Por Alberto Venâncio Filho *
Publicado originalmente in A Ordem, vol. 84, jan-dez 1993.
Na história da vida jurídica ocorre, singularmente, em certos momentos de crise, o surgimento de personalidades que conseguem se sobrepor aos acontecimentos, e tentam conduzi-los para os caminhos da justiça e do bem comum.
Os exemplos não são muitos em nosso país, mas pode-se apontar alguns casos. Assinale-se por ocasião do processo dos envolvidos na Conjuração Mineira, no final do século XVIII, o advogado da Santa Casa de Misericórdia, José de Oliveira Fagundes, indicado pela instituição, que, arrostando os maiores empecilhos e dificuldades, conseguiu fazer a defesa de seus clientes em condições extremamente difíceis, das quais basta apontar o prazo de meia hora para apresentação de embargos.
No século XIX, no processo dos bispos de Olinda e do Pará, que se rebelaram contra a política imperial do regalismo, foram dois ilustres políticos e juristas, Candido Mendes e Zacarias de Góis, que se aprestaram na defesa de Dom Antônio de Macedo Costa e Dom Vital de Oliveira.
Nas primeiras décadas do século XX, avulta a figura de Evaristo de Moraes como o grande advogado das causas criminais, dentro do espírito de apego à justiça e ao direito. Nenhum deles, entretanto, sobreleva à figura de Rui Barbosa, pela grandeza das atitudes, tornando-se o grande arauto dos princípios de federalismo adotados em 1891, e defensor dos direitos e das garantias individuais, nos excessos que o regime incipiente tentava adotar, numa pretensa defesa dos princípios republicanos. A atuação de Rui Barbosa realmente não encontra parelha pela combatividade, pela extensão dos conhecimentos jurídicos, através dos quais se tornou o verdadeiro professor do constitucionalismo, e pela coragem sem limites.
No ano de 1993, quando se comemora o centenário de nascimento de Heráclito Fontoura Sobral Pinto, o exame de sua vida, na qual há tantas semelhanças com a do jurista baiano, permite, sem exagero, ser a ele comparado, por muitos dos aspectos que sejam objeto de análise.
Heráclito Fontoura Sobral Pinto nasceu em Barbacena, em 5 de novembro de 1893 – mesma data de nascimento do seu êmulo –, filho de um funcionário ferroviário. Naquela época, embora com remuneração modesta, a figura do funcionário ferroviário era nas pequenas cidades do interior só comparável à do prefeito e à do juiz de direito.
Nas caminhadas que o êxodo por vários lugares levou seu pai, Sobral Pinto teve em Porto Novo do Cunha o primeiro contato com a violência e o arbítrio, que iria marcar, de forma bastante acentuada, o seu espírito e o seu temperamento. Tinha pouca idade e estava certo dia na janela da casa, quanto viu alguns homens levando um indivíduo na base das maiores agressões físicas. Sobral Pinto não se conteve, saiu pela porta e começou a deblaterar junto aos algozes: “Seus covardes!”
Realizou estudos secundários em Friburgo, no Colégio Anchieta, dos padres jesuítas, que terá contribuído para moldar a personalidade naqueles padrões de ferro de conduta e de temperamento. Em seguida, transfere-se para o Rio de Janeiro, onde faz os seus estudos de direito na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, que funcionou, inicialmente, no prédio do Colégio Pedro II e, em seguida, se transferiu para a Academia de Comércio, na Praça XV. Naquela época, existiam no Rio as duas faculdades, esta e a Faculdade Livre de Direito, ambas criadas em 1891, com as facilidades trazidas pela reforma Benjamin Constant. O padrão não discrepava do mediano e, muito embora alguns professores fossem advogados ilustres, o ensino era exclusivamente prático.
Ressalte-se que nos vários depoimentos que Sobral Pinto deu durante toda a vida, não há nenhum registro expressivo do aprendizado haurido na faculdade, o que ocorre na maioria dos casos, comprovando a tese de que os advogados daquela época, como grande parte ainda hoje, eram autodidatas. Entre os professores, cabe apontar Carvalho Mourão, Alfredo Pinto, Manuel Cícero, e entre seus colegas de turma de 1917, Edmundo da Luz Pinto, Guilherme Gomes de Mattos e Paulo Bittencourt.
