atrair, era tudo uma enorme canseira. As queixas formais eram tão frequentes que a Inquisição acabou por mostrar interesse. Levado ao Tribunal do Santo Ofício (fartou-se de levitar durante a viagem), José mostrou-se tão humilde que foi declarado inocente em tempo recorde: a sua levitação não era obra do Diabo. Ao repertório de exibições aéreas, acrescentou mais tarde a bilocação: a capacidade de estar em dois sítios distantes em simultâneo. Num dos casos, testemunhas viram-no no convento em Assisi ao mesmo tempo que confortava um moribundo em Roma, a mais de 150 quilómetros de distância. 
 
A reacção mais comum a este tipo de relatos é de cepticismo. Ninguém anda por aí a levitar ou a ocupar dois espaços físicos em simultâneo, porque isso viola flagrantemente uma série de leis já em vigor no séc. XVII. Mas, como escreve o historiador medieval Carlos Eire (autor do magnífico livro They Flew: A History of the Impossible, de onde muita desta informação foi retirada), “qualquer história do impossível é sempre uma história sobre testemunhos de eventos impossíveis”, e sucede que o único milagre que testemunhei na vida foi precisamente um caso de bilocação: em 2016, num jogo do Leicester City, na altura a meio caminho do inesperado percurso que os sagrou campeões ingleses. O que aconteceu foi o seguinte: a dada altura desse jogo, o médio francês N’Golo Kanté estava na meia-lua adversária a pressionar um desgraçado qualquer, e ao mesmo tempo a correr na direcção oposta, já junto à linha de meio-campo. Para ser claro: durante uma breve fracção de segundo, o mesmo plano aberto da transmissão televisiva mostrou Kanté a ocupar dois sítios em simultâneo no mesmo relvado. 
 
Isto é obviamente uma impossibilidade física — e, no entanto, há pelo menos uma testemunha credível: eu, que vi tudo na televisão, e tenho 100% certeza do que vi (sinto-o dentro do peito, derradeira instância de todo o fact-checking que importa). Infelizmente não há provas — tal como os vampiros não são reflectidos por espelhos, os milagres verdadeiros não são preservados pelo YouTube. 
 
Mas não é surpreendente que o caso tenha envolvido Kanté, cuja biografia tem alguns pontos de contacto com a de José de Cupertino. Também ele demorou a encontrar o seu caminho, após uma série de contratempos: a reputada academia de Clairefontaine rejeitou-o ainda criança; e Arsène Wenger recusou a recomendação de um “olheiro” para o contratar, ainda adolescente, numa altura em que Arsène Wenger contratava duas paletes de adolescentes franceses todas as semanas. 
 
Os testemunhos que Kanté provoca são da mesma ordem. Durante o estágio de preparação da selecção francesa, Marcus Thuram expressou a frustração da sua presença em qualquer relvado: “É horrível, com ele aqui já não conseguimos fazer jogos-treino normais... às vezes sinto que regressaram três Kantés da Arábia Saudita... Como outros exilados do Golfo, Kanté não foi um convocado consensual, muito menos um titular, quando opções como Camavinga trazem outros dotes ao jogo. Mas a sua exibição contra a Áustria serviu para recordar por que é que foi um dos futebolistas mais entusiasmastes de acompanhar na última década. 
 
O debate sobre estilos no futebol afunila demasiadas vezes para o óbvio, reduzindo a expansiva diversidade do jogo a dois pólos antagónicos, positivo e negativo (Guardiolas e Mourinhos, Palhinhas e Vitinhas, etc.). Na verdade, a única divisão pertinente não é entre filosofias tácticas ou tipologias físicas ou técnicas, mas entre a presença da imaginação e a sua ausência. O que se quer é ver ideias a funcionar. 
 
Kanté não encarna nenhuma delas — ele é o que acontece quando essas ideias não funcionam. A sua imaginação é essencialmente negativa. É por isso que reduzi-lo a uma disponibilidade física sobrenatural é injusto. A sua característica principal é a capacidade de jogar emancipado das características específicas de cada partida, subordinando ambas as disciplinas colectivas à infalibilidade dos seus caprichos. Isto costuma ser um modo de descrever o golpe de asa dos génios criativos, mas Kanté, no seu melhor, anda há uma década a fazer da imprevisibilidade um atributo defensivo: não causa e consequência da criatividade, mas a condição da sua extinção e regeneração. 
 
Para os seus, funciona como um corrector táctico em tempo real, neutralizando qualquer ineficiência, desatenção ou risco calculado. Para os outros, é um instrumento ambulante de dissuasão, mas também de exigência: a sua mera presença obriga a constantes revisões. As possibilidades viáveis são reduzidas só porque ele lá está, portanto é preciso pensar no que não devia ser possível. 
 
Na sua carreira, além do improvável título com o Leicester, Kanté já ganhou uma Liga dos Campeões, um Euro, um Mundial de clubes e outro de selecções. Em todas essas conquistas, foi, por mais de uma vez, o melhor jogador em campo; e impediu muitos outros de o serem, quando isso seria o mais natural. O melhor vídeo do Euro 2024 até agora mostra-o a regressar ao balneário francês depois do jogo com a Áustria, ao som de aplausos dos colegas, um dos quais, Fofana, olha para a câmara e diz: “Não é um mito. Eu vi com os meus próprios olhos: ele é incrível.” 
 
Que o resto do Euro lhe corra bem; seria bom sinal, não apenas para a França (que é o menos importante), mas para todos os adversários, e todas as testemunhas.
 
Rogério Casanova é o pseudónimo de uma personalidade rica, multifacetada e dona de uma escrita límpida e vibrante. Colabora com a imprensa desde 2008, com passagens pelo Expresso, Observador, Diário de Notícias e revista LER. É tradutor dos principais autores de língua inglesa. Lecciona desde 2016 um seminário na pós‑graduação em Artes da Escrita, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

sábado, 22 de junho de 2024

OS PAPIROS VOLTARAM A FALAR


Por LUÍS M. FARIA *
Transcrevemos com a devida vênia da Revista do EXPRESSO, artigo publicado na edição de 21/07/2024, pp. 32-37.
Os rolos carbonizados de Herculano, cidade que, tal como a vizinha Pompeia, ficou soterrada pelo Vesúvio em 79 d.C., dão informações valiosas sobre a filosofia antiga. Mas só uma fração foi lida. Encontrar e decifrar muitos dos seus textos era uma tarefa quase impossível. Até agora. Novidades sobre a morte de Platão, 2300 anos depois.
Qualquer tentativa de desenrolar os papiros resultava numa considerável destruição dos mesmos, como aconteceu aos primeiros em que se tentou fazê-lo - Crédito: António Masiello/Getty Images

 
Os rolos carbonizados de Herculano, cidade que, tal como a vizinha Pompeia, ficou soterrada pelo Vesúvio em 79 d.C., dão informações valiosas sobre a filosofia antiga. Mas só uma fração foi lida. Encontrar e decifrar muitos dos seus textos era uma tarefa quase impossível. Até agora. Novidades sobre a morte de Platão, 2300 anos depois - Crédito: António Masiello/Getty Images

 
Não será normal os media internacionais fazerem manchete com a notícia de que foi descoberto o lugar onde um determinado indivíduo foi enterrado há 23 séculos e meio. Exceto, claro, se se tratar de um ícone universal. Quando há semanas soubemos que um velho papiro nos tinha revelado o lugar onde Platão foi sepultado, mesmo pessoas que não leem uma linha do filósofo grego desde as aulas do Secundário, ficaram curiosas. É verdade que o nome de Platão subsiste na linguagem comum em forma de adjetivo para indicar uma relação sexualmente abstémia entre duas pessoas, ou nalguma das inumeráveis metáforas a que isso se presta. Mas o que tornava intrigante a história, além da distância no tempo, era a forma como a descoberta foi realizada: num velho papiro carbonizado cuja decifração se tornou possível graças à tecnologia de ponta, que chegou a envolver grandes aceleradores de partículas em diversos pontos da Europa. 
 
