quinta-feira, 6 de junho de 2024

A NOVA LITERATURA BRASILEIRA


Por ANTÓNIO FERRO *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal DIÁRIO DE NOTÍCIAS, artigo publicado na edição de sexta-feira, de 31/05/2024, Ano 160º, nº 56.652, coluna ACONTECEU EM, p. 31.
AS NOTÍCIAS DE 31 DE MAIO DE 1924 PARA LER HOJE (Arquivo DN Cristina Cavaco, Luís Matias e Sara Guerra)
Graça Aranha e os escritores novos do Brasil — Algumas figuras da nova geração — O morro do Castelo e a velha literatura brasileira

 

Portugal e o Brasil são dois irmãos queridos que vivem afastados... Lembramos muito um do outro mas nunca se escrevem... Portugal e o Brasil se viessem, novamente, a encontrar-se, juntos, já não se conheceriam... O intercâmbio tem sido mal orientado. As missões intelectuais que atravessam o Atlântico dirigem-se a um Brasil oficial, ao Brasil académico. Ficam à superfície, ficam nas cidades... Ora o verdadeiro Brasil não se encontra nos banquetes nem nas festas de homenagem. O verdadeiro Brasil, o Brasil que tem expressão e raça, vive escondido, procura a solidão, tem o orgulho de não se exibir, de não se meter com ninguém... É preciso descobri-lo, é preciso trazê-lo para a luz, fotografá-lo "à contre-coeur".

Da literatura brasileira, por exemplo, conhecem-se apenas meia dúzia de nomes. Esses nomes, porém, gloriosos e fortes, pertencem a um Brasil que já hoje não existe, a um Brasil que se recorda com saudade, que se respeita mas que já não está coerente com o movimento da Avenida Central e com as obras do Morro do Castelo...

A literatura brasileira está vivendo uma hora de renovação, está-se libertando da onda de romantismo que a inundou, que lhe deu uma alta expressão, mas uma expressão retórica. A literatura brasileira voou muito alto nos poemas de Castro Alves e de todos os "condoreiros"... Precisa descer um pouco, agarrar-se mais à vida, integrar-se na atmosfera trepidante e sonora do Brasil moderno, acompanhar as locomotivas que vão rasgando as florestas e vão semeando cidades pelas terras incultas do interior...

Essa actualização da literatura brasileira começa a desenhar-se... O primeiro impulso foi dado, num belo exemplo que é preciso mostrar a Portugal, pelo académico Graça Aranha, o autor do "Canaã", romance eterno, romance em bronze...
 
Graça Aranha
Graça Aranha viveu alguns anos em Paris na intimidade de Paul Claudel e de outros escritores modernos. Paris indicou-lhe a hora oficial da Arte contemporânea. Verificou que o seu relógio estava certo mas lembrou-se de que não acontecia o mesmo no Brasil, lembrou-se de que havia por lá alguns mostradores onde os ponteiros marchavam com lentidão, sem impaciências e sem febre... Regressou ao Brasil e, apesar de académico, pronunciou-se contra a Academia e contra o seu espírito de rotina. Graça Aranha, o velho amigo de Machado de Assis, um dos primeiros acadêmicos, diplomata de categoria, investiu corajosamente contra os filisteus, colocou-se no alto da barricada e soltou o primeiro grito de guerra no espectáculo inaugural da Semana de Arte Moderna realizada em S. Paulo. Elysio de Carvalho e Paulo Prado, contemporâneos de Graça Aranha, acompanharam-no, rejuvenesceram, com ele, no combate sem tréguas contra as velhas fórmulas, contra os preconceitos encanecidos... O discurso de Graça Aranha, em S. Paulo, foi o toque de reunir. Todos os brasileiros novos, todos aqueles que desejavam uma literatura tão moderna como o Brasil, vieram colocar-se ao lado de Graça Aranha, armados com a sua mocidade e com a sua fé, dispostos à grande guerra, últimos bandeirantes, bandeirantes da Arte e da Beleza... E pouco a pouco, toda uma geração se foi afirmando, uma geração que olhou a paisagem brasileira com novos olhos, que encontrou síntese e grandes linhas numa vegetação aparentemente luxuriosa e prolixa...

