Por Eduardo Alves da Costa *
Transcrevemos, com a devida vênia da Geração Editorial, o poema referenciado constante do livro-título “No caminho, com Maiakóvski: poesia reunida”, publicado em 2003, pp. 47-49 (originalmente publicado no livro de poemas “O Tocador de Atabaque” pela Editora Paulista, em 1969).
Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite, eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite,
já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.
Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne a aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.
Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA!
* Nascido em Niterói em 1936, é poeta, romancista, contista e artista plástico. Vive na praia de Picinguaba, em Ubatuba, litoral norte de São Paulo, com a mulher, a produtora Antonieta Felmanas.
II. HISTÓRIA DO POEMA pelo gerente do Blog de São João del-Rei
“Eu tinha 27 anos, militava na esquerda e pensei em Maiakóvski quando escrevi o poema", rememora Costa. E continua: “Estava sentado num banco da Praça da República, no centro de São Paulo, quando me veio a ideia. Imaginei uma conversa com o poeta que mais admirava. Fui para casa e passei o texto a limpo.”
Nunca imaginou que os versos iriam se popularizar, até fora do Brasil. Foi este o maior sucesso do escritor, mesmo considerando que é um prosador hiperativo. Publicou quatro livros de poesia, três de contos, quatro romances e cinco peças de teatro.
Passados 60 anos, constata-se que “No caminho, com Maiakóvski” tornou-se um dos poemas brasileiros mais conhecidos no mundo. Em meados de 1964, depois da revolução de 31 de março, o poema passou a ser declamado em protestos nas ruas, assembleias estudantis, centros acadêmicos e sindicatos e passou a ser usado como libelo contra a ditadura. Os que o declamavam acreditavam tratar-se de uma tradução anônima do poeta soviético de vanguarda por parte de algum militante comunista.
Diante da informação de que o seu verdadeiro autor era um brasileiro, muitos preferiram acreditar que Costa era apenas o tal tradutor comunista. A crença de que a autoria era do próprio Maiakóvski parecia-lhes mais bonita do que o fato real. “Como é possível que um poema tão bem construído fosse de um brasileiro?”, pensavam com seus botões.
Pois era, e foi assim que Costa virou Maiakóvski.
O poeta Eduardo Alves da Costa garantiu que Maiakóvski nada tinha a ver com o poema, em entrevista à Folha de São Paulo, edição de 20.9.2003.
Na Apresentação do livro de 2003 (pp. 9-10), o editor comenta:
“(...) O poeta, romancista, contista e artista plástico divertiu-se com a sina de ter escrito um dos poemas mais populares do Brasil e não ser considerado seu autor, até que Mino Carta, Henfil e Manoel Carlos, entre outros, há muitos anos, repararam esta injustiça, em seus textos e, no caso de Manoel Carlos, em novela na TV ¹. Hoje, apenas os desinformados continuam a insistir na autoria do poeta russo e outros. Na verdade, a obra fala por si.
Porém, ao contrário do que possa parecer, Eduardo Alves da Costa não é poeta de uma obra só.
A presente coletânea – toda poesia de Eduardo escrita até aqui – pretende fazer justiça a esse dono de um fazer poético vigoroso, impactante, de cunho social, que mistura erudição, criatividade no trato da língua e comunicação imediata com o leitor. O drama humano é o que o interessa; mesmo quando Eduardo Alves da Costa faz poemas autobiográficos, seus versos criticam todo um pensar consolidado/tipificado pela sociedade – que ele ataca com armas diversas: a amargura, a ironia, o humor. Para ele, não há concessões: a poesia, além de reflexiva, é um território e tanto para a crítica social.”
Finalmente, cabe citar que o poema “No caminho, com Maiakóvski” foi publicado no livro “Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século”, organizado por José Nêumanne Pinto, p. 218.
III. NOTA EXPLICATIVA
¹ De acordo com Soares Feitosa, in Jornal de Poesia, “foi resolvida, graças à novela das oito, uma confusão de 30 anos. Escrito nos anos 60 pelo poeta fluminense Eduardo Alves da Costa, 67, o poema “No Caminho, com Maiakóvski” era (quase) sempre creditado ao russo Vladimir Maiakóvski (1893-1930).
Em “Mulheres Apaixonadas”, Helena (Christiane Torloni) leu um trecho do poema, dando o crédito correto. Foi o suficiente para reavivar a polêmica – resolvida dois capítulos depois, em que a autoria de Costa foi reafirmada – e, de quebra, fazer surgir uma proposta de reeditar o poema, para aproveitar a exposição no horário nobre.
Livro combinado, a noite de autógrafos será na novela. “Pedi que apresse e me mande até o dia 10. Quero lançar aqui”, diz Manoel Carlos, autor de “Mulheres”.”
IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, Eduardo Alves: No caminho, com Maiakóvski: poesia reunida, São Paulo: Geração Editorial, 2003, 285 p.
Links consultados em 23/08/2025:
https://www.portalraizes.com/no-caminho-com-maiakosvki-do-poeta-eduardo-alves-da-costa/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Eduardo_Alves_da_Costa
https://zonacurva.com.br/maiakovski-na-primeira-noite/
https://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/07/o-homem-que-virou-bmaiakovskib.html
8 comentários:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
O Blog de São João del-Rei tem o prazer de reproduzir o poema referenciado da autoria do poeta brasileiro EDUARDO ALVES DA COSTA, que por muito tempo foi confundido com o próprio autor soviético de vanguarda, Vladímir Maiakóvski (1893-1930) ou com algum seu tradutor para o português.
O seu poema serve de alerta para toda ameaça à liberdade, independente da época ou das circunstâncias a que se refira.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/08/no-caminho-com-maiakovski.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Pedro Rogério Moreira (jornalista e sócio da Gracián Telecom, cronista e memorialista brasileiro) disse...
Obrigado!
Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008)) disse...
Obrigado pelo carinho.
António Valdemar (Jornalista, carteira profissional numero UM; sócio efetivo da Academia das Ciências; sócio correspondente da ABL-Academia Brasileira de Letras) disse...
Francisco,
Bom dia e bom domingo
Recebi e agradeço Vladímir Maiakóvski.
Abraço do Valdemar
Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...
Muito obrigado, Braga. Ótimo domingo pra você. Forte abraço poético.
Anderson Braga Horta (poeta, escritor, ex-presidente da ANE-Associação Nacional de Escritores e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, cujo livro mais recente de novembro 2024, Iniciações, revisita os anos felizes de sua infância na Cidade de Goiás) disse...
Muito bem, Francisco. Excelente notícia do poeta Eduardo Alves da Costa.
Grande abraço.
Anderson
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