Além de revelar, ou confirmar, que Platão foi enterrado junto a um santuário dedicado às musas nos jardins da sua escola, a Academia (outro legado linguístico dele que sobrevive), o papiro contava um episódio das horas finais do filósofo: para aliviar o seu sofrimento, alguém requereu os serviços de uma escrava da Trácia que tocava flauta. Mas Platão não apreciou a performance, criticando a artista por falta de ritmo. É o género de pormenor que parece dar credibilidade a uma narrativa, lembrando a um nível menos solene as palavras finais do mestre de Platão, Sócrates, descritas em “Fédon” pelo próprio Platão. Já quase totalmente paralisado com a cicuta que fora condenado a ingerir, Sócrates lembra a um dos seus discípulos presentes que devem um galo a Esculápio, o deus da medicina. Foi a sua derradeira lição, na hora de morte: cumpridor até ao fim. 
 
No caso de Platão, esteticamente exigente até ao fim. Platão é um dos filósofos europeus mais importantes de sempre, talvez o mais importante. “Alguém disse que toda a história da filosofia ocidental se resume a notas de rodapé a Platão e Aristóteles”, lembra ao Expresso o diretor de filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, António Pedro de Mesquita. Com a descoberta agora anunciada, Platão torna a aparecer, e logo a partir de textos de outro filósofo grego anterior a Cristo, Filodemo de Gadara (110-35 a.C.), autor do “Índice dos Filósofos”, a mais antiga história da filosofia grega de que há conhecimento. Filodemo não foi contemporâneo de Platão, que morreu em 348 a.C., mas certamente recebeu as suas narrativas de uma tradição contínua, talvez de livros hoje desaparecidos, e à partida não há razões para julgar que a cena da morte de Platão tenha sido inventada, embora a esse respeito as opiniões divirjam um pouco. 
 
O papiro foi encontrado em Herculano, uma cidade vizinha de Pompeia que também acabou soterrada quando o Vesúvio eclodiu em 79 d.C. Bastante mais pequena do que Pompeia, Herculano era o lugar onde muitos membros da elite romana tinham as suas residências. Ao contrário de Pompeia, não ficou debaixo de uma chuva de cinza e pumita e sim de correntes bastante mais densas de gás e matéria vulcânica que atingiram temperaturas de 1000 graus e permitiram a preservação de materiais orgânicos como comida, madeira — ou papiro. Esse pormenor fez toda a diferença para os historiadores de filosofia. Quase 17 séculos passaram até Herculano ser redescoberto, em 1709, antes mesmo de Pompeia. Em 1750, camponeses que abriam um poço depararam com um chão de mármore. Era uma grande villa, a maior da cidade, como depois se constatou. Tinha pertencido a um particular, sem dúvida alguém muito rico (mais tarde serviria de modelo para a villa Getty em Los Angeles, onde hoje se encontra o museu com o mesmo nome). Rodeada por jardins e pomares, ocupava uma área costeira de 250 metros e tinha quatro andares abaixo do piso principal. 
 
Outra indicação do elevado estatuto social do seu proprietário é que numa das alas constava uma biblioteca particular com centenas de rolos de papiro que tinham ficado carbonizados em 79. Esses rolos, à primeira vista indistinguíveis de simples bocados de carvão, chamaram a atenção dos estudiosos não muito depois de a villa ter sido descoberta. Percebeu-se que eram, ou haviam sido, livros, mas a leitura de muitos deles era extremamente difícil, se não impossível; desde logo, pelo facto de qualquer tentativa de os desenrolar produzir considerável destruição, como aconteceu aos primeiros com que isso foi tentado. A biblioteca continha sobretudo obras de filosofia, 44 delas escritas por Filodemo, que provavelmente fora amigo do dono da propriedade e o criador original da biblioteca. Em 1756, o padre Antonio Piaggio, curador de manuscritos antigos no Vaticano, inventou uma máquina para tornar menos lesiva a operação de abrir os papiros. Ainda assim era inevitável continuar a haver danos, até porque a máquina começava o seu trabalho puxando as extremidades dos papiros, o que desfazia logo essas partes. "O material é muito frágil devido ao choque termal do Vesúvio", explica ao Expresso Paolo Romano, investigador do Instituto di Scienze del Patrimonio Culturale, sediado em Nápoles. "Durante esse processo, muitas partes dos papiros ficaram danificadas ou permaneceram coladas às outras folhas." 
 
Em boa parte dos papiros desenrolar não era uma opção. Estavam demasiado "grudados". E assim, enviados para a Biblioteca Nacional de Nápoles, boa parte deles guardaram o seu mistério até hoje. Os estudiosos continuaram a trabalhar naqueles em que isso era viável — essencialmente, os fragmentos que fora possível abrir. A partir de finais do século XIX, a história da filosofia de Filodemo foi conhecendo várias edições que, embora parciais (mesmo hoje, apenas uns 5-10 por cento dela terá sido decifrada), forneceram informações preciosas sobre escolas de filosofia e filósofos individuais. Entretanto, as escavações em Herculano tinham parado, após protestos de residentes locais. Retomadas nos anos 80 do século XX, encontram-se longe de terminadas, e julga-se que em andares inferiores da villa possam existir mais papiros, talvez com obras de outros autores gregos e até de autores latinos. A imaginação saliva com a perspetiva de encontrar não apenas obras de filosofia mas dramas, poemas, tratados médicos de autores clássicos, alguns eventualmente desconhecidos até hoje. 
 
A FORÇA DA TECNOLOGIA 
 

 
Nas últimas décadas, essa possibilidade cresceu e fortaleceu-se. O que mudou tudo foi a utilização de técnicas de visualização importadas da medicina. Exploradas originalmente por um professor de ciência de computadores na Universidade do Kentucky, Brent Seales, têm dado resultados por vezes espetaculares na decifração de texto oculto — seja em fragmentos já desenrolados, como aquele em que agora se encontraram as referências à morte de Platão, seja nos que é impossível tentar desenrolar sem os destruir. Seales, cujo foco é a exploração do legado cultural da Antiguidade, começou há 20 anos a examinar os papiros de Herculano, mas não foi fácil. 
 
Em declarações ao Expresso, conta que começou por trabalhar em livros durante a era da “livraria digital”, com foco no restauro digital. “Mas depressa me interessei por alguns dos materiais mais danificados — livros e papiros que não podiam ser desenrolados. Inventámos o ‘desenrolamento virtual’ (virtual unwrapping) como uma forma de recuperar a escrita dentro deles sem os abrir fisicamente”, explica. “O nosso primeiro grande sucesso foi com o fragmento da lombada de um livro, que revelou ser uma pequena parte do Eclesiastes escrito em hebraico.” 
 
O trabalho com os papiros de Herculano foi uma continuação disso. Além das dificuldades técnicas, havia a resistência dos papirologistas a darem-lhe acesso aos papiros antigos. A papirologia é um meio relativamente pequeno, e o fenómeno da territorialidade, que se encontra com frequência na Academia, não parece estar menos presente aí do que noutras áreas de estudo. “Muito poucas bibliotecas têm material de Herculano, e esses papiros são muito frágeis”, diz Seales. “O acesso para qualquer outro objetivo que não observação exige autorizações especiais que me levou muito tempo a conseguir.” 
 
Seales queixou-se publicamente dos obstáculos — no programa de televisão “60 Minutos”, entre outros lugares — e só o anúncio, feito em 2016, de que a sua equipa tinha conseguido decifrar um pergaminho hebraico do séc. III ou IV d.C. encontrado queimado e enrolado em Ein-Gedi, junto ao Mar Morto, ajudou a desbloquear as resistências. O fragmento continha passagens do Levítico, o terceiro livro da Bíblia hebraica (e do Antigo Testamento). Nessa altura mesmo papirologistas renitentes começaram a perceber o valor do trabalho de Seales, que aliás não dispensa o deles. Antes pelo contrário: uma vez produzidas as imagens, continuam a ser precisos filólogos e outros especialistas para as interpretar. 
 