Sobral Pinto inicia-se logo na advocacia, mas em pouco tempo seria chamado a desempenhar as funções de Procurador Criminal da República, em 1924. Era a época difícil da Presidência Arthur Bernardes, vivia-se sob o estado de sítio, e iniciavam-se os movimentos militares revolucionários. Na função que exercia, Sobral Pinto, nos ardores da mocidade, procurou ser implacável na condenação dos líderes do movimento. Consta que, em determinado caso, tendo a defesa arguído que alguns militares não teriam participado diretamente do movimento, por se encontrarem impedidos por motivos vários, assim mesmo Sobral Pinto pediu-lhes a condenação, alegando que não haviam participado do movimento por falta de oportunidade, sendo a traição aos superiores à legalidade a mesma para todos os revolucionários. Deixou a Procuradoria Criminal entre agosto e setembro de 1928 e ocupou logo em seguida o cargo de Procurador-Geral do Distrito Federal.
Nesse mesmo ano de 1928, ingressa no Centro D. Vital, criado em maio de 1922, no Rio de Janeiro, por Jackson de Figueiredo, com apoio de Dom Sebastião Leme, e passa, em seguida, a ser responsável pela crônica política do jornal da instituição, A Ordem.
Os anos que precederam a Revolução de 30 e os que se seguiram eram de grande ebulição ideológica, e os artigos de crítica ao Governo Provisório de Getúlio Vargas provocaram discussões e objeções. Em 1933, Sobral Pinto adere à Liga Eleitoral Católica (LEC), organização criada com o objetivo de orientar os meios católicos para a escolha dos representantes na Assembléia Nacional Constituinte.
A partir de 1928, quando deixa a Procuradoria Geral do Distrito Federal, Sobral Pinto passou a ser única e exclusivamente advogado, rejeitando todo e qualquer convite para o exercício de cargos públicos.
Mas o momento áureo surge em 1936, quando o presidente do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro, Targino Ribeiro, o designa para defender os dois principais líderes do movimento de 35, Luiz Carlos Prestes e Harry Berger. A designação de Sobral Pinto se deu – e não se pode omitir este registro – após a recusa de numerosos advogados, que, pretextando os motivos mais variados – excesso de trabalho, doença na família, viagens frequentes –, se escusaram do encargo. Respondendo ao ofício do Presidente da Ordem, diria Sobral Pinto:
“O que me falta em capacidade, sobra-me, porém, em boa vontade para me submeter às imposições do Conselho da Ordem; e em compreensão humana para, fiel aos impulsos do meu coração cristão, situar no meio da anarquia contemporânea a atitude desses dois semelhantes, criados, como eu e todos nós, à imagem de Deus.
Quaisquer que sejam as minhas divergências do comunismo materialista – e elas são profundas – não me esquecerei, nesta delicada investidura de que o Conselho da Ordem impõe, que simbolizo, em face da coletividade brasileira exaltada e alarmada: A DEFESA.”
“Fiquei sendo um advogado com a noção do que é advocacia, que não é a mímica do dever. Obtive êxito, muitas vezes obtive a solução, e mais, passei a funcionar desde o sumário.”
A luta de Sobral Pinto foi hercúlea. Os dois presos se encontravam em situação extremamente precária, em condições de vida absolutamente miseráveis, sobretudo o segundo, que estava alojado num vão de escada, sem luz, sem ar e com os passos dos policiais que subiam e desciam as escadas. Em certo momento da sua luta, Sobral Pinto teve que apelar para a aplicação da lei de proteção aos animais em favor do seu constituinte.
No livro Por que Defendo os Comunistas estão transcritas as numerosas petições, cartas e documentos em que o advogado, de forma desassombrada, postulava pelo direito de seus clientes, e essa situação só se modificou em parte quando, assumindo a pasta da Justiça, José Carlos de Macedo Soares arrostou as resistências policiais, e pôde dar aos presos tratamento mais humano. Durante oito anos de prisão, incomunicável, o único contato que Luiz Carlos Prestes tinha com o exterior era a visita semanal que religiosamente lhe fazia o seu advogado.