Ronald de Carvalho, que ama o presente sem desdenhar o passado, escreveu esses admiráveis "Epigramas Irônicos e Sentimentais" onde o Brasil é desenhado a quatro traços, à japonesa, à maneira de Fujita... Álvaro Moreira, grande escritor para quem a vida é um livro de anedoctas, escreveu "Um sorriso para tudo...", sorriso triste, muitas vezes... Olegário Mariano, o último romântico do Brasil, escreveu as "Últimas cigarras", cigarras cantantes e boêmias... Renato Viana, demolidor do velho teatro brasileiro, escreveu a "Salomé", a Salomé de hoje, aquela Salomé de cabelos oxigenados e lábios de tinta encarnada, que dança em todas as vidas... Paulo Torres, o poeta da cidade coleante que é a Capital Federal, escreveu "A hora da neblina", livro enternecido onde se canta um vestido como se canta um corpo, onde se beija uma luva como se beija certa mão... Renato Almeida, o profeta do movimento modernista brasileiro, é o autor do "Fausto", obra que é um oceano de ideias novas... Onestaldo Pennafort, poeta que tem o recolhimento dum verso de Samain, escreveu o "Perfume", ritmos de seda e veludo... Mário Ferreira, Peregrino Júnior e Buarque de Holanda anunciam, constantemente a hora da partida nas colunas dos jornais... Tristão de Ataíde e Agripino Grieco são os críticos da gente nova, críticos serenos que vão separando, tranquilamente, o trigo do joio...

Mas foi em S. Paulo, depois da Semana de Arte Moderna, que o movimento atingiu a maré-cheia... Os escritores modernos paulistas reuniram-se na revista "Klaxon" e largaram a toda a velocidade... Monteiro Lobato, escritor regional desempoeirado, auxiliou o movimento com a fundação duma casa editora que é hoje uma das mais importantes do Brasil. O milionário Paulo Prado, que lembra o Diaghilev dos "Bailados Russos" sacrificando a sua fortuna ao triunfo da Arte moderna, pôs todos os seus bens à disposição dos escritores novos de S. Paulo. Oswald de Andrade, o grande romancista de "Os condenados", é o animador do movimento, o guerrilheiro mais audacioso... Foi a Paris, conviveu com Jean Cocteau, Jules Romains, Max Jacob e convenceu Blaise de Cendrars, o indomável Blaise de Cendrars, a ir ao Brasil fazer uma "tournée" de conferências. Guilherme de Almeida, poeta de versos sossegados como bonecas de seda, decide-se, um dia, a dizer tudo quanto lhe vai na alma e escreve "Era uma vez...". Menotti del Picchia, imaginário, vai engrandecendo a catedral gótica da sua Arte... Mário de Andrade é o próprio "Klaxon", a busina atroadora a abrir caminho... Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Francisco Lagreca, Sérgio Milliet, Tasso de Almeida, Couto de Barros, Luís Aranha, René Thiollier, Carlos Drummond, Enéas Ferraz, Rocha Ferreira, Cândido Mota Filho, Rubens de Morais, Joaquim Inojosa, Paulo de Magalhães e muitos mais, comandam, em vários pontos do Brasil, guerrilhas modernistas, grupos de bandeirantes...
 
Neste artigo, onde procurei fazer, rapidamente, um balanço de alguns valores novos do Brasil, do Brasil que deseja modernizar-se, não há a menor falta de respeito pelo velho Brasil, pelo Brasil de Rui Barbosa, de Coelho Neto, de Machado de Assis, de D. Júlia Lopes de Almeida, de Afrânio Peixoto, de Euclides da Cunha e de tantos outros. Neste momento encontra-se justamente, em Lisboa um representante desse glorioso Brasil literário, acadêmico que tem sabido conservar-se livre, que tem sabido conservar-se novo... Quero referir-me a Filinto de Almeida, pai desse poeta íntimo, poeta do lar e do amor, que é Afonso Lopes de Almeida Cardoso de Oliveira, o ilustre embaixador do Brasil, é outro representante desse Brasil que há de viver sempre na saudade.

O Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, está a ser destruído... A cidade tende a alargar-se e aquele Morro é uma parede que lhe impede o natural desenvolvimento. O Morro do Castelo é um símbolo. A velha literatura brasileira é um morro glorioso, morro dum castelo encantado onde pousaram águias e onde viveram príncipes lendários... Mas a literatura brasileira precisa de ser actualizada, precisa de modernizar-se. O morro do Castelo da Retórica opõe-se a essa renovação, a essa marcha para o futuro... Urge destruí-lo. Destruir-lhe a forma e guardar-lhe o espírito. Graça Aranha e os seus companheiros não devem descansar. Se não destroem os vários morros que rodeiam a alma brasileira, a alma da raça, arriscam-se a ficar emparedados...
 
* António Ferro foi um escritor, jornalista, político e diplomata português. Foi o grande dinamizador da política cultural do Estado Novo, regime político que vigorou em Portugal durante 41 anos ininterruptos, desde a aprovação da Constituição portuguesa de 1933 até ao seu derrube pela Revolução de 25 de Abril de 1974.

8 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Há um grande volume de trabalhos acadêmicos e livros sobre o que representou a Semana de Arte Moderna para as artes brasileiras em geral e para as letras em particular, especialmente após o primeiro centenário do movimento que contribuiu para a consolidação de uma identidade nacional verdadeira, alargando os conceitos de belo impostos por uma cultura europeizada e desvencilhando-se dos ideais românticos e parnasianos.
Até hoje eu não tinha conhecimento da repercussão do modernismo brasileiro na visão de autores que não fossem brasileiros. Finalmente, deparei-me com uma matéria claramente favorável ao modernismo brasileiro na ótica do escritor e jornalista português, ANTÓNIO FERRO, datada de 31/05/1924, disponível no acervo do jornal português Diário de Notícias.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/06/a-nova-literatura-brasileira.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Agostinho Dias Carneiro (lexicógrafo que está trabalhando na feitura de um novo dicionário da língua portuguesa) disse...

Muito bom esse artigo, Braga, sobretudo pela pré-visão do que seria o Modernismo, que não era bem-visto... Abs e obrigado pelo envio.

Róbson Abrantes (pesquisador e historiador de Barbacena-MG) disse...

Obrigado por compartilhar.

José Geraldo Heleno (escritor, autor de "Hércules no Eta: uma tragédia estóica", e membro da Academia Barbacenense de Letras) disse...

Bom dia.
Muito obrigado.

Abraço.

Róbson Abrantes (pesquisador e historiador de Barbacena-MG) disse...

Obrigado por compartilhar.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Por outro lado, salta aos olhos o que ocorreu ao Brasil neste bicentenário em contraste chocante com aquele glorioso 1922. Além de não ter sido feito absolutamente nada em termos de realizações comemorativas, ainda acompanhamos o dia 07.09.2022 marcado tragicamente com manifestações golpistas e o lema "imbrochável"(sic) gritado pela multidão em massa que lá compareceu .|Uma regressão civilizacional inconteste.
Excelente artigo. Saudações !

Cupertino

Hilma Pereira Ranauro (escritora, autora de "Descompasso" e "O Falar do Rio de Janeiro" e membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Virtual Mageense de Letras) disse...

Sugiro A Língua Portuguesa e a Realidade Brasileira de Luiz Carlos Lessa.

Ele apresenta o uso, nos modernistas, de usos da linguagem, digamos, da

linguagem popular: ter por haver, por ex.: HOJE TEM AULA?

E tantas outras coisas que, às vezes, até nós usamos numa linguagem coloquial.

Tive oportunidade de saber sobre livros escritos em Portugal.

No trabalho que realizei o tema era sobre o modernismo no Brasil.

Hilma

Hilma Pereira Ranauro (escritora, autora de "Descompasso" e "O Falar do Rio de Janeiro" e membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Virtual Mageense de Letras) disse...

Veja no Google SOBRE ANTÔNIO FERRO.

Acabou me fornecendo uma informação importante.

Grata.

Hilma