“O processo usa um método da imagiologia que consegue ver através de um objeto sem o abrir. Temos usado tomografia de raio-X computorizada, adaptada de tecnologia também usada em contextos médicos”, explica Seales. “Após a imagiologia, o desenrolamento virtual é o conjunto de passos implementados como algoritmos de computador para converter os resultados visuais numa representação plana, legível, daquilo que se encontra dentro. Se a digitalização for de um livro fechado, obtêm-se imagens de cada página. Se for de algo tipo rolo em que não se pode mexer, também se criam imagens planas da superfície enrolada, de modo a poder ler tudo o que a digitalização apanhar nessa superfície. É como fazer um mapa do interior de um livro ou um rolo, desenrolando-o digitalmente para que um leitor possa examinar o que lá esteja escrito.” 
 
A recuperação de textos da Antiguidade não passa apenas por tentar detetar tinta em imagens. Um caminho inverso — bottom-up approach, chama-lhe Seales — recorre à linguística computacional para assumir conhecimento de uma linguagem e procurar provas. “Os grandes modelos de linguagem, em particular, estão a ficar muito bons a preencher lacunas na escrita baseando-se no conhecimento de como uma linguagem funciona, treinados a partir de um grande acervo de material escrito”, diz. Embora o grupo de Seales ainda não recorra à linguística computacional, ele admite que será o próximo passo a dar no esforço para restaurar o material danificado de Herculano. 
 
Neste momento, a imagiologia recorre a meios cada vez mais sofisticados para separar (“segmentar”) as várias folhas contidas num papiro enrolado e examinar o que se encontra em cada uma. Alguns dos instrumentos privilegiados nesse esforço são os aceleradores de partículas, essas grandes estruturas que normalmente associamos a estudos de física extremamente complexa ou então a cenários catastróficos de ficção científica. Na verdade, eles têm utilizações variadas em muitas áreas. “O acelerador permite-nos capturar digitalizações muito precisas do interior do objeto acabado”, diz Seales. “A previsão e a rapidez são importantes para bons resultados. Muitos aceleradores têm um processo para requerer e comprar tempo para usar os seus instrumentos, e é assim que nós e outros investigadores conseguimos acesso. Esperamos que os custos se reduzam através da automação e da aplicação de técnicas em conjunto.” 
 
O trabalho pioneiro de Seales e da sua equipa teve seguidores. Entre eles, o grupo que agora anunciou ao mundo as descobertas sobre Platão: o GreekSchools Project, uma iniciativa financiada pela União Europeia cujo objetivo é digitalizar e tornar acessíveis textos gregos antigos, bem como fornecer recursos educacionais aos académicos e outros interessados. Foi uma ideia de Graziano Ranocchio, professor da Universidade de Pisa e especialista em papiros. “Teve por base a intuição de que só esforço multidisciplinar e colaboração entre físicos e químicos, por um lado, e papirologistas, paleógrafos e filólogos, pelo outro, poderia produzir resultados significativos na investigação aos papiros de Herculano”, diz Ranocchio ao Expresso
 
Contando que há 30 anos estuda diariamente os papiros de Herculano na biblioteca de Nápoles, e que esse foi um trabalho solitário durante muito tempo, Ranocchio acrescenta: “Somos o segundo grupo em todo o mundo que aplica técnicas físicas, químicas e óticas avançadas aos papiros para os decifrar e ler texto que está oculto neles.” Como nesta área os progressos conseguidos em isolamento são raros ou nenhuns, menciona o lançamento de uma plataforma em open source para edição colaborativa. “Isto é um produto completamente novo que permitirá aos papirologistas do mundo inteiro fazer edições críticas dos papiros de Herculano diretamente com um processador de texto e em colaboração”, sem terem de dominar ferramentas de software nem sempre fáceis. O projeto aplica aos papiros técnicas que usam onda curta, infravermelhos, raio-X, tomografia, imagiologia hiperespectral, envelhecimento, macrocoloraçōes, coerência ótica, microscopia digital de alta resolução, etc. 
 
“Em 2016 fomos os primeiros a aplicar algoritmos matemáticos para o desenrolamento digital de partes dos rolos analisados por nós através de luz de sincrotrão na European Synchroton Radiation Facility em Grenoble usando tomografia de contraste de fase por raio-X para separar folhas digitalmente e ler algum texto dentro delas”, diz Ranocchio. “Foi um avanço não apenas no que respeita aos resultados, mas também do ponto de vista metodológico.” 
 
Reconhecendo o papel pioneiro de Seales no desenrolamento virtual dos papiros e a qualidade dos resultados por ele obtidos num outro sincrotrão, em Oxford, o investigador italiano nota que o investigador americano não conseguiu descobrir texto dentro do produto tomográfico. “Mas teve a brilhante ideia de tornar universalmente acessíveis os seus resultados e os seus dados experimentais. Jovens especialistas em inteligência artificial e redes neurais encontraram o que ele não tinha conseguido encontrar.” 
 
Isto é uma referência a uma iniciativa inovadora lançada em março de 2023 por Seales com a ajuda de financiadores privados. O Vesuvius Challenge (Desafio Vesúvio) ofereceu prémios até um milhão de dólares para quem conseguir decifrar passagens no interior de papiros de Herculano enrolados usando machine learning e visão computacional. Convém lembrar que machine learning é algo que hoje em dia muitos estudantes de liceu pelo mundo fora já exploram por si mesmos. O primeiro prémio foi atribuído a um estudante universitário (e estagiário da SpaceX) norte-americano de 21 anos, que se tornou a primeira pessoa a conseguir identificar uma palavra inteira num fragmento de um papiro. A palavra era “púrpura”, um termo associado a riqueza e realeza. 
 
Semanas depois, um estudante de doutoramento egípcio em Berlim decifrou algumas colunas de texto com excecional clareza. E um estudante de robótica em Zurique também recebeu prémios pelo seu trabalho no mapeamento de partes dos papiros em 3D. Os três premiados acabaram por formar uma equipa que se candidatou ao grande prémio, no valor de 700 mil dólares, destinado a quem conseguisse decifrar “quatro passagens de 140 carateres cada, com pelo menos 85% dos carateres recuperáveis”. Os promotores do desafio admitem que estimavam em menos de 20% as probabilidades de sucesso no prazo definido — 1º de janeiro de 2024. No final, não só a equipa vencedora conseguiu cumprir o estipulado mesmo em cima do prazo, como lhe acrescentou 11 colunas extra de texto, num total de mais de 2 mil carateres. 
 
Os resultados do Vesuvius Challenge até agora provam que, não obstante o papel fundamental de novas tecnologias, a evolução da ciência continua a não dispensar o esforço de uma enorme quantidade de pessoas pelo mundo fora. 
 
NA HORA DA SUA MORTE
 
No que respeita à fiabilidade das revelações sobre a morte de Platão, um grau de ceticismo não parece irrazoável. “Temos de compreender que o modo como se escrevia História na Antiguidade não tem nada a ver com a nossa”, diz ao Expresso Pierre Vesperini, do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto. “Os autores antigos com frequência inventam coisas, recebem tradições orais, e o mais importante para eles é transmitir essas tradições, contar histórias, mas não necessariamente ter certeza da verdade objetiva do que estão a contar. Por isso, temos de ser muito cuidadosos quando usamos fontes antigas. Em especial, mas não só, quando se trata de uma escola, digamos, um inimigo ou um rival de outra escola.” 
 
Lembrando que a escola designada como Jardim de Epicuro era rival da escola de Platão, Vesperini acha que não se deve pensar em Filodemo como uma fonte absolutamente objetiva, para mais não sendo um historiador como Tucídides e sim um filósofo. “Devemos encarar os seus textos como testemunhos ou exemplos do que se dizia sobre Platão, não como documentos objetivos.” Em relação às últimas horas do filósofo, “podem ter sido um pouco inventadas”, arrisca. Na sua opinião, é ilustrativa a diferença em relação à famosa cena da morte de Sócrates. “Porque Platão escreve para uma audiência que conhecia Sócrates e sabia como ele tinha morrido. É quase impossível pensar que ele tivesse inventado os detalhes da morte de Sócrates, que aconteceu em frente a um grupo de contemporâneos. Se Platão tivesse mentido, haveria certamente textos antigos a dizer isso.” 
 