No período do Estado Novo, a luta de Sobral Pinto não se limitou a essas atividades forenses, mas a um trabalho permanente de luta pela redemocratização. Escrevendo a crônica forense do Jornal do Commercio, iniciou, provocado por Cassiano Ricardo, diretor do jornal governista A Manhã, um debate com aquele escritor sobra a democracia. No decorrer do debate, obteve Cassiano Ricardo que o Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP, proibisse as publicações dos artigos de Sobral Pinto, bem como suas crônicas forenses. Iniciou uma nova batalha pelo direito de responder à polêmica, espelhada no volume Do Primado do Espírito nas Polêmicas Doutrinárias (As iras do Sr. Cassiano ...). São cartas e mais cartas, telegramas e mais telegramas em que defende vigorosamente o direito de resposta.
Por ocasião da polêmica, realiza-se em 1943, no Rio de Janeiro, o Congresso Jurídico destinado a comemorar o centenário do instituto da Ordem dos Advogados do Brasil. Havendo cerceamento dos debates, alguns dos congressistas deliberaram abandonar a assembleia, entre eles o advogado Pedro Aleixo, a quem foi oferecida uma homenagem, tendo-o saudado Sobral Pinto.
No discurso, em delicado momento, diria:
“A democracia que vos interessa, e pela qual não cessais, e não cessamos de batalhar com o vosso e o nosso exemplo de juristas abnegados, no seio da sociedade onde atuais e atuamos, é a que aspira, pelo contrário, a harmonizar, numa ordem jurídica estável, o exercício pleno da autoridade pública com o respeito intransigente ao direito individual de cada um dos cidadãos honestos, que trabalham, entre nós animados de nobres sentimentos de paz, de ordem e de justiça, para o progresso sempre crescente do bem comum da nação brasileira.”
Não tendo atuação partidária, Sobral Pinto voltou-se inteiramente ao exercício de sua atividade profissional, mas, em 1955, quando grupos políticos tentaram se aliar a setores militares para impedir a participação no pleito de Juscelino Kubitschek e João Goulart, voltou novamente à liça e criou a Liga de Defesa da Legalidade, com o objetivo de lutar pela realização das eleições e garantir a posse dos eleitos, quaisquer que fossem eles. Com a eleição para presidente de Juscelino Kubitschek, a primeira vaga ocorrida no Supremo Tribunal Federal foi a ele oferecida. Recusou a indicação, entre outros motivos, para não dar a impressão de que seria uma retribuição às atividades realizadas na Liga de Defesa da Legalidade.
Em 1964, com a vitória do movimento militar, vem Sobral Pinto novamente ao confronto, e logo, em abril de 64, escreveria carta ao Marechal Castelo Branco, advertindo-o de que sua candidatura, na qualidade de chefe do Estado Maior do Exército, era ilegal, tanto no pleito direto, quanto indireto.
O seu papel como advogado novamente se agiganta no período de repressão, violência e torturas, e entre os seus novos constituintes encontra-se a Missão Comercial Chinesa, dotada de passaporte diplomático, e que se encontrava no Brasil, tratando de intercâmbio comercial e que, entretanto, seus integrantes foram presos, torturados e sofreram os maiores vexames. Sobral Pinto os defendeu em toda linha e, após a condenação, foram eles deportados.
O Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, provocou novas violências, e Sobral Pinto, que, na ocasião, se encontrava em Goiás, foi preso, ficando detido alguns dias. Em resposta ao argumento do oficial carcereiro, de que o AI-5 visava ao estabelecimento de uma democracia à brasileira, afirmou:
“Coronel, há peru à brasileira, mas não há democracia à brasileira. A democracia é universal, sem adjetivos.”
Conselheiro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil por vários anos, e representando vários estados, manifestou-se contra o recesso do Congresso Nacional, feito pelo Presidente Ernesto Geisel, em abril de 1967, com a reforma do Poder Judiciário. Em maio de 68, defendendo o regime democrático, falou para os alunos da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nesse período exerceu a presidência do Centro D. Vital, em 1967, reconduzido em 1980. Exerceu ainda a cátedra de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, despertando o maior interesse entre seus alunos.
