terça-feira, 4 de junho de 2024

NO THEATRO CIRCO, ensaia-se um novo cânone em CONTRAPONTO


Por RICARDO DA ROCHA *
Transcrevemos com a devida vênia do jornal PÚBLICO, artigo publicado na edição de sexta-feira, de 31/05/2024, Ano XXXV, nº 12.447, coluna Cultura, p. 32.
Novo ciclo dedicado à música clássica celebra hoje o quarto momento, com a Sinfonietta de Braga dirigida pelo maestro Jan Wierzba.
 

Quando os tratadistas medievais usaram a expressão Ars nova para designar o corte com uma forma de notação musical antiga, tinham em mente um conjunto de inovações ocorridas na primeira metade do século XIV, em França. Estes desenvolvimentos permitiram uma complexificação e maior precisão do registo rítmico, enraizando na partitura a polifonia que já se ouvia cantada e fazendo desabrochar o contraponto. 

No Theatro Circo, em Braga, Contraponto é o nome de um novo ciclo de programação musical. Um piscar de olhos à técnica de composição, e, porventura, à tensão entre progresso e tradição a que a sua origem está associada, mas cujo sentido primário é o de contraste: de uma linha programática que se desenha com compositores dos séculos XX e XXI por “contraponto a uma programação mais expectável na área da música erudita”, explica Luís Fernandes, que assume, desde o ano passado, a direcção artística conjunta do Theatro Circo e do gnration, dois vibrantes espaços culturais da capital minhota, que se vem afirmando como cidade de crescente importância na música contemporânea em Portugal. 

Gesto poético contra a barbárie que nunca nos deixou verdadeiramente, o Quarteto para o fim dos tempos, de Olivier Messiaen, composto e estreado em Görlitz num campo de concentração, marcou o início de Contraponto, com uma interpretação do Pluris Ensemble. Num outro concerto, em Abril, o grupo Ars Ad Hoc executou obras de Stravinsky, Debussy e Feldman. O ciclo, porém, não reúne só apelidos cristalizados na história da música recente, mas também compositores do nosso tempo. É o caso da britânico-iraniana Shiva Feshareki, cuja estreia em Portugal, com a obra Transfigure, envolveu um gira-discos manipulado pela própria e alunos da Universidade do Minho, em Março passado. Práticas e estéticas que para Luís Fernandes são “fundamentais nas programações regulares, fora das grandes cidades”, em diálogo com as estruturas locais. 

Esta sexta-feira, o diálogo estabelece-se com a Sinfonietta de Braga, orquestra de cordas responsável pelo quarto dos seis momentos em que o ciclo está dividido. 

“Liberdade para frasear” 

Sinfonietta de Braga no Theatro Circo e o maestro Jan Wierzba durante um ensaio
 

A dirigir pela primeira vez, não só o agrupamento como a grande maioria dos compositores do programa que será interpretado, o maestro Jan Wierzba confessa ao PÚBLICO que “é raríssimo receber um convite para fazer este género do repertório, porque estamos a falar de música que não está em domínio público e que não é propriamente de audição mainstream”. 

Com obras de Kaija Saariaho, György Ligeti, Grażyna Bacewicz e Arvo Pärt, o concerto da Sinfonietta é “uma viagem no tempo pela modernidade da escrita para cordas”, diz o maestro. 

Da finlandesa Saariaho, falecida no ano passado, ouvir-se-á Terra Memoria. Originalmente composta em 2006 para quarteto de cordas e com uma dedicatória “aos que já partiram”, a obra procura dar conta do que é a experiência de viver com a recordação dos que já cá não estão. Afinal, as lembranças não desaparecem, regressam permanentemente para nos confortar ou assombrar e podem inclusive transformar-se com o tempo — tal como o material musical da peça, que reaparece ora inalterado ora completamente transformado, dependendo da forma que o trabalho lhe dá, explica a compositora numa nota de programa. “É uma peça que tem imenso lirismo dentro da estética da Kaija Saariaho”, comenta Jan Wierzba. Na partitura, um texto introdutório explica, entre outras coisas, que as indicações de tempo são meramente sugestivas. “Ela gosta de que o intérprete tenha liberdade para frasear. Ter essa liberdade e empoderamento por parte do próprio compositor é algo que me fascina”, diz o maestro. 