Em relação ao relato de Filodemo, António Pedro de Mesquita entende que “o facto de se tratar de um testemunho duzentos e tal anos posterior à morte de Platão não é suficiente para considerar que não seja relevante e fidedigno. Todos esses autores se baseavam em fontes anteriores, e tudo depende da fiabilidade dessas fontes e também do critério historiográfico que eles tinham”, diz. “Se fossem pessoas honestas e com orgulho, teriam capacidade para filtrar a informação boa da outra. Nós temos testemunhos muito posteriores, do século III d.C. (refere-se a Diógenes de Laércio, autor de uma famosa compilação de biografias de filósofos gregos) e no entanto damos-lhes valor.” 
 
Faz uma distinção. A informação sobre o local de enterro de Platão “tem um estilo fiável. Não quer dizer que o seja”. Já a cena com a flautista, podendo ter acontecido, “também é o género de coisas que alguém imaginativo podia ter dito”. Há que levar em conta não só o autor que transmite as fontes, mas também o estilo de informação, que sugere se se trata de algo eventualmente lendário ou pode ter um fundo histórico. “Pelo que ouvi das notícias, essa réplica à escrava se calhar é lendária, e a outra parte provavelmente fiável”, diz. 
 
Qualquer que seja a verdade, a discussão só se torna possível porque surgiu um texto com mais de 2 mil anos que a lançou. O professor Victor Gysemberg, especialista na interpretação de fontes greco-latinas e investigador no Centre National de la Recherche Scientifique, em França, nota que a imagiologia tem realizado grandes feitos em escritos da Antiguidade nas últimas décadas. Refere, por exemplo, o palimpsesto de Arquimedes, um pergaminho do século X com cópias de obras do geómetra grego, que entre 1998 e 2008 foi submetido a um processamento digital que tornou legível o seu conteúdo. Material de origem animal, o pergaminho é bastante mais durável do que o papiro, e por isso temos hoje uma quantidade considerável de pergaminhos antigos mas quase nenhuns papiros. Os de Herculano sobreviveram, paradoxalmente, por terem sido carbonizados, o que os preservou durante milénios, à espera que alguém os resgatasse do esquecimento e do seu mistério. 
 
“Temos estado à espera disto”, diz Gysemberg. “De certa forma, há dois séculos que esperamos, pois é impossível desenrolar estes papiros. Ficaram tão queimados que é impossível fazê-lo sem os quebrar em mil peças. Eu vi-os e vi as máquinas que se inventaram no século XVIII. Funcionavam bem para desenrolar os menos queimados e danificados, mas agora temos centenas de rolos que não há maneira de desenrolar. Recentemente, nos últimos 20 ou 30 anos, tem-se especulado que a grande inovação estava prestes a chegar, e agora chegou de facto. Embora ainda haja imenso trabalho pela frente, sabemos finalmente que o podemos fazer.” O sincrotrão dispara sobre o objeto um fluxo de raio-X mais poderoso do que os usados na medicina, explica. “A seguir medimos o que objeto reflete. O objeto é um pouco como um espelho. Mantém parte dos raios-X e envia alguns de volta.” Para usar o sincrotrão, os investigadores públicos ou privados têm de fazer um pedido. Se este for concedido, não se tem necessariamente de pagar, ou paga-se apenas uma pequena fração do custo real — afinal, é um equipamento público — mas o tempo disponível é limitado. “
 
A utilização destes equipamentos na exploração da nossa herança cultural é importante, mas só temos uma hipótese”, diz Gysemberg. “É uma situação cheia de adrenalina quando temos 24 horas de beam time (tempo de raio) numa semana, por exemplo. Toda a gente vai tentar usar cada segundo disponível, pois a próxima oportunidade poderá ser daqui a um ano ou dois, ou nunca.” 
 
O passo seguinte, a utilização de machine learning, ele descreve-a como "a criação de um cérebro artificial que então se começa a instruir”. “Podemos ensinar-lhe muitas coisas. Neste caso, queremos ensiná-lo a identificar padrões dos dados do sincrotrão, reconhecendo mudanças na textura, mudanças na sensação que dá a superfície do papiro. Pois é assim que podemos dizer se há tinta no papiro. Ela torna-o um pouco mais suave do que normalmente ele é.” Sendo tinta puramente à base de carbono, a dificuldade em detetá-la aumenta. “É como um lápis”, diz. “Tradicionalmente, não tem quaisquer metais. Mas às vezes há um pouco de chumbo, provavelmente acidental.” 
 
O caminho está aberto. Lembrando que as notícias recentes sobre a morte de Platão não se basearam no desenrolamento virtual, pois foram realizadas sobre papiros já abertos, Seales diz não ser surpresa que académicos e investigadores estejam a rever as suas leituras com base em tecnologia que permite ver mais claramente a tinta. “Digitalizámos a coleção inteira de Herculano de forma sistemática e estamos a preparar-nos para disponibilizar à comunidade académica imagens e modelos 3D de cada pedaço de papiro de Herculano. Estas novas digitalizações são cotejadas com todas as anteriores, permitindo aos investigadores comparar diretamente os textos agora visíveis com a fotografia mais antiga. Quando isso acontecer, esperamos um fluxo contínuo de investigação, revelando leituras novas e revisões de leituras anteriores.” 
 
Além dos textos já antes identificados, espera que centenas de outras obras tornem à luz ao fim de dois milénios. “O restauro desses papiros continuará esta recuperação de material clássico a um nível que o mundo não assistia desde que Poggio Bracciolini andou a resgatar manuscritos no início do Renascimento italiano”, diz. Bracciolini (1380-1459) foi o humanista italiano que aproveitou os intervalos no seu trabalho como scriptor e diplomata ao serviço de sucessivos Papas para visitar bibliotecas monásticas em vários países europeus e ressuscitar manuscritos da antiguidade há muito esquecidos. Devemos-lhe o conhecimento de obras de autores como Cícero, Lucrécio e Quintiliano, entre outros. A comparação feita por Seales é ambiciosa, mas ele justifica: “Há grande beleza nas tecnologias de que fomos pioneiros e na sua força restauradora.”
 
*  Luís M. Faria é jornalista

NOTA DO GERENTE DO BLOG: Em 21/04/2024 o Blog do Braga apresentou a tradução do espanhol de um artigo intitulado "Villa dei Papyri" em Herculano no século XXI: Atualização científica e situação dos trabalhos (2000-2016) dos professores Drª María López Martínez e Dr. Andrés Martín Sabater Beltrá, em que os autores abordavam o mesmo tema para o período de 2000 a 2016.

A transcrição do presente artigo publicado pela revista EXPRESSO no Blog de São João del-Rei, intitulado "Os papiros voltaram a falar", objetiva fazer uma atualização das mais recentes descobertas, tratando extensivamente do Vesuvius Challenge (Desafio Vesúvio).

quinta-feira, 20 de junho de 2024

EDGAR FERREIRA: ”Quero que fiquem curiosos com este mundo da Orquestra Gulbenkian”


Por RUI PEDRO TENDINHA *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal DIÁRIO DE NOTÍCIAS, entrevista publicada na edição de 19/06/2024, coluna CULTURA. ano 160º, nº 56.671, pp. 26-27
 
ENTREVISTA A primeira obra de Edgar Ferreira é uma viagem pelos 60 anos da Orquestra Gulbenkian. O realizador de Soma das Partes assume ter feito um filme em crescente temporal. Chega quinta-feira a 22 salas espalhadas pelo país.

Um cineasta à procura do milagre da música. Em Soma das Partes, Edgar Ferreira até tenta chegar perto do mistério que a música traz para a transcendência de um músico, seja maestro ou instrumentista. Depois da curta A Música é Bela, Os Aeroportos são Tristes, aventura-se numa longa, neste caso comissionada pela Fundação Gulbenkian para celebrar os 60 anos da Orquestra Gulbenkian. Para o ano conta ter pronta outra longa-metragem documental também em registo hagiográfico: celebra-se igualmente os 60 anos do Coro Gulbenkian.
 