A sua vida de advogado não lhe deu vagar para a realização de trabalhos doutrinários mais profundos, mas os que divulgou dão mostra da sua cultura e do seu saber jurídico. Na revista Cadernos Brasileiros, publicou, em 1980, um estudo bastante completo sobre a Justiça Militar e prefaciou o volume das Obras Completas de Epitácio Pessoa, Acórdãos e votos no Supremo Tribunal Federal, com estudo profundo sobre a atuação daquele jurista, e no qual revelava sólidos conhecimentos de direito público. Discutindo a atuação desse magistrado e de críticas que lhe eram feitas, diria Sobral Pinto:
“O que cumpre examinar na trajetória de magistrados eminentes, do porte de Epitácio Pessoa, é a fidelidade à sua mentalidade jurídica. Ele, como juiz, encarava os fatos tão-só à luz das relações abstratas que as leis de seu tempo estabeleciam. Não lhe interessava indagar quais eram as partes em conflito. Tomava os fatos, tais como eles se lhe apresentavam dentro dos autos, para pô-los, logo depois, em equação com a lei a eles aplicável. Tudo o mais lhe era indiferente. Por isso, e tão-somente por isto, é que ele foi um grande juiz, como revelam os acórdãos e votos que proferiu.”
“para que esse destino privilegiado de homem livre se realizasse cabalmente, alcançou Sobral Pinto a libertação de um dos jugos mais perigosos e daninhos: a libertação do dinheiro.”
“A outra nota culminante do seu ideário é a paixão incandescente pela justiça. Não é o comum amor à justiça – um amor moderado, se bem que fiel, cauteloso, amor de técnico, cultivado por dever de ofício. Nada disso. É uma paixão devoradora, vulcânica, infatigável e obsessiva. Uma paixão que lhe incendeia a alma, movida pela fé, que não esmaece, e pela certeza de que o único destino nobre que o homem deve perseguir para mostrar que se anima de um sopro de vida, é de lutar hora a hora, minuto a minuto, contra as injustiças e pelo império da justiça.”
E as palavras de seu outro grande amigo e também grande advogado, Victor Nunes Leal, resumem esta atuação admirável:
“Sobral Pinto é o crítico vigilante da vida pública, o curador da vivência dos amigos, a consciência de cada um de nós naqueles frágeis momentos em que a nossa entra em colapso pela paixão, pelo medo, pela ira, pela insegurança, pela soberba, pela ambição, pela vaidade e até pelos desvios menores que por vezes descompassam as personalidades mais bem formadas.
Acima de tudo isso, é Sobral Pinto ‘o advogado’, o advogado em si, que combate do primeiro ao último instante pela causa que tem por justa, seja fraco ou forte aquele a quem defenda, especialmente se é vítima do poder, da prepotência, da maldade, da má-fé, da mistificação, da ignorância presunçosa.”
8 comentários:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Apelidado de “Senhor Justiça”, durante o Estado Novo e a ditadura militar, SOBRAL PINTO foi um ferrenho defensor dos direitos humanos dos presos políticos.
Na década de 1980, participou das Diretas Já. Em 1983, causou sensação ao integrar o histórico Comício da Candelária. Foi também um membro ativo e destacado da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Morreu aos 98 anos de idade no Rio de Janeiro, em 30 de novembro de 1991.
O Blog de São João del-Rei tem o prazer de reproduzir texto biográfico de ALBERTO VENÂNCIO FILHO.
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2025/08/sobral-pinto-o-advogado.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Pedro Rogério Moreira (jornalista e sócio da Gracián Telecom, cronista e memorialista brasileiro) disse...
Obrigado!
Belíssimo curriculum de direito o que revelou ainda um belíssimo ser humano acima de tudo
Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...
Muito bem lembrado reproduzir esse texto.
Dr. Sobral Pinto fazendo falta nos dias sombrios de hoje.
Cordialmente,
Raquel Naveira
Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008)) disse...
Obrigado!
Muito bom!
Parabéns pela publicação do texto. Sobral Pinto foi um grande brasileiro.
Parabéns Braga. Muito oportuno o artigo sobre Sobral Pinto. Não sabia que era nascido em Barbacena. Foi um grande advogado e jurista. Como ativo na política estudantil, beneficiei-me de algumas de suas defesas. Quando nossos advogados fraquejavam nas suas "mimicas jurídicas", recorríamos ao Sobral Pinto. Ás vezes nem precisava pedir. Ele se posicionava "à frente em nossa defesa. É isso mesmo, chegou a citar a lei dos "direitos dos animais" . Abraços Aylê
Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...
Cumprimentos ao Blog e a você, Braga, que com sensibilidade o dirige. Tenho a satisfação de ler esse texto de ALBERTO VENÂNCIO FILHO, um escritor que, com justiça, integra o seleto grupo de imortais da ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Acabo de procurar pelo endereço do autor que devo reverenciar e cumprimentar em meu nome e do blog O SER SENSÍVEL.
Forte poético.
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