Ramifications, de Ligeti, é uma obra de 1968, pós-Atmospheres e pós-Lontano: continua o estudo microscópico do som, aqui num desafiante exercício em que uma substância musical semelhante é prescrita a dois grupos de cordas em sistemas de afinação diferentes, à distância de um quarto de tom, resultando na micropolifonia característica do compositor. 

O concerto para cordas de Grażyna Bacewicz, escrito 20 anos antes da peça de Ligeti, aponta a uma estética radicalmente diferente. Sente-se a pulsão do neoclassicismo, que caracterizou a primeira fase das suas obras, entre melodias dançáveis e bem-humoradas. O concerto ajudou a consolidar a fama internacional daquela que é não só uma das figuras proeminentes da música polaca do século XX, mas uma das primeiras mulheres a conseguir estabelecer-se como compositora a nível mundial. “A minha mãe era violinista, polaca, e conhecia Grażyna Bacewicz pessoalmente. Tocou muito a música dela”, revela o maestro luso-polaco, que, apesar da sua ligação afectiva à música de Bacewicz, nunca a tinha levado a palco. 

Frattes, de Arvo Pärt, na sua versão para orquestra de cordas e percussão, encerrará o concerto, num tom introspectivo mais próximo de Saariaho. Com uma grande economia de material, linhas melódicas simples, mas de grande expressividade e hipnótica religiosidade, a obra é emblemática da identidade cristalina que Pärt construiu, depois de um período de grande experimentação mais próximo do serialismo.  

Um cânone alternativo 

Questionado sobre a resposta do público a uma programação que procura construir um cânone alternativo, com abordagens estéticas tão variadas como as que encontramos na música a partir do século XX, Luís Fernandes mostra-se satisfeito, embora reconheça que “no caso da música as coisas levam o seu tempo”. A sala do Theatro Circo ainda não enche e isso “acarreta um risco que nós tomamos, numa construção de públicos, que certamente será lenta, porque não estamos a dar rebuçados, estamos a tentar abrir caminho para outro tipo de propostas”. 

Os dois últimos momentos do ciclo, cujas datas serão anunciadas brevemente, levarão ao Theatro Circo a Orquestra Sem Fronteiras sob a direcção do maestro Martim Sousa Tavares, que apresentará um programa ancorado na música contemporânea dos Estados Unidos, com obras de Robert Paterson, Morton Feldman, John Cage, Nathan Bales, entre outros. E, no final do ano, em destaque, estará a vinda do compositor inglês Gavin Bryars com o seu ensemble, numa iniciativa conjunta com o Auditório de Espinho, que incluirá a participação de alunos dos conservatórios de Espinho e de Braga.

* Jornalista e crítico de música clássica

2 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
A Sinfonietta de Braga nasceu em 2006, a partir da vontade de um professor do Conservatório e um grupo de alunos do Ensino Secundário. Dez anos depois, a Sinfonietta passou por uma transformação: de um organismo praticamente constituído por alunos, a Sinfonietta passava a ser uma Associação constituída exclusivamente por músicos profissionais, sob a presidência de Pedro Oliveira.
A Sinfonietta de Braga deu início no dia 31 de maio p.p. ao Contraponto, um ciclo dedicado à composição dos séculos XX e XXI, que se distingue por convidar ensembles e compositores, locais, nacionais e internacionais a contribuírem para este período contemporâneo, que é considerado um dos mais férteis em novas ideias e formas.
O novo ciclo foi inaugurado com um concerto com obras de Kaija Saariaho, György Ligeti, Grażyna Bacewicz e Arvo Pärt, que foi descrito pelo crítico musical RICARDO DA ROCHA como um "contraponto a uma programação expectável na área da música erudita", ou seja, com um repertório que contrasta com uma programação tradicional de música erudita.

Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/06/no-theatro-circo-ensaia-se-um-novo.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei

Talita Vilela disse...

Prezado, Francisco Braga,
Bom dia! Espero que esta mensagem o encontre bem.

Gostaríamos de agradecer pelas informações fornecidas sobre a Sinfonietta de Braga.
A música é uma arte que aproxima pessoas e culturas, e iniciativas como esta desempenham um papel fundamental na promoção da cultura e na valorização do talento musical.

Com os melhores cumprimentos,

Talita Vilela

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