 
Olha-se para o seu percurso e fica-se com a ideia de que é um cineasta aberto para a música. Será uma vocação? 
Essa ligação não é propositada nem vontade minha. Tem a ver com um percurso que se colocou à minha frente. Mas essa questão da música tem sido um processo de aprendizagem. Quando comecei a trabalhar com a Fundação Gulbenkian não conhecia muito de música clássica. Ao ver como todo o processo funciona, tenho recebido um conhecimento extra.
 
Mas assume que é um filme-encomenda. 
Sim, a Fundação decidiu que havia um marco histórico com as seis décadas da Orquestra Gulbenkian e estendeu-me a mim e à minha produtora, a Galope, este convite. 
 
E na sua cabeça como se poderiam comemorar estes 60 anos de existência da Orquestra? 
Quando me foi proposto havia logo aquela ideia: 60 anos, 60 minutos... O que se queria era incluir o máximo de perspetivas possíveis sobre aquilo que é a definição de uma orquestra. Dos músicos, maestros, espectadores, passando por coordenadores de orquestras, diretores do serviço de música a musicólogos. Desejava que houvesse a visão mais abrangente possível. Esta estrutura parecia fácil, mas havia uma história a ser contada com muitos momentos históricos relevantes – aí percebi que seria mais complexo condensá-los em períodos tão curtos. O tempo é um tema muito abrangente... e permite fazer várias declinações: o tempo da música, o tempo da interpretação, o tempo da própria orquestra e o tempo da música que é tocada, música que subsiste no tempo. Falei com a argumentista, a Andrea Lupi, e percebemos que queríamos explorar todas essas variáveis. Tentámos abordar a questão do tempo com o maior detalhe possível. Curiosamente, na primeira versão do guião estávamos com 30 minutos que tinham de ser incluídos num segmento de 10... Cheguei a pensar que estávamos com um formato redutor que nos obrigaria a excluir muita coisa importante. 
 
Tiveram então de lutar para que tudo não ficasse demasiado abreviado? 
Quisemos então ter tempo para alguma profundidade, mas tivemos realmente que fazer esse exercício de reduzir ao essencial. Por exemplo, era importante explorar os Festivais de Música e aí decidimos incluí-los quando eles terminam, neste caso antes do começo da orquestra. Isso reforça a importância do peso da criação da orquestra. Depois desse exercício de condensação, ficámos surpreendidos com o ritmo que obtivemos. Fomos muito criteriosos e quisemos tirar a multiadjetivação. Ganhámos uma cadência. O filme ficou acelerado. 
 
Podemos falar em ritmo musical? 
Isso. A própria estrutura do documentário vem dessa relação com a música que tem um determinado tempo. Gostava que se sentissem os intervalos de tempo. Claro que não é novo um filme que é marcado pelo tempo, sobretudo quando nos dá a sensação de contagem decrescente. Só que nós apostámos antes numa contagem crescente, sempre a somar. Acabou por ser um exercício de adição. Ainda me interroguei se o espectador não ficaria a contar o tempo, coisa que nunca é positiva, mas penso que não, aqui não acontece isso: há sempre a vontade de querer saber o que se passa nos 10 anos a seguir. 
 
O que queria que as pessoas tirassem deste Soma das Partes
Falando como observador, este filme é a minha retribuição à generosidade de um músico quando dá um concerto. Gostava que as pessoas ficassem com interesse em conhecer esta realidade. Se pensarmos que a música não existe, não tem corpo e só pode ser vivida no momento em que é tocada, ou seja, algo tão frágil, este filme faz a questão paradoxal de como é que ainda persiste ao fim deste tempo todo. E eu acho que é precisamente por não ter corpo que mais facilmente se torna intemporal, ao contrário da pintura, que, por ter um corpo físico, acaba por ficar associada a uma época. 
 
Já no filme de Marco Martins sobre o Ballet Gulbenkian, Um Corpo que Dança, salta à vista essa ideia de fascínio que Gulbenkian cria em torno da música e da arte. É como se fosse um segredo... 
Isso é verdade, mas não sei o segredo. Tem a ver com uma obsessão pela excelência, algo com o qual me identifico com os músicos, esse trabalho constante até à perfeição... Ainda que não seja possível alcançar a perfeição, há sempre esse caminho. E isso está na génese de apoio à criação artística da própria Fundação Calouste Gulbenkian. 
 
Nota-se nos músicos e em todos os entrevistados uma paixão enorme a falar deste tema. Acredito que não deva ter sido difícil sacar essas emoções de paixão. Foi fácil mesmo! É muito natural para eles, sobretudo porque amam o que fazem. Mas neste caso há uma outra questão: o trabalho coletivo, sentirem-se uma peça de algo maior. 
 
Podemos falar da experiência humana que é estar a captar tanto talento extraordinário? Neste filme são entrevistados nomes como Maria João Pires, Lorenzo Viotti, Lawrence Foster e tantas outras sumidades da música clássica. 
É incrível! Mas fiquei sobretudo surpreendido pela simplicidade destas pessoas. É fascinante encontrar uma das maiores pianistas do mundo, como a Maria João Pires, a ter aquela simplicidade... E o que diz acaba por ter camadas. Somos levados a pensar em muito mais quando a ouvimos a dizer que o respeito pela partitura é um exercício que nos convida para a descoberta.

 
Sentiu uma grande diferença na alma de um instrumentista e de um maestro? 
Passa muito no documentário essa questão das diversas funções, que é fascinante. Mas a orquestra é um instrumento do maestro. 
 
Torna-se determinante o conceito de colocar os entrevistados no palco do Grande Auditório Gulbenkian. É como que uma declaração de os colocar no centro de tudo... 
Pois, mas não tornou logisticamente as coisas fáceis. Com a agenda do maestro Lorenzo Viotti estava muito difícil essa gravação, acabou por ser num sábado de manhã, entre concertos, e obrigou a uma grande logística. Conciliar as agendas dos entrevistados com a do Auditório foi complicado e eu não poderia fazer nenhuma entrevista noutro sítio diferente – derrotava todo o propósito de eles estarem no local a que se referem e a convocar memórias. Quero que Soma das Partes seja acessível também às pessoas que não conhecem esta orquestra, quero que fiquem curiosas com este mundo e que no final queiram saber mais sobre música clássica. Desde que estreámos no Festival Caminhos do Cinema Português, de Coimbra, que tenho tido o feedback que este filme deixa as pessoas ligadas. 
 
Em que fase está o filme sobre o Coro Gulbenkian? 
Espero estrear nos cinemas para o ano, mas serão filmes diferentes. Nunca quero fazer igual. Esse será a visão do coro sobre tudo o que está à sua volta. Serão objetos muito diferentes. 
 
* Jornalista de cinema de diversas publicações portuguesas; colabora ainda para o Telecine, canal de cinema brasileiro.
 
 
SOMA DAS PARTES, para redescobrirmos a música

Por JOÃO LOPES *

DOCUMENTÁRIO Com contenção e rigor, Soma das Partes segue um dispositivo tradicional para nos relatar 60 anos da Orquestra Gulbenkian. O filme de Edgar Ferreira ajuda-nos a redescobrir a música como um fascinante universo de trabalho.

A certa altura, no documentário Soma das Partes, de Edgar Ferreira, Maria João Pires fala da relação dos músicos com a partitura que estudam e vão interpretar: “Através da partitura, do respeito pela partitura, temos o suficiente para fazermos um trabalho de descoberta.” Eis uma condensação exemplar de um labor que vai determinar e, de alguma maneira, envolver a nossa escuta. Soma das Partes consegue a proeza, tão simples quanto essencial, de nos fazer sentir a pluralidade de vivências e experiências que determina a vida de uma orquestra. 
 
O dispositivo é tradicional – o que, entenda-se, decorre de um propósito de informação e didatismo cuja eficácia não está em causa. Trata-se de condensar 60 anos de história da Orquestra Gulbenkian através de uma coleção de testemunhos e materiais de arquivo que conduzem o espectador da época do respetivo nascimento, sublinhando o papel determinante de Madalena de Azeredo Perdigão, até à atualidade, com Hannu Lintu como maestro titular. 
 
Dos intérpretes aos maestros, viajamos através de um tecido de memórias tratado por uma montagem realmente esclarecedora. E se é verdade que, em particular, as palavras concisas de Rui Vieira Nery ajudam a definir a estrutura da narrativa, não é menos verdade que a diversidade das vozes registadas (cito, por exemplo, Lorenzo Viotti, que em 2018, aos 28 anos, assumiu o cargo de maestro titular) surge de modo fluente e positivo, evitando o tempero “televisivo”, também ele tradicional, da futilidade ou da caricatura. Há outra maneira de dizer isto: Soma das Partes, não deixando de ser uma antologia de factos e protagonistas, existe sobretudo como retrato de um complexo e diversificado processo de trabalho. E não é todos os dias que encontramos a música tratada não como uma coleção de “curiosidades” mais ou menos superficiais, antes observada como um universo de trabalho – nessa medida, relançando a palavra de Maria João Pires, de descoberta. Tudo isto, convém acrescentar, sem deixar que a narrativa seja contaminada por qualquer facilidade “simbólica” ou moralista, recusando recordar o pré e o pós-25 de Abril como dois países sem nada em comum. 
 
Saúde-se, enfim, o facto de um filme como Soma das Partes, apesar das especificidades do seu tema, surgir através de uma distribuição relativamente alargada em salas de todo o país (da responsabilidade da empresa The Stone and the Plot). Mais do que nunca, é também imperioso não desistir de diversificar os “conteúdos” do mercado das salas, na certeza de que não se renovam públicos (o plural é essencial) sem algum sentido de risco – um risco comercial que é sempre um risco cultural.
 
* João Lopes é crítico de cinema desde 1973, trabalhou para várias publicações. Escreve atualmente para o DIÁRIO DE NOTÍCIAS.

terça-feira, 11 de junho de 2024

ESPLENDOR MUSICAL


Por PEDRO M. SANTOS *
Transcrevemos com a devida vênia do arquivo da revista ÍPSILON - PÚBLICO, artigo publicado na edição de 25/10/2017, coluna CRÍTICA ・ MÚSICA.

 

O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra

Vislumbra-se a variedade de géneros e de estilos musicais cultivados no século XVII num dos mais importantes centros musicais da Península Ibérica: o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. O primeiro registo fonográfico do Capella Sanctae Crucis inaugura a mais recente linha editorial da prestigiada etiqueta francesa Harmonia Mundi, intitulada Harmonia Nova. Esta nova colecção promove projectos de jovens músicos que se destacam pelo contributo dado à renovação das abordagens interpretativas e do próprio repertório. É este o caso de Zuguambé, disco integralmente constituído por repertório inédito arquivado na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. O conteúdo do disco permite vislumbrar a variedade de géneros e de estilos musicais, assim como a profusão de recursos vocais e instrumentais, cultivados no século XVII naquele que foi um dos mais importantes centros musicais da Península Ibérica: o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. 
 
Pelo seu inestimável valor artístico e cultural o repertório e as práticas musicais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra são de grande relevância para a investigação musicológica em Portugal. Recentemente este trabalho tem sido intensamente desenvolvido pelo projecto “Mundos e Fundos” integrado no Centro de Estudos Clássico-Humanísticos da Universidade de Coimbra. Formado por uma equipa constituída por musicólogos e intérpretes este projecto define-se pela forte interacção entre a investigação científica e a prática musical, sendo um dos seus intuitos o de “potenciar o resultado artístico”. Um dos elementos desta equipa é Tiago Simas Freire, director e cornetista do Capella Sanctae Crucis, sendo o disco Zuguambé um dos resultados artísticos entretanto apresentados ao público. 
 
Zuguambé - Música para liturgia do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra c. 1650

 
O repertório selecionado para o disco é constituído maioritariamente por peças de autores anónimos que se enquadram em três importantes momentos de celebração litúrgica: as festas da Natividade, do Corpo de Deus e da Ascensão do Senhor. Nos géneros musicais representados predomina o Vilancico, mas também são incluídos Vilancicos de Negro (de onde é retirada a expressão “Zuguambé”), Calendas de Natal, Responsórios, Tentos, Versos, um Salmo e um Motete de D. Pedro de Cristo, entre outros. Trata-se de repertório de natureza funcional que na época era objecto de arranjos elaborados de acordo com o significado da celebração litúrgica e dos diferentes momentos que esta integra. Inspirando-se nas práticas musicais seiscentistas dos Crúzios de Coimbra, o Capella Sanctae Crucis apresenta um conjunto plausível de hipóteses de restauro, arranjo e interpretação deste repertório, o que justifica a profusão dos estilos musicais propostos, de entre os quais se destacam a polifonia, a monodia acompanhada, a policoralidade e o estilo concertante. No mesmo sentido os arranjos incluem propostas diversificadas, recorrendo em alguns casos a um abundante conjunto de meios vocais e instrumentais (por exemplo no exultante Hodie nobis caelorum Rex ou no espectacular Zente Pleto), limitando-se noutros casos a interpretações instrumentais de câmara ou a solo (como é o caso da belíssima e intimista interpretação em harpa ibérica do [Tento do] 4º Tom de Agostinho da Cruz). Em termos gerais, a interpretação musical prima pela sobriedade, mas não deixa de realçar os diferentes caracteres de um magnífico repertório que, apesar de litúrgico, oscila entre a exultação, a introspeção, a austeridade e o humor. 
 
Pelo valioso contributo que representa para a descoberta, divulgação e revalorização do património musical português do século XVII, mas também pela qualidade das propostas musicais e pelo rigor científico que as fundamenta, Zuguambé é um registo fonográfico de referência! 
 

* É professor de Análise e Técnicas de Composição na Escola Artística do Conservatório de Música Calouste Gulbenkian de Aveiro e professor no Curso de Composição da Escola Superior de Música e das Artes do Espetáculo do Porto. Compôs várias obras para formações instrumentais e vocais diversificadas, apresentadas em Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Holanda.
 
NOTA do Gerente do Blog: O áudio de algumas amostras das peças constantes do disco Zuguambé pode ser apreciado no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=GOxJAjSLe6g   👈

domingo, 9 de junho de 2024

O dia em que um vencedor da II Guerra foi apagado da fotografia


Por ANA SÁ LOPES *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, artigo publicado na edição de domingo, 09/06/2024, Ano XXXV, nº 12.456, coluna Anacrónica, p. 32.

 

Josef Estaline (1878-1953)

O passado é uma coisa esquisita. Quando o que as fontes históricas contam nos perturba minimamente, inventamos um outro passado, mitificado. A natureza humana tenta riscar da memória tudo o que a incomoda — um mecanismo de sobrevivência, provavelmente. Estaline apagava os inimigos das fotografias, hoje é a vez de o Ocidente lhe fazer o mesmo. 
 
A História não é uma linha recta, está cheia de sombras, de incongruências, de realpolitik, de cinzentos, de alianças ditas espúrias, de horrores e algumas grandezas. Para alegria do povo (vemos o que se passa ainda em Portugal com o império), precisamos de a simplificar. 
 
Ao assistir às cerimónias dos 80 anos do desembarque da Normandia, é difícil não conter as lágrimas ao lembrar a coragem daqueles jovens que vieram de muitos lugares do planeta para salvar a Europa do nazismo. 
 
O que ficou esquecido é que o sangue dos soldados soviéticos foi determinante para combater o regime nazi. Antes e durante a guerra, Churchill sempre considerou Estaline “um homem abominável” — e foi contra o “inimigo soviético” que centrou a sua campanha eleitoral de 1945, depois da guerra. Aliás, não foi reeleito por várias razões, incluindo porque o eleitorado britânico não compreendia os discursos de Churchill contra o comunismo: a URSS, aliada dos ingleses e dos americanos no combate a Hitler, era olhada com simpatia pelo povo britânico. 
 
O sangue dos jovens das várias repúblicas soviéticas não foi derramado nas praias da Normandia, mas foi efectivamente a Frente Leste que derrotou Hitler. Max Hastings, um historiador totalmente insuspeito de simpatias comunistas, escreve em Os Melhores Anos — Churchill 1940-1945: “Os aliados ocidentais nunca derrotaram os principais exércitos alemães  apenas auxiliaram os russos a destruí-los.” 
 
E mais perturbador ainda: “Não obstante todo o entusiasmo de George Marshall e dos seus colegas com a invasão da Europa, continua a ser impossível acreditar que os Estados Unidos estariam dispostos  como a Grã-Bretanha não estava  a aceitar milhões de baixas para desempenhar o papel de desgaste do Exército Vermelho em Estalinegrado, em Kursk, e em 100 outros banhos de sangue de menores dimensões entre 1942 e 1945." 
 
E, por fim, "Roosevelt e Churchill tinham a satisfação da superioridade moral sobre Estaline mas é difícil contestar a pretensão do senhor da guerra soviético a ser chamado arquitecto da vitória." 
 
A foto de Evgueni Khaldei registrando a tomada do Reichstag pelas tropas soviéticas mostra a bandeira soviética hasteada no topo da sede do Parlamento alemão, em Berlim, em maio de 1945

 
Uma das explicações para esta superioridade no combate dos soviéticos é que não havia opinião pública na URSS para contestar a morte de soldados em massa, ao contrário do que se passava nos Estados Unidos e Grã-Bretanha. 
 
O presente  a invasão da Ucrânia pela Rússia  intrometeu-se na homenagem ao passado, transformando as comemorações do Dia D num dia de combate à Rússia. Sem deixar de concordar que todos os dias devem ser de combate à Rússia e apoio a Kiev, o apagar da União Soviética da fotografia da vitória na II Guerra é replicar no Ocidente os métodos de Estaline. 
 
A França, que organizou a comemoração dos 80 anos do Dia D, decidiu não convidar Putin (que, por acaso, esteve presente nos 70 anos, já depois de anexada a Crimeia). Mas queria convidar alguns representantes russos, herdeiros dos homens que ajudaram a combater o nazismo. A Casa Branca e o Reino Unido fizeram saber a sua discordância. A França recuou. 
 
A organização das comemorações, Mission Libération, chegou a escrever em comunicado: "Contrariamente ao Kremlin, a França não faz revisionismo político da história." Também um deputado conservador britânico chamado Tobias Ellwood, que chegou a ser ministro da Defesa do Reino Unido  não obstante ser um dos maiores defensores do apoio ocidental à Ucrânia e de um maior investimento na defesa para auxiliar Kiev , dizia ao jornal Político em Maio que, se a Rússia não fosse convidada, corria-se o risco de "confundir a geopolítica de hoje com a união de objectivos para derrotar o nazismo no passado". 
 
Confundiu-se tudo. Procedeu-se ao revisionismo da história. Talvez o Dia D não seja história. Talvez nunca tenha existido. Talvez Estaline não tenha derrotado Hitler. As comemorações desta semana revelaram apenas a geopolítica do presente condimentada com geopsicologia política. 
 
* Redactora-chefe do PÚBLICO, tendo sido jornalista parlamentar e trabalhado essencialmente na secção política.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

A NOVA LITERATURA BRASILEIRA


Por ANTÓNIO FERRO *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal DIÁRIO DE NOTÍCIAS, artigo publicado na edição de sexta-feira, de 31/05/2024, Ano 160º, nº 56.652, coluna ACONTECEU EM, p. 31.
AS NOTÍCIAS DE 31 DE MAIO DE 1924 PARA LER HOJE (Arquivo DN Cristina Cavaco, Luís Matias e Sara Guerra)
Graça Aranha e os escritores novos do Brasil — Algumas figuras da nova geração — O morro do Castelo e a velha literatura brasileira

 

Portugal e o Brasil são dois irmãos queridos que vivem afastados... Lembramos muito um do outro mas nunca se escrevem... Portugal e o Brasil se viessem, novamente, a encontrar-se, juntos, já não se conheceriam... O intercâmbio tem sido mal orientado. As missões intelectuais que atravessam o Atlântico dirigem-se a um Brasil oficial, ao Brasil académico. Ficam à superfície, ficam nas cidades... Ora o verdadeiro Brasil não se encontra nos banquetes nem nas festas de homenagem. O verdadeiro Brasil, o Brasil que tem expressão e raça, vive escondido, procura a solidão, tem o orgulho de não se exibir, de não se meter com ninguém... É preciso descobri-lo, é preciso trazê-lo para a luz, fotografá-lo "à contre-coeur".

Da literatura brasileira, por exemplo, conhecem-se apenas meia dúzia de nomes. Esses nomes, porém, gloriosos e fortes, pertencem a um Brasil que já hoje não existe, a um Brasil que se recorda com saudade, que se respeita mas que já não está coerente com o movimento da Avenida Central e com as obras do Morro do Castelo...

A literatura brasileira está vivendo uma hora de renovação, está-se libertando da onda de romantismo que a inundou, que lhe deu uma alta expressão, mas uma expressão retórica. A literatura brasileira voou muito alto nos poemas de Castro Alves e de todos os "condoreiros"... Precisa descer um pouco, agarrar-se mais à vida, integrar-se na atmosfera trepidante e sonora do Brasil moderno, acompanhar as locomotivas que vão rasgando as florestas e vão semeando cidades pelas terras incultas do interior...

Essa actualização da literatura brasileira começa a desenhar-se... O primeiro impulso foi dado, num belo exemplo que é preciso mostrar a Portugal, pelo académico Graça Aranha, o autor do "Canaã", romance eterno, romance em bronze...
 
Graça Aranha
Graça Aranha viveu alguns anos em Paris na intimidade de Paul Claudel e de outros escritores modernos. Paris indicou-lhe a hora oficial da Arte contemporânea. Verificou que o seu relógio estava certo mas lembrou-se de que não acontecia o mesmo no Brasil, lembrou-se de que havia por lá alguns mostradores onde os ponteiros marchavam com lentidão, sem impaciências e sem febre... Regressou ao Brasil e, apesar de académico, pronunciou-se contra a Academia e contra o seu espírito de rotina. Graça Aranha, o velho amigo de Machado de Assis, um dos primeiros acadêmicos, diplomata de categoria, investiu corajosamente contra os filisteus, colocou-se no alto da barricada e soltou o primeiro grito de guerra no espectáculo inaugural da Semana de Arte Moderna realizada em S. Paulo. Elysio de Carvalho e Paulo Prado, contemporâneos de Graça Aranha, acompanharam-no, rejuvenesceram, com ele, no combate sem tréguas contra as velhas fórmulas, contra os preconceitos encanecidos... O discurso de Graça Aranha, em S. Paulo, foi o toque de reunir. Todos os brasileiros novos, todos aqueles que desejavam uma literatura tão moderna como o Brasil, vieram colocar-se ao lado de Graça Aranha, armados com a sua mocidade e com a sua fé, dispostos à grande guerra, últimos bandeirantes, bandeirantes da Arte e da Beleza... E pouco a pouco, toda uma geração se foi afirmando, uma geração que olhou a paisagem brasileira com novos olhos, que encontrou síntese e grandes linhas numa vegetação aparentemente luxuriosa e prolixa...

Ronald de Carvalho, que ama o presente sem desdenhar o passado, escreveu esses admiráveis "Epigramas Irônicos e Sentimentais" onde o Brasil é desenhado a quatro traços, à japonesa, à maneira de Fujita... Álvaro Moreira, grande escritor para quem a vida é um livro de anedoctas, escreveu "Um sorriso para tudo...", sorriso triste, muitas vezes... Olegário Mariano, o último romântico do Brasil, escreveu as "Últimas cigarras", cigarras cantantes e boêmias... Renato Viana, demolidor do velho teatro brasileiro, escreveu a "Salomé", a Salomé de hoje, aquela Salomé de cabelos oxigenados e lábios de tinta encarnada, que dança em todas as vidas... Paulo Torres, o poeta da cidade coleante que é a Capital Federal, escreveu "A hora da neblina", livro enternecido onde se canta um vestido como se canta um corpo, onde se beija uma luva como se beija certa mão... Renato Almeida, o profeta do movimento modernista brasileiro, é o autor do "Fausto", obra que é um oceano de ideias novas... Onestaldo Pennafort, poeta que tem o recolhimento dum verso de Samain, escreveu o "Perfume", ritmos de seda e veludo... Mário Ferreira, Peregrino Júnior e Buarque de Holanda anunciam, constantemente a hora da partida nas colunas dos jornais... Tristão de Ataíde e Agripino Grieco são os críticos da gente nova, críticos serenos que vão separando, tranquilamente, o trigo do joio...

Mas foi em S. Paulo, depois da Semana de Arte Moderna, que o movimento atingiu a maré-cheia... Os escritores modernos paulistas reuniram-se na revista "Klaxon" e largaram a toda a velocidade... Monteiro Lobato, escritor regional desempoeirado, auxiliou o movimento com a fundação duma casa editora que é hoje uma das mais importantes do Brasil. O milionário Paulo Prado, que lembra o Diaghilev dos "Bailados Russos" sacrificando a sua fortuna ao triunfo da Arte moderna, pôs todos os seus bens à disposição dos escritores novos de S. Paulo. Oswald de Andrade, o grande romancista de "Os condenados", é o animador do movimento, o guerrilheiro mais audacioso... Foi a Paris, conviveu com Jean Cocteau, Jules Romains, Max Jacob e convenceu Blaise de Cendrars, o indomável Blaise de Cendrars, a ir ao Brasil fazer uma "tournée" de conferências. Guilherme de Almeida, poeta de versos sossegados como bonecas de seda, decide-se, um dia, a dizer tudo quanto lhe vai na alma e escreve "Era uma vez...". Menotti del Picchia, imaginário, vai engrandecendo a catedral gótica da sua Arte... Mário de Andrade é o próprio "Klaxon", a busina atroadora a abrir caminho... Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Francisco Lagreca, Sérgio Milliet, Tasso de Almeida, Couto de Barros, Luís Aranha, René Thiollier, Carlos Drummond, Enéas Ferraz, Rocha Ferreira, Cândido Mota Filho, Rubens de Morais, Joaquim Inojosa, Paulo de Magalhães e muitos mais, comandam, em vários pontos do Brasil, guerrilhas modernistas, grupos de bandeirantes...
 
Neste artigo, onde procurei fazer, rapidamente, um balanço de alguns valores novos do Brasil, do Brasil que deseja modernizar-se, não há a menor falta de respeito pelo velho Brasil, pelo Brasil de Rui Barbosa, de Coelho Neto, de Machado de Assis, de D. Júlia Lopes de Almeida, de Afrânio Peixoto, de Euclides da Cunha e de tantos outros. Neste momento encontra-se justamente, em Lisboa um representante desse glorioso Brasil literário, acadêmico que tem sabido conservar-se livre, que tem sabido conservar-se novo... Quero referir-me a Filinto de Almeida, pai desse poeta íntimo, poeta do lar e do amor, que é Afonso Lopes de Almeida Cardoso de Oliveira, o ilustre embaixador do Brasil, é outro representante desse Brasil que há de viver sempre na saudade.

O Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, está a ser destruído... A cidade tende a alargar-se e aquele Morro é uma parede que lhe impede o natural desenvolvimento. O Morro do Castelo é um símbolo. A velha literatura brasileira é um morro glorioso, morro dum castelo encantado onde pousaram águias e onde viveram príncipes lendários... Mas a literatura brasileira precisa de ser actualizada, precisa de modernizar-se. O morro do Castelo da Retórica opõe-se a essa renovação, a essa marcha para o futuro... Urge destruí-lo. Destruir-lhe a forma e guardar-lhe o espírito. Graça Aranha e os seus companheiros não devem descansar. Se não destroem os vários morros que rodeiam a alma brasileira, a alma da raça, arriscam-se a ficar emparedados...
 
* António Ferro foi um escritor, jornalista, político e diplomata português. Foi o grande dinamizador da política cultural do Estado Novo, regime político que vigorou em Portugal durante 41 anos ininterruptos, desde a aprovação da Constituição portuguesa de 1933 até ao seu derrube pela Revolução de 25 de Abril de 1974.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Músicas tradicionais portuguesas e galegas em piano solo e em dose dupla


Por NUNO PACHECO *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, artigo publicado na edição desta quarta-feira, de 05/06/2024, Ano XXXV, nº 12.452, coluna Cultura, p. 30.
Alberto Vilas e João Paulo Esteves da Silva trazem para o piano solo canções tradicionais galegas e portuguesas. Dois discos, com um editor a uni-los: António Miguel Guimarães.

 

Da esq. p/ dir.: os pianistas: o português João Paulo Esteves da Silva e o galego Alberto Vilas

 

Esta história começa na Argentina, passa pela Galiza e acaba por estender-se a Portugal, que na verdade esteve sempre presente. Dois grandes pianistas, um galego e outro português, Alberto Vilas e João Paulo Esteves da Silva, estão a lançar em simultâneo discos com versões para piano solo de canções tradicionais dos respectivos cancioneiros: Once Cancións e Unha Danza, de Alberto Vilas; e Farnel, 15 Canções Portuguesas, de João Paulo Esteves da Silva. A editora é a mesma, a AMG Music, de António Miguel Guimarães. 

Alberto Vilas já começara a trabalhar os temas agora editados antes de conhecer António Miguel Guimarães, mas foi o contacto com ele que acabou por conduzir a esta edição dupla. “Gravámos um disco do Vitorino, Tango [2009], na Argentina. Quando conseguimos reunir as condições para fazer um concerto a partir desse disco, o Ramón Maschio, que era o director musical, convidou o Alberto Vilas como pianista”, conta o editor. 

O elo reforçou-se depois com uma visita à Galiza. “Mostrou-me, em casa, um conjunto de peças em que estava a trabalhar e eu disse que teria o maior prazer em editá-lo.” E as conversas com Alberto Vilas deram-lhe ainda outra ideia: “Fazer um convite ao João Paulo [Esteves da Silva], também ele grande admirador da música tradicional e popular, com muitas colaborações com a Brigada Victor Jara, uma das minhas referências.” No fundo, diz, “alinharam-se as estrelas” para esta edição dupla que o satisfaz especialmente. “As fronteiras na música são uma coisa muito ténue, e mais ainda na música tradicional europeia. Há músicas que têm expressões nestes dois países, as letras é que mudam e às vezes só numa parte.” 

Alberto Vilas, a partir da Galiza, explica ao PÚBLICO o que o atraiu neste cancioneiro: “Foi uma necessidade pessoal. Cresci com ele e comecei a ver a possibilidade de trabalhar sobre a música popular galega.” 

Por sua vez, João Paulo Esteves da Silva diz que este trabalho deu corpo único, em forma de disco, a algo que já faz há 30 anos: “Nos meus concertos a solo eu não prevejo nada e deixo que as canções apareçam. E costumam aparecer, duas ou três por concerto.” O desafio do editor trouxe-lhe “descobertas como O pregão das lagostas”, que incluiu no “ramalhete” agora lançado. 

António Miguel Guimarães quer agora unir os dois pianistas em palco, numa apresentação conjunta destas obras. “Estamos a apresentar o espectáculo a directores de teatros e vamos conseguir.”

 

NOTA do Gerente do Blog: O áudio de algumas amostras das peças dos dois discos pode ser apreciado no seguinte link: https://artenotes.blogs.sapo.pt/dois-novos-discos-de-alberto-vilas-e-738831